16. INTERLÚDIO DO FUMO

P’ra começo de conversa,

Eu preciso declarar;

Que não fumo sem beber

E nem bebo sem fumar.

Nesse prelúdio preciso destinar algumas notas a um motivo correlato e convergente.

O Brasil foi, mais de duzentos anos, Suiker-Land, a terra do açúcar. Afastado o Pau-brasil, o açúcar assenhoreou-se de todas as atividades econômicas. O Brasil é o açúcar, disse o Padre Antônio Vieira. Trouxe o escravo africano e atraiu o holandês, vinte e quatro anos governando o Nordeste (Geografia do Brasil Holandês, Rio de Janeiro, 1956). A cachaça nasceu da indústria do açúcar, bastarda e clandestina, merecendo depois proclamação de legitimidade per rescriptum principis. Tornou-se bebida nacional, determinando uma literatura oral de impressionante vitalidade.

Outro grande centro industrial do açúcar, a Ilha de Cuba, teve sua bebida, o rum, vulgar mas subalterno e sem projeção na imaginativa popular e marcadamente literária. El ron no influyó en las directrices de la economia social de Cuba más que las madeiras de corazón, las corambres, los mariscos y otros productos secundarios, escreveu Fernando Ortiz (Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azúcar, ed. de 1963). Constituiu categoria inferior, tão diversa da prestigiosa cachaça brasileira.

Lembro que o Tabaco, soberano em Cuba, também abundante e nativo no Brasil, não alcançou, entre nós, maiores áreas de influência cultural. Indispensável na vida brasileira, não provocou um folclore movimentado e documentador. Sua literatura é pobre e mínima. O Instituto Joaquim Nabuco publicou, sem nome de autor, uma excelente História em Rótulos de Cigarros (“Litografia no antigo Recife”, 1965, pesquisa de Mauro Mota), onde, excepcionalmente, há rica informação popular. A tradição do Tabaco, secularmente social, ainda não interessou os nossos etnógrafos. Mais feliz foi o Café, hóspede naturalizado e dominador, já possuindo razoável e sólida bibliografia. E data de 1725.

É surpreendente o Tabaco, compadre e mano da cachaça, não acompanhá-la na viagem folclórica, sendo-lhe anterior em uso e abuso, indígena, português e negro.

Quem bebe, fuma...

No Brasil dizemos fumo e não tabaco. O clássico Damião de Góes, há quatrocentos anos, escrevia: A erva que chamamos do Fumo (Crônica de D. Manoel, cap. 56, Lisboa, 1566-1567). Tabaco é o rapé. Tabaco é fumo pisado, definia Gregório de Matos nos finais do séc. XVII. Em tupi, peticuí, petingui, pitimacuri, no tupi amazônico, segundo Stradelli, pó-de-tabaco. Rapé é o francês rapê, o tabaco raspado, tabac à priser. Tomar rapé era tabaquear. “Vamos tabaquear o caso!...” Convite para sorver o torrado, outro cognome do rapé.

A Nicotina tabacum, petim, petun, pituna, petume, foi conhecida e amada desde os primeiros anos do povoamento. Os indígenas, notadamente os tupis, não a dispensavam, anotada pelos cronistas, tornada vício deleitoso pelo europeu e o escravo: bittin (Hans Staden, 1548), petun (André Thevet, 1555), petun (Jean de Léry, 1557), petigma (padre Fernão Cardim, 1583), petume (Gabriel Soares de Souza, 1587). O padre Manoel da Nóbrega descreve-a com gabos, em janeiro de 1550: “Todas as comidas são muito difíceis de desgastar mas Deus remediou a isto com uma erva, cujo fumo ajuda à digestão e a outros males corporais e a purgar a fleuma do estômago”. O cronista Damião de Góes, guarda-mor do Real Arquivo, escrevia em Lisboa, tratando das ervas brasileiras: “E a que chamamos do Fumo e eu chamaria Erva Santa”. Registra betun, informando ter sido levada a Portugal por Luís de Góes, 1542 ou 1548. André Thevet mandou-a à França e foi o primeiro a descrevê-la mas Jean Nicot de Villemain, ambassadeur de France en Portugal, rapinou a fama, dando nome à nicotiana, na classificação de Linneu.

Os portugueses revelaram o cachimbo indígena aos espanhóis. Antes do português no Brasil nenhum europeu fumou cachimbo no séc. XVI. O cachimbo tupi era o petimbuáb, dando pitinguá e petibáu. “Canguera” ou “cangoeira”, de acang, osso, era o cachimbo tubular, por semelhar o osso longo e oco.

Um sinônimo popular de fumar é pitar, do verbo pitéra, chupar. Decorrentemente, Pito é cachimbo e Piteira, por onde se fuma ou chupa o tabaco. Os tupis espalharam-se desde o istmo do Panamá, descendo para o sul. Em suas zonas de percurso geográfico é natural o encontro dos vestígios vocabulares. Pitar ficou pela linguagem espanhola da América insular e continental, como se ouve no Brasil.

Jorge Marcgrave (Cap. VIII) fixou os processos do fumador indígena entre 1638 e 1644. Não seria diverso do habitual, dois séculos antes.

“Com frequência os habitantes do Brasil fazem uso do tabaco a que denominam Petima e suas folhas Petimaoba. Põem as folhas secas no fogo; trituram-nas com as mãos e colocam o pó nos instrumentos feitos da casca do fruto chamado Pindoba (Attalea compta, Mart.) ou Vrucuruíba (‘a palmeira Attalea excelsa, Mart.’) ou Ioçara ou Aque (‘a palmeira Juçara, Euterpe edulis, Mart.’) etc. Cortam uma ponta; extraem o núcleo e torneiam a casca; depois de feito um furo ao lado aplicam um tubozinho de madeira. Este utensílio é chamado Petimbuaba (por corrupção da palavra os portugueses o denominam Catimbaba, os belgas, pior ainda, Katgenbow). Fazem uso também de tubozinhos de argila cozida como os que vêm da Europa, os quais denominam Amrupetimbuaba. Os tapuias usam tubos retos, largos, de madeira ou de argila, tão amplos que podem conter uma inteira mão de tabaco; chupam o fumo deste tubo cheio de tabaco aceso.

O padre Cardim dedica uma página, salientando o grande mimo e regalo com que amerabas e portugueses “fazem com uma folha de palma uma canguera, que fica como canudo de cana cheio desta erva, e pondo-lhe o fogo na ponta metem o mais grosso na boca, e assim estão chupando e bebendo aquele fumo”.

Por toda América espanhola e Brasil era natural dizer-se beber fumo, porque a fumaça era deglutida.

Sinh’Aninha bebe fumo

No seu caminho de prata...

Fumar, no idioma tupi, é U-Pitima. U é o verbo beber e petima é o tabaco. Petimbu, no tupi mais vulgar.

Por toda Angola dizia-se semelhantemente, surpreendendo a Héli Chatelain: It seems difficult to conceive how tobacco can be a drink. But in Kimbundo instead of saying “to smoke tobacco” one says “to drink tobacco”. Smoke is classified with the liquids. Em quimbundo – Nua é beber. Nua-makanha é “beber” a dikanha, maconha; Cannabis sativa, Linneu. Reforçava o critério tupi do U-Pitima, beber-fumo. Passou para o espanhol e para o português (Made in Africa, 177, Rio de Janeiro, 1965).

O imperador D. Pedro II visitando a cachoeira de Paulo Afonso, outubro de 1859, anotou entre os costume do baixo São Francisco: “As mulheres aqui fumão quase todas cigarros, charuto ou cachimbo, vendo cachimbar, que chamão aqui Beber Cachimbo, a uma de 90 anos ou mais talvez, no Traipu descobriu um charuto na mão d’um rapaz que tem 13 para 14 anos”.

Devia ter sido assombro para o Imperador que não suportava cheiro de tabaco, farejando-o como a um veneno, informava Múcio Teixeira.

No séc. XVI havia o beber os ventos, imagem literária que em Portugal veio aos meados do séc. XX, valendo interesse amoroso, devotamento enamorado, como empregara Luís de Camões:

Uma faz-me juramentos

que só meu amor estima;

a outra diz que se fina;

Joana, que bebe os ventos.

Fumar, como beber álcool, era um rite de passage, proclamação de maioridade e atestado de fase viril. Já fuma... valia reconhecimento do estado adulto. Constatava-se da experiência pessoal no plano da convivência vulgar, ouvindo-se a afirmativa: até bebe cachaça... A confidência da primeira embriaguez envaidecia o evocador, demonstrando haver ingressado no mundo. Não podia mais haver reservas e segredos depois dessa iniciação, às vezes nauseada. Acontecia, como sublimação de recalque, ser o charuto inversamente proporcional à idade e estatura do fumador.

Resisto à sedução de examinar o binômio Fumo-e-Álcool como fórmula feminina de emancipação moral e mental em nível social mais elevado, outrora fechado à pública exibição desses dois vícios. O cigarro sucessivo e o whisky constante valem sinal de trânsito aberto através da circulação humana. Fuga ao cotidiano opressor, decepcionante ou monótono. A thing wherein we feel there is some hidden want, “coisas em que a alma sente uma carência oculta”, poetava Shelley.