As classes sociais têm suas bebidas privativas, características, reservadas aos membros da comunidade, quase representativas no plano da legitimidade funcional. São moralmente intransferíveis dentro do complexo tradicional. Sugerem ambiente, indumentária, maneira. Champanhe, os vinhos fidalgos pela antiguidade do renome, certos conhaques, são de degustação inconcebível sem o cenário indispensável e convergente. Têm sua hora de aplauso e cadência de aceitação. Participam dos atos simbólicos no processo das relações humanas. Um exemplo é a subalternidade da cerveja, não obstante os milênios de utilização consumidora. No Brasil, a cerveja conseguiu instalar-se nas reuniões domésticas, nas festas familiares, na primeira década deste séc. XX. Antes, bebiam-na fora de casa. Não constituía reserva prudente, como uma champanhe ou porto-velho, no silêncio das dispensas modestas mas sabedoras do protocolo. Os Manuais de Cozinheiro, anteriores a 1900, prescreviam sua exclusão peremptória no rol das refeições festivas, mesmo íntimas. Pode figurar nos jantares sem formalidade mas não consta a sua presença num banquete oficial. Ninguém concebe cerveja numa recepção diplomática.
A cachaça, nascida possivelmente no séc. XV, sem nobreza, acesso palaciano, intimidade com gênios literários e musicais, teve seu ingresso vedado pela etiqueta às residências de espavento e bares de “Grande Hotel”, recomendado ao turismo. Ninguém imagina uma cachaça de honra...
Carece de rang, precedência, gabarito. Fama, ancianidade evocacional, prestígio das imagens associadas às glórias, valores, orgulhos coletivos, não pertencem ao seu patrimônio. Não vem a ser um Angoulême, um Vieux-Armanac, um Carlos I, Napoléon, Old Scoth, a simples Kirschwasser jubilosa, a banal Schnaps, o Brandy, quase a história da Inglaterra no rush geográfico, aguardentes com almanaque de Gotha. Ausência do poder denominador, nome mágico, sugerindo a dimensão irrecusável no plano cerimonial da reverência. Vodca dos grãos-duques e de Stalin. Absinto de Verlaine. Whisky de Winston Churchill. Licores do romantismo feminino. Vinho da Madeira, ressuscitando a sonoridade parnasiana. Conhaque dominador, sustentáculo e motor da consolidação republicana no Brasil, até a presidência Campos Sales. Ânimo da propaganda e obstinação da República em Portugal. Não há revolução sem conhaque, afirmava o senador Pedro Velho. Vermute de gente bem nos finais do séc. XIX, aperitivo em bandeja de xarão, jantar de meia-gala, mesureiro e risonho, tempo do imperador D. Pedro II no Brasil, dos derradeiros Braganças em Portugal. Qualquer vinho europeu, dos “grandes” de primeira classe, têm uma história, um armorial, uma vaidade. A cachaça só pode contar anedotas de embriaguês banal, nauseada e sem voo.
Conta-nos Júlio Camba, espanhol bem superior ao clássico Brillat-Savarin, da existência do trou normand, constando de uma tregua que se estabelece a mitad de la comida para beber aguardiente. Podre de chique... Bebe-se então un fine normand, um fine calvados, cachaças promovidas ao posto de conhaque graças à grandeza irradiante dos consumidores. Crédito. Acreditar não ser decesso servir-se dela.
Ricardo Palma, nas Tradiciones Esperuanas (Buenos Aires, 1942), narra explicação aproveitável, valorizadora do aguardiente, não alcançando enobrecer a cachaça. “Como iba diciendo, en los tiempos de Cerezo era la aceituna inseparable compañera de la copa de aguardiente; y todo buen peruano hacía ascos a la cerveza, que para amarguras bastábanle las proprias. De ahi la franse que se usaba en los dias de San Martin y Bolívar para tomar laãs Once (hoy se dise Lunch en gringo): – Señores, vamos a remojar una aceitunita. – Y por que? – perguntará alguno – llamaban los antiguos las Once, al acto de echar después del mediodia, un remiendo al estómago? Por que?
Once las letras son del aguardiente,
Ya lo sabe el curioso impertinente.
No Brasil, a cachaça também significa predileção, uso fiel, costume, norma, vício, hábito, mania. No Peru vale obstinação, birra, teima (Ricardo Palma, Las Mejores Tradiciones Peruanas, Barcelona, 1917).
Suficiente, para documento, um trecho de discurso de Rui Barbosa, em 11 de novembro de 1914, no Senado Federal, presidido pelo general Pinheiro Machado: “Todos os membros desta Casa, a começar por V. Exa., Senhor Presidente, cuja cachaça nesse assunto é conhecida, têm provavelmente, como eu, o vício natural e vespertino da leitura dos nossos jornais” (Tribuna Parlamentar, III, Rio de Janeiro, 1955).
A cachaça poderá lembrar um contemporâneo de Sá de Miranda, o desembargador Antônio Ferreira, e dizer:
Eu desta glória só fico contente...