8. TÉCNICA

A Cachaça, hóspede dos negros africanos e dos amerabas, conquistou a preferência insular e continental, destronando todos os vinhos habituais. Só não a bebem quando é impossível obtê-la. Nenhuma bebida tradicional resistiu ao dominador impacto. Não há uma tribo para recusá-la, na África e na América. É o melhor presente, a moeda poderosa, o amavio sedutor.

Na África é impressionante a reação impotente de Héli Chatelain contra o álcool ao sul de Angola, tolerado como mata-bicho nas Missões católicas. Pela África Oriental, e mesmo atlântica, o caju brasileiro (Anacardium occidentale, Linneu), vulgarizou um vinho fermentado, como no Brasil nordestino, tumultuando e animando a vida local. O administrador da Zambézia diz a Hugh Tracey que esse vinho, denominado sope, feito em novembro, é responsável por três quartas partes dos crimes, nesse período do ano. Antônio Ennes, quando Comissário Régio em Moçambique, pensou em mandar destruir todos os cajuais para evitar a excitação turbulenta. Curioso é que o Conselho Político holandês em Pernambuco, julho de 1641, multava em cem florins quem derrubasse um cajueiro, por ser o fruto um importante sustento dos indígenas (José Antônio Gonçalves de Melo Neto, Tempo dos Flamengos, Rio de Janeiro, 1947). Essa avidez africana pela bebida era denunciada pelo padre André Fernandes em junho de 1560, referindo-se à planta mapira que permite farinha suculenta: “Mapira é a melhor e maior parte do seu mantimento e gastam porção dela que podia dar-lhes comida para trinta dias em fabricar uma bebida chamada empombe que lhes serve só para uma vez”.

A cachaça penetrou o cerimonial religioso, integrando-se no patrimônio oblacional africano. N’Zambi, Calunga, Mulungu, bebem a aguardente. Pela África oriental notadamente Moçambique, as Rodésias, a garrafa de cachaça despejada no chão é a suprema oferta aos Muzimos, temerosos antepassados, propiciadores de êxitos. Pelos Congos e Guinés não há homenagem aos mortos eminentes sem aguardente derramada. Aplaca a fúria das almas inquietas e ciumentas. Apesar da pregação furiosa dos monhés, muçulmanos, a cachaça reina como um sultão de outrora por todo litoral do Índico e do Mar Vermelho, tal qual pelo Senegal e Níger.

Impressionante é esse poder transculturador, como diz Fernando Ortiz, apoiado por Bronislaw Malinowski, da aguardente vencendo a onipotência da Nicotiana tabacum. O fumo é popularíssimo, inseparável dos lábios africanos. Os Balalis da margem direita do Lago Stanley, 1885, introduziam no túmulo das pessoas queridas um cachimbo atestado de tabaco e já aceso, para que os defuntos satisfizessem o vício. Quem não fuma na África? Mas o tabaco não conseguiu aproximar-se das divindades. Los dioses negros de África no fuman, registrou Fernando Ortiz. Mas bebem cachaça, tão estrangeira quanto a solanácea, e, como ele, trazida pelos “brancos”.

Pela América esses deuses de ébano aceitam os prazeres regionais. Loco, Iroco, Rocô, vivo nas gameleiras da Bahia e do Recife, o Ogum Badagri, do Vodu no Haiti, fumam charuto e bebem álcool, distanciados da etiqueta sudanesa.

Aguardente participa das exigências protocolares dos cultos negros em Cuba. É indispensável no Catimbó brasileiro. Sem cachaça não se faz um amuleto eficaz nem se arma um feitiço eficiente. A cachaça preparada pelo “Mestre”, com folhas, raízes, essências, orações, serenos orvalhados, enterrada sob a soleira da porta principal, é uma muralha intransponível. Molhando-se com esse líquido a muamba, o canjerê, o ebó, a “coisa-feita”, anulam-se todas as forças maléficas, inutilizando a potência adversa. A cachaça soprada pelo “Mestre” na Pajelança amazônica, umedecendo-se os pulsos, têmporas, sola dos pés, palma das mãos, nuca e alto da cabeça, é uma couraça impenetrável, durante certo número de dias ou semanas (Bruno de Menezes, informação pessoal).

Em todos, ou quase todos processos de limpeza, descarga, precaução mágica defensiva em Belém do Pará, para aguar a casa, entrada das portas e batentes das janelas, aguardente é fundamental. “A cachaça tem predominância visível. É o mais presente dos líquidos, demonstrando aculturação nacional. Receitam-na em meio litro (XXIX), xícara (XXVI), três dedos (VII), colher (IV), nove pingos (XXX), meio copo (XXXV), cálice (XXIV) ou sem precisar quantidade” (Luís da Câmara Cascudo, Folclore do Brasil, “Banhos de cheiro. Defumações. Defesas mágicas”, 169, Rio de Janeiro, 1967).1

Pelo Pará e Amazonas há uma superstição referente aos tajás, originária de lenda dos caraíbas Macuxis, do Rio Branco. Emprestam a essas aráceas valores de encantamento. Plantadas ao derredor das residências transformam-se em onças e serpentes, defendendo-as dos assaltos, garantindo saúde, tranquilidade, abundância, atração sexual, resistência invencível, fortuna em caça, pesca, guerra, viagens, negócios. Mas as qualidades miríficas atuam depois da intervenção propedêutica do Pajé, benzendo os tinhorões, borrifando-os com uma mistura de composição secreta, espécie de chambra dos Kimbisas cubanos, onde a cachaça é invariável conduto. Informação do etnógrafo Bruno de Meneses, do Pará.

A cachaça, com esse e outros nomes, ocupa o trono da chicha pelos Andes e Antilhas. Alcança a Polinésia onde derrotou a samoana kawa. Tuamotu e Nova Zelândia sentem seu império. São suas vassalas as velhas bebidas indígenas amazônicas caxiri, carimã, tiquira, paiauaru, caisuma, xibé, carimba, cauim. O Conde de Stradelli atina num alambique entre os nativos do Rio Uaupés, afluente do Rio Negro, Mutykyrepáua, étimo de muthky, feito apurado, feito a lágrima; de tyky, pingo, lágrima, gota. Barro e madeira, para o caxiri de mandioca, através do beiju, em região onde a cana-de-açúcar estava ausente. Acreditava numa invenção indígena e não imitação. “A destilada obtida nestes aparelhos, dizem os apreciadores, tem um gosto todo especial que inutilmente se procura na melhor cachaça.” Sonho de verão amazônico. A Mutykyrepáua é uma adaptação aruaca do alambique que os portugueses levaram na bagagem “civilizadora”; em finais do séc. XVII. Não há outra solução.

Deduzo que a cachaça circulou pela África ocidental na segunda metade do séc. XVII quando o tráfico de escravos avolumou-se, e a aguardente era divisa insuperável ao lado do tabaco. Durante o domínio holandês em Angola, 1641-1647, e escravo fora adquirido pelo mesmo processo lusitano nas áreas onde a Companhia possuiu jurisdição efetiva. A produção local da cachaça africana fora insignificante porque não interessava aos países produtores uma concorrência com os engenhos brasileiros e antilhanos. E menos ainda na fase flamenga, precária e rápida, visando unicamente aquisição escrava. A fervorosa aceitação da cachaça denunciava o inesgotável mercado consumidor, acentuando-se pelo séc. XVIII.

Os vinhos africanos, todos fermentados, eram vulgares e conhecidos por todo o continente negro. A cachaça encontrou bebidas secularmente favoritas, notadamente retiradas da seiva de certas palmeiras, infusão de raízes. Só não havia a mastigação prévia, explicável, em parte, pela ausência dos amidos, dispensando a diástase da ptialina.

Apenas nas derradeiras décadas do séc. XIX os alambiques começaram a destilar pela África banto e sudanesa, com menor proporção legítima porque a Saccharum officinarum não bastava às necessidades sacarinas quanto mais às do aguardente. As anteriores, furiosamente disputadas, vinham do Brasil, nas âncoras, presentes aos soberanos e autoridades vendedoras dos conterrâneos negros. No final do séc. XIX a situação era a mesma, industrialmente, das ilhas dos mares do Sul, lançando mão de outras plantas, nativas ou aclimatadas, milho, sorgo, milhetos, aipim, inhame, batatas, cajus, como ainda se verifica.

1 Edição atual – 3. ed. São Paulo: Global, 2012. (N.E.)