A poesia anônima e popular não indica o uso da cachaça ao branco, ao cabobo (grafia legítima, de Caá-mato e Boc, tirado, procedente, oriundo, segundo mestre Teodoro Sampaio) e ao negro brasileiro, e sim ao Cabra, vagueando englobadora de mestiços, de várias procedências, gentium incertae affinitatis.
Mulato não larga a faca,
Nem branco a “sabedoria”,
Cabra não deixa a cachaça
Nem negro a feitiçaria.
Jogo de branco é dinheiro,
De caboco é frecharia;
Vida de cabra é cachaça,
De negro é feitiçaria.
(Variante do Maranhão)
Na primeira quadrilha, vulgar de Sergipe ao Ceará, fixa-se a permanente funcional, a normalidade de ação, a maneira-de-ser. A disponibilidade agressiva do mulato, a perfídia astuta do branco, são sequências como a feitiçaria para o negro e a cachaça para o “cabra”. Na segunda quadra, mais íntima e medular, alude-se ao ludus, o emprego do tempo, a escolha da atividade livre, uma aplicação volitiva dos saldos psicológicos na quarta dimensão. É uma pequenina obra-prima de crueldade, precisão e nitidez. Essa energia instintiva, indisfarçável, para o branco é o dinheiro. Interesse absoluto, fundamental, orgânico.
O que o dinheiro não arrumar,
Não tem mais arrumação!
Somos, nessa concepção, o que valemos economicamente. Vale quem tem. Sem dinheiro, não há pandeiro. O Céu é o limite para as citações concorrentes. Para o caboco, aqui personalizando o indígena, é o retorno à vida pretérita, arco e flecha, mato e cadência social que o civilizado não compreenderia jamais; a flecharia, a livre manifestação da vontade nos caminhos proibidos do costume milenar. O esquimó, recusando a catequese porque o paraíso cristão não tinha focas. A reidentificação ecológica. Para o negro é a magia, o mistério, tentando esclarecer e disciplinar na potência dos amuletos, dos gestos defensivos, na custódia vigilante dos patuás e dos esconjuros magnéticos. O ludus negro é o sobrenatural, o lógico para ele, incapaz de compreender as razões naturais, devoto divinizador do cotidiano.
Vida de cabra é cachaça, ambivalência da frustração, a fuga à realidade opressiva ao eterno desajustado, hóspede de todas as culturas.
Minha mãe teve dois filhos,
Fui eu só que dei pra gente:
Vendi tudo o que era nosso,
Bebi tudo de aguardente.
A cachaça a Deus do Céu
Tem o poder de empatar:
Porque se Deus dá juízo,
Cachaça pode tirar...
E mais tragicamente às vezes, com a consciência suicida, expressa nesse versinho de Aires Palmeira:
Reserva um canto na pança
Para enchê-lo de cachaça,
Pois toda nossa esperança
Se encerra nessa desgraça.
E a fatalidade incoercível, ridicularizada e terrível:
Homem que bebe cachaça,
Mulher que errou uma vez,
Cachorro que pega bode,
Coitadinho deles três!
Para o julgamento do Povo, os descendentes mestiços são fiéis à cachaça. Outrora pelo preço acessível, consentindo a continuidade viciosa. Agora pela valorização da bebida, equiparada em custo aos velhos conhaques, subindo aos olhos do consumidor. A tradição cachaceira não é europeia cedida ao reinado dos Vinhos, tal qual estudou Fernando de Castro Pires de Lima, diretor do Museu de Etnografia e História do Porto. Nem se manteve na geração brasileira dos europeus. Quem pesquisa o “complexo” sente a limitação do consumo a determinadas classes na visível geografia do automatismo grupal. Quase sempre só bebem, vendo beber. É a mais comunitária das bebidas. Para o bebedor não é uma subalternidade a escolha de aguardente. A humildade originária sublima-se pela sinonímia sonora, animadora, jubilosa. Sobretudo, no mundo pobre e fusco dos devotos, a Cachaça recebe véu e capela de alvura, candidez, beleza: Moça Branca, a Branca, Branquinha. Essas denominações arianizam a companhia plebeia, proclamando a distinção do contato, pondo uma coroa de nobreza no colar de aljôfares da pinga. É a bebida-do-povo, áspera, rebelada, insubmissa aos ditames do amável paladar, bebida de 1817, da Independência, atrevendo-se enfrentar o vinho português soberano, o líquido saudador da Confederação do Equador em 1824, dos liberais da Praia em 1848, a Patrícia, a Patriota, a Gloriosa, cachaça dos negros do Zumbi no quilombo dos Palmares, do desembargador Nunes Machado e de Pedro Ivo, dos Cabanos, cachaça com pólvora dos cartuchos rasgados no dente, na Cisplatina e no Paraguai, tropelias dos Quebra-Quilos, do Clube do Cupim, conspirador abolicionista, gritador republicano, bebida-nacional, a Brasileira:
Que zombe o vulgo insensato
De quem da vida a canseira
Afoga, rindo do mundo,
N’um trago da Brasileira!
Por isso a avó do poeta Ascenso Ferreira dizia que fora a Branquinha quem gritara a República de Olinda em 1710.
Mas toda essa projeção estrondante atira-se, como vagalhão equinocial, por cima da muralha inabalável do preceito social. Passada a efervescência entontecedora e contagiante, a cachaça recua para seus álveos comuns, para a circulação obscura de vendas e bodegas, suburbanas e rurais. Cendrillon volta ao esfregão cozinheiro. A carruagem é uma abóbora, os cavalos ratos, os lacaios, lagartos verdes. A Moça Branca despe a farda de vivandeira e retoma o sujo avental das feiras e das tascas.
Reaparece, disfarçada em gelo e sumo de frutas, nas batidas aperitivais, no gole rápido antecedor de feijoadas empanturrantes e paneladas apocalípticas. Participação sem predomínio. É uma menor, tutelada, garantindo o ingresso pelo prestígio acompanhante. Para que possa apresentar-se na legitimidade integral, a lítica, prosódia popular de líquida, pura, simples, natural, é indispensável o seu mundo, cenário, paisagem, ambiente, a mobilização insubstituível dos figurantes inseparáveis, dramatics personae infalíveis para o rito bebedor da Cana, nome que ainda resiste na Galícia, inconsistente em Portugal.