Um ângulo de psicologia coletiva é de surpreendente importância: a participação da aguardente no cerimonial religioso indígena, africano, oceânico, com pouco mais de dois séculos de percussão social. Numa infinita diversidade de raças e ritos sagrados, a cachaça anulou as restrições litúrgicas, impondo-se como ortodoxa. Não há outro exemplo de infiltrante penetração em toda a Etnografia Geral, no espaço e no tempo. Em qualquer dessas regiões, a cachaça era uma imigrante, estrangeira, visitante, como o tabaco que Bronislaw Malinowsk viu oferecer-se aos Boloma, espíritos, de Trobinand, na Nova Guiné.
Todos os pesquisadores dos our primitive contemporaries sabem da angustiosa vigilância nativa respeitante às obrigações do culto divino. O conhecimento funcional da licitude é minucioso, intolerante, pormenorizado. Nenhum homem branco, com maior capacidade de compreensão ou simpatia, conseguiu fixar os atributos definitivos dos grandes deuses assombrosos, Olurum, Calunga, Mulungu, N’Zambi, Poluga. Como nenhum mitólogo entendeu as limitações da onipotência dos Deuses-Olímpicos, decididas pelas imposições do Destino, do Fatum. A lógica de Predestinação e Livre-Arbítrio.
A sinonímia dessas entidades é interminável. E cada um dos nomes positiva grandezas específicas, autônomas, autossuficientes. O deus é um complexo de forças criadoras, constelação de poderes soberanos, independentes, convergindo para uma miraculosa e harmônica unidade onipotente.
O homem terá a liberdade dentro de ambiente invariável, como o peixe n’água e ave em zona ecológica. É a criatura indeterminadamente partilhante da funcionalidade criadora. Ligado ao sobrenatural-permanente, não esmagado pelo temor do castigo, mas convicto da indispensabilidade de sua colaboração consciente. O deus se avulta na unanimidade e pureza do culto fiel. O grande engano da Etnografia Clássica, ou da Antropologia Cultural moderna, é ver em cada nativo um candidato à evasão litúrgica. Rara e fortuitamente admitem a Fé, a Convicção, a Confiança nas almas selvagens. Os mestres antropologistas, que os digo Etnógrafos, consideram o nosso homem inicial como um crente numa religião provisória, mera disponibilidade para a conquista catequética subsequente. Cada devoto primitivo é realmente um familiar do Santo Ofício do seu credo, fiscalizando a ortodoxia alheia porque está tranquilo sobre a profundeza da própria. O senador Simaco e Ambrosio, bispo de Milão, são modelos definitivos, desde o séc. IV.
Decorrentemente, todos os atos culturais, dedicados aos deuses, devem ser impecáveis, puros, legítimos em sua tradicionalidade. Nec varietur. Nihil innovetur é a lei, formal, instintiva, desses códigos canônicos universais. Ver no Direito Canônico o título II, De Consuetudine.
A mais insignificante modificação nasce de autorização divina, expressa em forma notória, transmitida pela hierarquia sacerdotal idônea. Poderá surgir um culto novo; jamais uma alteração ritual no exercício consuetudinário. Foi nesse mundo imutável que, vinda de longe, a cachaça apareceu e ficou sendo participante do cerimonial pela África, pela Ásia, pela Oceania.
A oferta da aguardente no sepulcro dos antepassados nos dias oblacionais não existia quando das navegações iniciais pelo oceano Pacífico. Frutos, animais espotejados, flores, armas, bailados, cantigas e as bebidas que o uso normal tornara naturais para a alimentação extraterrena, satisfaziam a cerimônia. Bebidas que eram uma continuidade nutritiva, atestando o cuidado dos descendentes à robustez e saúde do morto, vivo na sua sepultura residencial. E também um motivo de alegria, de animação simbólica às danças dos fantasmas no mundo das sombras eternas. Permitir-lhes-ia o mesmo vigor que o sangue das vítimas imoladas por Ulisses em homenagem aos mortos concedera aos espectros consultados a voz profética, anunciando o futuro (Odisseia, XI). Desde a segunda metade do séc. XIX a aguardente é incluída entre as oferendas, pela África negra como pela Polinésia, em sua multidão de ilhas faiscantes.