TÍTULO IX
DOS CRIMES CONTRA A PAZ PÚBLICA

Introdução:A expressão “paz pública” foi utilizada pelo legislador em sua concepção subjetiva, ou seja, como o sentimento coletivo de paz assegurado pela ordem jurídica. Com efeito, ao Poder Público não basta garantir a incolumidade da ordem pública objetivamente considerada, compreendida como o estado de pacífica vida coletiva. É preciso que na mentalidade das pessoas permaneça inabalada a consciência de normalidade, e entre os deveres do Estado está o de resguardar esta consciência. Neste Título, a lei incriminou autonomamente condutas que, em princípio, representariam meros atos preparatórios de outros crimes (“crimes obstáculo”), contentando-se com a simples ameaça a direitos alheios. Como ensina Magalhães Noronha: “São quase todos esses crimes autênticos atos preparatórios e a razão de puni-los está ou no relevo que o legislador dá ao bem ameaçado ou porque sua frequência está a indicar a necessidade da repressão, em qualquer caso, em nome da paz social”.1 O legislador não fica passivo aguardando o cometimento de um delito para só depois autorizar a incidência do poder punitivo estatal. Ele age de forma antecipada, punindo comportamentos que poderiam resultar na prática de crimes.

Motivação político-social nos crimes contra a paz pública:Se qualquer dos crimes contra a paz pública for praticado com motivação político-social, sairá de cena o Código Penal, para ser aplicada a Lei 7.170/1983 – Lei de Segurança Nacional, em seus arts. 22 a 24.

Incitação ao crime

Art. 286. Incitar, publicamente, a prática de crime:

Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.

Classificação:

Crime simples

Crime comum

Crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado

Crime de perigo comum e abstrato (diverg.)

Crime vago

Crime de forma livre

Crime comissivo (regra)

Crime instantâneo

Crime unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual

Crime unissubsistente ou plurissubsistente

Informações rápidas:

Para a caracterização, basta o incentivo público à prática de um crime determinado (não abrange contravenções penais ou atos meramente imorais), dirigido a um número indeterminado de pessoas.

Elemento subjetivo: dolo (não admite modalidade culposa).

Tentativa: admite (crime plurissubsistente).

Ação penal: pública incondicionada.

Objeto jurídico: Tutela-se a paz pública, compreendida como o sentimento coletivo de paz e segurança assegurado pela ordem jurídica.

Núcleo do tipo:É “incitar”, no sentido de estimular, incentivar publicamente a prática de crime, imediatamente ou no futuro. A palavra “crime” foi utilizada em sentido técnico, motivo pelo qual não se caracteriza o delito na hipótese de incitação, embora pública, de contravenção penal ou de atos meramente imorais.

Crime determinado:A incitação deve relacionar-se com a prática de crime determinado, embora não se exija a indicação dos meios de execução a serem empregados ou as vítimas dos delitos a serem perpetrados.

Destinatários da incitação:Como o tipo penal contém a elementar “publicamente”, é necessário atinja a incitação ao crime um número indeterminado de pessoas, pois só assim é possível falar em crime contra a “paz pública”. Admite-se, excepcionalmente, o incitamento a uma única pessoa, desde que seja percebido ou no mínimo perceptível por número indefinido de pessoas. Destarte, a residência particular não pode ser compreendida como local público, ainda que em seu interior encontrem-se diversas pessoas. Igual raciocínio se aplica aos pequenos estabelecimentos comerciais.

Sujeito ativo: Trata-se de crime comum ou geral, podendo ser praticado por qualquer pessoa.

Sujeito passivo:É a coletividade, pois a paz pública é do interesse de todos.

Elemento subjetivo: É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa.

Consumação: O crime é formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se no momento em que o agente, incitando publicamente a prática de crime (crime de perigo comum), coloca em perigo a paz pública, criando uma sensação de insegurança na coletividade (crime de perigo abstrato), em razão da probabilidade de cometimento de crimes por outras pessoas. Pouco importa se o crime incitado venha ou não a ser praticado por alguma pessoa.

Tentativa: É possível, na hipótese em que a conduta de incitação despontar como plurissubsistente, permitindo o fracionamento do iter criminis. É o que se dá na utilização de cartazes, faixas, panfletos etc. Mas não será cabível o conatus quando a conduta for cometida oralmente, em razão da natureza unissubsistente do delito.

Ação penal: É pública incondicionada.

Lei 9.099/1995: Em face do máximo da pena privativa de liberdade cominada (detenção de seis meses), a incitação ao crime é infração penal de menor potencial ofensivo, compatível com a transação penal e o rito sumaríssimo.

Incitação ao crime e Lei de Segurança Nacional:Incidirá o crime definido no art. 23 da Lei 7.170/1983 – Lei de Segurança Nacional, quando a incitação apresentar conotação política.

Incitação ao crime e genocídio: Se a incitação tiver como objetivo a prática de genocídio, estará caracterizado o crime tipificado no art. 3º da Lei 2.889/1956.

Incitação ao crime e Código Penal Militar: O art. 155 do Decreto-lei 1.001/1969 – Código Penal Militar – prevê o crime de incitamento.

Incitação ao crime e preconceito ou discriminação:Se a incitação ao crime possuir como finalidade a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, estará caracterizado o crime descrito no art. 20, caput, da Lei 7.716/1989.

Jurisprudência selecionada:

Ausência de incitação: “Incitação ao crime: não o pratica quem, segundo a denúncia, não incitou ninguém à pratica do delito, mas, ao contrário, teria acedido à instigação de terceiro” (STF: HC 75.755/GO, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, j. 17.02.1998).

Objetividade jurídica: “Ora, a paz pública interessa a todos, e, por isso mesmo, seu sujeito passivo é a coletividade, e não a União Federal, uma vez que não está em causa interesse direto e específico seu, ainda quando esse delito, por causa do meio de comunicação empregado, se pratique por intermédio de empresa concessionária de serviço público federal (entidade essa a que não se refere o art. 109, IV, da Constituição), ou tenha a sua consumação verificada simultaneamente em mais de um Estado” (STF: RE 166.943/ PR, rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, j. 03.03.1995).

Apologia de crime ou criminoso

Art. 287. Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.

Classificação:

Crime simples

Crime comum

Crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado

Crime de perigo comum

Crime vago

Crime de forma livre

Crime comissivo (regra)

Crime instantâneo

Crime unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual Crime unissubsistente ou plurissubsistente

Informações rápidas:

A expressão “fato criminoso” não abrange contravenções penais ou atos meramente imorais. A expressão “autor de crime” abrange a autoria, coautoria e a participação.

Na apologia de crime ou criminoso o agente estimula indiretamente o cometimento de crimes, ao passo que na incitação o estímulo é direto.

Elemento subjetivo: dolo (não admite modalidade culposa).

Tentativa: admite (exceto no caso de apologia oral).

Ação penal: pública incondicionada.

Objeto jurídico:Tutela-se a paz pública, ou seja, o sentimento coletivo de paz e segurança assegurado pela ordem jurídica.

Núcleo do tipo:O núcleo do tipo é “fazerapologia, no sentido de elogiar, louvar, enaltecer, exaltar fato criminoso ou autor de crime. Como a lei se refere a “fato criminoso” – cuja definição pode se encontrar no Código Penal ou na legislação extravagante –, a apologia de contravenção penal (ou de seu autor), e também de comportamentos meramente imorais (ou de seu autor), constitui-se em fato atípico, em face da ausência de elemento constitutivo do tipo.

Autor de crime: A expressão “autor de crime” foi utilizada em sentido amplo, devendo ser compreendida como toda e qualquer pessoa envolvida com a prática do delito, na condição de autora, coautora ou partícipe. É indiferente se o autor do crime já foi condenado, ou mesmo se contra ele foi ajuizada ação penal.

Alcance da expressão “fato criminoso”: A doutrina discute o alcance da expressão “fato criminoso”: diz respeito a crimes já praticados, ou também se refere a delitos futuros, é dizer, ainda não cometidos? Há duas posições sobre o assunto: (a) Para Nélson Hungria, a elementar “fato criminoso” abrange crimes passados e futuros.2 Com entendimento contrário, Magalhães Noronha defende a aplicabilidade da expressão “fato criminoso” apenas a delitos já concretizados.3

Local da apologia: O tipo penal contém a elementar “publicamente”. Não basta a apologia de crime ou criminoso. A conduta deve ser praticada em local público, de modo a alcançar pessoas indeterminadas, pois somente desta forma será possível falar em perigo à paz pública. Não há crime, portanto, quando a apologia é realizada no interior de uma residência, ou mesmo no âmbito de locais frequentados por poucos indivíduos.

Distinção entre apologia de crime ou criminoso e incitação ao crime: Na incitação ao crimeestímulo direto à prática de delitos. Na apologia de crime ou criminoso, por sua vez, o agente estimula indiretamente o cometimento de crimes, seja exaltando um delito, seja louvando a atitude do seu autor.

Sujeito ativo:Pode ser praticado por qualquer pessoa. Entretanto, determinados indivíduos são beneficiados por imunidades, que também alcançam o crime em estudo. É o que se dá em relação aos deputados federais e senadores (CF, art. 53, caput), aos deputados estaduais (CF, art. 27, § 1º) e também aos vereadores (CF, art. 29, inc. VIII).

Sujeito passivo:É a coletividade (crime vago).

Elemento subjetivo:É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa.

Debates e críticas: O fato é atípico, por ausência de dolo, nos comportamentos relacionados aos debates e críticas imprescindíveis à evolução e ao aperfeiçoamento do Direito Penal, discutindo-se a viabilidade da revogação de determinados tipos penais, tal como muitas vezes ocorre em relação ao crime de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (CP, art. 124) e no porte de droga para consumo pessoal (Lei 11.343/2006, art. 28, caput). De fato, o que não se tolera é a exaltação fria e deliberada a respeito de um crime ou de seu autor.

Consumação:Cuida-se de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se no instante em que o agente faz, publicamente (crime de perigo comum), apologia de fato criminoso ou de autor de crime, criando situação de perigo à paz pública (crime de perigo abstrato), mediante o sentimento de insegurança transmitido à coletividade, proporcionado pela probabilidade da prática de novos delitos. É indiferente, contudo, se outras pessoas repetem ou não o fato criminoso enaltecido pelo sujeito ativo.

Tentativa: É possível nas hipóteses em que a conduta se apresentar como plurissubsistente. No entanto, não será cabível o conatus quando, no caso de apologia oral, em face do caráter unissubsistente do delito, incompatível com o fracionamento do iter criminis.

Ação penal:É pública incondicionada.

Lei 9.099/1995:Em face do máximo da pena privativa de liberdade cominada (detenção de seis meses), a apologia de crime ou criminoso constitui-se em infração penal de menor potencial ofensivo, sujeitando-se à transação penal e ao rito sumaríssimo.

Concurso de crimes: Se o agente, no mesmo contexto fático, fizer apologia de dois ou mais fatos criminosos, ou então de dois ou mais autores de crimes, a ele serão imputados dois ou mais delitos tipificados no art. 287 do Código Penal, em concurso formal impróprio ou imperfeito (CP, art. 70, caput, parte final). Entretanto, se o sujeito ativo efetuar, com uma só conduta, a apologia de um fato criminoso e também do seu autor, responderá por um só delito.

Apologia de crime ou criminoso e Lei de Segurança Nacional: Se a apologia apresentar finalidade política, estará caracterizado o crime definido no art. 22 da Lei 7.170/1983 Lei de Segurança Nacional.

Jurisprudência selecionada:

Apologia de contravenção penal – inexistência do crime: “A apologia de contravenção penal não satisfaz elemento constitutivo desse delito. Além disso, imprescindível registrar que a apologia se deu publicamente, isto é, dirigida ou presenciada por número indeterminado de pessoas, ou, em circunstância, em que a elas pode chegar a mensagem. Só assim, será relatado o resultado (perigo à Paz Pública), juridicamente entendido como a probabilidade (perigo concreto) de o crime ser repetido por outrem, ou seja, estimular terceiros a delinquência” (STJ: RHC 4.660/RJ, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, 6ª Turma, j. 05.09.1995).

Imunidades parlamentares: “O paciente, que é vereador, utilizou-se da tribuna da Câmara Municipal para fazer a apologia de extermínio de meninos de rua. Foi, em decorrência, denunciado como incurso no art. 287 do CP. Ajuizou habeas corpus, invocando sua inviolabilidade parlamentar (CF, art. 29, VIII). O writ foi denegado. Não resta dúvida de que o paciente pregou sua sandice, própria de mente vazia. Mas, mesmo assim não se pode falar tenha ele cometido o crime. A Constituição Federal de 88, afastando-se do federalismo clássico, alçou o Município a condição de ente federado (art. 1º, caput.). Coerente com a nova filosofia política, que encontra raízes históricas na aurora de nosso estado, deu imunidade ao vereador no art. 29, inciso VIII: “inviolabilidade dos vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município”. Desse modo, ainda que o parlamentar (lato sensu) se utilize mal da grandeza e finalidade da instituição a que devia servir, a Constituição, no interesse maior, o protege com a imunidade. A Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso United States v. Brewster (408 U.S. 501, 507 (1972)), enfatizou: ‘a imunidade da cláusula relativa ao discurso e ao debate não se acha escrita na Constituição simplesmente em benefício pessoal ou privado dos membros do congresso, mas para proteger a integridade do processo legislativo, garantindo a independência individual dos legisladores’” (STJ: RHC 3.981/RS, rel. Min. Pedro Acioli, rel. p/ acórdão Min. Adhemar Maciel, 6ª Turma, j. 15.12.1994).

Associação criminosa

Art. 288. Associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes: Pena – reclusão, de um a três anos.

Parágrafo único. A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente.

Classificação:

Crime simples

Crime comum

Crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado

Crime de perigo comum e abstrato (diverg.)

Crime vago

Crime obstáculo

Crime de forma livre

Crime comissivo

Crime permanente

Crime plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário e de conduta paralela

Crime plurissubsistente

Informações rápidas:

Associação: deve ser estável e permanente (independe de organização definida, hierarquia entre os membros e repartição de funções). Exige três pessoas e, dentre estes, pelo menos um imputável. Extinção da punibilidade de um dos agentes não descaracteriza o crime.

Não abrange contravenções penais e todos os crimes devem ser dolosos.

Denúncia: independe da descrição detalhada da conduta de cada membro.

Elemento subjetivo: dolo (elemento subjetivo específico: “para o fim de cometer crimes”). Não admite modalidade culposa.

Tentativa: não admite.

Ação penal: pública incondicionada.

Majorantes do parágrafo único: abrange arma própria e imprópria (inclusive arma branca); envolvimento de menor de 18 anos.

Introdução: Em sua redação original, o art. 288 do Código Penal contemplava dois crimes: quadrilha e bando. Com a entrada em vigor da Lei 12.850/2013 – Lei do Crime Organizado, o nomen iuris do delito foi alterado para associação criminosa. A pena privativa de liberdade foi mantida: reclusão, de um a três anos. Contudo, a Lei 12.850/2013 constitui-se em norma penal mais gravosa, aplicável somente a fatos futuros, pois bastam três pessoas para a configuração da associação criminosa, enquanto na quadrilha e no bando exigiam-se ao menos quatro indivíduos.

Objeto jurídico: Tutela-se a paz pública.

Núcleo do tipo: O núcleo do tipo é “associarem-se”, ou seja, aliarem-se, reunirem-se, congregarem-se três ou mais pessoas para o fim específico de cometer crimes.

Associação estável e permanente: É a nota característica que diferencia a associação criminosa do concurso de pessoas (coautoria ou participação) para a prática de delitos em geral. No art. 288 do Código Penal, é imprescindível o vínculo associativo, revestido de estabilidade e permanência, entre seus integrantes. Em outras palavras, o acordo ilícito entre três ou mais pessoas deve versar sobre uma duradoura, mas não necessariamente perpétua, atuação em comum, no sentido da realização de crimes indeterminados ou somente ajustados quanto à espécie, que pode ser de igual natureza ou homogênea (exemplo: furtos), ou ainda de natureza diversa ou heterogênea (exemplo: furtos, estelionatos e apropriações indébitas), mas nunca no tocante à quantidade. Exemplo: Cinco pessoas se unem, sem previsão de data para a dissolução do agrupamento, visando a concretização de furtos de automóveis no estado do Ceará. Ausente esse vínculo associativo, a união de três ou mais indivíduos para a prática de um ou mais crimes caracteriza o concurso de pessoas (coautoria ou participação), nos moldes do art. 29, caput, do Código Penal. Exemplo: Cinco pessoas se reúnem para furtar dois automóveis em Salvador. Alcançado o objetivo, os veículos são vendidos, reparte-se o dinheiro arrecadado e os sujeitos retornam cada um às suas vidas.

Além disso, mais uma importante diferença pode ser apontada entre a associação criminosa e o concurso de pessoas. Na associação criminosa, pouco importa se os delitos para os quais foi constituída venham ou não a ser praticados. Em outras palavras, o crime tipificado no art. 288 do Código Penal é de natureza formal, consumando-se com a simples associação estável e permanente de três ou mais pessoas para a prática de crimes, ainda que no futuro nenhum delito seja efetivamente realizado. Por sua vez, afasta-se a punição do concurso de pessoas na hipótese em que, nada obstante a reunião de dois ou mais indivíduos em busca de um fim comum, não se dá causa, no mínimo, a um crime tentado. Em outras palavras, a punibilidade do concurso de pessoas pressupõe a prática de atos de execução por no mínimo um dos envolvidos na empreitada criminosa. É o que se convencionou chamar de participação impunível, descrita no art. 31 do Código Penal: “O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado”.

É importante destacar, ainda, que a exigência legal de associação de três ou mais pessoas não se confunde com a obediência rígida a regulamentos, estatutos ou normas disciplinares. Obviamente, também não se pode exigir, em face do seu caráter ilícito, o registro da associação criminosa perante os órgãos públicos competentes. Basta a presença de uma organização social rudimentar apta a evidenciar a união estável e permanente direcionada à prática de crimes indeterminados. Como se sabe, normalmente a associação criminosa tem um chefe, e entre os seus componentes são destacados alguns para funções específicas. No entanto, isso sequer é necessário para que se reconheça o delito. Nem mesmo é preciso que todos os seus integrantes se conheçam mutuamente, ou residam na mesma localidade, ou tenham sede habitual de reunião. Para o acordo associativo não é obrigatória a presença conjunta dos comparsas, e poderá efetuar-se até mesmo mediante emissários, telefonemas ou qualquer meio de comunicação. Em síntese, para a caracterização da associação estável e permanente inerente ao crime tipificado no art. 288 do Código Penal é prescindível a existência de uma organização detalhadamente definida, com hierarquia entre seus membros e repartição prévia de funções entre cada um deles.

Reunião de três ou mais pessoas para a prática de crimes em continuidade: concurso de pessoas ou delito autônomo do art. 288 do Código Penal? Formaram-se duas posições sobre o assunto. 1.ª posição: Trata-se de associação criminosa, pois os indivíduos estão agrupados com a finalidade específica de cometer crimes, ainda que venham a ser considerados, para efeito de aplicação da pena, uma continuidade. 2.ª posição: Cuida-se de concurso de pessoas, uma vez que na continuidade delitiva não se verifica a associação estável e permanente entre os envolvidos nos diversos crimes parcelares, razão pela qual deve ser reconhecida a coautoria ou participação, dependendo do caso concreto.

Para o fim de cometer crimes: O art. 288, caput, do Código Penal utilizou a palavra “crimes” em sentido técnico, razão pela qual o agrupamento de três ou mais pessoas para o fim de cometer contravenções penais não enseja o reconhecimento da associação criminosa. De igual modo, se o fim é diverso da prática de crimes, ainda que ilícito e imoral, não há falar no delito contra a paz pública.

E, como o tipo penal faz menção a “crimes”, impõe-se a união estável e permanente de, no mínimo, três indivíduos para a prática de crimes indeterminados, qualquer que seja o bem jurídico ofendido (vida, patrimônio, dignidade sexual, fé pública etc.). De fato, a reunião de pessoas para a realização de crimes determinados (ainda que vários) caracteriza concurso de pessoas (coautoria ou participação), e não associação criminosa.

Em nossa opinião, os crimes apontados pelo art. 288, caput, do Código Penal precisam ser dolosos. Com efeito, a associação criminosa é incompatível com o propósito de praticar crimes culposos ou preterdolosos, pois nestes o resultado naturalístico é involuntário, sendo inconcebível que alguém se proponha a um resultado que não quer, ou sequer assuma o risco de produzi-lo.

Classificação:

Crime simples

Crime comum

Crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado

Crime de perigo comum e abstrato (diverg.)

Crime vago

Crime obstáculo

Crime de forma livre

Crimes comissivo

Crime permanente

Crime plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário e de conduta paralela

Crime plurissubsistente

Informações rápidas:

Associação: deve ser estável e permanente (independe de organização definida, hierarquia entre os membros e repartição de funções). Exige três pessoas e, dentre estes, pelo menos um imputável. Extinção da punibilidade de um dos agentes não descaracteriza o crime.

Não abrange contravenções penais e todos os crimes devem ser dolosos.

Denúncia: independe da descrição detalhada da conduta de cada membro.

Elemento subjetivo: dolo (elemento subjetivo específico: “para o fim de cometer crimes”). Não admite modalidade culposa.

Tentativa: não admite.

Ação penal: pública incondicionada.

Majorantes do parágrafo único: abrange arma própria e imprópria (inclusive arma branca); envolvimento de menor de 18 anos.

Sujeito ativo:A associação criminosa é delito comum ou geral: pode ser praticado por qualquer pessoa, independentemente de especial situação fática ou jurídica. O crime estará caracterizado tanto para aqueles que se reuniram ab initio, como também para as pessoas que ingressaram em agrupamento ilícito após a sua efetiva constituição. Desponta ainda como crime plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário, pois o tipo penal reclama a pluralidade de indivíduos para a sua caracterização. E, no âmbito dessa classificação, constitui-se em crime de condutas paralelas, uma vez que os diversos sujeitos (ao menos três) auxiliam-se, mutuamente, com o objetivo de produzirem o mesmo resultado, qual seja, a união estável e permanente especificamente voltada à prática de crimes.

Inimputáveis e número mínimo de pessoas para reconhecimento da associação criminosa: O delito previsto no art. 288 do Código Penal reclama a associação de no mínimo três pessoas para o fim específico de cometer crimes. Incluem-se nesse número os inimputáveis, qualquer que seja a causa da inimputabilidade penal (menoridade, doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou desenvolvimento mental retardado), haja vista que, em se tratando de crime plurissubjetivo (plurilateral ou de concurso necessário), basta que apenas um dos agentes seja maior de 18 anos de idade e penalmente imputável. Exemplificativamente, nada impede a constituição da associação criminosa com o envolvimento de um maior de idade e de dois jovens de 17 anos de idade. Aquele será processado e julgado pela justiça penal; estes serão submetidos a procedimento para apuração de ato infracional, perante a Vara da Infância e da Juventude, nos moldes da Lei 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Entretanto, é de analisar com cautela o envolvimento na associação criminosa de pessoa menor de 18 anos de idade. Com efeito, o inimputável deve apresentar um mínimo de discernimento mental para ser computado como integrante da associação ilícita. Sirva-se como ilustração a artimanha corriqueiramente utilizada nas grandes cidades: uma criança contando com quatro anos de idade é explorada por assaltantes na prática de roubos em semáforos instalados em vias públicas. No momento em que o infante pede ajuda ao motorista do automóvel, que abre o vidro para lhe entregar dinheiro ou comida, dois roubadores com armas em punho aproveitam-se da facilidade proporcionada pela vítima e anunciam o assalto. Nessa hipótese, evidentemente, não se pode considerar a criança como membro da associação criminosa, que na verdade não existe, em face da união de somente duas pessoas.

Associação criminosa e pessoas não identificadas: Pode o Ministério Público oferecer denúncia pela associação criminosa na hipótese em que somente um dos seus integrantes foi identificado? A resposta é positiva. Contudo, logicamente, deve existir prova segura (testemunhas, interceptação telefônica, documentos etc.) da união estável e permanente dessa pessoa com pelo menos outros dois indivíduos, para o fim específico de cometer crimes. É o que se verifica, exemplificativamente, quando se comprova em interceptação telefônica que um sujeito, devidamente identificado, encontra-se associado com outras duas pessoas, de qualificação ignorada, para a prática de roubos em agências bancárias. Nesse caso, aquele que foi identificado será processado pelo crime definido no art. 288 do Código Penal, sem prejuízo da continuidade das investigações para elucidar a qualificação dos demais integrantes do grupo.

A questão relativa à imputação na denúncia e a descrição detalhada da conduta de cada um dos membros da associação criminosa: No âmbito dessa discussão, há entendimentos no sentido de ser exigível, de parte do Ministério Público, a precisa descrição da conduta praticada individualmente pelos integrantes da associação criminosa. Somente assim estaria assegurada a ampla defesa (CF, art. 5º, inc. LV), pois o réu defende-se dos fatos descritos na denúncia, pouco importando a tipificação imputada pelo Parquet. De outro lado, há vozes sustentando a admissibilidade da descrição genérica, bastando a demonstração da associação de pelo menos três pessoas para a prática de crimes. Esta é a posição há muito consagrada no Supremo Tribunal Federal e também no Superior Tribunal de Justiça relativamente aos crimes plurissubjetivos em geral.

Associação criminosa e crimes agravados pelo concurso de pessoas – concurso material e análise de eventual bis in idem: Existem crimes cujas penas são exasperadas, mediante a previsão de qualificadoras ou causas de aumento da pena, quando praticados em concurso de pessoas. É o que ocorre, entre outros casos, no furto (CP, art. 155, § 4.º, inc. IV), no roubo (CP, art. 157, § 2.º, inc. II) e na extorsão (CP, art. 158, § 1.º, 1.ª parte). Com base nessa informação, e escolhendo como exemplo, aleatoriamente, o crime de furto, indaga-se: Se os membros da associação criminosa cometerem um delito dessa natureza, quais crimes deverão ser a ele imputados? Formaram-se duas posições acerca do assunto. Vejamos.

(a) Furto qualificado pelo concurso de pessoas e associação criminosa, em concurso material – Para os adeptos dessa linha de pensamento, entre os quais nos incluímos, não há falar em bis in idem (dupla punição pelo mesmo fato), pois a pluralidade de pessoas é aferida em momentos distintos. Além disso, os crimes são autônomos e independentes entre si, ofendem bens jurídicos diversos e consumam-se em momentos diferentes. A associação criminosa é delito contra a paz pública, de perigo comum e abstrato, de natureza formal e permanente. Destarte, coloca em risco toda a coletividade, intranquilizando seus membros, e não uma pessoa determinada. Se não bastasse, consuma-se com a simples associação de três ou mais pessoas para o fim específico de cometer crimes, e essa consumação se prolonga no tempo. De outro lado, o furto desponta como crime contra o patrimônio, de dano, material e instantâneo. Em outras palavras, não basta o perigo ao bem jurídico, exigindo-se a efetiva lesão do patrimônio de uma ou mais pessoas, obrigatoriamente determinadas. E sua consumação verifica-se com a inversão da posse do bem subtraído, momento deveras posterior ao aperfeiçoamento da associação criminosa. Em verdade, o delito tipificado no art. 288 do Código Penal consuma-se previamente ao crime patrimonial. Este era o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal e igualmente pelo Superior Tribunal de Justiça em relação ao crime de quadrilha.4

(b) Associação criminosa e furto simples, em concurso material – Para os partidários deste raciocínio, a pluralidade de pessoas envolvidas na empreitada ilícita já foi punida a título de associação criminosa, motivo pelo qual o reconhecimento da qualificadora do furto (concurso de pessoas) caracterizaria bis in idem.

Associação criminosa e extinção da punibilidade no tocante a algum dos seus membros: A extinção da punibilidade em relação a um ou mais integrantes da associação criminosa não exclui o delito previsto no art. 288 do Código Penal. A extinção atinge somente a punibilidade, deixando intacto o crime. O raciocínio se fortalece ainda mais ao recordarmos que nem mesmo a inimputabilidade de um dos membros da associação ilícita afasta o crime para os demais. De igual modo, é possível que somente um dos membros da associação criminosa seja processado, em decorrência do falecimento de todos os seus comparsas em confronto com a polícia, pois o crime já havia se consumado. É fundamental, entretanto, faça a denúncia referência aos demais integrantes do agrupamento.

Sujeito passivo:É a coletividade (crime vago).

Elemento subjetivo: É o dolo, acrescido de um especial fim de agir (elemento subjetivo específico), representado pela expressão “para o fim específico de cometer crimes”, independentemente da sua natureza (crimes contra a pessoa, contra o patrimônio, contra a fé pública etc.) e da pena cominada (reclusão, detenção, com ou sem multa, etc.). De fato, é essa finalidade específica, indicativa da exigência de união estável e permanente de ao menos três indivíduos, que diferencia a associação criminosa da simples reunião eventual de pessoas para a prática de um ou mesmo de vários delitos (concurso de pessoas). Vale destacar que, malgrado na maioria das vezes a associação criminosa se forme para fazer da prática de delitos uma atividade lucrativa, a torpeza não se revela imprescindível. Há casos em que o agrupamento objetiva o cometimento de delitos sem nenhum propósito econômico, como no exemplo de jovens abastados que se reúnem para ceifar a vida de moradores de ruas. Não há lugar para a modalidade culposa.

Consumação:A associação criminosa é crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se no momento em que se concretiza a convergência de vontades, independentemente da realização ulterior do fim visado. Em síntese, a consumação se verifica no momento em que três ou mais pessoas se associam para a prática de crimes, ainda que nenhum delito venha a ser efetivamente praticado. E, para as pessoas que ingressarem no grupo posteriormente, o delito estará aperfeiçoado no momento da adesão à associação já existente. A justificativa desta conclusão é simples. Cuida-se de crime de perigo abstrato, e com o momento associativo já se apresenta perigo suficientemente grave para alardear a população e tumultuar a paz no âmbito da coletividade. Portanto, a associação criminosa é juridicamente independente dos delitos que venham a ser cometidos pelos agentes reunidos no agrupamento espúrio, e subsiste autonomamente, ainda que os crimes para os quais foi organizada sequer venham a ser realizados. Entretanto, os membros que praticarem os delitos para cuja execução foi constituída a associação criminosa sujeitam-se, nos termos do art. 69 do Código Penal, à regra do concurso material. Vejamos um exemplo: “A”, “B”, e “C” formam uma associação destinada ao cometimento de roubos. Deverão ser responsabilizados pelo delito tipificado no art. 288 do Código Penal, ainda que não executem nenhum crime de índole patrimonial. Mas, se eles concretizarem algum roubo, terão imputados contra si os crimes contra o patrimônio e contra a paz pública, em concurso material.

Crimes permanentes e reflexos jurídicos: A associação criminosa é delito permanente, pois a consumação se prolonga no tempo, enquanto perdurar a união pela vontade dos seus integrantes. Daí decorrem três importantes consequências: (a) é possível a prisão em flagrante a qualquer tempo, enquanto subsistir a associação criminosa; (b) a prescrição da pretensão punitiva tem como termo inicial a data da cessação da permanência, a teor da regra inscrita no art. 111, inc. III, do Código Penal; e (c) se qualquer dos delitos for cometido no território de duas ou mais comarcas, a competência será firmada pelo critério da prevenção, nos moldes do art. 83 do Código de Processo Penal.

Abandono de integrante da associação criminosa e reflexos jurídicos: Imaginemos uma associação criminosa já constituída e composta por três membros, o número mínimo exigido pelo art. 288 do Código Penal. Se um deles retirar-se do agrupamento ilícito, estará excluído o delito? A resposta é negativa, pois o crime já havia se consumado no momento da efetiva associação, razão pela qual não se pode falar em desistência voluntária ou arrependimento eficaz (CP, art. 15). No entanto, a partir da retirada de um dos integrantes, rompendo-se o mínimo de pessoas exigido para configuração da associação criminosa, estará afastado o delito contra a paz pública.5

Associação criminosa e manutenção do estado ilícito após o início da ação penal: Se, após o oferecimento de denúncia pela prática do crime tipificado no art. 288 do Código Penal, os integrantes da associação criminosa vierem a praticar novos atos indicativos deste delito, deverá ser intentada outra ação penal. Com efeito, a associação criminosa, de natureza permanente, embora envolva uma série de atos, forma uma só unidade jurídica, ensejando a propositura de uma única ação penal. Se depois de oferecida a denúncia em razão da prática do delito, a societas sceleris tem continuidade pela prática de novos atos configuradores do crime, é cabível a promoção de nova ação penal, pois o raciocínio contrário implicaria patente teratologia jurídica, ao admitir-se que atos futuros cometidos pela associação criminosa sejam compreendidos em denúncia anterior. Não há falar, nesse caso, em dupla punição pelo mesmo fato (bis in idem), pois existe mais de um delito no plano fático.

Associação criminosa e prática de crimes somente por alguns dos seus integrantes: Pensemos em uma associação criminosa constituída para a prática de estelionatos e composta de três integrantes: “A”, “B” e “C”. Imaginemos agora que somente dois deles (“A” e “B”) venham a praticar um crime abrangido pelo plano do grupo, em relação ao qual o último associado (“C”) não tenha de qualquer modo participado. Pergunta-se: qual ou quais crimes devem ser atribuídos aos membros da associação ilícita? “A” e “B” devem ser responsabilizados pela associação criminosa (CP, art. 288), em concurso material com estelionato (CP, art. 171, caput), pois apenas eles executaram ou de qualquer modo concorreram para o crime contra o patrimônio. Por sua vez, “C” terá contra si imputado unicamente o delito contra a paz pública, pois o fato de pertencer à associação criminosa não acarreta automaticamente a sua responsabilização por toda e qualquer infração cometida pelos demais integrantes do agrupamento espúrio, na hipótese em que se encontra alheio à sua determinação ou execução, sob pena de configuração da responsabilidade penal objetiva.

Tentativa: A associação criminosa, compreendida como crime-obstáculo, é incompatível com o conatus. Como o art. 288 do Código Penal exige a associação de três ou mais pessoas para o fim específico de cometer crimes, conclui-se que, se a estabilidade e a permanência do agrupamento estiverem presentes, o delito estará consumado; caso contrário, o fato será atípico.

Ação penal: É pública incondicionada.

Lei 9.099/1995: Em sua modalidade fundamental, prevista no art. 288, caput, do Código Penal, a associação criminosa constitui-se em crimes de médio potencial ofensivo, pois a pena mínima (um ano) autoriza o benefício da suspensão condicional do processo, se presentes os demais requisitos exigidos pelo art. 89 desta Lei.

Causas de aumento da pena (art. 288, parágrafo único):Estatui o art. 288, parágrafo único, do Código Penal: “A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente”. São previstas duas causas de aumento da pena, aplicáveis na terceira e derradeira fase da dosimetria da pena privativa de liberdade. É de se atentar que a pena não será aumentada obrigatoriamente de metade, pois o dispositivo contém a expressão “até a metade”. É cabível, portanto, a elevação da reprimenda em percentual inferior (um terço, um quarto, etc.). Vejamos cada uma delas.

Associação armada: Como a lei não fez qualquer tipo de restrição, a causa de aumento da pena incidirá tanto na hipótese de arma própria, ou seja, instrumento concebido com a finalidade precípua de ataque ou defesa (exemplos: revólver, pistola, espingarda, punhal etc.), como no caso de arma imprópria, é dizer, objetivo criado com finalidade diversa, mas que pode ser utilizado para ataque ou defesa (exemplos: barra de ferro, chave de fenda, taco de beisebol etc.). A arma branca, compreendida como o instrumento dotado de ponta ou gume (faca, espada, machado etc.) igualmente enseja o aumento da reprimenda. O fundamento do tratamento penal mais rigoroso repousa na maior potencialidade lesiva da associação criminosa, agravando o sentimento de intranquilidade no seio social e ofendendo em grau mais elevado a paz pública. Basta, para o aumento da sanção penal, que somente um dos integrantes do grupo esteja armado, desde que os demais tenham ciência da existência da arma, sob risco de configuração da responsabilidade penal objetiva. Em verdade, não será aplicável a majorante no tocante àqueles que ignorarem a presença da arma no âmbito da associação criminosa.6

Participação de criança ou adolescente: A majorante se contenta com o envolvimento do menor de 18 anos na associação criminosa, prescindindo da sua participação nos delitos eventualmente praticados pelo grupo. O art. 288 do Código Penal contempla um crime plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário. Destarte, basta que um dos integrantes da associação seja maior de idade e penalmente imputável. Se os demais – no mínimo dois – forem crianças ou adolescentes, estará caracterizado o delito, inclusive com a incidência da causa de aumento da pena para o agente dotado de culpabilidade. A propósito, a participação de criança ou de adolescente na associação criminosa também acarreta a caracterização da corrupção de menores, disciplinada pelo art. 244-B da Lei 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Este crime, de natureza formal, in-depende de prova da efetiva deturpação moral do menor de 18 anos, pois se constitui em crime de perigo. É o que se extrai da Súmula 500 do Superior Tribunal de Justiça: “A configuração do crime previsto no artigo 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente independe da prova da efetiva corrupção do menor, por se tratar de delito formal”.

Associação criminosa armada e prática de crime agravado pelo emprego de arma: Há crimes previstos na Parte Especial do Código Penal, e também na legislação extravagante, em que o emprego de arma eleva sensivelmente a pena cominada à modalidade fundamental, seja como qualificadora, seja como causa de aumento da pena. É o que se dá, exemplificativamente, no roubo (CP, art. 157, § 2.º, inc. I) e na extorsão (CP, art. 158, § 1.º). Pensemos agora em uma situação hipotética: Os membros de uma associação criminosa armada invadem um estabelecimento comercial e praticam um roubo, valendo-se das armas para a intimidação das vítimas. Quais crimes devem ser a eles imputados? Nada obstante entendimentos doutrinários e jurisprudenciais em sentido contrário, os agentes devem ser responsabilizados pelos delitos de associação criminosa armada (CP, art. 288, parágrafo único, 1ª parte) e roubo circunstanciado (CP, art. 157, § 2.º, inc. I), em concurso material.7 No tocante ao emprego de arma, não há falar em bis in idem, pois inexiste dupla punição pelo mesmo fato. Estão em jogo bens jurídicos distintos: patrimônio, no roubo; e paz pública, na associação criminosa. Se não bastasse, os crimes são independentes e autônomos entre si. Com efeito, no momento em que o roubo (crime de dano) é praticado, violando o patrimônio e a integridade física ou a liberdade individual de vítima determinada, o delito tipificado no art. 288 do Código Penal (crime de perigo) já estava há muito consumado, com a associação estável e permanente de três ou mais pessoas para a prática de crimes, ofendendo a paz pública e o sentimento social de tranquilidade.

Lei dos Crimes Hediondos e figura qualificada da associação criminosa: Como estabelece o art. 8º, caput, da Lei 8.072/1990 – Lei dos Crimes Hediondos: “Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo”. Este dispositivo legal abre espaço para uma modalidade qualificada de associação criminosa, aplicável unicamente aos agrupamentos ilícitos constituídos com a finalidade de praticar delitos hediondos ou assemelhados, com exceção do tráfico de drogas, pois em relação a este crime incide a figura contida no art. 35 da Lei 11.343/2006 – Lei de Drogas (associação para o tráfico de drogas).

Associação para o tráfico de drogas: O art. 35 da Lei 11.343/2006 – Lei de Drogas contempla o crime de associação para o tráfico: “Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei: Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa. Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei”. As diferenças entre este crime e a associação criminosa definida no art. 288 do Código Penal são nítidas, como demonstra o gráfico abaixo:

Art. 288 do Código Penal – Associação criminosa

Art. 35 da Lei 11.343/2006 – Associação para o tráfico

Mínimo de 3 (três) pessoas

Mínimo de 2 (duas) pessoas

Prática de crimes em geral

Prática dos crimes definidos nos arts. 33, caput e § 1º, 34 e 36 da Lei de Drogas

Associação para o tráfico de drogas – estabilidade e permanência: Nada obstante o caput do art. 35 da Lei de Drogas faça menção à expressão “reiteradamente ou não”, a jurisprudência acertadamente tem decidido pela imprescindibilidade de estabilidade e permanência para a caracterização do delito. Com efeito, o agrupamento eventual de duas ou mais pessoas permite o reconhecimento do concurso de pessoas, mas jamais de autêntica associação. Como já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça: “O delito previsto no art. 35 da Lei 11.343/2006 não se configura diante de associação eventual, mas apenas quando estável e duradoura, não se confundindo com a simples coautoria. Precedentes. No caso dos autos, em nenhum momento foi feita referência ao vínculo associativo permanente porventura existente entre os agentes, mas apenas àquele que gerou a acusação pelo tráfico em si. Inviável, pois, manter a condenação pela associação, pois meramente eventual. Ordem concedida para se excluir da condenação a figura do art. 35 da Lei 11.343/2006”.8

Associação criminosa e organização criminosa – análise comparativa e reflexos jurídicos:Um ponto interessante a ser analisado é a relação entre a associação criminosa, disciplinada no art. 288 do Código Penal, e a definição jurídica de organização criminosa, prevista no art. 1º, § 1º, da Lei 12.850/2013 – Lei do Crime Organizado: “Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”. A organização criminosa reclama a associação de no mínimo quatro pessoas. Além disso, sua estrutura é bem definida e destina-se à prática de infrações penais dotadas de maior gravidade, revelando-se como autêntica estrutura ilícita de poder, ditando e seguindo regras próprias, à margem da autoridade estatal. Existe um modelo empresarial, com comandantes e comandados, todos voltados à prática de atos contrários ao Direito Penal, a exemplo do PCC – Primeiro Comando da Capital – e do CV – Comando Vermelho –, entre tantas outras facções criminosas. O art. 2º, caput, da Lei 12.850/2013 incrimina a conduta de promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa, cominando-lhe a pena de reclusão, de três a oitos anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas pela organização criminosa. Finalmente, a caracterização da organização criminosa autoriza a incidência dos institutos contidos na Lei 12.850/2013, a exemplo da colaboração premiada, da ação controlada e da infiltração de agentes policiais.

Lei de Segurança Nacional: Nos termos dos arts. 16 e 24 da Lei 7.170/1983 – Lei de Segurança Nacional: “Art. 16. Integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça. Pena: reclusão, de 1 a 5 anos. (...) Art. 24. Constituir, integrar ou manter organização ilegal de tipo militar, de qualquer forma ou natureza armada ou não, com ou sem fardamento, com finalidade combativa. Pena – reclusão, de 2 a 8 anos”.

Genocídio – Lei 2.889/1956:Estatui o art. 2º da Lei 2.889/1956 que a associação de mais de três pessoas para a prática de crimes de genocídio, nas suas variadas formas, definidas no art. 1º do citado diploma legal, importa na imposição de pena consistente na metade da cominada aos crimes ali previstos.

Formação de cartel e acordo de leniência – Lei 12.529/2011: Se a associação criminosa relacionar-se diretamente à formação de cartel, a celebração de acordo de leniência determina a suspensão da prescrição e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência. O acordo de leniência é possível com pessoas físicas que forem autoras de infração contra a ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, e que dessa colaboração resulte a identificação dos demais envolvidos na ação e a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação. O cumprimento do acordo de leniência acarreta a automática extinção da punibilidade (Lei 12.259/2011, art. 86, incs. I e II, e art. 87, caput e parágrafo único).

Jurisprudência selecionada:

Associação para o tráfico de drogas – estabilidade e permanência: “O delito previsto no art. 35 da Lei nº 11.343/2006 não se configura diante de associação eventual, mas apenas quando estável e duradoura, não se confundindo com a simples coautoria. Precedentes. No caso dos autos, em nenhum momento foi feita referência ao vínculo associativo permanente porventura existente entre os agentes, mas apenas àquele que gerou a acusação pelo tráfico em si. Inviável, pois, manter a condenação pela associação, pois meramente eventual. Ordem concedida para se excluir da condenação a figura do art. 35 da Lei nº 11.343/2006” (STJ: HC 149.330/SP, rel. Min. Nilson Naves, 6ª Turma, j. 06.04.2010, noticiado no Informativo 429).

Autonomia: “O tipo do artigo 288 do Código Penal é autônomo, prescindindo quer do crime posterior, quer, com maior razão, do anterior” (STF: HC 95.086/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, j. 04.08.2009).

Constituição de milícia privada

Art. 288-A. Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos.

 

Classificação:

Informações rápidas:

Crime simples

Crime comum ou geral

Crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado

Crime de perigo comum e abstrato

Crime vago

Crime de forma livre

Crime comissivo

Crime permanente

Crime plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário

Crime de condutas paralelas

Crime de ação múltipla ou de conteúdo variado

Crime obstáculo

Milícia privada: associação permanente e estável, de, ao menos, três pessoas. Extinção da punibilidade de um agente não descaracteriza o crime.

Não abrange contravenções penais e crimes previstos em leis extravagantes. Todos os crimes devem estar previstos no CP.

Objeto material:organização paramilitar, milícia particular, grupo e esquadrão.

Elemento subjetivo:dolo, acrescido do elemento subjetivo específico “com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código”. Não admite a modalidade culposa.

Tentativa: não admite (crime obstáculo).

Ação penal: pública incondicionada.

 

Introdução: O crime de constituição de milícia privada foi incorporado ao Código Penal pela Lei 12.720/2012. Criou-se um tipo penal aberto, colocando em risco a constitucionalidade do art. 288-A do Código Penal frente ao princípio da reserva legal ou da estrita legalidade. Deveras, o tipo penal não contém as definições de “organização militar, milícia particular, grupo ou esquadrão”.

Objeto jurídico:É a paz pública, ou seja, o sentimento coletivo de paz e tranquilidade assegurado pela ordem jurídica.

Objeto material:É a organização paramilitar, a milícia particular, o grupo e o esquadrão.

Organização paramilitar: Associação civil, desvinculada do Estado, armada e com estrutura análoga às instituições militares, que utiliza táticas e técnicas policiais ou militares para alcançar seus objetivos. Não raramente, membros das forças militares (Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícias) clandestinamente também integram as organizações paramilitares, com motivação ilícita (político-partidária, religiosa ou de outra natureza). A Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. XVII, proíbe expressamente as organizações paramilitares, com fundamento na exclusividade do Estado no tocante ao uso do poder coercitivo frente às pessoas em geral.

Milícia particular: É o agrupamento armado e estruturado de civis – inclusive com a participação de militares fora das suas funções – com a pretensa finalidade de restaurar a segurança em locais controlados pela criminalidade, em face da inoperância e desídia do Poder Público. Para tanto, seus integrantes apresentam-se como verdadeiros “heróis” de uma comunidade carente e fragilizada, e como recompensa são remunerados por empresários e pelas pessoas em geral. Contudo, diversas pessoas são coagidas à colaboração financeira, mediante violência física ou grave ameaça.

Grupo e esquadrão: Ligam-se aos grupos de extermínio. Esta conclusão é extraída da interpretação sistemática da Lei 12.720/2012, que acrescentou os §§ 6º e 7º, respectivamente, aos arts. 121 e 129 do Código Penal.

Grupo de extermínio: É a associação de matadores, composta de particulares e muitas vezes também por policiais, autointitulados “justiceiros”, que buscam eliminar pessoas deliberadamente rotuladas como perigosas ou inconvenientes aos anseios da coletividade. Sua existência se deve à covardia e à omissão do Estado, bem como à simpatia e, não raras vezes, ao financiamento de particulares e de empresários, que contam com a ajuda destes exterminadores para enfrentar supostos ou verdadeiros marginais, sem a intervenção do Poder Público.

Núcleos do tipo:São cinco: constituir, organizar, integrar, manter e custear. Constituir é formar, fundar ou dar existência a algo; organizar tem o sentido de formar, estruturar ou colocar em ordem;9 integrar, por sua vez, equivale a incorporar-se ou tornar-se parte de um grupo qualquer; manter traduz a ideia de conservar ou defender; e, finalmente, custear significa arcar com os custos financeiros da manutenção de algo. O custeio pode ser rateado entre todos os agentes, ou então ser efetuado por somente um ou alguns deles. O crime deverá ser imputado tanto para aqueles que constituíram, isto é, fundaram a estrutura ilícita de poder, bem como para aqueles que nela ingressaram após a sua efetiva formação.

União estável e permanente: É imprescindível o vínculo associativo, caracterizado pela estabilidade e pela permanência entre seus integrantes. O acordo ilícito entre os agentes deve envolver uma duradoura, mas não necessariamente perpétua, atuação em comum, no sentido da realização de crimes indeterminados ou somente ajustados quanto à espécie, que pode ser de igual natureza ou homogênea (exemplo: homicídios), ou ainda de natureza diversa ou heterogênea (exemplo: homicídios e roubos), desde que previstos no Código Penal, mas nunca no tocante à quantidade. Na ausência desse vínculo associativo, a união de indivíduos para a prática de um ou mais crimes caracteriza o concurso de pessoas (coautoria ou participação), nos moldes do art. 29, caput, do Código Penal. É irrelevante se os crimes para os quais foi constituída a milícia privada venham ou não a ser praticados. De fato, este delito tem natureza formal, consumando-se com a simples associação estável e permanente de três ou mais pessoas para a prática de crimes previstos no Código Penal, ainda que no futuro nenhum delito seja efetivamente realizado. É suficiente a presença de uma organização social rudimentar apta a evidenciar a união estável e permanente direcionada à prática de crimes indeterminados, não dependendo a sua configuração de qualquer formalidade.

Constituição de
milícia privada

Concurso de pessoas
(coautoria ou particiação)

União estável e permanente de três ou mais pessoas

União eventual ou momentânea de pessoas

Intenção de praticar um número indeterminadode crimes, previstos no Código Penal

Intenção de cometer um ou alguns crimes determinados

Consuma-se com a simples associação estável e permanente, ainda que nenhum delito seja praticado

Consuma-se com a prática de atos de execução da empreitada criminosa

 

Finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos no Código Penal: A constituição de milícia privada limita-se aos crimes previstos no Código Penal, independentemente do bem jurídico tutelado ou da qualidade ou quantidade da pena cominada. O dispositivo somente se aplica aos crimes dolosos, uma vez que a constituição de milícia privada é logicamente incompatível com o propósito de praticar crimes culposos ou preterdolosos, pois nestes o resultado é involuntário. A palavra “crimes” foi utilizada em sentido técnico, excluindo as contravenções penais, também não contempladas no Código Penal. Também não se caracteriza o delito se a finalidade do agrupamento é a prática de atos ilícitos ou imorais, pois não ensejam obrigatoriamente o reconhecimento de crimes previstos no Código Penal. O legislador optou em afastar a incidência do art. 288-A do Código Penal frente à união de pessoas para a prática de delitos tipificados na legislação especial. Nessas hipóteses, o fato não será atípico, pois estará configurado o delito de associação criminosa armada, na forma do art. 288, parágrafo único, do Código Penal. Por sua vez, se o objetivo da organização paramilitar, milícia privada, grupo ou esquadrão consistir nos crimes previstos nos arts. 33, caput ou § 1º, ou 34, da Lei 11.343/2006 – Lei de Drogas, restará delineada a figura da associação para o tráfico de drogas, na forma do art. 35 do citado diploma legal.

Sujeito ativo:A constituição de milícia privada é crime comum ou geral, podendo ser praticado por qualquer pessoa. É também crime plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário, pois o tipo penal exige a pluralidade de indivíduos para a sua caracterização. E, nesta seara, desponta como crime de condutas paralelas, uma vez que os diversos sujeitos auxiliam-se, mutuamente, com o objetivo de produzirem o mesmo resultado.

Número mínimo de agentes: Ao contrário do que se verifica na associação criminosa, disciplinada no art. 288 do Código Penal, em que se exigem ao menos três pessoas, aqui o legislador calou-se. Diante da omissão normativa, é seguro afirmar que devem existir ao menos três pessoas. Com efeito, quando o Código Penal quer a presença de pelo menos duas (exemplos: arts. 155, § 4º, inc. IV, 157, § 2º, inc. II, e 158, § 1º) ou então de quatro pessoas (exemplo: arts. 146, § 1º, inc. I), ele o faz expressamente. De seu turno, nas situações em que se exige a pluralidade de indivíduos, sem indicação do número, devem existir ao menos três pessoas. Esta é a técnica de elaboração legislativa adotada no Brasil, e presente em diversos dispositivos do Código Penal, destacando-se, entre outros, os arts. 137 e 141, inc. III, 1ª parte.

Inimputáveis e número mínimo de pessoas para reconhecimento do delito: No número mínimo de três pessoas exigidas para a constituição de milícia privada incluem-se os inimputáveis, qualquer que seja a causa da inimputabilidade (menoridade, doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado). Com efeito, trata-se de crime plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário, e por esta razão é suficiente que apenas um dos agentes seja maior de 18 anos e penalmente imputável. Sem dúvida alguma, o inimputável deve apresentar um mínimo de desenvolvimento mental para ser computado como integrante do agrupamento ilícito.

Milícia privada e pessoas não identificadas: Se somente uma ou duas delas forem identificadas, nada impede o oferecimento de denúncia somente em relação aos sujeitos conhecidos, desde que existam provas suficientes da reunião de no mínimo três indivíduos, em organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão, para o fim de cometer crimes previstos no Código Penal. Sem dúvida alguma, as pessoas identificadas deverão ser processadas pelo crime tipificado no art. 288-A do Código Penal, sem prejuízo da continuidade das investigações, em autos apartados, para elucidar a qualificação dos demais envolvidos na milícia privada.

A imputação na denúncia e a descrição minuciosa da conduta de cada um dos agentes: Existem, em todos os crimes plurissubjetivos, entendimentos no sentido de ser imprescindível, pelo Ministério Público, a descrição detalhada da conduta de cada um dos membros do grupo criminoso. Contudo, sempre prevaleceu a posição pela admissibilidade da descrição genérica. E aqui o raciocínio não há de ser diferente. Portanto, na denúncia é suficiente a demonstração da união de pelo menos três pessoas em organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão para a prática de crimes previstos no Código Penal. A individualização das condutas poderá ser demonstrada durante a instrução criminal em juízo, com a produção de todas as provas legalmente permitidas.

Milícia privada e extinção da punibilidade em relação a algum dos seus membros: A extinção da punibilidade no tocante a um ou mais membros da organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão não exclui o crime definido no art. 288-A do CP, pois a extinção atinge somente a punibilidade, consequência do delito. Logo, nada impede que somente um dos integrantes da milícia privada seja processado e condenado, em face do falecimento de todos os seus comparsas, pois o crime já havia se consumado. No entanto, nesse caso, é preciso constar, no corpo da denúncia, a referência aos demais agentes.

Sujeito passivo:É a coletividade (crime vago).

Elemento subjetivo: É o dolo, acrescido de um especial fim de agir (elemento subjetivo específico) representado pela expressão “com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código”, independentemente da sua natureza (crimes contra a pessoa, contra o patrimônio, contra a dignidade sexual etc.). Esta finalidade específica é o fator de distinção entre a constituição de milícia privada (CP, art. 288-A) e o concurso de pessoas, consistente na união ocasional de pessoas para o cometimento de um ou vários delitos. Nada obstante presente na maioria das vezes, a torpeza não funciona como elementar do tipo penal, sendo possível a verificação de finalidade diversa, a exemplo da conquista de prestígio com as mulheres de uma comunidade carente mediante a proteção do local. Não se admite a modalidade culposa.

Consumação:Trata-se de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado, consumando-se com a concretização da convergência de vontades, mediante a associação de três ou mais pessoas para a prática de delitos previstos no Código Penal, ainda que nenhum ilícito penal venha a ser efetivamente cometido. No tocante às pessoas que ingressarem na organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão posteriormente, o delito estará aperfeiçoado no momento da adesão. A constituição de milícia privada é crime de perigo comum e abstrato (ou presumido), e com a reunião de pessoas para a prática de delitos previstos no Código Penal já existe força suficiente para ofender a paz pública, perturbando a tranquilidade no âmbito da sociedade. Em verdade, a constituição de milícia privada é crime juridicamente independente daqueles que venham a ser cometidos pelas pessoas reunidas na organização espúria, e subsiste autonomamente ainda que os delitos para os quais foi formada a organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão sequer sejam realizados. Contudo, os integrantes que praticarem os crimes para cuja execução foi constituída a milícia privada submetem-se, com fulcro no art. 69 do Código Penal, à regra do concurso material.

Crime permanente e reflexos jurídicos: Cuida-se de crime permanente, pois a consumação se prolonga no tempo, pela vontade dos agentes. Daí resultam três importantes consequências: a) admite-se a prisão em flagrante a qualquer tempo, enquanto subsistir o delito; b) a prescrição da pretensão punitiva tem como termo inicial a data da cessação da permanência, nos moldes do art. 111, inc. III, do Código Penal; e c) se o delito for cometido no território de duas ou mais comarcas, a competência será firmada pelo critério da prevenção, nos termos do art. 83 do Código de Processo Penal.

Abandono de integrante do grupo e reflexos jurídicos: Se no bojo de uma organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão, composta de três pessoas, uma delas retirar-se da estrutura ilícita, não se exclui o crime catalogado no art. 288-A do CP. O delito já estava consumado no momento da efetiva união dos três indivíduos, não sendo possível o reconhecimento da desistência voluntária ou do arrependimento eficaz, disciplinados no art. 15 do CP. Contudo, a partir da saída de um dos membros, rompendo-se o mínimo de pessoas exigidas para a caracterização da figura típica, estará afastado o crime contra a paz pública.

Constituição de milícia privada e manutenção da situação ilícita após o início da ação penal: Se, depois do oferecimento da denúncia pelo crime delineado no art. 288-A do Código Penal, os membros da milícia privada praticarem novos atos indicativos da união espúria, o Ministério Público deverá oferecer outra denúncia, como corolário do novo delito. Nesse caso, não há bis in idem (dupla punição pelo mesmo fato), pois existe mais de um delito no plano da realidade. Esta posição há muito é consagrada pela jurisprudência no campo do art. 288 do Código Penal. A respeito, ver comentários ao art. 288.

Milícia privada e a prática de crimes somente por alguns de seus membros: Pensemos em uma organização paramilitar constituída para a prática de extorsões, e composta por três integrantes: “A”, “B” e “C”. Se apenas dois deles (“A” e “B”) praticarem uma extorsão, e o terceiro membro (“C”) com esta não guardar nenhum envolvimento, qual ou quais crimes deverão ser a eles imputados? “A” e “B” deverão ser responsabilizados pela constituição de milícia privada (CP, art. 288-A), em concurso material com a extorsão (CP, art. 158, § 1º). Por sua vez, “C” terá contra si imputado unicamente o delito contra a paz pública. O fato de integrar a organização paramilitar não acarreta na sua responsabilização automática por todo e qualquer crime cometido pelos demais membros do grupo, sob pena de caracterização da responsabilidade penal objetiva.

Tentativa:Não é possível. Com efeito, duas situações podem ocorrer: (a) os três ou mais sujeitos efetivamente constituíram, organizaram, integraram, mantiveram ou custearam organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos no Código Penal, e o delito estará consumado, independentemente da prática de qualquer crime; ou (b) os três ou mais sujeitos agiram de forma diversa, e não estará configurado o delito contido no art. 288-A do CP. Esta circunstância é reforçada pelo fato de a constituição de milícia privada despontar como crime obstáculo, pois o legislador incriminou, de forma autônoma, atos representativos da preparação de outros delitos. E crimes desta natureza não comportam a forma tentada.

Ação penal: É pública incondicionada.

Lei 9.099/1995: Em face da pena cominada – reclusão, de quatro a oito anos –, a constituição da milícia privada é crime de elevado potencial ofensivo, incompatível com os benefícios elencados pela Lei 9.099/1995.

Constituição de milícia privada e concurso de crimes:A constituição de milícia privada, crime de natureza formal, consuma-se no momento em que três ou mais agentes se associam, de modo estável e permanente, em organização paramilitar, milícia privada, grupo ou esquadrão, para o fim de cometer qualquer dos crimes previstos no CP. Não se exige a efetiva prática dos delitos. Basta a intenção de perpetrá-los em número indeterminado. Contudo, pode acontecer, e normalmente acontece, de os membros do agrupamento praticarem os crimes para os quais se uniram. Nesse caso, os integrantes envolvidos na execução dos delitos deverão responder por estes e também pela figura típica contida no art. 288-A do CP. É possível, inclusive, sejam praticados homicídios ou lesões corporais. Se isso ocorrer, deverão incidir as causas de aumento de pena previstas, respectivamente, nos §§ 6º e 7º dos arts. 121 e 129 do Código Penal. Não há falar em bis in idem, pois inexiste dupla punição pelo mesmo fato. Estão em jogo bens jurídicos diversos: no homicídio, a vida humana (na lesão corporal, a integridade física ou a saúde); na constituição de milícia privada, a paz pública. Além disso, os crimes são independentes e autônomos entre si. No momento da prática do homicídio ou da lesão corporal (crimes de dano) pela milícia privada ou pelo grupo de extermínio, contra vítima determinada, o crime definido no art. 288-A do Código Penal, de perigo comum e abstrato, já estava há muito consumado, com indiscutível ofensa à paz pública.

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1MAGALHÃES NORONHA, E. Direito penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1983. v. 4, p. 86.

2HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. vol. IX, p. 172-173.

3NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1983. vol. 4, p. 89.

4STF: HC 77.287/SP, rel. Min. Sydney Sanches, 1ª Turma, j. 17.11.1998; e HC 70.395/RJ, rel. Min. Paulo Brossard, 2ª Turma, j. 08.03.1994. No STJ: HC 123.932/SP, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5.ª Turma, j. 16.06.2009.

5Igual raciocínio se aplica na hipótese em que a associação criminosa é composta por três membros, e um deles é absolvido pelo fato de ter sido comprovado que ele não fazia parte da associação ilícita. Nesse caso, estará excluído o crime definido no art. 288 do Código Penal.

6O Supremo Tribunal Federal já ostentava este pensamento antes da entrada em vigor da Lei 12.850/2013 (HC 72.992/SP, rel. Min. Celso de Mello, 1.ª Turma, j. 21.11.1995).

7Este sempre foi o entendimento consagrado nos Tribunais Superiores acerca do delito de quadrilha armada, e não há razões jurídicas para a sua alteração (STF: RHC 102.984/RJ, rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, j. 08.02.2011, noticiado no Informativo 615; e HC 85.183/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 02.08.2005. No STJ: HC 91.129/SP, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, j. 10.06.2008).

8HC 149.330/SP, rel. Min. Nilson Naves, 6ª Turma, j. 06.04.2010, noticiado no Informativo 429.

9Há distinção entre “constituir” e “organizar”: quem constitui inaugura alguma entidade, até então inexistente, ao passo que aquele que “organiza” não participou, necessariamente, da fundação da entidade, mas intervém, posteriormente, no seu funcionamento.