TÍTULO V
DOS CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO E
CONTRA O RESPEITO AOS MORTOS

Capítulo I
DOS CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO

Introdução: Sentimento religioso é a convicção, acentuada pelo sentimento, da existência de uma ordem universal que se eleva acima do homem.1 Em tempos pretéritos, toda religião estava intimamente relacionada ao conceito de Estado. O dever religioso era um dever político, e, consequentemente, o crime contra a religião era crime contra o Estado. A profanação de um templo e o impedimento de um ato religioso, quando intencionais, constituíam atentados contra a ordem estatal. No Brasil, com o advento da República, foi reconhecida a liberdade de culto, proclamada antes mesmo da constitucionalização do novo regime, com o Decreto 119-A, de 07.01.1890, da lavra de Ruy Barbosa, expedido pelo Governo Provisório. Atualmente, a Constituição Federal, em seu art. 19, I, estatui ser “vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Vivemos, portanto, em um Estado laico ou não confessional: admite e respeita todas as vocações religiosas.2 Além disso, a Constituição Federal estabelece em seu art. 5º, VI: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. A expressão “na forma da lei”, associada ao caráter relativo dos direitos fundamentais, revela que esta liberdade pública não autoriza excessos ou abusos capazes de prejudicar outros direitos e garantias individuais.

Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo

Art. 208. Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:

Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Parágrafo único. Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.

Informações rápidas:

Abrange três condutas criminosas (tipo misto cumulativo): escarnecer (é necessária a publicidade do ato e que se refira a pessoa determinada); impedir ou perturbar (deve-se tratar de religião admitida pelo Estado) e vilipendiar (a conduta deve ser praticada publicamente e recair sobre ato ou objeto de culto religioso).

Não admite modalidade culposa. Exige dolo específico para “escarnecer” e “vilipendiar”. “Impedir ou perturbar” admite dolo eventual.

Concurso material obrigatório: pena do art. 208 + pena correspondente ao crime provocado pela violência.

Ação penal: pública incondicionada.

Objeto jurídico: É a liberdade de crença e o livre exercício dos cultos religiosos (CF, art. 5º, VI), desde que não ofendam a ordem pública e os bons costumes.

Objeto material: É a pessoa atingida em sua liberdade de crença, o ato que integra um culto religioso, ou o objeto utilizado para o exercício de uma determinada religião.

Núcleos do tipo: Cuida-se de tipo misto cumulativo: as três condutas criminosas descritas são autônomas – a prática de mais de uma delas acarreta a punição por mais de um crime.

a)Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa: Escarnecer é achincalhar, zombar afrontosamente, ridicularizar sarcasticamente. É imprescindível seja a conduta motivada pela crença ou pelo exercício de função religiosa. Crença religiosa é a fé, a convicção da verdade de alguma doutrina sobre a divindade ou poderes sobrenaturais. Função religiosa é o ministério exercido ou estado assumido por quem participa da celebração de um culto ou de uma organização religiosa. Pouco importa seja o exercente de função religiosa atingido no ofício ou fora do ofício, desde que seja em razão do ofício.3 A ação pode ser praticada por qualquer meio idôneo a manifestar o pensamento (crime de forma livre). É elemento essencial do crime a publicidade do escárnio. Não basta ser o fato cometido em lugar público ou acessível ao público: é preciso tenha sido praticado na presença de várias pessoas (coram populo) ou à vista de muitas pessoas. Caso contrário, o que se poderá identificar é o crime contra a honra. Se o escárnio é praticado por meio de imprensa ou radiodifusão, presume-se a publicidade. Não é necessário seja o fato praticado na presença da vítima. Exige-se o endereçamento da ofensa a uma pessoa determinada. Se o escárnio, além de ofensivo ao sentimento religioso, contém lesão à honra individual, este último crime é absorvido pelo primeiro.

b)Impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso: Culto religioso é a manifestação coletiva do sentimento religioso, sua exteriorização mediante atos, pelos quais os fiéis ou crentes adoram ou veneram a divindade, ou poderes transcendentais, mantendo-se com eles em contato espiritual. É necessário seja notório, praticado por grande número de pessoas, havendo a seu respeito um conhecimento geral. Cerimônia é o ato de culto que se reveste de certa solenidade. Não bastam atos individuais ou coletivos de oração ou penitência. É necessário existir solenidade de acordo com as prescrições do rito religioso. Prática é um ato religioso, sem o aparato da cerimônia, com ou sem padre, ministro, pastor ou figura análoga, tais como o ensino do catecismo, a sessão espírita e a oração na sinagoga. É fundamental que se trate de religião admitida pelo Estado. Mas, quando aceita, o poder público não pode criar qualquer distinção entre os diversos cultos religiosos (CF, art. 19, I). Prescinde-se da interrupção da cerimônia ou da prática de culto religioso. A mera abreviação do ato caracteriza o delito. O disparo de arma de fogo na frente do estabelecimento religioso caracteriza o crime em análise, em concurso formal com o delito previsto no art. 15 da Lei 10.826/2003 – Estatuto do Desarmamento. Ressalte-se, entretanto, que, embora regulares, podem as cerimônias e práticas ser impedidas legitimamente pelo Poder Público, quando sua efetivação for contrária ao interesse público. De igual modo, não há crime quando o impedimento se faz em proteção a um direito do indivíduo.

c)Vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Vilipendiar é considerar vil, desprezar ou ultrajar injuriosamente. É mais do que ofender, mais do que ultrajar, mais do que injuriar ou difamar. Pode ser praticado por palavras, escritos, gestos, meios simbólicos ou qualquer outro ato idôneo (crime de forma livre). Exige-se seja a conduta praticada publicamente. O vilipêndio deve recair sobre ato ou objeto de culto religioso. Ato é a cerimônia ou a prática do culto religioso. Objeto é qualquer coisa (bem corpóreo) com a qual ou em torno da qual se exerça o culto religioso. É indispensável que tais objetos estejam consagrados ao culto, isto é, já tenham sido reconhecidos como sagrados pela religião ou tenham sido utilizados nos atos religiosos.

Sujeito ativo: Qualquer pessoa, independentemente da sua religião (crime comum).

Sujeito passivo: O sujeito passivo imediato ou principal é o Estado. É também possível a existência de um sujeito passivo mediato ou secundário, representado pela pessoa que suporta diretamente a conduta criminosa.

Elemento subjetivo: É o dolo. Não se admite a modalidade culposa. Na primeira figura criminosa, exige-se ainda um especial fim de agir, consistente em atuar “por motivo de crença ou função religiosa”. Na segunda conduta basta o dolo eventual. Na terceira conduta também se reclama um especial fim de agir: o propósito de vilipendiar, de ofender o sentimento religioso, ultrajando-o.

Consumação: Na primeira modalidade típica, o crime se consuma com o escárnio. Em relação à segunda conduta, a consumação ocorre quando o sujeito impede ou perturba cerimônia ou prática de ato religioso. Na figura típica “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso” o delito se aperfeiçoa com o efetivo vilipêndio. Em todas as hipóteses o crime é formal, de resultado cortado ou de consumação antecipada, pois independe da efetiva lesão ao sentimento religioso penalmente tutelado.

Tentativa: É cabível em todas as espécies do delito. Vale ressaltar, contudo, que na terceira figura a possibilidade do conatus se restringe à forma escrita.

Causa de aumento da pena (parágrafo único): Aplica-se às três modalidades de condutas criminosas. Trata-se da violência física, tanto contra a pessoa quanto contra a coisa. Há, porém, entendimentos no sentido de que somente se aumenta a pena na hipótese de violência contra a pessoa, pois a preocupação do legislador é a maior proteção do ser humano. Não concordamos, eis que, quando a lei assim deseja, o faz expressamente (exemplo: art. 157, caput, do Código Penal), e também por se tratar de crime contra o sentimento religioso, e não contra a pessoa. A lei impõe o concurso material obrigatório entre o crime tipificado pelo art. 208 do CP e eventual lesão corporal, ainda que de natureza leve.

Ação penal: É pública incondicionada, em todas as modalidades do crime.

Lei 9.099/1995: Cuida-se de infração penal de menor potencial ofensivo. É compatível com a transação penal, se presentes os requisitos legais, e obedece ao procedimento sumaríssimo disciplinado pelos arts. 77 e seguintes da Lei 9.099/1995.

Capítulo II
DOS CRIMES CONTRA O RESPEITO AOS MORTOS

Introdução: O direito romano, ao tempo dos imperadores, já tutelava penalmente o respeito aos mortos, incriminando a violação dos túmulos. No Brasil, a incriminação das condutas ofensivas ao respeito aos mortos é novidade do Código Penal de 1940. O Código Criminal do Império de 1830 não abordava tais crimes, e o Código Penal Republicano de 1890 considerava simples contravenções a inumação irregular (art. 364) e a profanação de cadáver (art. 365), bem como a violação, a conspurcação ou danificação de sepulturas ou mausoléus (arts. 365 e 366). Conforme assinala o item 68 da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal:

São classificados como species do mesmo genus os “crimes contra o sentimento religioso” e os “crimes contra o respeito aos mortos”. É incontestável a afinidade entre uns e outros. O sentimento religioso e o respeito aos mortos são valores ético-sociais que se assemelham. O tributo que se rende aos mortos tem um fundo religioso. Idêntica, em ambos os casos, é a ratio essendi da tutela penal.

O respeito aos mortos reveste-se de cunho religioso. Costuma-se mesmo falar em “religião dos túmulos”. Explica-se, portanto, a reunião das duas classes de crimes num mesmo título da Parte Especial do Código Penal, a exemplo, aliás, de quase todos os Códigos estrangeiros. O que o Código Penal protege não é a paz dos mortos, pois estes já não são mais titulares de direitos, mas o sentimento de reverência dos vivos para com os mortos. É em obséquio aos vivos, e não aos mortos, que surge a incriminação. O respeito aos mortos é um relevante valor ético-social, e, como tal, um interesse jurídico digno, por si mesmo, da tutela penal. Cuida esta de resguardar a incolumidade dos atos fúnebres, do cadáver em si mesmo e da sepultura.4

Impedimento ou perturbação de cerimônia funerária

Art. 209. Impedir ou perturbar enterro ou cerimônia funerária:

Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Parágrafo único. Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.

Classificação:

Crime comum

Crime vago

Crime formal

Crime de forma livre

Crime unissubjetivo (regra)

Crime unissubsistente ou plurissubsistente

Crime instantâneo

 

 

Informações rápidas:

Não se admite a modalidade culposa. Exige dolo específico.

Admite tentativa.

Concurso material obrigatório: pena do art. 208 + eventual lesão corporal produzida em alguém, ainda que de natureza leve.

Ação penal: pública incondicionada.

Objeto jurídico: Tutela-se o sentimento de respeito aos mortos.

Objeto material: É o enterro ou a cerimônia funerária. Enterro é a trasladação do cadáver, com ou sem acompanhamento por outras pessoas, para o lugar onde deve ser inumado. Cerimônia funerária é todo ato de assistência ou homenagem que se presta a um defunto. Trata-se de cerimônia secular ou civil – se tem caráter religioso, o crime será o do art. 208 do CP.

Núcleos do tipo: Impedir e perturbar. Ambos se referem ao enterro ou à cerimônia funerária. Impedir é interromper ou obstar o prosseguimento, enquanto perturbar é atrapalhar ou estorvar. Cuida-se de tipo misto alternativo: o sujeito pratica um só crime se, no mesmo contexto fático, impede e perturba um mesmo enterro ou cerimônia funerária. O delito pode ser praticado por omissão.

Sujeito ativo: Pode ser qualquer pessoa (crime comum).

Sujeito passivo: O sujeito passivo principal ou imediato é a coletividade. Cuida-se de crime vago, por se tratar de ofendido destituído de personalidade jurídica. É possível ainda a existência de sujeitos passivos secundários ou mediatos.

Elemento subjetivo: É o dolo, consistente na vontade livre e consciente de impedir ou perturbar enterro ou cerimônia funerária. Não se admite a modalidade culposa. Exige-se, ainda, um especial fim de agir, consistente na finalidade de violar o sentimento de respeito devido aos mortos.

Consumação: Dá-se com o efetivo impedimento ou perturbação do enterro ou da cerimônia fúnebre, independentemente da ofensa ao sentimento de respeito aos mortos (crime formal, de resultado cortado ou de consumação antecipada).

Tentativa: É possível nas hipóteses em que, nada obstante a conduta criminosa, o agente, por circunstâncias alheias à sua vontade, não consegue impedir ou perturbar o enterro ou cerimônia funerária.

Causa de aumento da pena (parágrafo único): Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência. Cuida-se da violência física, contra a pessoa ou contra a coisa. A lei impõe o concurso material obrigatório entre o crime tipificado pelo art. 209 do CP e eventual lesão corporal produzida em alguém, ainda que de natureza leve.

Ação penal: É pública incondicionada, tanto na forma simples do caput como na forma agravada do parágrafo único.

Lei 9.099/1995: Trata-se de infração penal de menor potencial ofensivo. É compatível com a transação penal, se presentes os requisitos legais, e obedece ao procedimento sumaríssimo disciplinado pelos arts. 77 e seguintes da Lei 9.099/1995.

Violação de sepultura

Art. 210. Violar ou profanar sepultura ou urna funerária:

Pena – reclusão, de um a três anos, e multa.

Classificação:

Crime comum

Crime vago

Crime formal

Crime de forma livre

Crime unissubjetivo (regra)

Crime plurissubsistente (regra)

Crime instantâneo

Informações rápidas:

O crime compreende não só a cova, mas também tudo o que lhe for incorporado definitivamente.

Sepultura ou urna funerária vazia: crime impossível.

Não admite forma culposa.

Admite tentativa.

Ação penal: pública incondicionada.

Objeto jurídico: É o sentimento de respeito aos mortos.

Objeto material: É a sepultura ou a urna funerária. O termo sepultura deve ser compreendido em sentido amplo. Não são alcançados por esse conceito objetos temporários como flores, velas ou coroas.5 O Código Penal não faz distinção entre a vala comum e o mausoléu. A lei equipara à sepultura a urna funerária, que não é só aquela que guarda as cinzas (urna cinerária), como também a que contém ossos do falecido (urna ossuária). Há crime impossível, por absoluta impropriedade do objeto material (CP, art. 17), quando o agente viola ou profana sepultura ou urna funerária vazia.

Núcleos do tipo: Violar e profanar. Violar é invadir, devassar, abrir sepultura ou urna funerária. Basta que o cadáver (seus restos ou cinzas) fique exposto ao tempo, pouco importando se é ou não removido de local. Na hipótese de vala comum, a remoção da terra, expondo o cadáver, caracteriza o delito. Profanar equivale a macular, ou seja, tratar com desprezo os objetos materiais do crime em apreço. Constitui-se em atos de vandalismo sobre a sepultura ou urna funerária, ou de seu aviltamento. O ato de violar compreende necessariamente o de profanar, mas este pode realizar-se sem aquele. Somente estão acobertados pela proteção penal a sepultura ou a urna que estejam atual ou efetivamente servindo ao seu destino.

Sujeito ativo: Qualquer pessoa (crime comum).

Sujeito passivo: Sujeito passivo principal ou imediato é a coletividade (crime vago). A família do morto, se existente, figura como sujeito passivo secundário ou mediato.

Elemento subjetivo: É o dolo, sendo irrelevante o motivo ideológico. Não se admite a forma culposa. Na modalidade profanar reclama-se um especial fim de agir, consistente no propósito de ultrajar a sepultura ou urna funerária. O fato será atípico se ausente esta finalidade. Se a intenção do agente, com a violação da sepultura ou urna funerária, é subtrair algum objeto, haverá concurso material do crime de furto com o delito em análise. A mera subtração de objetos que estejam sob a sepultura ou urna, sem que ocorra sua violação ou profanação, caracteriza unicamente crime de furto (CP, art. 155). Se houver destruição ou danificação do túmulo, haverá concurso formal entre o crime de violação de sepultura e o de dano (CP, art. 163). Na hipótese de subtração do próprio cadáver, o crime será o definido pelo art. 211 do CP (subtração de cadáver), que absorve a violação de sepultura. Não se pode confundir o crime de violação de sepultura (CP, art. 210) com a contravenção penal de exumação de cadáver, definida pelo art. 67 do Decreto-lei 3.688/1941 – Lei das Contravenções Penais: “Art. 67. Inumar ou exumar cadáver, com infração das disposições legais: Pena – prisão simples, de um mês a um ano, ou multa”.

Consumação: Dá-se com a efetiva violação ou profanação da sepultura ou urna funerária, independentemente da efetiva lesão ao sentimento de respeito aos mortos (crime formal, de resultado cortado ou de consumação antecipada). É irrelevante esteja a sepultura ou urna em cemitério público ou em lugar privado.

Tentativa: É possível. Na prática a tentativa de violação poderá constituir-se em profanação consumada.

Ação penal: É pública incondicionada.

Lei 9.099/1995: Trata-se de crime de médio potencial ofensivo, compatível com a suspensão condicional do processo (Lei 9.099/1995, art. 89).

Exclusão da ilicitude: Não há crime quando o fato é praticado em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de um direito.

Destruição, subtração ou ocultação de cadáver

Art. 211. Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele:

Pena – reclusão, de um a três anos, e multa.

Classificação:

Crime comum

Crime doloso

Crime vago

Crime formal

Crime de forma livre

Crime unissubjetivo (regra)

Crime plurissubsistente (regra)

Crime instantâneo ou permanente (“ocultar”)

 

Informações rápidas:

Abrange três núcleos: destruir (torná-lo insubsistente como tal), subtrair (retirá-lo da esfera de proteção jurídica ou da custódia de alguém) e ocultar (fazer desaparecer, sem destruí-lo – crime permanente).

Múmia não é cadáver (são cadáveres o natimorto e o feto, este dependendo da maturidade).

Não admite forma culposa.

Admite tentativa.

Ação penal: pública incondicionada.

Objeto jurídico: O bem jurídico tutelado pela lei penal é, uma vez mais, o sentimento de respeito aos mortos.

Objeto material: É o cadáver ou parte dele. A múmia não ingressa no conceito de cadáver, ainda que não transformada em peça de museu ou objeto com valor comercial. O interesse é meramente histórico ou arqueológico, mas não há ofensa ao sentimento de respeito aos mortos, pois, em face do tempo já decorrido ou da especificação a que foi submetido o cadáver, deixa este de inspirar tal sentimento.

Núcleos do tipo: Destruir, subtrair e ocultar. Cuida-se de crime de forma livre, compatível com qualquer meio de execução. Destruir um cadáver é aniquilá-lo, torná-lo insubsistente como tal. A destruição incriminada não é somente a de todo o cadáver, mas também a de parte dele. Subtrair equivale a retirar o cadáver da esfera de proteção jurídica ou da custódia de seus legítimos detentores. Ocultar cadáver é fazê-lo desaparecer, sem destruí-lo. Trata-se de tipo misto alternativo, crime de ação múltipla ou de conteúdo variado: a prática de mais de uma conduta contra o mesmo objeto material e no mesmo contexto fático caracteriza crime único. Diferenciam-se as condutas de subtrair e ocultar. Esta pode ser praticada inclusive por familiares do defunto e somente pode efetivar-se antes do sepultamento do cadáver. Após, o crime apenas pode ser cometido por destruição ou subtração.

Sujeito ativo: Qualquer pessoa (crime comum).

Sujeito passivo: O sujeito passivo principal ou imediato é a coletividade (crime vago). Esta circunstância não impede, contudo, a possibilidade de despontarem os familiares do morto como sujeitos passivos secundários ou mediatos.

Elemento subjetivo: É o dolo. Não se admite a figura culposa. É indiferente a finalidade específica do agente. Se o agente, com a intenção de matá-la, enterra a vítima com vida, o crime será de homicídio qualificado pelo soterramento (asfixia mecânica). O sepultamento com infração das disposições legais caracteriza a contravenção de inumação de cadáver, prevista no art. 67 do Decreto-lei 3.688/1941 – Lei das Contravenções Penais.

Consumação: Dá-se com a destruição do cadáver, total ou parcial, com a subtração ou com o seu desaparecimento, ainda que temporário, na hipótese de ocultação. Na modalidade “ocultar” o crime é permanente. O crime é formal, de resultado cortado ou de consumação antecipada: consuma-se com a realização da conduta de destruir, subtrair ou ocultar cadáver, ainda que não haja efetiva lesão ao bem jurídico penalmente tutelado, qual seja, o sentimento de respeito aos mortos.

Tentativa: É possível, em todas as condutas criminosas.

Ação penal: É pública incondicionada.

Lei 9.099/1995: Trata-se de crime de médio potencial ofensivo, compatível com o benefício da suspensão condicional do processo (Lei 9.099/1995, art. 89).

Subtração de cadáver e crimes contra o patrimônio: O cadáver, em regra, não pode ser objeto material de furto, roubo ou dano, pois não possui valor patrimonial. Se, entretanto, foi vendido ou entregue a um instituto anatômico ou para fim de estudo científico, converte-se em coisa alheia e passa a integrar o acervo patrimonial da respectiva entidade, e sua subtração ou destruição constitui crime contra o patrimônio.

Destruição, subtração ou destruição de cadáver e Lei 9.434/1997: A conduta de remover tecidos, órgãos ou partes de cadáver, em desacordo com as disposições da Lei 9.437/1997, constitui o crime tipificado pelo seu art. 14. De outro lado, aquele que deixar de recompor cadáver, devolvendo-lhe aspecto condigno para sepultamento, ou deixar de entregar ou retardar sua entrega aos familiares ou interessados, pratica o delito previsto no art. 19. Em ambas as hipóteses, a lei geral (CP) é afastada pela Lei 9.437/1997. O conflito aparente de leis penais é solucionado pelo princípio da especialidade. No tocante aos crimes especiais, é possível a configuração do erro de proibição quando o sujeito, almejando o transplante, acredita que o falecido, ainda em vida, era doador de órgãos ou tecidos, mas na verdade não o era. Igual fenômeno pode verificar-se quando a família do morto posicionar-se contra o transplante e o agente desconhecer tal circunstância.

Ocultação de cadáver e fraude processual: O homicida que, para ocultar o cadáver, apaga ou elimina vestígios de sangue, não pode ser denunciado pela prática, em concurso, dos crimes de fraude processual penal e ocultação de cadáver, senão apenas deste, do qual aquele constitui mero ato executório.

Art. 211 do CP e autodefesa: Não é possível invocar o direito à autodefesa para justificar a prática do crime de destruição, subtração ou ocultação de cadáver. Com efeito, o bem jurídico tutelado é o sentimento de respeito ao morto, que merece sepultamento digno. Destarte, é vedado ao homicida, a pretexto de defender-se, ocultar um cadáver, pois viola outro bem jurídico, diverso da vida humana.6 A ele deve ser imputado o crime em análise, em concurso material com o homicídio. Mas, escondendo o cadáver, não poderá ser responsabilizado também por fraude processual (CP, art. 347).

Jurisprudência selecionada:

Caracterização do crime, consumação e concurso com homicídio: “Retirar o cadáver do local onde deveria permanecer e conduzi-lo para outro em que não será normalmente reconhecido caracteriza, em tese, crime de ocultação de cadáver. A conduta visou evitar que o homicídio fosse descoberto e, de forma manifesta, destruir a prova do delito. Trata-se de crime permanente que subsiste até o instante em que o cadáver é descoberto, pois ocultar é esconder, e não simplesmente remover, sendo irrelevante o tempo em que o cadáver esteve escondido. Crime consumado, que pode ser apenado em concurso com o de homicídio” (STF: HC 76.678/RJ, Rel. Min. Maurício Corrêa, 2ª Turma, j. 29.06.1998).

Consumação – crime permanente e reflexos na prescrição: “O crime previsto no art. 211 do Código Penal, na forma ocultar, é permanente. Logo, se encontrado o cadáver após atingida a maioridade, o agente deve ser considerado imputável para todos os efeitos penais, ainda, que a ação de ocultar tenha sido cometida quando era menor de 18 anos (Precedentes)” (STJ: REsp 900.509/PR, Rel. Min. Felix Fischer, 5ª Turma, j. 26.06.2007).

Vilipêndio a cadáver

Art. 212. Vilipendiar cadáver ou suas cinzas:

Pena – detenção, de um a três anos, e multa.

Classificação:

Crime comum

Crime vago

Crime formal

Crime de forma livre

Crime unissubjetivo (regra)

Crime unissubsistente ou plurissubsistente

Crime instantâneo

 

 

 

Informações rápidas:

Esqueletos e cadáveres destinados a pesquisas e estudos científicos também são tutelados pela lei penal.

Vilipêndio por atos + calúnia contra mortos: concurso formal impróprio ou imperfeito.

Não admite forma culposa. Exige dolo específico de ultrajar, profanar.

Admite tentativa (salvo quando verbal).

Consentimento do ofendido (ex.: em testamento): não se admite.

Ação penal: pública incondicionada.

Objeto jurídico: É o sentimento de respeito aos mortos.

Objeto material: Pode ser o cadáver ou suas cinzas. Cadáver é o corpo humano sem vida. Cinzas são os resíduos da cremação ou combustão (autorizadas, casuais ou criminosas) a que foi ele submetido, ou mesmo rutos do decurso do tempo. Incluem-se também as partes do cadáver. Os esqueletos e cadáveres destinados a pesquisas e estudos científicos também são tutelados pela lei penal, e não podem ser vilipendiados.

Núcleo do tipo: É vilipendiar, que significa aviltar, desprezar, ultrajar. A conduta pode ser praticada por atos, palavras ou escritos (crime de forma livre), relativamente ao cadáver ou suas cinzas. Se as palavras vilipendiosas caracterizam calúnia contra o morto, haverá concurso formal impróprio ou imperfeito entre o crime do art. 212 e o do art. 138, § 2º (calúnia contra os mortos), ambos do Código Penal.

Sujeito ativo: Qualquer pessoa (crime comum).

Sujeito passivo: O sujeito passivo principal ou imediato é a coletividade (crime vago), pois a moralidade média reclama o respeito aos mortos. É possível a existência de sujeitos passivos secundários ou mediatos, a exemplo dos familiares do morto.

Elemento subjetivo: É o dolo. Não se admite a modalidade culposa. Exige-se um especial fim de agir: o propósito de ultrajar ou profanar o cadáver ou suas cinzas. O fato é atípico quando a conduta é praticada com fins didáticos ou científicos.

Consumação: O crime se consuma com o efetivo vilipêndio ao cadáver ou suas cinzas, independentemente da efetiva lesão ao sentimento de respeito aos mortos (crime formal, de resultado cortado ou de consumação antecipada).

Tentativa: É possível, salvo quando a conduta é cometida verbalmente, pois é sabido que os delitos unissubsistentes não admitem o conatus.

Ação penal: É pública incondicionada.

Lei 9.099/1995: Trata-se de crime de médio potencial ofensivo, compatível com a suspensão condicional do processo (Lei 9.099/1995, art. 89).

A questão do consentimento: Subsiste o delito quando o falecido, em disposição de última vontade, autorizou o vilipêndio do seu cadáver. Tutela-se um interesse de ordem pública, representado pelo sentimento ético-social de respeito aos mortos.

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1HUNGRIA, Nélson; LACERDA, Romão Côrtes de. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1954. v. 8, p. 55.

2SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 251.

3HUNGRIA, Nélson; LACERDA, Romão Côrtes de. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1954. v. 8, p. 63.

4HUNGRIA, Nélson; LACERDA, Romão Côrtes de. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1954. v. 8, p. 72.

5PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: RT, 2008. v. 2, p. 621.

6NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 8. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 856.