Atenda-se que o brasileiro é devoto da cachaça mas não é cachaceiro. Augusto de Saint-Hilaire, de junho de 1816 a agosto de 1822, percorrendo o Brasil do sul, fixado em livros incomparáveis, informava em 1819 que Cachaça é a aguardente do país. Apesar do registro vulgarizador, o grande botânico não hesitou em afirmar: “Não se deva supor, todavia, que o gosto desses homens pela cachaça os conduza frequentemente à embriaguez. Apresso-me a dizer, em louvor não só dos goianos, como ainda dos habitantes do Brasil em geral, que não me lembro de ter visto, no decurso das minhas longas viagens, um único homem embriagado” (Viagem às Nascentes do Rio São Francisco e pela Província de Goiás).
Mais vivo é o depoimento de George Gardner, de julho de 1836 a junho de 1841 no Brasil, colecionando plantas para os museus da Inglaterra. Médico, Gardner ficou dois anos no Rio de Janeiro, passando à Bahia, Recife, Ceará, alcançando o Piauí, Goiás, Minas Gerais, visitando regiões inexploradas, motivando o inimitável Travels in the Interior of Brazil, London, 1846. Declara: “Vindo do Brasil desembarquei num domingo de manhã em Liverpool, e vi nesse dia mais ébrios, no meio das ruas dessa cidade, do que vi, entre os brasileiros, brancos ou mestiços, durante toda a minha estada em seu país, que foi de cinco anos”.
“Sóbrios como todos os brasileiros”, afirma Wied-Neuwied.
No período da organização da sociedade brasileira, notadamente finais do séc. XVI às primeiras décadas do séc. XIX, os soberanos portugueses não amavam as bebidas alcoólicas, de D. Manoel a D. João VI, não dando clima de compreensiva simpatia à embriaguez aristocrática. As exceções pessoais constituíam anedotário e sempre distante da pessoa do Rei. A fama da glutonaria lusitana derramou-se pela Europa e passou ao Brasil, destoando da clássica frugalidade castelhana. Mas a bebedeira não ajudava a ninguém impor-se socialmente. Os dois Imperadores do Brasil foram abstêmios, notadamente o segundo. D. João VI era acompanhado, nas jornadas de passeio, por um pajem levando a bilha de barro da Bahia, com a bebida indispensável, água pura.
Uma observação unânime nos viajantes estrangeiros do séc. XIX, aqueles que encontraram o Brasil-Velho, saudoso do Vice-Rei e dos Capitães-Mores das Ribeiras, atesta a sobriedade brasileira no tocante ao consumo alcoólico. Já em fevereiro de 1649, nas tréguas para sepultamento dos mortos na segunda batalha de Guararapes, o sargento-mor Antônio Dias Cardoso, ouvindo do enviado holandês que os portugueses haviam, pelo ímpeto, combatido mui borrachos, indignou-se: “O sargento-mor lhe respondeu que na campanha havia muito pouco vinho, e que quando fora muito que os portugueses se não emborrachavam por ser entre eles a maior infâmia” (Diogo Lopes de Santiago, História da Guerra de Pernambuco, V, VI).
Eram grandes bebedores d’água fresca, apregoada e vendida nas ruas e praças, como desenhou Debret. A metade do artesanato cerâmico destinava-se aos recipientes para transportar e guardar água. A alimentação acidulada com sal e pimenta, a constante avidez pelos doces que a fartura industrial do açúcar facilitava, o clima determinando a contínua desidratação pela atividade sudorífera, explicavam a paixão pela água, regando normalmente a refeição, e única a saciar a sede tropical. Daí o luxo, a mania exibicionista dos copos de prata do Porto, os patacões do Império fundidos para fazer os copázios de litro e meio, as vasilhas aparelhadas de correntes de prata maciça para colher o líquido na fonte sem que o cavaleiro desmontasse, os cocos orlados de prata e mesmo cobertos de filigrana de prata, cujas delicadas miniaturas figuram entre as peças pendentes dos molhos de balagandãs da Bahia, verdadeiras joias.
Diga-se, de passagem, da antiguidade dessa utilização, o coco, vaso-de-beber. Carolina Michaëlis de Vasconcelos (Púcaros de Portugal, Lisboa, 1957) cita Antônio de Guevara (1539), incluindo a nuez de Índia na vasilhagem dos navegadores. E anotou: “Cocos tanto vinham das Índias orientais como das ocidentais. Havia exemplares artisticamente lavrados”. A nuez da Índia, coco-da-praia, coco-da-baía, Cocos nucifera, Linneu, veio unicamente da Índia ou da Polinésia, da África oriental, para a América do Sul, onde era ignorado antes da presença de espanhóis e portugueses, apesar das conclusões contrárias de Georg Friederici. O coco não atravessaria o Oceano Pacífico trazido pelas vagas durch die Malaio-Polynesier pela corrente fria de Humboldt, sem apodrecer (Kon-Tiki, 91, da 5a ed. brasileira). Para o Brasil, informa Gabriel Soares de Sousa (1587), vieram as primeiras mudas do Cabo Verde, d’onde se enchem a terra. A história de sua expansão na orla brasileira é de relativa facilidade. Difícil é provocar o interesse determinador.
Na Índia a quenga valia escudela. Garcia da Orta descrevia (Colóquio, XVI), entre 1534-1558: “A primeira das cascas é muito lanuginosa e desta se faz cairo... E a outra casca serve de vasos para beber a gente mesquinha”. Antes e continuando em uso contemporâneo, os ameríndios empregavam o cuité, cuia (Crescentia cujete, L), cumbuca, cabaças, cabaços (Legenaria vulgaris, Ser.). Os ornatos decorativos nesses frutos não desapareceram nas zonas de produção. O mercado turístico tem desfigurado o sentido estético na influência da sofisticação atraente. Mas ainda há modelos bonitos.