Let the toast pass Drink to the lass…
Sheridan
Je raconte une histoire pour les gens d’ici
Henri Béraud
A mais antiga menção da Cachaça em Portugal li na carta-II de Sá de Miranda (1481-1558), dedicada ao seu amigo e comensal Antônio Pereira, o Marramaque, senhor de Basto. Faz-se o elogio da independência e fartura das quintas fidalgas, acolhedoras e tranquilas, entre o arvoredo do Minho.
Ali não mordia a graça,
Eram iguais os juízes;
Não vinha nada da praça,
Ali, da vossa cachaça!
Ali, das vossas perdizes!
Recordava essas “ceias de Paraíso” no momento em que Lisboa arrastava os braços camponeses na sedução mercantil das especiarias orientais.
Não me temo de Castela
D’onde guerra inda não soa,
Mas temo-me de Lisboa,
Que ao cheiro d’esta canela
O Reino nos despovoa.
É Sá de Miranda, na Quinta da Tapada, triste e feliz, saudoso de Roma, Veneza e Milão, em tempo de Espanhóis e de Franceses, jardins de Valença de Aragão, onde Amor vive e reina, visitados pelas embuçadas gentis.
Meados do séc. XVI. Antônio Pereira abandonava o solar da Tapada em Celorico de Basto, e Sá de Miranda lamenta a falsa eleição quando o amigo se partiu para a Corte com a casa toda.
Singular ter sido esse poeta quem haja usado a cachaça nas deleitosas imagens dos passados festins em Cabeceiras de Basto, no ridente verde Minho, hospitaleiro e sereno.
Gil Vicente estava morto e não soara o vocábulo nas mil vozes do seu teatro incomparável. Competira ao rival Sá de Miranda a fixação nominal da bebida popularíssima no Brasil, então amanhecendo.
Nunca o deparei noutros poemas, autos, comédias.
Certo é que se fabricava e bebia a cachaça pelo Minho, vivendo o Rei D. João III. Na Espanha, de onde poderia ter vindo o nome, era uma espécie de aguardente obtida com as borras, resíduos das pisas de uvas no lagar. Teria teor alcoólico superior, no mínimo, a 18 graus. Sabor acentuadamente áspero, rascante, típico, pela-goela, como se diria no Brasil nortista. Destilação do caldo de canas-de-açúcar ou do melaço é que não seria essa cachaça, embora Gil Vicente fizesse apregoar, em 1525, vales para açafrão e canas açucaradas nas terras da Beira, onde o vilão Pero Marques era juiz. Nicolau Lanckmann vira cana-de-açúcar em 1451, ao redor de Coimbra.
Para o Brasil o termo cachaça encontraria alojamento nos comboios atravessadores do Atlântico na oportunidade das monções. Os letrados, bem diversos de Sá de Miranda, recusaram-lhe escrever o nome, vencida a equinocial.
As bebidas indígenas do séc. XVI, cauins, foram batizadas vinhos. O Padre Anchieta (1584) informa: “São muito dados ao vinho, o qual fazem das raízes da mandioca que comem, e de milho e outras frutas. Esse vinho fazem as mulheres”.
Falando, em 1587, dos ananases e cajus, Gabriel Soares de Sousa escrevia: “Do sumo destas frutas faz o gentio vinho, com que se embebeda... do qual vinho todos os mestiços e muitos portugueses são muito afeiçoados”.
Não ocorre nas Denúncias ou Confissões ao Santo Ofício na Bahia, Pernambuco, Paraíba. Mesmo em 1728, Nuno Marques Pereira, tão sabedor da terra, expulsou-a do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, registrando (Cap. XVII, aguardente do Reino e aguardente da terra), sendo essa a cachaça sob traje formal. Nos relatórios dos Vice-Reis, minuciando a exportação, lê-se a insistente aguardente. Jamais cachaça.
Em 1873, no Tesouro da Língua Portuguesa, de Domingos Vieira, consigna-se cachaça, termo do Brasil. O brasileiro Antônio de Moraes Silva, que era senhor de engenho, informava, vinho de borras, aguardente do mel, das borras, ser a cachaça brasileira.
Não há cachaça alguma em qualquer vocabulário ameríndio, notadamente do tupi, de tão alta participação na linguística nacional.
Para os africanos, sudaneses e bantos, do Atlântico e do Índico, o europeu revelou o perturbador alambique, incluído na parafernália civilizadora. Os negros, como os indígenas antes dos portugueses, desconheciam totalmente qualquer bebida destilada, produzindo unicamente as cervejas, garapas, na base de frutas ou raízes, através da fermentação de 72 horas, máximas. A cachaça, indo dos 18 aos 22 graus (até mais de 25 nas aguardentes europeias), revelou ao paladar negro e ameraba as asperidades inconfundíveis do álcool nessa concentração, por eles ignorada. Pelos séculos XIX e XX é que o alambique dominou a predileção na África negra, tornando-se fabricável pelos nativos e surgiram aguardentes de todos os tipos, desorganizando reinados e comprando servidores. Ces alambics infernaux... chaque mulâtre et noir mi-civilisé tâche de se procurer un alambic, clamava Héli Chatelain em 1908, no planalto de Benguela, tentando salvar a “missão” protestante de Lincoln.
O nome é que, no Brasil, seria comum ao povo e distante do Livro. Em 1624, Johan Gregor Aldenburgk não menciona a cachaça no material saqueado pelos holandeses na cidade do Salvador, povoada de engenhos produtores.
A bebida existia, apetecida e vulgar. Pyrard de Laval, em 1610, estivera na cidade do Salvador registrando: Faz-se vinho com o suco da cana, que é barato, mas só para os escravos e filhos da terra.
O nome é que o francês esqueceu de registrar.
Entre 1638 e 1644, governando o conde de Nassau o Brasil holandês, o médico batavo Guilherme Piso e o naturalista alemão Jorge Marcgrave descrevendo a fabricação do açúcar em Pernambuco aludem a cachaça, tão longe da verdadeira.
Marcgrave: “A primeira caldeira é chamada pelos portugueses ‘caldeira de mear descumos’, na qual o caldo é sujeito à ação de um fogo lento, sempre movido e purgado por uma grande colher de cobre chamada ‘escumadeira’, até que fique bem escumado e purificado. A escuma é recebida numa canoa, posta embaixo, chamada ‘tanque’, e assim também a cachaça, a qual serve de bebida para os burros” (Historia Naturalis Brasiliae, Amsteloami, 1640: História Natural do Brasil, tradução de Mons. José Procópio de Magalhães, São Paulo, 1942).
Guilherme Piso, Willem Pies, noticia: “Deste sumo, a coagular-se num primeiro tacho, com pouco fogo, tira-se uma espuma um tanto feculenta e abundante, chamada Cagassa, que serve de comida e bebida somente para o gado” (De Indiae Utriusque re Naturali et Medica, Amstlaed, 1658: História Natural e Médica da Índia Ocidental, traduzida e anotada por Mário Lobo Leal, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957).
Constituem, para mim, os registros iniciais da cachaça no Brasil. André João Antonil, ou seja, o jesuíta João Antônio Andreoni, na primeira década do séc. XVIII, pormenorizava: “Guiando-se o sumo da cana (que chamam caldo) para o parol da guinda, daí vai por uma bica a entrar na casa dos cobres, e o primeiro lugar, em que cai, é a caldeira que chamam do meio, para ferver, e começar a botar fora a imundícia, com que vem da moenda. O fogo faz neste tempo o seu ofício; e o caldo bota fora a primeira escuma, à que chamão Cachaça: e esta por ser imundícia vai pelas bordas das caldeiras bem ladrilhadas fora da casa, por um cano bem enterrado, que a recebe por uma bica de pau, metida dentro do ladrilho, que está ao redor da caldeira, e vai caindo pelo dito cano, em um grande cocho de pau, e serve para as bestas, cabras, ovelhas e porcos; e em algumas partes também os bois a lambem; porque tudo é doce, e ainda que imundo, deleita”.
Era a denominação clássica, Espanha (Dic. Acad.), Argentina (Segovia), Cuba (Pichardo), Costa Rica (Ferraz). Fernando Ortiz fala nas defecaciones de las cachazas. Em Cuba, eram praticamente inúteis. Ainda em 1546, plena ascensão açucareira, informava Oviedo: “E continuamente las naos que vienen de España vuelven a ella cargadas de açucares muy buenos; é las espumas é mieles dellos que en esta isla se pierden y se dan de gracia, harian rica otra gran provincia”.
A cachaça era então essas escumas caídas num tanque raso, regalo dos animais de tração. Dizia-se espumas do caldo. Os pequenos engenhos para rapadura e cachaça, engenhocas, banguês, almanjarras, eram movidos a bois, cavalos ou bestas, aos pares, como ainda alcancei ao redor da cidade de S. José de Mipibu e no vale do Ceará-Mirim.
A denominação trapiche, para engenho puxado pelos cavalos ou bestas, desaparecera nos finais do séc. XVIII, mas resistiu contemporaneamente pela América Espanhola. Trapiche passara a ser o armazém, o depósito para embarque do produto, ou distribuição de qualquer gênero de estivas, importado ou exportado. “A denominação vulgar de trapiche dada aos armazéns de gênero de estivas vem do estabelecimento da Companhia Geral do Comércio de Pernambuco e Paraíba, criada por Alvará de 13 de agosto de 1759, que, monopolizando o comércio, vendia os seus gêneros em partidas a grosso nos seus armazéns”, informa Pereira da Costa, referindo-se ainda a “criação de entrepostos ou armazéns alfandegados, com certas prerrogativas aduaneiras, tiveram também o nome de trapiches”.
Não havia, evidentemente, pelos séculos XVI e XVII, bebida com o nome de cachaça, com base alcoólica. Antonil, em livro impresso em 1711 e motivado de estudos no Recôncavo da Bahia, reino açucareiro povoado de escravos negros, elegendo seus Reis e fazendo seus bailados, permite leve roteiro identificador. Fala na garapa, feita das espumas sobrantes da segunda caldeira, ebulição no segundo tacho, garapa que é a bebida de que mais gostam, os negros, com ela comprando farinhas, bananas, aipins e feijões aos parceiros. Bebia-se a garapa imediatamente, ainda doce, ou guardando-a em potes até perder a doçura, e azedar-se, porque então dizem que está em seu ponto de beber: Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas (2, X). Sobre o tratamento dos escravos, opinava Antonil: “O que se há de evitar nos engenhos é o embriagarem-se com garapa azeda, ou aguardente” (I, IX). Jean de Léry, no Rio de Janeiro de 1557, observara: “Não obstante ser o açúcar de natureza extremamente doce, como todos sabem, quando deixávamos deteriorar-se a cana cortada e a púnhamos de molho na água por algum tempo, o caldo azedava-se a ponto de nos servir de vinagre”. Garapa azeda é, pois, sinônimo de aguardente. No Acre, como adiante menciono, dizem Garapa doida a cachaça obtida com a fermentação da garapa, do caldo de cana azedo.
É possível afirmar-se que, no Brasil, desde inícios do séc. XVII, fabricava-se uma aguardente com o caldo da cana, citada por Pyrard de Laval em 1610 na Bahia, de garapa azeda, fermentada, aguardente-de-cana, ou Caninha, como lembra Beaurepaire-Rohan. Depois obtinha-se outra aguardente, das borras do mel de cana, do melaço, por destilação, e que seria, tal qual acredita Beaurepaire-Rohan, a legítima Cachaça, correspondendo à Bagaceira em Portugal, esta feita com borras de uvas, e que Sá de Miranda bebera na quinta do seu amigo Antônio Pereira, mencionando-a na famosa Carta-II.
Os nomes de Aguardente e Cachaça confundiram-se numa recíproca sinônima e ninguém mais se preocupou destacando a origem da bebida: do caldo da cana, Cana, Caninha, aguardente, ou de mel, melado, Cachaça.
A definição de Cachaza que se divulgou, da Argentina ao México, foi a dicionarizada na Espanha: espuma e impurezas que se forman y segregan al someter el jugo de la caña a la defecación o purificación... Primera y más sucia espuma que arroja el zumo de la caña cuando empieza a cocerce para hacer azúcar. Era o conceito inicial, registrado por Marcgrave, Piso, Antonil. Dizendo Cachaça, valendo bebida-aguardente, creio brasileirismo, como registraram Moraes e frei Domingos Vieira.
Se cachaça ficou sendo designação popular, não figurou nos textos impressos ao correr dos dois primeiros séculos de sua existência funcional. Mantinha-se a denominação portuguesa de aguardente.
Estudei o Livro de Contas do Engenho Sergipe do Conde, no Recôncavo da Bahia, referente a 1622-1653, publicado pelo Instituto do Açúcar e do Álcool (Documentos para a História do Açúcar, Rio de Janeiro, 1956). Era propriedade dos Jesuítas, organização modelar na indústria açucareira do séc. XVII. Em parte alguma encontrei cachaça e sim Agoa Ardente, oferecida aos escravos trabalhando nas levadas, enxurros, charcos, lameiros.
Nesse engenho Antonil fundamentou seu volume, Oficina Real Deslandina, Lisboa, 1711.
Jamais ouvi dizer-se em Portugal cachaça e sim aguardente ou bagaceira. Não digo que desconheçam mas já não empregam o vocábulo, não obstante a nota do sábio Prof. Joaquim Alberto Pires de Lima (1877-1952), da Universidade do Porto: “Este vocábulo (cachaça) significa, no Brasil, aguardente de cana e também se emprega no nosso país, para designar aguardente-bagaceira”. Bagaceira é o preferido pelos portugueses.
Também não o percebi na Galícia. Um mestre da Etnografia Galega, Firmino Bouza-Brey Trillo, de Santiago de Compostela, escreveu-me (10-VI-1966): teño unha lembranza vaga de ter oído eiqui, en Galiza, como sinónimo de auguardente a voz Cachaza; mais non puxen atención, porque en todo caso, seria un brasileirismo, como otros, dos nosos emigrados a ise belo pais.
Que cachaça não seja de fácil dizer lusitano, tenho um poderoso argumento. A erudita dona Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925) nunca chegara a ver um cálice de cachaça. Anotando a carta de Sá de Miranda a Antônio Pereira e nesta a cachaça bebida pelo poeta, sugere, candidamente: Não será antes certa qualidade de vinho campestre, saudável e refrescante?
O Prof. Augusto César Pires de Lima (1883-1959), etnógrafo eminente, num livro destinado ao segundo ciclo do ensino liceal português, transcreve, com notas elucidativas, a carta de Sá de Miranda ao fidalgo da Tapada. Depois de citar Carolina Michaëlis de Vasconcelos, depõe: É possível que Sá de Miranda queira referir-se à água-pé. “Cachaça” é uma espécie de aguardente. A segunda informação é lógica. A primeira é inadmissível para quem haja festejado um “São Martinho” em Portugal; confundir cachaça com água-pé. Tradução: o meu saudoso amigo e colega dileto não vira cachaça, na legitimidade presencial.
Ausente do vocabulário de Gil Vicente. E em Cervantes Saavedra.
É o que observei em Portugal. Houve cachaça, conhecida por Sá de Miranda, mas o vocábulo fora substituído por bagaceira. A “cachaça” era uma bagaceira sem semelhanças com o produto made in Brazil.
Pelas Províncias Ultramarinas, Guiné, Angola, Moçambique, também não ouvi pronunciar-se cachaça, sempre aguardente. Ou recorriam à infindável relação nominal das bebidas africanas, quimbombo, quiçangua, pombe, madleco, sura, biala, mfeco, ualua, bigundo, quitoto, maluvu, nzombo, etc., etc. O “vinho de palma”, da seiva da palmeira dendezeiro, Elaeis guineensis, ofereciam-me como vinho, malufu ou malavu.
Nem mesmo topei cachaça nos livros dos velhos viajantes, Serpa Pinto, Hermenegildo Capello, Roberto Ivens, o governador Francisco José de Lacerda e Almeida ou nos folktales angolanos de Héli Chatelain, de notas preciosas.
Pelo Congo, Senegal, nas antigas posses francesas e belgas diz-se Eau-de-Vie. Não o percebi pela África nem o li em qualquer livro de assunto africano. Invariavelmente aguardente, nas festas, cerimônias tribais, oferendas votivas aos mortos. Visivelmente cachaça não é africanismo. Tê-lo-ia ouvido pelo Atlântico, e Índico, nas feiras, mercados, reuniões populares, bailados, desfiles, jornadas pelos sertões. Se o nome foi levado para a África, lá não se aclimatou.
Os versos de Sá de Miranda constituem documento comprovante da fabricação normal e uso regular de uma bebida denominada cachaça, no norte de Portugal. É um elemento incluído entre os “permanentes” de casa senhorial, farta de tudo, por onde não vinha nada da praça, adquirido fora do domínio rural, autárquico. Essa bebida provinha dos resíduos destilados do bagaço das uvas. Havia de ser a mesma Bagaceira à qual dão nome vulgar e genérico de “aguardente”. Mesmo tipo da aguardente de Espanha, bebida espirituosa que se saca del viño, como o cognac francês. Jamais seria como a cachaça do Brasil, feita do caldo ou do mel da cana-de-açúcar, fervidos e depois destilados nos alambiques de barro, depois de cobre, aludidos por Henry Koster no Pernambuco de 1812.
Havia naquele séc. XVI canas-de-açúcar em Portugal, mencionadas cem anos antes por Nicolau Lackmann, que esteve na terra portuguesa de julho a novembro de 1451, mencionando o “mel de açúcar, mel Zuckarum, que em muitos lugares cresce em canas”. Faziam mel, enfrentando monopólio milenar do mel de abelhas, então agonizante. Nenhuma bebida era obtida da Saccharum officinarum, com porcentagem alcoólica. O mel participava da terapêutica, confeitava bolos e era suprema gulodice. O açúcar, preciosidade, tornou-se acessível quando os canaviais brasileiros afastaram a tímida concorrência da Sicília e das ilhas castelhanas e portuguesas. Inicialmente, açúcar era o mel e o xarope medicamentoso. A cachaça portuguesa do séc. XVI era a aguardente, repito, a contemporânea bagaceira, de uvas. Do mel de açúcar sacarino é que não. Herda-lhe-ia o nome o produto vulgar e diverso da Terra Santa Cruz pouco sabida, como poetaria Camões.
No Brasil é que a cachaça passou a ser obtida da cana-de-açúcar, do caldo ou do melaço, como as tarifas nas Antilhas, atração comercial na segunda metade do séc. XVII nas regiões do idioma espanhol. Muito popular era o pulque do México, sumo fermentado de uma variedade do agave (A. atrovirens, Karw.), sem que conquistasse mercado europeu. Destinava-se aos paladares regionalistas.
No Brasil importava-se farinha do Reino, queijo do Reino, pimenta-do-reino. Importar-se-ia aguardente do Reino, feita de uvas, obstinada saudade do português no exílio tropical. Uva e trigo eram os símbolos da distância sápida.
Não tínhamos vinhedos concorrentes. Veio aguardente do Reino, com outros nomes nas alcunhas alfandegárias.
O séc. XVI é o da exaltação consagradora da aguardente, água-da-vida, eau-de-vie, remédio para todos os males, solução universal, proclamada panaceia. Ainda hoje a cachaça “serve para tudo e mais alguma coisa”, aquece, refresca, consola, alimenta, alegra, revigora. Mestre A. da Silva Mello expôs, em quadro definitivo, esse complexo (Alimentação. Instinto. Cultura, cap. IX, Rio de Janeiro, 1942).
Um dos nomes, vulgaríssimo, foi o de Jeribita. Creio que substituíra a denominação cachaça em Portugal ao correr do séc. XVII. Aguardente é jeribita! Versejava o nosso Gregório de Matos, nessa época, saboreando-a nas casas amigas do Recôncavo baiano.
Em 1689, Antônio Coelho Guerreiro recebia em São Paulo de Luanda “vinte barris de jerebita”, enviados da Bahia, pagando por eles 45$385 (Livro de Rezão, de Antônio Coelho Guerreiro, prefácio de Virgínia Rau, ed. da Companhia de Diamantes de Angola, Luanda, Lisboa, 1956).
Voz indígena brasileira ou africanismo quimbundo? Beaurepaire-Rohan afirma o primeiro e Basílio de Magalhães o segundo. Provocou um topônimo nos arredores de Lisboa, na vila de Paço de Arcos: “À entrada da vila, mal se saía de Caxias, encontra-se o bairro aristocrático, vulgarmente conhecido por Jeribita” (M. P. Videira, Monografia de Paço de Arcos, Caxias, 1947).
“Cachaça”, conhecida em Portugal na segunda metade do séc. XVI, não conseguira infiltrar-se na constância da linguagem usual da população, denunciando antes estrangeirismo. Um hóspede que não se tornou familiar.
O nome atual de Bagaceira, Morais em 1831 e frei Domingos Vieira em 1871, não o reconheceram no sentido de bebida. Era o local onde ajuntavam o bagaço das canas espremidas. O nome português ao lado de aguardente seria Jeribita ou Jiribita, outrora Gerebita. Moraes e frei Domingos Vieira registram Geribita como aguardente de borras de açúcar: cachaça. H. Brunswick concorda no seu Dicionário da Antiga Linguagem Portuguesa, Lisboa, 1910: – Gerebita, cachaça. Gregório de Matos, estalando a língua, já dissera semelhantemente, mais de cem anos antes.
Um alvará de 10 de janeiro de 1757 tributava em dez tostões a pipa de geribita da terra e de fora, em consumo no Rio de Janeiro, seis anos antes de ser a capital do Brasil. A primeira, da terra, seria a cachaça; a segunda, de fora, era a do Reino, aguardente de vinho, a futura “bagaceira”.
A Jeribita servira na África portuguesa de oferta diplomática, tal a sua aceitação entre os negros bantos. Em julho de 1730, o governador de Angola, Rodrigo César de Menezes, enviava a um chefe local, D. Sebastião Francisco Cheque Dembo Caculo Cacahende, esse quinto de gerebita, que como o tempo está fresco servirá para vos aquentar (Ivo de Cerqueira, Vida Social Indígena na Colônia de Angola, Lisboa, 1947).
Aguardente e jeribita ainda são sinônimos vulgares da cachaça.
Não encontro jeribita aludida fora da orla e sertão angolano. Na relação minuciosa e constante das ofertas ao soberano do Daomé, Cabeceiras, generais, conselheiros, familiares poderosos, menciona-se invariavelmente aguardente e não geribita, como fez a primeira autoridade executiva em Angola. Para essa região von Martius inclui sempre geribita entre os elementos de permuta para aquisição de escravos, ainda nas primeiras décadas do séc. XIX. Embora todos os dicionários consultados e a unanimidade da informação oral contemporânea não distingam jeribita, jiribita, geriba, jurubita, piripita de cachaça ou aguardente, valendo como sinônimos, seriam antigamente líquidos diversos. Antônio Coelho Guerreiro (Livro de Rezão, citado) tivera em 1689, remetidos da Bahia para Luanda, “vinte barris de geribita” (45$385), e “um barril de aguardente”, pelo qual pagou 7$000. Não eram, evidentemente, a mesma entidade, como hoje acontece.
Nos róis dos contratos referentes aos produtos exportados pela Bahia, 1753-1756, mencionam “vinhos de mel”, “aguardente da terra”, jamais geribita. O nome viera de fora e de longe.
Não sei quando o nome cachaça se aplicou a aguardente da terra, destilada nos engenhos do Brasil. Nem quando esta começou a fabricar-se. Fins do séc. XVI. No volume de Antonil, ensina-se que “o caldo bota fora a primeira escuma, a que chamam cachaça” (1711), tal qual tinham dito Marcgrave e Piso entre 1638-1644. O nome respondia à imagem que os dicionários espanhóis conservam presentemente. O que dizemos cachaça dizia-se unicamente aguardente. Antonil preconiza a viagem da barca carregada de açúcares, com marinheiros não aturdisados de aguardente. Era, entretanto, a cachaça brasileira ainda sem o nome.
O Engenho de Sergipe do Conde, orgulho da indústria baiana, naquele final do séc. XVII, já estilava aguardente, contra a advertência do sacerdote: “que nunca eu aconselharia ao senhor de engenho, para não ter uma contínua desinquietação na senzala dos negros, e para que os escravos não sejam com a aguardente mais burrachos do que os faz a cachaça”, então figura diversa. Seria esta a garapa azeda, caxaxa azeda, referida adiante: “O que se há de evitar nos engenhos é embriagarem-se com garapa azeda, ou aguardente, bastando que lhes conceda a garapa doce, que lhes não faz dado”. Correspondia a garapa doida, contemporânea no Acre, na informação de Francisco Peres de Lima: “Das bebidas alcoólicas, a cachaça é a divulgada, porque é feita nos próprios seringais. Os que não possuem engenhos e demais pertences têm engenhocas onde moem a cana. A garapa dela retirada guardam-na em vasos fermentados, resultando daí a chamada Garapa Doida, que substitui a cachaça dos alambiques” (Folclore Acreano, Rio de Janeiro, 1938).
Antonil citava a garapa azeda, caxaxa azeda, fermentada, gênese da cachaça, e a destilada, aguardente, ambas perturbadoras da boa marcha nas tarefas servis. Cachaça é justamente garapa azeda destilada. The wash ripens for destillation, escrevia Henry Koster. Da “garapa azeda” ou do melaço nasce a cachaça, infalível.
A aguardente da terra, elaborada no Brasil, podia atender ao apetite dos fregueses humildes, escravos, mestiços, trabalhadores de eito a jornal, todo um povo de reduzida pecúnia. Aguardente do Reino estaria acima das possibilidades normais. E um tanto mais distante o vinho, mesmo o vendido em canecas, malgas, retirado dos bojudos tonéis.
O tráfico da escravaria impôs a valorização incessante. Aguardente da terra, a futura cachaça era indispensável para a compra do negro africano e ao lado do tabaco em rolo, uma verdadeira moeda de extensa circulação. Além de ser jubilosamente recebida pelo vendedor na Costa d’África, figurava necessariamente como alimento complementar na trágica dieta das travessias do Atlântico. O escravo devia forçosamente ingerir todos os dias doses de aguardente para esquecer, aturdir-se, resistir. Soldados e marinheiros através do oceano sorviam álcool. Era um preventivo. Ambrosio Richshoffer, embarcado na esquadra holandesa que vem assaltar Pernambuco, anota no seu Diário, 31 de dezembro de 1629: “Foi então dada a ordem de distribuir-se, pela manhã e à noite, um pouco de aguardente pelas equipagens”.
Como os traficantes, voltando de África, vendessem as peças em portos estranhos aos da partida, os negociantes das praças abastecedoras, já em 1620 no Rio de Janeiro, conseguiram da Câmara que “nenhum navio pudesse carregar neste porto farinha de mandioca, que com a aguardente era o principal artigo de comércio para a África, sem deixar fiança de que em troca traria certo número de escravos negros” (Vivaldo Coaracy, O Rio de Janeiro no Século 17, Rio de Janeiro, 1944).
Não era apenas e unicamente a bebida vulgar de escravos e navegantes. Ampliara sua área de ação. Impusera o uso abusivo. Ocupava menos lugar na estiva, exigindo cuidados mínimos nas longas jornadas marítimas e terrestres.
Os vinhos de Portugal sofreram as consequências da predileção popular. Diminuição sensível e depois alarmante na exportação. A Companhia de Comércio, então monopolizadora dos transportes, recorreu à Ciência do Conselho da Coroa. A solução foi genial. A metrópole precisava de açúcar e produzia aguardente. A Carta Real de 13 de setembro de 1649 proibiu a fabricação do vinho de mel, eufemismo da aguardente, em todo o Estado do Brasil.
Reagem os prejudicados. Como suprir ao tráfego, fornecendo aos mercadores de escravos a insubstituível divisa? A produção local, oculta e teimosa, continuou atendendo aos pedidos habituais, com a visível solidariedade administrativa. O governador do Rio de Janeiro, D. Luis de Almeida Portugal, não cumpre, praticamente, as determinações do Rei já português, D. João IV, o Restaurador. Responde aos argumentos econômicos e teológicos do Conselho. Se os escravos furtam para beber aguardente, furtarão também para beber vinho. Para o Nordeste fervia a guerra contra o holandês, canaviais queimados, engenhos imóveis, escravaria fugitiva, numa deficiência total à mais pessimista previsão da safra açucareira, combustível para a Companhia, pesarosa e sempre esperançada de milagres recuperadores.
A bebida, entretanto, estava em todas as partes mesmo com o interdito. Apenas em 1661 o Rei D. Afonso VI, sob a regência da rainha D. Luísa de Gusmão, suprimiu a proibição, inoperante, ineficaz, desastrosa. Visava o predomínio das aguardentes do Reino. Determinava realmente a clandestinidade contrabandista, na produção e distribuição da cachaça. Nesse 1661 teria a rainha-viúva pensado transferir a coroa para o Brasil. A Espanha fizera as pazes com a França. O Duque de Aveiro e D. Fernando Teles de Faro, embaixador de Portugal na Holanda, haviam desertado. O Sumo Pontífice não reconhece a independência soberana do Reino de Portugal. Só o faria em 1668. Convinha ir fixando no Brasil as rendas, mínimas, que se escoavam para o Reino. E mesmo intensificar-lhes a existência.
Nas últimas décadas do séc. XVII acelera-se o comércio de escravos, verificando-se ascensão na venda da aguardente, subproduto do açúcar. Vêm impostos, taxas, subsídios, denunciando a importância quantitativa da espécie. O açúcar perdia a soberania financeira para o ouro. As minas-gerais estão faiscando. Quando, pela Carta Régia de 4 de novembro de 1690, D. Pedro II proíbe o envio para Angola, excita-se realmente o contrabando, inevitável e prolífero. Onde mói um engenho, destila um alambique. Alguns engenhos dispensam o açúcar. Aguardente sustenta casa e família. Parati, 1666, ao redor de Angra dos Reis, vai avançando de tal ritmo que, ao passar na centúria imediata, o nome da Vila é sinônimo nacional da aguardente. Um cálice de parati, diz-se ainda hoje, como quem diz Madeira, Porto, Colares, Cognac, Champagne, Bordeaux, Tokay, terras que são nomes de vinhos. A primeira indústria em Mogi das Cruzes, São Paulo, é a fabricação da aguardente (Isaac Grinberg, Mogi das Cruzes de Antigamente, 205, São Paulo, 1964). Informa Leonardo Arroyo (Igrejas de São Paulo, 2ª ed., 84, São Paulo, 1966): “Aí tinham os beneditinos o seu engenho de açúcar com bom rendimento (18$380 no ano de 1788), com rendimento de aguardente ($960 nesse mesmo ano), além dos proventos proporcionados pela colheita de arroz, de feijão e milho, num total de $240. A aguardente rendia mais que o feijão e o arroz”. Não mais reapareceria o fantasma limitador. D. João V precisa de ouro e é o escravo quem o busca nas catas, esgotadas as reservas nas terras aluvionais. Oiro do Brasil, prestígio de Portugal, resume o historiador lusitano João Ameal. O escravo custa cachaça e rolos de tabaco aos seus proprietários africanos. É um cheque ao portador, descontável do Daomé à Angola, do delta do Níger à foz de Cunene. Com D. José, inicia-se a ditadura de Sebastião-José. A batalha é a exportação, a navegação própria, a valorização local, em discreto e obstinado conflito ao domínio de Sua Majestade Britânica, infiltrante e tenaz. A Companhia do Douro, já em 1756, abastece o mercado com aguardente do Reino, mas é difícil deduzir-se o volume da exportação brasileira, contrabandeada e lícita, para Portugal, Angola e mais para as repúblicas do Plata, através da Colônia do Sacramento. Na relação exportadora de Portugal em 1777, ano em que faleceu El-Rei D. José, vendem 39.674$400 de aguardente, a quarta-parte da cota do Pau-brasil, outrora onipotente.
Em Cabinda a maior e principal fonte de receita para o Rei e fidalgos era o imposto pago pelos comandantes de barcos negreiros. Denominava-se N’Bicó. A cachaça participava amplamente no cômputo de N’Bicó. Não havia vinho local que merecesse comparação. J. Lúcio de Azevedo (Épocas de Portugal Econômico, 377, Lisboa, 1947), informa, minuciando a exportação portuguesa para o Brasil e alude aos escravos de que Angola se sustentava. Era, decorrentemente, mercado imutável e ávido da aguardente, presentes aos intermédios dos Sobas, mercadores da carne-viva da escravaria.
Desde 1760 as fábricas na Beira, Minho, Trás-os-Montes, principalmente, funcionavam sob a régia proteção do futuro Marquês de Pombal. A exigência é que destilem vinho das próprias lavras. Os lavradores empregavam, e continuaram empregando, alambiques particulares, comprando safras, transformando-as em aguardente, embarcando pipas para o Brasil, dificultando o cálculo real para as tarifas fiscais. Ao lado do tonel do vinho português, Metrópole e Madeira, das barricas de carne de porco fumada, vinha aguardente do Reino, sem pagar coisa alguma a El-Rei Nosso Senhor.
É nessa altura que misturam ao líquido erva-doce e outros ingredientes aromáticos, motivo da Carta Régia de 16 de dezembro de 1760, indignada com tais ousadias. Imitava-se o anis espanhol então prestigioso. Na Galícia ainda denominam a cachaça por Anis da terra, diz-me Bouza-Brey. Dataria dessa época. Ainda nesse 1760 as bebidas similares dos “Reinos estrangeiros” tiveram entrada interdita nos mercados de Portugal e Colônias de Sua Majestade. Naturalmente era de proibição formal qualquer negócio de aguardente com os indígenas, que já não mais estavam sob a tutela jesuítica, tenazmente defensiva. Essa proibição acelerou a transação furtiva mais avultada que a legalmente permitida. A cachaça, pelo nordeste brasileiro, foi uma calamidade aniquiladora dos derradeiros tupis, cariris, tarairius e jês. Tufão em folhas secas...
Durante o séc. XVIII enviaram para Portugal e Açores quantidades de cachaça para que fosse redestilada, retificada, alcançando maior teor de álcool, acima da escala precária na rudimentar aparelhagem brasileira. Ainda em 1819 faziam esses embarques no Pará, registrados por von Martius: “Grandes remessas de aguardente comum (zu Branntweine) vão para os Açores e para Portugal, de onde é recambiada ao Brasil depois de parcialmente retificada” (Viagem pelo Brasil, III).
Durante a administração do Marquês de Pombal sob El-Rei D. José (1750-1777) a navegação para a Costa d’África não teve solução de continuidade. O entreposto central era São João Batista de Ajudá, que permaneceu português até julho de 1961, encravado no território marítimo do Daomé, ponto de convergência para os embarques de toda a região, e em porcentagem às vezes superior aos portos de Angola. Os rolos de tabaco, tecidos de seda, chapéus de sol de veludo, aguardente do Reino e do Brasil, os búzios, atestavam as sumacas, corvetas e navios maiores.
O sargento-mor José Antônio Caldas, engenheiro militar, baiano, falecido em 1782, escreveu uma bem curiosa Notícia Geral de toda esta Capitania da Bahia desde o seu Descobrimento até o Presente Ano de 1759, editada em fac-símile pela Câmara de Vereadores de Salvador em 1951. Divulgo uma relação dos “Gastos que faz o Diretor da Fortaleza de Ajudá quando vem de novo na sua entrada e primeira visita ao Rei de Daomé por conta de Majestade que Deus guarde”, bem expressiva para a indispensabilidade da aguardente, elemento aliciante e aproximador na convivência pública naquela segunda metade do século XVIII.
PARA O ACOMPANHAMENTO E MAIS PESSOAS NO SEU DESEMBARQUE:
Uma âncora de aguardente para o avogá.
Uma âncora aos cabos da praia.
Duas âncoras aos Cabeceiras do recebimento.
Uma âncora à comitiva dos mercadores.
Duas âncoras para a gente do Forte.
VISITA PARA O REI:
Dois chapéus de sol de veludo grandes.
Três frasqueiras de licor.
Duas frasqueiras de aguardente do Reino, boa.
Duas peças de seda de boa qualidade.
Um feixo de açúcar.
PARA A MÃE DO REI:
Uma peça de seda da Holanda.
Uma frasqueira de licor.
Uma frasqueira de aguardente do Reino.
PARA O TAMUNGÁ:
Uma peça de seda da Holanda.
Uma âncora de aguardente.
PARA O ABOGÁ:
Uma peça de seda da Holanda.
Uma âncora de aguardente.
PARA O CAIXARIS:
Uma peça de seda da Holanda.
Uma âncora de aguardente.
PARA OS QUATRO CONSELHEIROS:
Quatro peças de cabaia listrada da Índia.
Quatro âncoras de aguardente.
PARA UMA MULHER DE RECADOS:
Uma peça de cabaia listrada.
Uma âncora de aguardente.
PARA O APOLGÁ:
Uma peça de cabaia listrada.
Uma âncora de aguardente.
PARA O BOGA:
Uma peça de cabaia listrada.
Uma âncora de aguardente.
PARA O GENERAL AGAÚ:
Uma peça de cabaia listrada.
Uma âncora de aguardente.
PARA OS DOIS CABOS DA PRAIA:
Duas peças de cotonilas dobradas.
Uma âncora de aguardente.
PARA OS DOIS MAIORES MERCADORES, BAMBIÁ E BOCOXAPÁ:
Quatro peças de contonilas dobradas.
Duas âncoras de aguardente.
PARA OS GASTOS DO CAMINHO:
Quatro âncoras de aguardente.
Quarenta cabeças de búzios.
Não tenho notícia, em Portugal e Brasil, da vasilha denominada âncora. Existem os barriletes ancorotes e ancoretas, transportando água ou cachaça, esta para o engarrafamento. Os sufixos denunciam a redução na capacidade. As “âncoras” seriam bem maiores. Ancoretes e Ancoretas podem conter até cinquenta litros de aguardente.
A cotonila ou contonila será modalidade da cotonia, tecido asiático, de algodão, seda ou de ambos. O pormenor dobradas significaria o tipo mais espesso, vistoso e consistente. A cabaia vinha da Índia, traje de seda leve, folgado, confortável para a imponência fidalga do Daomé. O gosto local preferia os modelos listrados, aliás, os mais populares.
Distinguia-se da banal Aguardente da terra, cachaça humilde, a Aguardente do Reino, com a etiqueta boa, para o majestático e ritual consumo.
As mercadorias da Europa e da Índia iam da Bahia, possuindo navegação praticamente direta porque quase todos os comboios regressando de Goa refrescavam na Baía de Todos os Santos, vendendo ou entregando parte da carga exótica, tecidos, armas, louças, especiarias. O sargento-mor José Antônio Caldas informava em 1759: “Deste porto para o Reino de Angola saem todos os anos para cima de doze embarcações carregadas de fazenda da Índia e Europa, águas-ardentes da terra e outros gêneros a buscar escravos e cera para o serviço e gasto desta América. Não menos serve de opulência a esta Capitania as muitas fábricas e casas de alambique das quais só pude averiguar com certeza as que existem nos termos das vilas próximas a esta cidade; porque as que há pelo sertão e portos de mar da sua Capitania são inumeráveis nas quais se fabricam águas-ardentes de cana, da cabeça, e da terra, gêneros que a maior parte deles se dá consumo na terra, e nos portos da Guiné”.
Guiné, como no tempo de Garcia da Orta, era a costa d’África ocidental. Eram setenta e um esses lambiques arrolados pelo sargento-mor engenheiro. Não citando os múltiplos escondidos, mas fecundos.
Henry Koster, residindo onze anos em Pernambuco, observara em 1810: “Até recentemente somente um número reduzido de plantadores possuía alambique para destilação, e se limitavam a vender o mel produzido aos pequenos destiladores. Muitas pessoas, das classes baixas, possuem um ou dois desses primitivos e rudes alambiques, dos quais retiravam relativo proveito sem muito esforço. A lenha está ao alcance da mão e dificilmente existirá um homem sem que tenha seu cavalo. As mulheres ficavam vigiando o alambique enquanto os homens se ocupavam noutras obrigações. Com a abertura dos portos do Brasil ao comércio estrangeiro, grandes quantidades de aguardente (Koster escreve sempre Rum) foram exportadas para a América do Norte e os pedidos de Lisboa foram mais avultados que outrora. O preço, consequentemente, subiu, induzindo a vários agricultores destilar os seus meles” (Viagem ao Nordeste do Brasil, cap. XVI).
Difícil não compreender a expansão de coisas produzidas e consumidas pelo povo nas áreas da própria predileção. A aguardente teve fase prolongada de industrialização caseira, humilde e familiar, ao lado das grandes destilarias que ainda não sufocaram inteiramente a obstinada e mínima rivalidade obscura. Lembra a indústria dos queijos tradicionais pelos serranos de Portugal, Espanha, Itália, queijos de leite de cabra, feitos em casa, com aparelhagem rústica, tendo apreciadores fanáticos, julgando-os infinitamente superiores aos tipos obtidos nas fábricas modernas. Por todo interior do Brasil, dependendo da natureza dos terrenos permitindo o pequeno canavial, este se destinava a uma parte de rapadura, açúcar do sertão-velho, e três partes de cachaça para os mercados internos, anônimos e misteriosos, ignorados pela argúcia fiscal. Assim foi até os primeiros anos do presente século. Paralela à fábrica de aguardente, imperiosa e complexa, alinhava-se a multidão invisível das engenhocas teimosas, pingando cachaça nas gargantas paupérrimas. Wied-Neuwied (1916) cita em Ilhéus as engenhocas que só fabricam “melado” e aguardente. Era o mesmo por paragens incontáveis.