14. CANA-CAIANA

A Cana-Caiana é a única Saccharum officinarum a denominar aguardente, ingressando na rica sinonímia da cachaça.

Batizou um livro de poemas de Ascenso Ferreira (Cana-Caiana, Recife, 1939), onde reaparece um ditirambo popular:

Suco de cana-caiana

Passado nos alambique,

Pode sê qui prejudique

Mas bebo toda sumana.

As primeiras mudas vieram de Cayenne, capital da Guiana Francesa, então domínio de Portugal, chegando ao Rio de Janeiro, em maio ou junho de 1810, deduzindo-se do registro do Padre Perereca (Cônego Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844), Memórias para Servir à História do Reino do Brasil): “Sim, também desta colônia francesa, presentemente sujeita ao domínio do Príncipe Regente Nosso Senhor, foi remetida para esta Corte, pelo brigadeiro Manoel Marques, governador da mesma colônia, uma preciosa coleção de plantas especieiras, e frutíferas, extraídas do célebre jardim chamado Gabriela, onde os franceses as cultivavam com todo o desvelo e ciúme. Muitas destas plantas ficaram no Pará, outras em Pernambuco, e grande número delas chegou a este porto do Rio de Janeiro, carregadas a bordo do brigue ‘Vulcano’, do comando do capitão-tenente Joaquim Epifânio de Vasconcelos, e logo foram remetidas para o real jardim da lagoa de Freitas, para ali se cultivarem. Juntamente com esta remessa de plantas vieram canas sacarinas da mesma Caiena, as quais pela sua enorme grandeza e grossura, se fazem apreciáveis, prometem grandes vantagens à cultura, e fabrico do açúcar, e muito maiores ainda para a destilação das águas-ardentes, visto serem as ditas canas muito suculentas”.

Em 1768 o navegador Bougainville encontrara-as na Ilha de Taiti, vindas da Índia ou mais provavelmente da Polinésia, origem do povoamento insular .2 Trouxera sementes para as ilhas Maurício, (“de France”) e Bourbon (“Reunion”), de onde as recebeu a possessão francesa vizinha ao Brasil, dizendo-as “Canan de Bourbon”. Divulgaram-se em Cayenne, sede de maior concentração canavieira, inicialmente utilizada na fabricação das tafiás, determinando alto número de Rhuberies, antes que produzissem o açúcar, segundo a informação de Augusto de Saint-Hilaire. O açúcar nunca atingiu nível suficiente ao consumo local ainda em 1960.

A tafiá é aguardente do mel.

Em 1810, é a data histórica, vencendo os 5.000 quilômetros de distância, a Cana Caiana veio reinar no Brasil. Cito “data histórica” porque há a tradição de d. Francisco de Sousa Coutinho, entre 1790-1793, havê-la introduzido no Pará, tendo-a, bem pouco provável, da Guiana Francesa, alcançando Pernambuco e mesmo a Bahia.

Os naturalistas viajantes no quinquênio 1815-1820 deparam a Cana-Caiana dos engenhos fluminenses (Wied-Neuwied) aos pernambucanos (Henry Koster). Escreveu este: “Sua superioridade é tão evidente que, depois de rápido ensaio em cada propriedade, substituiu a pequena cana-de-açúcar, geralmente plantada” (Viagem ao Nordeste do Brasil, XVI). Wied-Neuwied equivoca-se: “Cultivavam a princípio a cana da Caiena; tornando-se, porém, conhecida a do Taiti e revelando-se esta muito mais produtiva, substituiu quase completamente aquela” (Viagem ao Brasil, III). Era a mesma. Competira e vencera a velha Cana Criola inicial, vinda da Ilha da Madeira que a recebera da Sicília, plantada pelos mouros, e fundara a indústria açucareira no Brasil. A Cana-Caiana resistia mais à falta de chuvas, adaptando-se aos terrenos secos, embora o maior teor sacarino fosse acentuado na maturação.

O Prof. Renato Braga (Plantas do Nordeste, 118) esclarece: “Tanto a ‘Caiana’, como outras variedades posteriormente introduzidas: ‘Preta’, ‘Roxa’, ‘Bambu’ ou ‘Salangor’, ‘Cavangire’, ‘Imperial’, de Pernambuco, ‘Amarela’, ‘Fita’ ou ‘Listrada’, ‘Rajada’, ‘Rósea’, etc., foram quase totalmente substituídas, a partir de 1930, pelas variedades javanesas e outras canas híbridas, além de mais produtivas, resistentes ou tolerantes ao ‘mosaico’”.

Essas variedades soavam no ritmo aceso das “emboladas” pelos cambiteiros dos engenhos nordestinos:

Cana-Caiana, Cana-Roxa, Cana Fita,

Cada qual a mais bonita,

Todas boa de chupá!

A Cana Preta, Amarela, Pernambuco,

Quero vê desce o suco

Na pancada do ganzá!

2 Samuel Wallis, o descobridor do Taiti, encontrara em 1766 cana-de-açúcar, coqueiros, bananeiras, inhame, fruta-pão, na ilha. Commerson, o naturalista da expedição Bougainville, dois anos depois, afirmara serem produtos da flora da Índia. Todas essas plantas estavam disseminadas por quase todas as ilhas dos mares do Sul, de uso tradicional e antiquíssimo por toda a Polinésia, povoadora do Taiti. Exceto a fruta-pão (Artocarpus incisa, Linneu, vindo em 1810), as demais estavam aclimatadas no Brasil desde a segunda metade do séc. XVI.