I.
EXPERIÊNCIAS NUM CAMPO
DE CONCENTRAÇÃO

Este livro não pretende ser um relato de factos e acontecimentos mas sim de experiências pessoais, experiências vividas por milhões de prisioneiros, uma e outra vez. É a história do interior de um campo de concentração, contada por um dos seus sobreviventes. Esta narrativa não se debruça sobre os grandes horrores, que foram já suficientemente descritos (embora se tenha acreditado neles com bem menor frequência), mas sobre a imensidão de pequenos tormentos. Por outras palavras, o livro tentará responder a esta questão: como se refletia no espírito de um prisioneiro comum a vida diária num campo de concentração?

Muitos dos acontecimentos aqui descritos não tiveram lugar nos campos maiores e mais conhecidos, mas nos mais pequenos, onde a maior parte do verdadeiro extermínio teve lugar. Esta história não é sobre o sofrimento e a morte de grandes heróis e mártires, nem sobre os capos mais importantes – prisioneiros que atuavam como administradores, gozando de privilégios especiais – ou sobre prisioneiros bem conhecidos. Não tem, pois, a preocupação de contar os sofrimentos dos poderosos, mas sim os sacrifícios, a crucifixão e as mortes do grande exército de vítimas desconhecidas e esquecidas. Eram estes presos comuns, que não ostentavam marcas distintivas nas mangas, quem os capos realmente desprezavam. Enquanto estes prisioneiros vulgares tinham pouco ou nada para comer, os capos nunca passavam fome; de facto, muitos dos capos deram-se melhor nos campos do que durante o resto das suas vidas. Eram com frequência mais duros para os presos do que os guardas e batiam-lhes com mais crueldade do que os homens das SS. Estes capos eram escolhidos, naturalmente, apenas de entre aqueles prisioneiros cujo caráter prometia torná-los adequados a tais comportamentos e, se não correspondessem àquilo que se esperava deles, eram imediatamente retirados dos cargos. Tornaram-se rapidamente muito parecidos com os homens das SS e com os guardas dos campos e podem ser julgados com base numa psicologia semelhante.

É fácil a alguém de fora ficar com a ideia errada da vida num campo, uma conceção misturada de sentimentalidade e pena. O observador sabe muito pouco sobre a dura luta pela existência que era travada entre os prisioneiros. Era uma luta sem quartel pelo pão de cada dia e pela própria vida, pelo bem-estar próprio ou pelo de um bom amigo.

Tomemos como exemplo um transporte oficialmente anunciado como sendo para transferir um certo número de presos para outro campo; mas era relativamente correto supor que o seu destino final seria as câmaras de gás. Uma seleção de prisioneiros fracos ou doentes, incapazes de trabalhar, seriam enviados para um dos grandes campos centrais, que estavam dotados de câmaras de gás e crematórios. O processo de seleção era o sinal de partida para uma luta livre entre todos os presos, ou de grupos contra grupos. A única coisa que importava era ver o nosso nome e o dos nossos amigos riscados da lista de vítimas, embora todos soubessem que por cada homem poupado tinha de ser encontrada outra vítima.

Um número definido de prisioneiros tinha de seguir em cada transporte. Não importava realmente quais, já que cada um deles não era senão um número. Ao serem admitidos no campo (era este, pelo menos, o método em Auschwitz), tinham-lhes sido tirados todos os documentos, juntamente com os outros bens. Cada prisioneiro tinha tido, pois, a oportunidade de reivindicar um nome e uma profissão fictícios; e, por várias razões, muitos fizeram-no. As autoridades estavam somente interessadas nos números dos cativos. Esses números eram com frequência tatuados na pele e tinham ainda de ser cosidos num determinado lugar das calças, da camisola ou do casaco. Qualquer guarda que quisesse acusar um prisioneiro, limitava-se a olhar para o número (e como temíamos esses olhares!); nunca perguntava o nome.

Mas voltemos ao comboio de presos pronto a partir. Não havia nem tempo nem vontade para olhar a questões éticas ou morais. Cada pessoa era controlada por um único pensamento: manter-se viva para a família que a esperava em casa e salvar os seus amigos. Sem hesitação, pois, fazia os possíveis para que outro preso, outro «número», tomasse o seu lugar no transporte.

Como já referi, o processo de seleção de capos tinha critérios negativos; só os mais brutais de entre os presos eram escolhidos para essa tarefa (embora tenha havido algumas exceções felizes). Mas, para além da seleção de capos levada a cabo pelas SS, havia uma espécie de processo de autosseleção permanente entre todos os presos. Em geral, só conseguiam ficar vivos aqueles que, após anos a saltar de campo para campo, tinham perdido todos os escrúpulos na sua luta pela existência; estavam prontos a usar todos os meios, honestos ou não, até mesmo a força brutal, o roubo e a traição dos amigos, de maneira a salvarem-se. Nós, que voltámos a casa, com a ajuda de muitas circunstâncias felizes ou de milagres – seja qual for o nome que escolhamos dar-lhes – nós sabemos: os melhores de entre nós não regressaram.

Já foram publicadas muitas descrições factuais sobre os campos de concentração. Aqui, os factos serão significativos apenas na medida em que fazem parte da experiência de um homem. É a natureza exata dessas experiências que este ensaio tentará descrever. Para aqueles que foram prisioneiros num campo, tentará explicar as suas experiências à luz do conhecimento atual. E para aqueles que nunca estiveram detidos, poderá ajudá-los a abarcar, e acima de tudo a entender, as experiências daquela muito pequena percentagem de prisioneiros que sobreviveram e que agora considera a vida muito difícil. Estes antigos presos dizem com frequência: «Não gostamos de falar das nossas experiências. Para os que estiveram lá dentro não são necessárias explicações, e os outros não entenderão nem como nos sentimos na altura, nem como nos sentimos agora».

Tentar uma apresentação metódica do tema é muito difícil, pois a psicologia requer um certo distanciamento científico. Mas poderá um homem que faz as suas observações, sendo ele mesmo um prisioneiro, ter o distanciamento necessário? Tal distanciamento é garantido a quem está de fora, mas esses estão demasiado longe das coisas para poderem fazer afirmações com real valor. Só quem esteve lá é que sabe. Os seus juízos podem não ser objetivos; as suas avaliações podem ser desproporcionadas. Isso é inevitável. Mas tem de ser feito um esforço para evitar preconceitos pessoais e é essa a verdadeira dificuldade de um livro deste género. Será necessário, por vezes, ter a coragem de contar experiências muito íntimas. Pretendi escrever este livro anonimamente, utilizando somente o meu número da prisão. Mas quando o manuscrito estava terminado percebi que enquanto publicação anónima perderia metade do seu valor e que deveria ter a coragem de apresentar as minhas convicções abertamente. Impedi-me, pois, de eliminar qualquer passagem, apesar da minha profunda aversão pelo exibicionismo.

Deixo a outros a tarefa de destilarem o conteúdo deste livro em teorias puras. Estas podem vir a tornar-se um contributo para a psicologia da vida prisional, que foi investigada após a Primeira Guerra Mundial e que nos familiarizou com a síndrome «da doença do arame farpado». Devemos à Segunda Guerra Mundial o enriquecimento dos nossos conhecimentos «da psicopatologia das multidões» (se me é permitido citar uma variação da bem conhecida frase e título de um livro de LeBon), pois a guerra ofereceu-nos a guerra de nervos e os campos de concentração.

Como esta história é sobre as minhas experiências enquanto preso vulgar, é importante que refira, não sem certo orgulho, que não fui empregado como psiquiatra no campo, nem mesmo como médico, exceto nas últimas semanas. Alguns dos meus colegas tiveram a sorte de serem empregados em postos mal aquecidos de primeiros socorros, onde aplicavam ligaduras feitas de restos de papel. Mas eu era o número 119.104 e passava a maior parte do tempo a cavar e a colocar carris para linhas férreas. Certa vez, o meu trabalho consistiu em escavar um túnel, sem ajuda, para uma conduta de água sob uma estrada. Esta façanha não ficou sem uma recompensa; pouco antes do Natal de 1944, fui presenteado com a dádiva dos chamados «cupões premium». Estes eram emitidos pela empresa de construção à qual éramos na prática vendidos como escravos: essa empresa pagava às autoridades do campo um preço fixo por dia e por prisioneiro. Cada cupão custava à empresa cinquenta pfennigs e podia ser trocado por seis cigarros, com frequência semanas depois, embora por vezes perdessem a validade. Tornei-me, nessa altura, o orgulhoso proprietário de uma ficha no valor de doze cigarros. Mas, mais importante do que isso, os cigarros podiam ser trocados por doze sopas, e doze sopas representavam muitas vezes um verdadeiro alívio da fome.

O privilégio de fumar mesmo os cigarros estava reservado ao capo, que tinha assegurada a sua quota de cupões semanais; ou possivelmente ao preso que trabalhasse como responsável de grupo num armazém ou oficina e recebesse uns poucos cigarros em troca da realização de trabalhos perigosos. As únicas exceções a esta regra eram aqueles que tinham perdido a vontade de viver e queriam «gozar» os seus últimos dias. Por isso, quando víamos um camarada a fumar os seus próprios cigarros, sabíamos que tinha perdido a fé na sua força para prosseguir e, uma vez perdida, a vontade de viver raramente voltava.

Quando examinamos a imensa quantidade de material reunido em resultado das observações e experiências de muitos prisioneiros, revelam-se claramente três fases das suas reações mentais à vida no campo: o período a seguir à sua chegada; o período durante o qual estão bem integrados na rotina do campo; e o período a seguir à sua libertação.

O sintoma que caracteriza a primeira fase é o choque. Em determinadas condições, o choque pode mesmo anteceder a admissão formal no campo. Vou dar como exemplo as circunstâncias da minha própria admissão.

Mil e quinhentas pessoas viajavam de comboio há já vários dias e noites: havia 80 pessoas em cada carruagem. Tinham todas de se pôr em cima das suas bagagens, dos escassos restos dos seus haveres. As carruagens estavam tão cheias que só as partes superiores das janelas permitiam a entrada da luz cinzenta do amanhecer. Todos esperávamos que o comboio se dirigisse para uma qualquer fábrica de munições, na qual seríamos empregados em regime de trabalhos forçados. Não sabíamos se ainda estávamos na Silésia ou já na Polónia. O apito da locomotiva tinha um som perturbador, como se fosse um pedido de ajuda gritado em comiseração pela triste carga que estava encarregado de conduzir à perdição. Então, o comboio mudou de linha, sinal óbvio da aproximação de uma estação principal. De súbito, um grito ecoou de entre os ansiosos prisioneiros: «Há um sinal, Auschwitz!». Naquele momento, os corações de todos pareceram parar. Auschwitz – aquele nome representava tudo quanto havia de horrível: câmaras de gás, crematórios, massacres. Lentamente, quase hesitante, o comboio avançou, como se quisesse poupar os passageiros à terrível compreensão das coisas pelo maior período de tempo possível: Auschwitz!

Com o progressivo amanhecer, os contornos de um campo imenso tornaram-se visíveis: longas filas de múltiplas barreiras de arame farpado; torres de vigilância; holofotes; e longas colunas de seres humanos esfarrapados, cinzentos no cinzento da aurora, a caminharem ao longo de estradas desoladas, para um destino que desconhecíamos. Havia aqui e ali gritos e apitos de comando. Desconhecíamos o seu significado. A minha imaginação levou-me a ver forcas com pessoas suspensas a oscilar. Estava apavorado, mas isso não era mau de todo, porque, aos poucos, tínhamos mesmo de nos acostumar a um horror imenso e terrível.

Por fim, mudámos para a estação. O silêncio inicial foi interrompido por ordens gritadas. Daí para a frente, iríamos ouvir esses tons ásperos, agudos, uma e outra vez em todos os campos. O seu som era quase como o último grito de uma vítima e, no entanto, havia uma diferença. Tinha uma aspereza rouca, como se proviesse da garganta de um homem que tivesse de continuar a gritar daquela maneira, um homem que estivesse a ser assassinado repetidamente. As portas da carruagem foram abertas e um pequeno destacamento de prisioneiros entrou de rompante. Vestiam uniformes às riscas, tinham as cabeças rapadas, mas pareciam bem alimentados. Falavam em todas as línguas europeias possíveis e todos eles com uma certa dose de humor, o que parecia grotesco naquelas circunstâncias. Como um náufrago agarrado a uma palha, o meu otimismo congénito (que muitas vezes controlou os meus sentimentos até mesmo nas circunstâncias mais desesperadas) agarrou-se a este pensamento: estes prisioneiros aparentam estar bastante bem, parecem animados e até se riem. Quem sabe? Talvez consiga vir a partilhar a sua situação favorável.

Na psiquiatria existe um determinado estado conhecido como «delírio de suspensão»2. Imediatamente antes da execução, o condenado fica com a ilusão de poder ver a sua pena suspensa no último momento. Também nós nos agarrávamos a pedaços de esperança e acreditámos até ao último momento que não iria ser assim tão mau. A simples visão das bochechas rosadas e dos rostos rechonchudos daqueles prisioneiros foi um grande encorajamento. Mal sabíamos naquela altura que eles faziam parte de uma elite especialmente selecionada, que era há anos a brigada de receção dos novos transportes, à medida que chegavam à estação, dia após dia. Encarregavam-se dos recém-chegados e das suas bagagens, nas quais se contavam escassos bens e joias escondidas. Auschwitz deve ter sido um local estranho naquela Europa dos últimos anos da guerra. Devem ter existido tesouros únicos de ouro e prata, platina e diamantes, não somente nos enormes armazéns como também nas mãos das SS.

Mil e quinhentos cativos foram encarcerados num barracão possivelmente construído para albergar um máximo de duzentos. Tínhamos frio e fome e não havia espaço suficiente para cada um se acocorar no chão, muito menos para se deitar. Um pedaço de pão com cerca de 150gr foi a nossa única comida durante quatro dias. No entanto, ouvi os prisioneiros mais velhos, encarregados do barracão, a negociar com um membro do grupo de receção um alfinete de gravata em platina e diamantes. A maior parte dos lucros acabaria por ser trocada por álcool – schnapps. Já não me recordo de quantos milhares de marcos eram necessários para comprar a quantidade de schnapps necessária para uma «noite festiva», mas sei que os presos de longa data precisavam de schnapps. Em tais condições, quem pode censurá-los por tentarem drogar-se? Havia outro grupo de presos que conseguia obter das SS quantidades quase ilimitadas de bebidas alcoólicas: esses eram os homens empregados nas câmaras de gás e crematórios, que sabiam muito bem que um dia seriam substituídos por um novo turno e que teriam de deixar o seu papel de executores forçados para se tornarem eles mesmos vítimas.

Quase todos os que chegaram no nosso transporte viviam na ilusão de que seriam salvos, que aquela noite ainda acabaria em bem. Desconhecíamos o sentido por detrás da cena que se iria seguir. Foi-nos dito para deixarmos a bagagem no comboio e para nos alinharmos em duas filas – mulheres de um lado, homens do outro – de maneira a desfilarmos perante um oficial das SS. Surpreendentemente, tive a coragem de esconder a minha pequena mochila debaixo do casaco. A minha fila passou diante do oficial, homem a homem. Percebi que seria perigoso se o oficial se apercebesse do meu saco. Iria, no mínimo, atirar-me ao chão com pancada; sabia disso de experiências anteriores. Instintivamente, quando me aproximei do oficial endireitei-me, de maneira a ele não notar o peso que transportava. Cheguei, então, diante dele. Era um homem alto, que ficava com um aspeto elegante e robusto no seu imaculado uniforme. Que contraste fazia connosco, tão desleixados e sujos após a longa viagem! Tinha assumido uma atitude de descontração descuidada, apoiando o cotovelo direito com a mão esquerda. Tinha a mão direita erguida, e com o indicador dessa mão apontava vagarosamente para a direita ou para a esquerda. Nenhum de nós fazia a mais pequena ideia do significado sinistro por detrás desse pequeno movimento do dedo de um homem, apontando agora para a direita e depois para a esquerda, mas com maior frequência para a esquerda.

Chegou a minha vez. Alguém me sussurrou que ser enviado para o lado direito significava trabalho, sendo o caminho da esquerda para os doentes e os incapazes de trabalhar, que seriam enviados para um campo especial. Limitei-me a esperar que as coisas seguissem o seu curso, a primeira de muitas outras vezes em que tive de o fazer. A minha mochila inclinava-me um pouco para a esquerda, mas fiz um esforço para caminhar direito. O homem das SS olhou-me de alto a baixo, pareceu hesitar, depois colocou ambas as mãos nos meus ombros. Fiz um grande esforço para parecer vivaz, e ele voltou os meus ombros muito lentamente até ficar virado para a direita, e fui para esse lado.

O significado do jogo do dedo foi-nos explicado nessa noite. Era a primeira seleção, o primeiro veredito feito sobre a nossa existência ou não existência. Para a maioria dos que chegaram no nosso transporte, cerca de 90 por cento, significou a morte. A sentença foi executada nas horas que se seguiram. Os que foram mandados para a esquerda caminharam diretamente da estação para o crematório. Esse edifício, como me disse alguém que lá trabalhara, tinha escrita nas portas a palavra «banho» em várias línguas europeias. Ao entrar, era dado a cada prisioneiro um pedaço de sabão e depois – felizmente, não tenho de descrever os acontecimentos que se seguiam. Muitos relatos foram escritos sobre este horror.

Nós, que nos salvámos, a minoria dos do nosso transporte, descobrimos a verdade nessa noite. Perguntei a prisioneiros que já ali estavam há algum tempo para onde tinha sido levado o meu colega e amigo P –.

«Foi mandado para o lado esquerdo?»

«Sim», respondi.

«Então podes vê-lo ali», disseram-me.

«Onde?» Uma mão apontou para a chaminé a umas centenas de metros, que enviava uma coluna de chamas para o céu cinzento da Polónia. Desfez-se numa sinistra nuvem de fumo.

«É aí que está o teu amigo, a flutuar em direção ao Céu», foi essa a resposta. Mas ainda assim não entendi, até a verdade me ser explicada em palavras simples.

Mas estou a contar as coisas fora da ordem. De um ponto de vista psicológico, tínhamos um caminho muito longo diante de nós desde o despontar da aurora na estação até à primeira noite de descanso no campo.

Escoltados por soldados das SS com armas prontas a disparar, fomos forçados a correr desde a estação, passando por vedações de arame farpado eletrificado, pelo campo fora, até chegarmos à estação de limpeza; para os que passaram a primeira seleção, aquele foi um banho a sério. Uma vez mais, a nossa ilusão de suspensão da pena via-se confirmada. Os homens das SS pareciam quase encantadores. Em breve descobriríamos porquê. Eram educados connosco desde que vissem relógios nos nossos pulsos e conseguissem persuadir-nos a entregar-lhos. Fosse como fosse, não teríamos nós de acabar por entregar todos os nossos bens? E por que não haveria de ficar com o relógio aquela pessoa relativamente agradável? Talvez um dia fizesse alguma coisa de bom por nós, em troca.

Esperámos num barracão que parecia ser a antessala da câmara de desinfeção. Apareceram alguns homens das SS e distribuíram cobertores para os quais tínhamos de atirar todos os nossos bens, os nossos relógios e as nossas joias. Havia ainda entre nós presos ingénuos que perguntavam, para divertimento dos mais experientes que ali estavam para ajudar, se não poderiam ficar com um anel de casamento, uma medalha ou um amuleto. Ninguém conseguia ainda compreender o facto de que tudo nos seria tirado.

Tentei levar um dos presos antigos a fazer-me confidências. Aproximando-me dele furtivamente, apontei para o rolo de papel no bolso interior do meu casaco e disse: «Olhe, este é o manuscrito de um livro científico. Sei o que vai dizer; que deveria sentir-me agradecido por escapar com vida, que isso é tudo quanto deveria esperar do destino. Mas não consigo evitar. Tenho de conservar este manuscrito custe o que custar; contém o trabalho da minha vida. Consegue perceber isso?».

Sim, ele começava a compreender. Um esgar alargou-se lentamente no seu rosto, primeiro, lastimoso, depois, mais divertido, escarnecedor, insultuoso, até que me gritou uma palavra em resposta à minha pergunta, uma palavra sempre presente no vocabulário dos companheiros do campo: «Merda!» Nesse momento, vi a verdade nua e crua e fiz algo que marcou o ponto culminante da primeira fase da minha reação psicológica: deitei fora toda a minha vida anterior.

De súbito, uma agitação percorreu os meus companheiros de viagem, que estavam por ali com rostos pálidos e amedrontados, debatendo-se inutilmente. Ouvimos de novo as ordens gritadas em tom áspero. Fomos conduzidos à pancada para a antessala contígua aos duches. Aí, reunimo-nos em volta de um homem das SS que esperou até termos chegado todos. E então, disse: «Vou dar-vos dois minutos e vou contar o tempo pelo meu relógio. Nesses dois minutos vão despir-se totalmente e deixar tudo no local onde estão. Não levarão nada exceto os sapatos, o cinto ou suspensórios e talvez umas cuecas. Vou começar a contar – agora!»

Com uma pressa impensável, as pessoas arrancaram as roupas. À medida que o tempo escasseava, ficavam cada vez mais nervosas e tiravam desajeitadamente a roupa interior, os cintos e os atacadores dos sapatos. Ouvimos então os primeiros sons de chicotadas; correias de pele a bater em corpos nus.

De seguida fomos agrupados noutra sala para sermos rapados: e não foram só as nossas cabeças que foram tosquiadas, não foi deixado no nosso corpo um único pelo. Depois, fomos alinhados de novo nos chuveiros. Tínhamos dificuldade em nos reconhecermos uns aos outros; mas, com enorme alívio, alguns repararam que dos repuxos saía mesmo água.

Enquanto esperávamos pela vez nos chuveiros, tomámos consciência da nossa nudez: agora não tínhamos realmente nada a não ser os corpos nus – e até mesmo esses, despojados de pelos; tudo quanto possuíamos era, literalmente, a nossa existência nua. Que outra coisa restava para nos ligar materialmente às nossas vidas anteriores? Para mim, havia os meus óculos e o cinto; este último, tive de trocá-lo mais tarde por um pedaço de pão. Estava ainda reservado um momento de excitação extra para os possuidores de cuecas. À noite, o prisioneiro mais antigo encarregado da nossa cabana deu-nos as boas-vindas com um discurso durante o qual nos deu a palavra de honra de que enforcaria, pessoalmente, «naquele poste» – e apontou para ele – qualquer um que tivesse cosido dinheiro ou pedras preciosas às cuecas. Explicou, com orgulho, que as leis do campo lhe davam esse direito na condição de residente mais antigo.

No que dizia respeito aos nossos sapatos, as coisas não eram assim tão simples. Embora nos tivessem dito que ficávamos com eles, todos quantos tinham pares de sapatos minimamente apresentáveis acabaram por ser forçados a entregá-los e em troca deram-lhes sapatos que não serviam. Mas quem estava em sérios apuros eram os presos que tinham seguido o conselho aparentemente bem-intencionado (dado na antessala) dos prisioneiros mais antigos e tinham encurtado as botas altas cortando-lhes a parte de cima e besuntando depois a parte cortada com sabão para esconder a sabotagem. Os homens das SS pareciam estar justamente à espera disso. Todos os suspeitos deste crime tinham de ir para uma pequena sala anexa. Após algum tempo, voltámos a ouvir os silvos das chicotadas e os gritos dos homens torturados. Desta vez prolongou-se durante um bom bocado.

Assim, as ilusões que alguns de nós ainda tinham foram destruídas uma a uma e depois, de forma bastante inesperada, a maior parte de nós foi tomada por um sentido de humor sinistro. Sabíamos que nada tínhamos a perder exceto as nossas existências ridiculamente nuas. Quando os chuveiros começaram a correr, todos nos esforçámos por brincar, connosco mesmos e uns com os outros. Afinal de contas, saía mesmo água verdadeira dos chuveiros.

Para lá desse estranho género de humor, fomos tomados por outra sensação: a curiosidade. Já tinha experimentado esse tipo de curiosidade, como reação fundamental a algumas circunstâncias estranhas. Quando a dada altura a minha vida foi ameaçada por um acidente de escalada, no momento crítico senti somente uma sensação: curiosidade, curiosidade de saber se sairia dali vivo, com uma fratura no crânio ou algum outro ferimento.

A fria curiosidade predominava em Auschwitz, distanciando de alguma forma o espírito do meio envolvente, acabando este por ser encarado com uma espécie de objetividade. Estávamos ansiosos por saber o que aconteceria a seguir; e qual seria a consequência, por exemplo, de estarmos ali ao ar livre, no frio do fim do outono, totalmente nus e ainda húmidos do banho. Nos dias seguintes, a nossa curiosidade transformou-se em surpresa; surpresa por não nos termos constipado.

Muitas surpresas como esta estavam reservadas aos recém-chegados. Aqueles de entre nós que eram médicos aprenderam, desde logo, uma: «Os manuais mentem!» Diz-se algures, por exemplo, que os seres humanos não podem viver sem dormir por mais de um certo número de horas. Completamente errado! Estava convencido de que havia algumas coisas que pura e simplesmente eu não conseguia fazer: não podia dormir sem determinadas condições e não podia viver sem isto ou sem aquilo. Na primeira noite em Auschwitz dormimos em camas construídas em fileiras sobrepostas. Em cada uma delas (medindo entre dois metros a dois metros e setenta) dormiam nove homens, deitados diretamente sobre as tábuas. Dois cobertores eram partilhados por cada nove homens. Só podíamos, é claro, deitar-nos de lado, amontoados e comprimidos uns contra os outros, o que tinha algumas vantagens por causa do frio intenso. Embora fosse proibido levar os sapatos para os beliches, alguns usavam-nos secretamente como almofadas, apesar de estarem cheios de lama. Sem isso, tínhamos de deitar a cabeça no braço dobrado de tal maneira que quase ficava deslocado. Apesar de tudo, o sono veio e trouxe consigo, por algumas horas, esquecimento e alívio da dor.

Gostaria de referir mais algumas surpresas do mesmo género, que mostram até que ponto conseguíamos resistir: não havia maneira de limparmos os dentes mas, apesar disso e de uma grave deficiência de vitaminas, tínhamos gengivas mais saudáveis do que antes. Éramos forçados a usar as mesmas camisas durante meio ano, até perderem toda a aparência de camisas. Durante dias não conseguíamos lavar-nos, mesmo parcialmente, por causa dos canos congelados, mas, ainda assim, as feridas e queimaduras de fricção nas mãos, sujas do trabalho na terra, não supuravam (isto é, a menos que sofrêssemos queimaduras do frio). Ou então, alguém com o sono leve, por exemplo, que habitualmente acordava ao mínimo ruído no quarto do lado, dava agora consigo deitado de encontro a um camarada que ressonava ruidosamente a escassos centímetros dos seus ouvidos e ainda assim dormia profundamente.

Se alguém agora nos perguntasse sobre a verdade da afirmação de Dostoiévski quando define o Homem como um ser capaz de se habituar a tudo, responderíamos: «Sim, um homem pode habituar-se a qualquer coisa, só não nos perguntem como». Mas as nossas investigações psicológicas ainda não nos levaram até aí; nem nós, prisioneiros, tínhamos ainda alcançado esse ponto. Estávamos ainda na primeira fase das nossas reações psicológicas.

Quase todos pensavam no suicídio, ainda que somente por um breve período de tempo. Era algo que nascia do caráter desesperado da situação, do perigo constante da morte a pairar sobre nós, a cada dia, em cada hora, e da proximidade das mortes de muitos dos outros presos. Com base em convicções pessoais, que mencionarei mais tarde, fiz a mim mesmo a promessa firme, no meu primeiro dia no campo, de que «não correria para a vedação». Esta era a frase usada no campo para descrever o método mais popular de suicídio – tocar na vedação de arame farpado eletrificada. Para mim não era assim tão difícil tomar essa decisão. Cometer suicídio não fazia muito sentido, uma vez que, para o preso médio, a esperança de vida, fazendo um cálculo objetivo e tendo em conta todas as eventualidades, era muito limitada. Ninguém podia esperar, com o mínimo de segurança, estar entre a escassa percentagem daqueles que sobreviviam a todas as seleções. O prisioneiro de Auschwitz, na primeira fase do choque, não temia a morte. Até mesmo as câmaras de gás perdiam para ele o horror após os primeiros dias – afinal de contas, poupavam-lhe o trabalho de cometer suicídio.

Amigos que encontrei mais tarde disseram-me que não sou daqueles a quem o choque do reconhecimento deprime por aí além. Limitei-me a sorrir, e fi-lo com sinceridade, quando o episódio que relato de seguida teve lugar após a nossa primeira noite em Auschwitz. Apesar das ordens rigorosas para não sairmos dos nossos «blocos», um colega meu, chegado a Auschwitz algumas semanas antes, entrou clandestinamente no nosso barracão. Queria acalmar-nos e confortar-nos e contar algumas coisas. Tinha ficado tão magro que a princípio não o reconhecemos. Com mostras de bom humor e uma atitude despreocupada, deu-nos apressadamente algumas dicas: «Não tenham medo! Não temam as seleções! O Dr. M– (o médico chefe das SS) tem um fraquinho por médicos». (Isto não era verdade; as palavras amáveis do meu amigo eram enganadoras. Um prisioneiro, médico de um bloco de barracões e homem de uns 60 anos, contou-me como tinha suplicado ao Dr. M– que salvasse o seu filho, destinado às câmaras de gás. O Dr. M– recusou com frieza).

«Mas peço-vos uma coisa», continuou, «façam a barba todos os dias, se possível, nem que seja com um pedaço de vidro, mesmo que tenham de o trocar pelo último pedaço de pão. Assim ficam com um aspeto mais jovem e o raspar deixará as vossas faces mais rosadas. Se querem ficar vivos, só há uma maneira: ter a aparência de alguém capaz de trabalhar. Se algum de vocês sequer coxear, devido, por exemplo, a uma bolha no calcanhar e, se um homem das SS vir, vai deixá-lo de lado e, no dia seguinte, é certo que é gaseado. Sabem o que queremos dizer quando chamamos a alguém «muçulmano»? Um homem com um ar miserável, abatido, doente e emaciado, incapaz de aguentar trabalho físico duro durante mais tempo é isso, um «muçulmano». Mais cedo ou mais tarde, normalmente cedo, todos os «muçulmanos» vão para as câmaras de gás. Por isso, lembrem-se: façam a barba, caminhem direitos e com leveza; nesse caso não precisam de ter medo do gás. Todos os que aqui estão, mesmo os que chegaram só há 24 horas, não precisam de recear o gás, exceto tu, talvez». E então apontou para mim e disse: «Espero que não te importes que fale com franqueza». Aos outros, repetiu: «De todos, só ele deve ter medo da próxima seleção. Por isso, não se preocupem.»

E eu sorri. Estou hoje convencido de que qualquer outro no meu lugar, naquele dia, teria feito exatamente a mesma coisa.

Penso que foi Lessing que disse uma vez: «Há coisas que nos levam forçosamente a perder a razão, caso contrário é porque já a perdemos». Uma reação anormal a uma situação anormal é um comportamento normal. Até mesmo os psiquiatras esperam que as reações de uma pessoa numa situação anormal, tal como ser internado num asilo, sejam anormais em proporção com o grau da sua normalidade. A reação de alguém ao entrar num campo de concentração representa também um estado de espírito anormal, mas, julgada com objetividade, é uma reação normal e, como se mostrará mais adiante, é típica numa circunstância como aquela. Estas reações, tal como as descrevi, começaram a mudar em poucos dias. O prisioneiro passou da primeira para a segunda fase; uma fase de relativa apatia, na qual alcançou uma espécie de morte emocional.

Além das reações já descritas, o preso recém-chegado experimenta as torturas de outras emoções mais dolorosas, que faz o possível por minorar. Primeiro, há o desejo ardente de voltar para casa e para a família. Isto podia tornar-se frequentemente tão intenso que se sentia consumido pela saudade. Depois, havia a repugnância; aversão a toda a fealdade que o cercava, até mesmo nas meras formas exteriores.

A maioria dos presos recebia um uniforme de farrapos que, por comparação, faria parecer elegante até um espantalho. Entre os barracões do campo havia pura imundície e, quanto mais nos esforçávamos por a limpar, mais tínhamos de contactar com ela. Uma das práticas favoritas era destacar um dos recém-chegados para um grupo de trabalho cuja função era limpar as latrinas e remover os restos dos esgotos. Se, como acontecia habitualmente, alguns excrementos salpicavam o seu rosto durante o transporte por campos acidentados, qualquer sinal de nojo da parte do prisioneiro ou qualquer tentativa de limpar a sujidade eram punidos com pancada pelo capo. E desta forma era acelerada a mortificação das reações normais.

A princípio, o preso olhava para o lado quando lhe acontecia ver as marchas punitivas de outro grupo; não conseguia suportar a visão dos outros prisioneiros a caminharem para cima e para baixo no lodaçal, com os movimentos orientados por agressões. Dias ou semanas depois, as coisas mudavam. De manhã bem cedo, quando era ainda de noite, o preso formava diante do portão com o seu destacamento, pronto para marchar. Escutava um grito e via como um camarada era derrubado com um golpe, posto de pé novamente, e derrubado outra vez – e porquê? Sentia-se febril e tinha-se dirigido à enfermaria na altura errada. Estava a ser punido pela tentativa irregular de faltar às suas obrigações.

Mas o prisioneiro que tenha passado para a segunda fase das reações psicológicas já não afasta os olhos. Nessa altura, as suas emoções estão já embotadas e ele olha sem se perturbar. Outro exemplo: o preso dá consigo à espera numa fila de doentes, na esperança de que lhe concedam dois dias de trabalhos leves dentro do campo por causa de ferimentos ou talvez de um edema ou febre. Fica imperturbável quando vê entrar, em braços, um miúdo de doze anos que foi forçado a ficar em sentido durante horas na neve ou a trabalhar lá fora, de pés descalços, por não haver sapatos para ele no campo. Os pés tinham ficado queimados, e o médico de serviço arrancou um a um, com pinças, os cotos dos dedos enegrecidos e gangrenados. Repulsa, horror e piedade são emoções que o espetador já não podia realmente sentir. Pessoas em sofrimento, moribundos e mortos tornaram-se-lhe a tal ponto habituais após algumas semanas de vida no campo que já não conseguem comovê-lo.

Passei algum tempo numa cabana para pacientes com tifo, com febre tão elevada que muitos deles deliravam e muitos outros estavam moribundos. Depois de um deles morrer, olhei sem qualquer perturbação emocional a cena que se seguiu, repetida uma e outra vez a cada nova morte. Um a um, os prisioneiros aproximavam-se do corpo ainda quente. Um deles agarrava os restos de uma refeição de batatas; outro achava que os sapatos de madeira do cadáver eram melhores que os seus e trocava-os. Um terceiro, fazia o mesmo com o casaco do morto, e outro ficava feliz por poder apossar-se – imagine-se! – de um pedaço de cordel verdadeiro.

Assistia a tudo isto com indiferença. Por fim, pedi ao «enfermeiro» para retirar o cadáver. Quando se decidiu a fazê-lo, pegou nele pelas pernas, fazendo-o cair no estreito corredor entre as duas filas de pranchas que serviam de camas aos cerca de 50 pacientes com tifo, e arrastou-o até à porta pelo acidentado chão de terra batida. Os dois degraus que davam para o exterior constituíam sempre um problema para nós, pois estávamos exaustos devido a uma carência crónica de comida. Após escassos meses no campo, não conseguíamos subir esses degraus, cada um deles com cerca de 20 centímetros, sem pormos as mãos no umbral da porta para nos içarmos.

O homem com o cadáver aproximou-se dos degraus. Fatigado, arrastou-se por eles. Depois o corpo: primeiro os pés, a seguir o tronco e, por fim – com um perturbador e sonoro ruído – a cabeça do cadáver embateu nos degraus ao subir para o exterior.

O meu lugar era no lado oposto da cabana, junto da única pequena janela, construída junto ao chão. Enquanto as minhas mãos agarravam uma tigela de sopa quente que sorvia avidamente, olhei casualmente pela janela. O cadáver que tinha acabado de ser removido olhava para mim com olhos vítreos. Duas horas antes tinha falado com aquele homem. Agora, continuei a sorver a sopa.

Se a minha falta de emoção não me tivesse surpreendido de um ponto de vista de curiosidade profissional, não me lembraria agora deste incidente, por ter envolvido tão pouco sentimento.

A apatia, o embotar das emoções e o sentimento de que já não conseguíamos importar-nos com nada, eram os sintomas manifestados durante a segunda fase das reações psicológicas do prisioneiro, que acabavam por torná-lo insensível aos espancamentos que aconteciam todos os dias, a todas as horas. Graças a esta insensibilidade, o prisioneiro em breve conseguia rodear-se de uma muito necessária carapaça de proteção.

Os espancamentos aconteciam à menor provocação, por vezes sem razão alguma. Por exemplo, no nosso local de trabalho o pão era racionado e tínhamos de fazer fila para ir buscar a nossa parte. Uma vez, o homem atrás de mim alinhou um pouco para um lado e aquela falha de simetria desagradou ao guarda das SS. Não me apercebi do que se estava a passar atrás de mim, nem do que ia na mente do guarda, mas de súbito recebi duas pancadas fortes na cabeça. Só então me apercebi do guarda ao meu lado, que usava o bastão para me agredir. Num momento daqueles, não é a dor física que dói mais (e isto aplica-se tanto à punição de adultos como de crianças); é a agonia mental causada pela injustiça, é o absurdo de tudo aquilo.

Estranhamente, até mesmo um golpe que falha o alvo pode, em certas circunstâncias, ferir mais do que um que nos atinge. Recordo uma vez em que estava numa linha de comboio durante uma tempestade de neve. Apliquei-me na reparação da linha com gravilha, uma vez que essa era a única maneira de combater o frio. Parei uma única vez para recuperar o fôlego, encostado à pá. Desafortunadamente, o guarda voltou-se justamente nesse momento e pensou que estava a preguiçar. A dor que me causou não resultou de pancadas ou insultos. Aquele guarda considerou que nem valia a pena dizer alguma coisa, nem mesmo gritar um insulto, àquela figura andrajosa e emaciada, em pé diante dele, que provavelmente só de forma muito vaga lhe fazia lembrar um ser humano. Em vez disso, pegou numa pedra e atirou-ma com ar brincalhão. Aquilo pareceu-me uma maneira de atrair a atenção de uma besta, de levar um animal doméstico a voltar ao trabalho, uma criatura com a qual temos tão pouco em comum que nem nos incomodamos em puni-la.

A parte mais dolorosa de uma agressão é o insulto que implica. Certa vez, tivemos de transportar traves compridas e muito pesadas por carris gelados. Se um homem escorregava, punha-se em risco a si mesmo e a todos os outros que carregavam a trave. Um velho amigo meu tinha uma anca deslocada desde a nascença. Estava feliz por, apesar disso, conseguir trabalhar, pois os fisicamente incapazes eram quase de certeza enviados para a morte quando havia uma seleção. Coxeou por cima de um carril com uma trave especialmente pesada às costas e parecia na iminência de cair e arrastar os outros com ele. Nessa altura estava de mãos vazias e por isso precipitei-me em seu socorro sem parar para pensar. Fui de imediato golpeado nas costas, admoestado com rudeza e enviado de volta para o meu lugar. Alguns minutos antes, o mesmo guarda que me agrediu tinha-nos dito com desprezo que, «porcos» como éramos, não tínhamos espírito de camaradagem.

De outra vez, numa zona florestal, com uma temperatura de -17º C, começámos a cavar à superfície, que estava coberta por uma grossa camada de gelo, para colocar tubagens de água. Nessa altura já me encontrava muito enfraquecido fisicamente. Aproximou-se de mim um capataz com faces rechonchudas e rosadas. O rosto fazia mesmo lembrar uma cabeça de porco. Reparei que usava umas belas luvas quentes contra o frio penetrante. Por momentos, olhou-me em silêncio. Senti que havia sarilhos no horizonte, pois diante de mim estava o monte de terra que mostrava exatamente quanto tinha escavado.

Começou, então, a falar: «Seu porco, estive a ver-te o tempo todo! Ainda hei de ensinar-te a trabalhar! Espera até cavares excrementos com os dentes – vais morrer como um animal! Acabo contigo em dois dias! Nunca na vida soubeste o que é trabalhar. O que é que tu eras, porco? Um homem de negócios?».

Já tinha deixado de me importar. Mas tinha de levar a sério a ameaça de morte, por isso endireitei-me e olhei-o diretamente nos olhos. «Era médico – um especialista.»

«O quê? Médico? Aposto que sacaste muito dinheiro às pessoas.»

«Na verdade, fazia a maior parte do trabalho de borla, em clínicas para os pobres.» Nessa altura já tinha falado demasiado. Atirou-se a mim e derrubou-me com um murro, gritando como um louco. Já não consigo recordar o que disse.

Com esta história aparentemente trivial quero mostrar que há momentos em que a indignação pode despertar até mesmo um prisioneiro aparentemente endurecido – uma indignação causada não pela crueldade ou pela dor, mas pelo insulto ligado a elas. Naquele momento, o sangue subiu-me à cabeça por ter de ouvir avaliações sobre a minha vida da parte de um homem que sabia tão pouco dela, um homem (devo confessar uma coisa: a observação que se segue, feita aos outros presos depois desta cena, proporcionou-me um alívio infantil) «com uma aparência tão banal e brutal que a enfermeira da ala de pacientes externos do meu hospital nem sequer o teria deixado entrar na sala de espera».

Felizmente, o capo do meu grupo de trabalho estava em dívida para comigo; tinha-me ganhado afeição porque eu escutava as suas histórias de amor e problemas conjugais, que contava durante as longas caminhadas para o nosso local de trabalho. Tinha-o impressionado com o diagnóstico que fiz do seu caráter e com o meu aconselhamento psicoterapêutico. Daí em diante ficou-me grato e isso já me tinha sido útil. Por várias vezes tinha reservado lugar para mim junto a ele nas primeiras cinco filas do nosso destacamento, que habitualmente era integrado por 280 homens. Esse favor era importante. Tínhamos de formar de manhã bem cedo, antes de alvorecer. Todos tínhamos medo de chegar atrasados e ter de ficar nas filas de trás. Se fossem necessários homens para fazer algum trabalho desagradável, de que ninguém gostava, o capo principal era chamado e geralmente escolhia os homens de que precisava das últimas filas. Esses homens tinham de marchar para outro local, onde eram forçados a fazer um tipo de trabalho especialmente temido, sob o comando de guardas desconhecidos. O capo principal escolhia ocasionalmente homens das primeiras cinco filas, só para apanhar os que se queriam armar em espertos. Todos os protestos e súplicas eram silenciados por uns quantos pontapés bem direcionados, e as vítimas escolhidas eram empurradas para o local indicado com gritos e agressões.

No entanto, desde que o meu capo sentisse necessidade de abrir o coração, não corria o risco de isso me acontecer. Tinha um lugar de honra garantido ao seu lado. Mas havia ainda outra vantagem. Como quase todos os outros presos do campo, eu sofria de edema. Tinha as pernas tão inchadas e com a pele tão esticada que quase não conseguia dobrar os joelhos. Tinha de deixar os atacadores desapertados, de maneira a conseguir meter os pés inchados nos sapatos. Ainda que tivesse meias, não as conseguiria calçar. Por isso, os meus pés meio descalços estavam permanentemente molhados e os sapatos sempre cheios de neve. Isto causava, é claro, queimaduras e frieiras. Cada passo era uma verdadeira tortura. Cristais de gelo formavam-se nos nossos sapatos durante as marchas por campos cobertos de neve. Uma e outra vez alguns de nós escorregavam e os que iam atrás tropeçavam e caíam em cima deles. A coluna parava então, mas só por breves instantes. Um dos guardas aproximava-se e agredia os homens caídos com a coronha da espingarda para os fazer pôr de pé rapidamente. Quanto mais perto da frente estivéssemos, menos frequente era sermos incomodados com paragens que depois nos obrigavam a compensar o tempo perdido com uma corrida que magoava os pés doridos. Sentia-me muito feliz por ser o médico pessoalmente designado de Sua Excelência o capo, e por caminhar na primeira fila em passo regular.

Como pagamento adicional pelos meus serviços, podia estar seguro de ser alvo de uma atenção especial sempre que era distribuída sopa ao almoço no nosso local de trabalho. Quando chegava a minha vez, ele metia a concha da sopa até ao fundo da panela e apanhava algumas ervilhas. Este capo, um antigo oficial do exército, teve até a coragem de segredar ao capataz, com quem tive uma altercação, que me conhecia e sabia que eu era um trabalhador especialmente empenhado. Isso não resolveu o assunto, mas ainda assim ele conseguiu salvar-me a vida (uma de muitas vezes em que precisei de ser salvo). No dia a seguir a esse episódio com o capataz, ele meteu-me disfarçadamente noutro grupo de trabalho.

Havia capatazes que tinham pena de nós e faziam o possível para nos facilitar as coisas, pelo menos no local das obras. Nem eles paravam de nos lembrar que um trabalhador vulgar fazia várias vezes mais trabalho do que nós e em menos tempo. Mas davam-nos razão quando lhes dizíamos que um trabalhador normal não vivia de cem gramas de pão (em teoria, pois na prática comíamos menos) e cerca de meio litro de sopa por dia; que um trabalhador normal não vivia sob o stress a que éramos submetidos, sem sabermos notícias das nossas famílias, que tinham sido enviadas para outros campos e gaseadas de imediato; que um trabalhador normal não estava continuamente sob ameaça de morte, em cada hora de cada dia. Uma vez cheguei mesmo a dizer a um capataz: «Se você pudesse aprender comigo a fazer uma operação ao cérebro em tão curto período de tempo como aquele que eu tive para aprender este trabalho de construção consigo, teria todo o meu respeito». E ele fez um esgar trocista.

A apatia, principal sintoma da segunda fase, era um mecanismo de autodefesa necessário. A realidade empalidecia e todos os esforços e emoções ficavam centrados numa só tarefa: preservar a nossa vida e a dos nossos companheiros mais chegados. Quando os prisioneiros eram agrupados ao fim da tarde nos locais de trabalho para serem levados de volta ao campo, era habitual ouvi-los suspirar e dizer: «Bom, já lá vai mais um dia».

Pode perceber-se facilmente que um tal estado de tensão, a par da necessidade constante de concentração na missão de continuar vivo, forçava a vida interior dos prisioneiros a descer a um nível primitivo. Vários dos meus companheiros de campo com treino em psicanálise falavam muitas vezes de «regressão» a propósito dos presos – de um recuo a uma forma mais primitiva de vida mental. Os seus desejos e aspirações ficavam bem patentes nos sonhos que tinham.

Com o que é que os presos sonhavam com maior frequência? Com pão, bolos, cigarros e belos banhos quentes. A falta de satisfação destes desejos simples levava à procura de uma satisfação derivada em sonhos. Se estes sonhos traziam algum alívio é já outra questão; o sonhador tinha de acordar deles para a realidade da vida no campo e para o terrível contraste entre isso e as ilusões do seu sonho.

Nunca esquecerei como fui acordado uma noite pelos gemidos de um companheiro, que se levantou durante o sono, claramente a meio de um pesadelo. Uma vez que sempre senti uma pena particular das pessoas vítimas de sonhos ou delírios assustadores, queria acordar o pobre homem. De súbito, afastei a mão que estava à beira de o sacudir, assustado com o que ia fazer. Nesse momento apercebi-me, com dolorosa agudeza, do facto de que nenhum sonho, por mais horrível que fosse, podia ser tão mau como a realidade do campo que nos cercava e para a qual me preparava para o despertar.

Devido ao elevado nível de subnutrição a que os presos eram submetidos, era natural que o desejo de comida fosse o principal instinto primitivo em torno do qual a vida mental girava. Vejamos como agiam a maioria dos presos quando trabalhavam lado a lado e, por momentos, não estavam a ser vigiados. Começavam imediatamente a falar de comida. Um preso perguntava a outro que trabalhava junto dele na vala quais eram os seus pratos preferidos. De seguida, trocavam receitas e planeavam o menu para o dia em que fizessem uma reunião – o dia, num futuro distante, em que fossem libertados e regressassem a casa. Continuavam a falar daquilo até à exaustão, delineando tudo em pormenor, até subitamente um alerta passar de boca em boca pela fila no fosso, geralmente sob a forma de uma palavra ou número especial: «O guarda está a chegar».

Considerei sempre perigosas as conversas sobre comida. Não será errado provocar o organismo com descrições tão detalhadas de coisas boas quando ele conseguiu de alguma forma adaptar-se a rações extremamente pequenas e a baixas calorias? Embora possa conceder um momentâneo alívio psicológico, é uma ilusão que seguramente não deixará de ter os seus riscos fisiológicos.

Durante a parte final da nossa clausura, a ração diária consistia de uma sopa muito aguada distribuída uma vez por dia e da pequena ração de pão habitual. Para além disso havia a chamada «pensão extra», que consistia, consoante os dias, em cerca de dez gramas de margarina, ou uma fatia de salsicha de má qualidade, ou um pedaço de queijo, ou um pedaço de mel sintético, ou uma colher de doce aguado. Em calorias, esta dieta era absolutamente errada, especialmente tendo em consideração o nosso trabalho manual muito duro e a nossa permanente exposição ao frio em roupas inadequadas. Os doentes que estavam «sob cuidados especiais» – isto é, aqueles aos quais era permitido ficarem deitados nos barracões em vez de deixarem o campo para trabalhar – passavam ainda pior.

Quando as últimas camadas de gordura subcutânea desapareciam, deixando-nos com a aparência de esqueletos cobertos de pele e farrapos, podíamos ver os nossos corpos começarem a devorar-se a si próprios. O organismo digeria as suas próprias proteínas e os músculos desapareciam. O corpo ficava então sem qualquer capacidade de resistência. Um a seguir a outro, os membros da pequena comunidade do nosso barracão morreram. Cada um de nós conseguia calcular com bastante exatidão quem seria a seguir e quando chegaria a sua própria vez. Após muitas observações, conhecíamos bem os sintomas, o que tornava a correção dos nossos prognósticos bastante segura. «Não vamos durar muito», segredávamos uns aos outros, e quando, ao fim do dia, durante a pesquisa diária de piolhos, víamos os nossos próprios corpos nus, pensávamos a mesma coisa: Este corpo aqui, o meu corpo, já é na verdade um cadáver. Em que é que me transformei? Não passo de uma pequena porção de uma grande massa de carne humana, uma massa atrás de arame farpado, atulhada numas poucas barracas com chão de terra; uma massa da qual diariamente uma parte começa a apodrecer porque já não está viva.

Referi há pouco a inevitabilidade dos pensamentos sobre comida e sobre os pratos favoritos, que se insinuavam na consciência dos prisioneiros sempre que tinham um momento disponível. Talvez possa, pois, compreender-se sem dificuldade que até os mais fortes de entre nós ansiassem pela hora em que poderiam comer outra vez boa comida, não pela comida em si mesma, mas porque isso significaria que a existência sub-humana, que nos tornava incapazes de pensar noutra coisa a não ser comida, teria por fim terminado.

Aqueles que não passaram por uma experiência como esta dificilmente podem conceber o conflito destruidor da alma e as contradições da vontade vividas por um homem faminto. Dificilmente podem entender o que significa estar a escavar numa vala, unicamente à espera de ouvir a sirene anunciar as 9h30 ou 10h30 da manhã – momento da meia hora de intervalo do almoço – quando era distribuída a ração de pão (se ainda houvesse); e a perguntar repetidamente ao capataz – caso não fosse um tipo desagradável – que horas eram; e a afagar delicadamente um pedaço de pão metido no bolso do casaco, tocando-o primeiro com as pontas dos dedos gelados e sem luvas, partindo depois uma migalha e colocando-a na boca e, por fim, com a última réstia de força de vontade, metendo-o outra vez no bolso, pois prometêramos a nós mesmos nessa manhã resistir à tentação até ao fim da tarde.

Éramos capazes de manter debates sem fim sobre o sentido ou o absurdo de certos métodos para lidar com a pequena ração de pão, que na fase final da nossa clausura era distribuída somente uma vez por dia. Havia duas escolas de pensamento. Uma delas era a favor de comer a ração de imediato. Isto tinha a dupla vantagem de satisfazer as piores agonias da fome durante um breve período, pelo menos uma vez por dia, e de nos salvaguardar contra o possível roubo ou perda da ração. O segundo grupo, que defendia a divisão da ração, usava argumentos diversos. Acabei por me juntar a ele.

O momento mais horrível das 24 horas da vida no campo era o despertar, quando, a uma hora ainda noturna, os três silvos agudos de um apito nos arrancavam sem misericórdia do nosso sono exausto e dos anseios ardentes dos nossos sonhos. Começávamos então a luta com os sapatos molhados, nos quais tínhamos dificuldade em meter os pés, de tão inflamados e inchados que estavam com o edema. E havia os queixumes e gemidos do costume por causa de questões mesquinhas, como quando se partiam os arames usados para substituir os atacadores. Certa manhã ouvi alguém, que conhecia como sendo corajoso e digno, chorar como uma criança porque ia ter de ir descalço para os campos cobertos de neve, pois os seus sapatos tinham encolhido demasiado para lhe servirem. Nesses minutos horríveis encontrei um pouco de conforto; um pequeno pedaço de pão que retirei do bolso e mastiguei com um prazer absorto.

A subnutrição, além de ser a causa da preocupação generalizada com a comida, provavelmente também explica o facto de o impulso sexual estar em geral ausente. Aparte os efeitos iniciais do choque, parece ser esta a única explicação para um fenómeno que um psicólogo não podia deixar de observar naqueles campos totalmente masculinos: que, ao contrário de todas as outras instituições inteiramente masculinas – caso das casernas militares – havia muito poucas perversões sexuais. Até mesmo nos sonhos o preso não parecia interessar-se por sexo, apesar de as suas emoções frustradas e os seus sentimentos mais refinados e elevados se exprimirem claramente neles.

Com a maior parte dos prisioneiros, a vida primitiva e o esforço de terem de se concentrar somente em salvar a pele conduzia a uma total falta de atenção por tudo o que não servisse esse propósito, e explica a sua completa falta de sentimentos. Isto tornou-se claro para mim quando fui transferido de Auschwitz para um campo afiliado com Dachau. O comboio que nos transportava – cerca de dois mil prisioneiros – passou por Viena. Por volta da meia-noite, passámos por uma das estações vienenses. A linha ia levar-nos até junto da rua onde eu tinha nascido, ia passar, de facto, pela casa onde tinha vivido grande parte da minha vida antes de ser preso.

Íamos cinquenta na carruagem prisional, que tinha dois postigos gradeados. O espaço dava unicamente para um grupo se agachar no chão, enquanto os restantes, que tinham de ficar de pé durante horas, se amontoavam junto das janelas. Empoleirado nas pontas dos pés e olhando pelas barras da janela por cima das cabeças dos outros, consegui apanhar um vislumbre estranho e fugidio da minha cidade natal. Todos nos sentíamos mais mortos que vivos, pois estávamos convencidos de que o comboio se dirigia para o campo de Mauthausen e que tínhamos apenas uma ou duas semanas de vida. Tive a clara impressão de ter visto as ruas, as praças e as casas da minha infância com os olhos de um morto que tinha regressado de outro mundo e olhava para uma cidade fantasma.

Com muitas horas de atraso, o comboio deixou a estação. E ali estava a rua – a minha rua! Os rapazes que tinham deixado para trás vários anos de vida no campo, e para os quais uma viagem daquelas era um grande acontecimento, olhavam atentamente pelo postigo. Comecei a implorar-lhes, a suplicar-lhes, que me deixassem ir para a frente só por um momento. Tentei explicar-lhes quanto uma simples espreitadela lá para fora significava para mim. O meu pedido foi recusado de forma rude e cínica: «Viveste aqui todos esses anos? Bem, então já viste bastante!»

Em geral existia igualmente no campo uma «hibernação cultural». Havia só duas exceções: a política e a religião. A política era debatida em todas as partes do campo, quase continuamente; as discussões eram essencialmente baseadas em rumores, que eram segredados e transmitidos com avidez. Os rumores sobre a situação militar eram habitualmente contraditórios. Sucediam-se uns aos outros com rapidez e só conseguiam contribuir para a guerra de nervos travada no espírito de todos os presos. As esperanças num fim rápido da guerra, alimentadas por rumores otimistas, foram muitas vezes malogradas. Alguns homens perderam toda a esperança, mas os companheiros mais irritantes eram os otimistas incorrigíveis.

O interesse religioso dos presos, quando surgia e na medida em que surgia, era o mais sincero possível. A profundidade e o vigor da crença religiosa surpreendia e comovia com frequência os recém-chegados. O mais impressionante, neste aspeto, eram as orações e os serviços religiosos improvisados no canto de um barracão, ou na escuridão do camião do gado no qual ficávamos encerrados depois de sermos trazidos de um local de trabalho distante, cansados, famintos e gelados nas nossas roupas esfarrapadas.

No inverno e na primavera de 1945 houve um surto de tifo que infetou quase todos os prisioneiros. A mortalidade foi enorme entre os mais fracos, que tinham de continuar a fazer o trabalho duro até ao limite das suas forças. A ala para os doentes era totalmente inadequada, não havia praticamente medicamentos nem assistentes. Alguns dos sintomas da doença eram extremamente desagradáveis: uma aversão irreprimível ao mais pequeno pedaço de comida (o que representava um perigo adicional para a vida dos doentes) e ataques terríveis de delírio. O pior caso de delírio aconteceu a um amigo meu que pensava estar a morrer e queria rezar. No seu delírio, não conseguia encontrar as palavras para o fazer. Para evitar este tipo de delírios, eu tentava, como o fizeram muitos outros, permanecer acordado a maior parte da noite. Durante horas, escrevia discursos em pensamento. Por fim, comecei a reconstruir o manuscrito que tinha perdido na câmara de desinfeção de Auschwitz e rabisquei as palavras-chave em caracteres estenográficos nuns restos de papel.

Ocasionalmente havia debates científicos no campo. Testemunhei uma vez algo que nunca tinha visto, nem mesmo na minha vida normal, embora se trate de algo de certa maneira próximo dos meus interesses profissionais: uma sessão de espiritismo. Tinha sido convidado a assistir pelo médico principal do campo (também ele prisioneiro), pois sabia que eu era especialista em psiquiatria. O encontro teve lugar na sua pequena sala privada, na ala dos doentes. Tinha-se juntado um pequeno círculo de pessoas, entre elas, de forma totalmente ilegal, o oficial de diligências do esquadrão sanitário.

Um homem começou a invocar os espíritos com uma espécie de oração. O amanuense do campo estava sentado diante de uma folha de papel em branco, sem qualquer intenção consciente de escrever. Durante os dez minutos que se seguiram (após os quais a sessão terminou por causa do fracasso do médium em invocar os espíritos) o seu lápis desenhou lentamente algumas linhas no papel, formando um bem legível «VAE V». Disse-se que o amanuense nunca tinha estudado latim e que nunca antes ouvira as palavras «vae victis» – ai dos vencidos! Em minha opinião ele deve tê-las ouvido pelo menos uma vez, sem se recordar, e deviam estar naquela altura presentes no seu «espírito» (o espírito da sua mente subconsciente), a escassos meses da nossa libertação e do fim da guerra.

Apesar do primitivismo físico e mental forçado da vida num campo de concentração, havia espaço para o aprofundamento da vida espiritual. As pessoas sensíveis e habituadas a uma vida intelectual rica podem ter sofrido muito (tinham com frequência uma constituição delicada), mas os danos sofridos pelo seu eu interior foram menores. Eram capazes de se retirar do terrível meio envolvente para uma vida interior de riqueza e liberdade espiritual. Só assim podemos explicar o paradoxo aparente de alguns presos com um temperamento menos endurecido parecerem com frequência sobreviver melhor à vida no campo do que os de natureza robusta. De maneira a ser mais claro, sou forçado a regressar à minha experiência pessoal. Deixem-me contar o que acontecia naquelas madrugadas em que tínhamos de marchar até ao local onde íamos trabalhar.

As ordens eram gritadas: «Destacamento, em frente, marche! Esquerda-2-3-4! Esquerda-2-3-4! Esquerda-2-3-4! Esquerda-2-3-4! Primeiro homem, esquerda, volver! E esquerda, esquerda, esquerda! Tirar gorros!» Estas palavras continuam a soar nos meus ouvidos ainda hoje. À ordem de «tirar gorros!» passávamos os portões do campo e as luzes de vigilância eram dirigidas para nós. Quem não marchasse em passo vivo levava um pontapé. Mas o pior tratamento era para aqueles que, por causa do frio, voltavam a enterrar o barrete na cabeça antes de ser dada ordem para o fazerem.

Aos tropeções na escuridão, dando pontapés em pedras e metendo os pés em grandes poças de água, avançávamos pela estrada que saía do campo. Os guardas que nos escoltavam continuavam a gritar connosco e a guiar-nos com as coronhas das espingardas. Aqueles que tinham os pés mais inflamados apoiavam-se no braço dos colegas do lado. Quase não se ouvia uma palavra; o vento gelado não encorajava a conversa. Escondendo a boca com a gola levantada do casaco, o homem que marchava ao meu lado sussurrou-me de súbito: «Se as nossas mulheres nos pudessem ver agora! Espero bem que estejam melhor nos campos delas e não saibam o que nos está a acontecer».

Aquilo trouxe-me à memória lembranças da minha mulher. E à medida que fomos avançando aos tropeções durante quilómetros, a escorregar em pedaços de chão gelado, apoiando-nos uns aos outros vezes sem conta, arrastando-nos uns aos outros para prosseguir, nada mais dissemos, mas ambos sabíamos: cada um de nós estava a pensar na sua mulher. Ocasionalmente olhava para o céu, onde as estrelas se apagavam e a luz rosada da manhã começava a espalhar-se por detrás de um negro amontoado de nuvens. Mas o meu espírito mantinha-se preso à imagem da minha mulher, desenhando-a na imaginação com uma perturbadora agudeza. Ouvia-a a responder-me, via o seu sorriso, o seu olhar franco e encorajador. Real ou não, esse olhar era naquele momento mais luminoso do que o Sol que começava a nascer.

Um pensamento trespassou-me: pela primeira vez na vida podia ver a verdade tal como transposta em música por tantos poetas, tal como proclamada como derradeira sabedoria por tantos pensadores. A verdade – o amor é o supremo e mais elevado objetivo a que o Homem pode aspirar. Vislumbrei então o significado do maior segredo que a poesia, o pensamento e as crenças dos seres humanos podem comunicar: A salvação dos homens consegue-se no amor e pelo amor. Compreendi como pode um homem a quem nada resta no mundo conhecer ainda assim a felicidade, mesmo que por breves instantes, na contemplação do ser amado. Numa situação de completa desolação, quando não pode exprimir-se em ações positivas, quando o seu único triunfo pode consistir em resistir aos sofrimentos da melhor maneira – de uma maneira honrada – numa tal situação, o homem pode alcançar a plenitude por meio da contemplação amorosa da imagem que recorda do ser amado. Pela primeira vez na vida pude compreender o significado das palavras: «Os anjos estão perdidos na contemplação perpétua da infinita glória».

Um homem tropeçou um pouco à minha frente e os que o seguiam caíram por cima dele. O guarda acorreu e usou o chicote em todos eles. Os meus pensamentos foram por isso interrompidos por breves minutos. Mas a minha alma rapidamente voltou a encontrar a saída da existência de prisioneiro para outro mundo, e retomei a conversa com a minha amada: fiz-lhe perguntas e ela respondeu; questionou-me por sua vez e eu respondi.

«Parem!» Tínhamos chegado ao local das obras. Todos correram para a cabana na esperança de apanhar uma ferramenta mais ou menos decente. Cada prisioneiro tinha uma pá ou uma picareta.

«Não podem andar mais depressa, seus porcos?» Ocupámos rapidamente as posições do dia anterior na vala. O chão gelado estalava sob a ponta das picaretas e fazia saltar chispas. Os homens estavam calados, com os cérebros entorpecidos.

O meu espírito continuava agarrado à imagem da minha mulher. Um pensamento atravessou-me o espírito: nem sequer sabia se ela ainda estava viva. Só sabia uma coisa – que nessa altura já tinha aprendido bem: o amor vai muito para além da pessoa física do ser amado. Encontra o significado mais profundo no seu ser espiritual, no seu eu interior. Se está ou não presente, se está ou não ainda vivo, deixa até certo ponto de ser importante.

Não sabia se a minha mulher estava viva e não tinha maneira de descobrir (durante toda a minha vida na prisão não houve correio a sair ou a entrar); mas naquele momento isso deixou de importar. Não tinha necessidade de saber; nada podia perturbar a força do meu amor, os meus pensamentos e a imagem da minha amada. Se nessa altura tivesse sabido que a minha mulher estava morta, penso que ainda assim me teria entregado, sem me deixar perturbar por esse conhecimento, à contemplação da sua imagem, e que a minha conversa mental com ela teria sido igualmente vívida e satisfatória. «Grava-me como selo no teu coração, porque forte como a morte é o amor».3

Esta intensificação da vida interior ajudava o prisioneiro a encontrar um refúgio do vazio, desolação e pobreza espiritual da sua existência, deixando-o escapar para o passado. Quando entregue a si mesma, a imaginação brincava com os acontecimentos do passado, lançando mão, com frequência, não dos mais importantes, mas das pequenas coisas sem importância. A sua memória nostálgica glorificava-os e eles assumiam um caráter estranho. O seu mundo e existência pareciam muito distantes e o espírito tentava ardentemente apossar-se deles: em imaginação fiz viagens de autocarro, abri a porta do meu apartamento, falei ao telefone, liguei as luzes de casa. Os nossos pensamentos centravam-se com frequência nesses pormenores e estas recordações podiam levar-nos às lágrimas.

Como a vida interior do preso tendia a tornar-se mais intensa, ele experimentava igualmente a beleza da arte e da natureza como nunca fizera antes. Sob esta influência conseguia mesmo por vezes esquecer as circunstâncias aterradoras em que se encontrava. Se alguém tivesse visto as nossas caras durante a viagem de Auschwitz para um campo de concentração na Baviera, quando avistámos, pelas pequenas janelas gradeadas da carruagem, as montanhas de Salzburgo com os cumes a cintilar ao pôr-do-sol, nunca teria acreditado que essas eram as caras de homens que tinham abandonado toda a esperança de viver e conhecer de novo a liberdade. Apesar disso – ou talvez por causa disso – ficávamos deslumbrados com a beleza da natureza, de que tanto sentíamos a falta.

Também no campo, um preso podia chamar a atenção de um camarada que trabalhava ao seu lado para a uma bela vista do pôr-do-sol a brilhar por entre as altas árvores das florestas da Baviera (como na famosa aguarela de Dürer), as mesmas florestas nas quais tínhamos construído, escondida, uma enorme fábrica de munições. Uma noite, quando estávamos já a repousar no chão da nossa caserna, mortos de cansaço, com tigelas de sopa na mão, um companheiro entrou a correr e disse-nos para irmos até ao local das formaturas para vermos o pôr-do-sol maravilhoso. No exterior, vimos nuvens sinistras a resplandecer a ocidente e todo o céu animado por conjuntos de nuvens em constante mudança de formas e cores, desde o azul do aço ao vermelho sangue. As casernas desoladas e pardas, cor de lama, faziam com isto um acentuado contraste, quando as poças de água no chão enlameado refletiam o resplendor do céu. Depois, após minutos de comovido silêncio, um preso disse a outro: «Como o mundo podia ser bonito!».

De outra vez estávamos a trabalhar numa vala. A madrugada à nossa volta era cinzenta; como era cinzento o céu; e cinzenta a neve à luz pálida do amanhecer; cinzentos os andrajos que vestiam os meus companheiros, e cinzentos os seus rostos. Estava outra vez a conversar em silêncio com a minha mulher, ou estava, talvez, a lutar para perceber a razão do meu sofrimento, da minha morte lenta. Num derradeiro e violento protesto contra o desânimo da morte iminente, senti o meu espírito penetrar as trevas em redor. Senti como transcendia aquele mundo de desespero sem sentido e, vindo não sei bem de onde, escutei um vitorioso «Sim» em resposta à minha pergunta sobre a existência de um sentido último. Nesse momento, numa quinta distante, uma luz acendeu-se e permaneceu no horizonte como se tivesse sido pintada nele, no meio do cinzento miserável de um alvorecer na Baviera. «Et lux in tenebris lucet» – e a luz brilhou nas trevas. Estive durante horas a tentar escavar o chão gelado. O guarda passou, insultando-me, e uma vez mais comunguei com a minha amada. Sentia a sua presença com cada vez maior intensidade, sentia que estava comigo; tinha a sensação de poder tocá-la, de poder esticar a minha mão para pegar na dela. Esse sentimento era muito forte: ela estava ali. Então, nesse preciso momento, um pássaro voou em silêncio e veio pousar mesmo à minha frente, num monte de terra que tinha escavado da vala, e ficou a olhar fixamente para mim.

Referi há pouco a arte. Haverá tal coisa num campo de concentração? Isso depende muito daquilo a que decidimos chamar arte. De tempos a tempos era improvisado uma espécie de cabaré. Uma barraca era esvaziada provisoriamente, uns quantos bancos de madeira eram arrastados ou pregados uns aos outros e era delineado um programa. À noite, aqueles que tinham posições bastantes boas no campo – os capos e os trabalhadores que não tinham de deixar o campo para fazer longas marchas – juntavam-se aí. Vinham para dar umas quantas gargalhadas ou talvez para chorar um pouco; fosse como fosse, vinham para esquecer. Havia canções, poemas, anedotas, algumas delas com uma sátira subjacente à vida no campo. Tudo isso visava ajudar-nos a esquecer, e na verdade ajudava mesmo. Essas reuniões eram tão eficazes que alguns prisioneiros vulgares iam ver o cabaré apesar da fadiga e ainda que ficassem, por causa disso, sem a porção de comida diária.

Durante a meia hora de intervalo para almoço, quando no local onde trabalhávamos se fazia a distribuição da sopa (que as empresas contratantes pagavam e com a qual não gastavam grande coisa), tínhamos permissão para nos juntarmos numa sala de máquinas inacabada. Ao entrar, todos recebiam uma concha cheia de sopa aguada. Enquanto a sorvíamos avidamente, um prisioneiro trepava para um tonel e cantava árias italianas. Nós apreciávamos as canções e ele recebia uma dose dupla de sopa, tirada «bem do fundo» – isso significava, com ervilhas!

No campo eram dadas recompensas, não só por atuar nas sessões de entretenimento, como também pelos aplausos. Eu, por exemplo, podia ter contado com a proteção (que felizardo por nunca ter necessitado!) do mais temido capo do campo de concentração, que era conhecido, por mais de uma razão pertinente, como «O Capo Assassino». Aconteceu assim. Uma tarde, tive a grande honra de ser convidado mais uma vez para a sala onde se realizou a sessão de espiritismo. Estavam aí reunidos os mesmos amigos íntimos do médico principal e, da forma mais ilegal possível, estava também presente de novo o oficial do esquadrão sanitário. O Capo Assassino entrou na sala por acaso e pediram-lhe para recitar um dos seus poemas, que se tinha tornado famoso (pelas piores razões) no campo. Não precisou de ser instado duas vezes e tirou rapidamente do bolso uma espécie de diário do qual começou a ler algumas amostras da sua arte. Mordi os lábios até doerem para evitar rir quando leu um dos seus poemas de amor e isso, muito provavelmente, salvou-me a vida. Uma vez que fui também generoso nos aplausos, a minha vida poderia até mesmo ter sido salva se tivesse sido destacado para o seu grupo de trabalho, no qual tinha estado por um só dia – e foi o bastante para mim. Era vantajoso, em todo caso, ser conhecido do Capo Assassino de um ponto de vista favorável. Por isso aplaudi com toda a energia possível.

É claro que, de uma maneira geral, qualquer empreendimento artístico no campo era algo grotesco. Diria mesmo que o verdadeiro impacto produzido por qualquer coisa relacionada com arte só era conseguido devido ao contraste fantasmagórico entre a atuação e o pano de fundo desolado da vida no campo. Nunca esquecerei como na minha segunda noite em Auschwitz acordei de um sono profundo e exausto – despertado por música. O guarda principal da caserna estava a fazer uma espécie de festa no quarto, que ficava muito perto da entrada. Vozes ébrias gritavam umas canções banais. De súbito, houve um silêncio e um violino cantou para a noite um tango desesperadamente triste, um tema invulgar, não estragado ainda por ser tocado com frequência. O violino chorava e uma parte de mim chorou com ele, pois naquele mesmo dia alguém tinha feito 24 anos. Esse alguém estava noutra parte do campo de Auschwitz, possivelmente a umas escassas centenas de metros e, no entanto, completamente fora do meu alcance. Esse alguém era a minha mulher.

Descobrir que podia haver qualquer coisa parecida com arte num campo de concentração deve ser, por si só, bastante surpreendente para alguém de fora, mas a pessoa que não conheceu os campos ficará ainda mais espantada ao saber que também havia sentido de humor; é claro, apenas vestígios de humor e só durante escassos minutos ou segundos. O humor era outra das armas da alma na luta pela autopreservação. É sobejamente sabido que o humor, mais do qualquer outra coisa na caracterização humana, pode conceder-nos um distanciamento e uma capacidade para nos elevarmos acima das situações, ainda que só por alguns segundos. De forma prática, treinei um amigo, que trabalhava junto a mim numa área de obras, a desenvolver o sentido de humor. Sugeri-lhe que prometêssemos um ao outro inventarmos pelo menos uma anedota por dia, sobre um qualquer incidente que poderia acontecer após a nossa libertação. Ele era cirurgião e tinha sido assistente no quadro de pessoal de um hospital importante. Por isso, tentei uma vez fazê-lo sorrir ao descrever como seria incapaz de perder os hábitos da vida no campo quando regressasse ao seu antigo trabalho. No local das obras (especialmente quando o supervisor fazia o passeio de inspeção), o capataz encorajava-nos a trabalhar mais depressa, gritando: «Ação! Ação!». Eu disse ao meu amigo: «Um dia, de regresso à sala de operações, vais fazer uma grande operação abdominal. De súbito, um subalterno entra na sala e anuncia a chegada do cirurgião principal com gritos de “Ação! Ação!”.»

Por vezes, os outros homens inventavam sonhos divertidos sobre o futuro, como prever que durante um futuro jantar de cerimónia podiam esquecer-se de onde estavam e, quando a sopa fosse servida, pedir à anfitriã para tirar «bem do fundo».

A tentativa de desenvolver um sentido de humor e de ver as coisas a uma luz engraçada é uma espécie de truque aprendido durante o processo de aprendizagem da arte de viver. Contudo, é possível praticar a arte de viver até mesmo num campo de concentração, embora o sofrimento esteja omnipresente. Para fazer uma analogia: o sofrimento de um homem é semelhante ao comportamento do gás. Se uma determinada quantidade de gás for bombeada para dentro de uma câmara vazia, enche esse espaço por completo e de forma regular, por maior que a câmara seja. Assim, também o sofrimento enche completamente a alma humana e a mente consciente, pouco importando se o sofrimento é pequeno ou grande. Portanto, o «tamanho» do sofrimento humano é absolutamente relativo.

Segue-se daí, igualmente, que uma coisa insignificante pode causar a maior das alegrias. Tomemos como exemplo algo que aconteceu durante a nossa viagem de Auschwitz para o campo afiliado com Dachau. Estávamos todos com medo que o nosso transporte fosse para o campo de Mauthausen. Ficámos ainda mais tensos quando nos aproximámos de uma ponte sobre o Danúbio que o comboio tinha de atravessar para chegar a Mauthausen, segundo diziam companheiros mais experientes. Aqueles que nunca viram nada parecido com isto não podem imaginar a dança de alegria que os presos fizeram na carruagem quando viram que o nosso transporte não ia atravessar a ponte e ia «apenas» para Dachau.

E, também, o que aconteceu à nossa chegada ao campo, após uma viagem que durou dois dias e três noites? Não havia espaço suficiente na carruagem para todos se agacharem no chão ao mesmo tempo. A maior parte de nós era forçada a ficar de pé durante todo o dia, enquanto uns poucos faziam turnos a acocorar-se na palha dispersa que estava cheia de urina humana. Quando chegámos, a primeira notícia importante que ouvimos de prisioneiros mais antigos foi que este campo relativamente pequeno (a sua população era de 2.500 presos) não tinha «forno», nem crematório, nem gás! Isso significava que uma pessoa que se tivesse tornado um «muçulmano» não podia ser levada diretamente para a câmara de gás e teria de esperar que um chamado «comboio de doentes» fosse organizado para regressar a Auschwitz. Esta alegre surpresa deixou-nos a todos de bom humor. O desejo do guarda principal do nosso bloco em Auschwitz tinha-se realizado: tínhamos vindo, tão depressa quanto possível, para um campo que, ao contrário de Auschwitz, não tinha «chaminé». Rimos e contámos piadas apesar de tudo quanto tivemos de suportar nas horas que se seguiram.

Quando nós, os recém-chegados, fomos contados, faltava um. Por isso tivemos de esperar lá fora, com chuva e vento frio, até ser encontrado o homem em falta. Acabou por ser descoberto numa caserna, onde tinha adormecido de exaustão. A chamada tornou-se então uma parada de punição. Durante toda a noite e até bem tarde na manhã seguinte, tivemos de ficar de pé na rua, gelados e ensopados até aos ossos, após a tensão da longa viagem. E, no entanto, estávamos todos muito satisfeitos! Neste campo não havia chaminé e Auschwitz estava muito longe.

De outra vez, vimos um grupo de presidiários passar pelo local onde trabalhávamos. Quão óbvia nos parecia nessa altura a relatividade de todo o sofrimento! Invejámos àqueles presos a sua vida relativamente regrada, segura e feliz. Tinham seguramente oportunidades regulares de tomar banho, pensámos com tristeza. Tinham com certeza escovas de dentes e escovas para a roupa, colchões – um para cada um deles – e entrega mensal de correio com notícias do paradeiro dos familiares ou, pelo menos, com referências que permitiam saber se estavam ainda vivos ou não. Nós tínhamos perdido tudo aquilo há muito tempo.

E como invejávamos aqueles de nós que tinham a oportunidade de ir para uma fábrica e trabalhar em salas protegidas! Todos desejávamos ter esse bocadinho de sorte capaz de salvar uma vida. A escala da sorte relativa vai ainda mais longe. Até mesmo entre os destacamentos que trabalhavam fora do campo (de um dos quais eu era membro) havia unidades consideradas menos afortunadas do que outras. Podíamos invejar um homem que não tivesse de trabalhar enterrado em lama escorregadia, numa encosta íngreme, a esvaziar os contentores de um pequeno comboio de transporte durante 12 horas diárias. A maior parte dos acidentes de todos os dias aconteciam neste trabalho e eram, com frequência, fatais.

Noutros grupos de trabalho o capataz seguia o que parecia ser uma tradição local de desferir golpes uns atrás dos outros sobre os presos, o que nos levava a considerarmo-nos relativamente felizes por não estarmos sob as suas ordens, ou por ficarmos com ele somente por pequenos períodos. Uma vez, por infelicidade, fiquei num desses grupos. Se um alarme de bombardeamento aéreo não nos tivesse interrompido decorridas duas horas (durante as quais o capataz tinha concentrado a sua atenção especialmente em mim), forçando o reagrupamento dos trabalhadores mais tarde, penso que teria regressado ao campo num dos trenós que transportavam os que tinham morrido ou estavam à beira de morrer de exaustão. Ninguém pode imaginar o alívio que a sirene pode trazer numa altura dessas; nem mesmo um pugilista que escutou o gongo indicando o fim de um assalto e que assim se salva, no último instante, do risco de um knockout.

Sentíamo-nos gratos pelas mais pequenas benesses. Ficávamos contentes quando havia tempo para sermos desparasitados antes de ir para a cama, embora em si mesmo aquilo não constituísse um prazer, pois implicava ficarmos de pé, despidos, numa sala sem aquecimento, do teto da qual pendiam pedaços de gelo. Mas ficávamos agradecidos se não houvesse um alarme de ataque aéreo durante esta operação e as luzes não fossem apagadas. Se não conseguíssemos fazer a operação de forma adequada, mantinham-nos acordados metade da noite.

Os magros prazeres da vida no campo concediam-nos uma espécie de felicidade negativa – «liberdade do sofrimento», como diria Schopenhauer – e, mesmo isso, apenas até certo ponto. Os verdadeiros prazeres positivos, até mesmo os mais pequenos, eram muito escassos. Recordo-me de delinear, um dia, uma espécie de folha de cálculo dos prazeres e de ter concluído que em muitas, mesmo muitas semanas, tinha experimentado somente dois momentos agradáveis. Um deles aconteceu quando, ao regressar do trabalho, consegui entrar no refeitório após uma longa espera e fui colocado na fila que era servida pelo preso-cozinheiro F–. Ele estava atrás de uma das imensas panelas da cozinha e deitava sopa nas tigelas que lhe eram apresentadas pelos prisioneiros, que passavam apressadamente para a receber. Era o único cozinheiro que não olhava para os rostos dos homens cujas tigelas estava a encher; era o único que servia a sopa de forma igual, independentemente do recipiente, e que não tinha favoritos entre os amigos pessoais ou conterrâneos, reservando as batatas para eles, enquanto os outros ficavam com sopa aguada tirada do cimo da panela.

Mas não me cabe a mim fazer juízos sobre os presos que davam mais atenção aos seus conhecidos. Quem pode atirar a primeira pedra àquele que favorece os seus amigos em circunstâncias nas quais, mais cedo ou mais tarde, esse favor é uma questão de vida ou morte? Ninguém deve julgar, a menos que pergunte a si mesmo, com absoluta honestidade, se numa situação parecida não teria feito o mesmo.

Muito depois de ter retomado a vida normal (o que significa muito tempo depois de ter sido libertado do campo), alguém me mostrou um semanário ilustrado com fotografias de prisioneiros deitados uns por cima dos outros nos beliches sobrelotados, a olharem com ar emaciado para um visitante. «Não é terrível, os olhares assustadores nos rostos – tudo aquilo!?».

«E porquê?», perguntei, porque não conseguia genuinamente compreender. Pois naquele momento via tudo de novo: às 5 da manhã estava ainda escuro como breu lá fora. Eu estava deitado nas tábuas duras, no casebre de terra batida onde cerca de 70 de nós estávamos «a ser cuidados». Estávamos doentes e não tínhamos de sair do campo para trabalhar; não tínhamos de ir à formatura. Podíamos ficar deitados durante todo o dia no nosso canto da caserna e dormitar enquanto esperávamos pela distribuição diária de pão (que, é claro, era mais reduzida para os doentes) e pela ração diária de sopa (diluída e também em menor quantidade). Mas como estávamos satisfeitos; felizes, apesar de tudo o resto. Enquanto nos aninhávamos uns junto dos outros para evitar qualquer perda desnecessária de calor, sentíamo-nos demasiado preguiçosos e desinteressados para mexer um único dedo sem necessidade, ouvíamos apitos e gritos agudos vindos do pátio ao qual acabava de chegar o turno da noite e onde estava a formar para a chamada. A porta foi aberta de rompante e a tempestade de neve soprou para dentro da caserna. Um camarada exausto, coberto de neve, entrou aos tropeções para se sentar por uns minutos. Mas o guarda principal pô-lo na rua outra vez. Era estritamente proibido deixar entrar um estranho num barracão enquanto estava a ser feita uma contagem dos homens. Como senti pena daquele tipo e como fiquei feliz por não estar na sua pele naquele momento, por estar doente e poder dormitar na ala dos doentes! Como podia ser importante para salvar a vida ter dois dias para estar ali e talvez até dois dias mais depois daqueles!

Tudo isto me veio à memória quando vi as fotografias na revista. Quando expliquei, os meus ouvintes perceberam por que razão a fotografia não me pareceu assim tão terrível: as pessoas mostradas nela podiam não estar, afinal de contas, assim tão infelizes.

No meu quarto dia na ala de doentes, tinha acabado de ser destacado para o turno da noite quando o médico principal entrou precipitadamente e me pediu para me voluntariar para funções médicas noutro campo onde havia pacientes com tifo. Contra os conselhos nervosos dos meus amigos (e apesar de quase nenhum dos meus colegas ter oferecido os seus serviços), decidi voluntariar-me. Sabia que num grupo de trabalho morreria dentro de pouco tempo. Mas se tivesse de morrer ali, que pudesse pelo menos haver algum sentido na minha morte. Pensei que seria sem dúvida mais adequado tentar ajudar os meus camaradas como médico do que vegetar, ou acabar por perder a vida, na situação do trabalhador improdutivo que era nessa altura.

Para mim, era uma simples questão de matemática e não um sacrifício. Mas, secretamente, o oficial responsável pelo esquadrão sanitário tinha ordenado que os dois médicos que se tinham oferecido para o campo de tifo «fossem tratados» até irem embora. Estávamos com uma aparência tão frágil que ele temia ficar com mais dois cadáveres nas mãos em vez de dois médicos.

Referi anteriormente como tudo aquilo que não estivesse relacionado com a tarefa imediata de nos mantermos vivos a nós mesmos e aos amigos próximos perdia o seu valor. Tudo era sacrificado a esse fim. O caráter de um homem via-se envolvido nisso até um ponto em que era apanhado num turbilhão mental que ameaçava todos os seus valores e os colocava em dúvida. Sob a influência de um mundo que já não reconhecia o valor da vida e da dignidade humanas, que tinha roubado a cada homem a sua vontade e o tinha transformado em objeto a ser exterminado (tendo planeado, no entanto, utilizá-lo até ao limite – até à última grama dos seus recursos físicos) – sob esta influência, o ego pessoal sofria, por fim, uma perda de valores. Se o homem no campo de concentração não lutasse contra isto num último esforço para salvar o amor-próprio, perdia o sentimento de ser um indivíduo, um ser com um espírito, com liberdade interior e valor pessoal. Pensava então em si mesmo somente como parte de uma enorme massa de pessoas; a sua existência descia até ao nível da vida animal. Os homens eram levados como gado – por vezes para um lugar e logo a seguir para outro; umas vezes eram reunidos e logo depois separados – como um rebanho de ovelhas sem um pensamento ou vontade próprios. Uma matilha pequena mas perigosa, bem treinada em métodos de tortura e sadismo, vigiava-os de todos os lados. Conduziam o rebanho incessantemente, para a frente e para trás, com gritos, pontapés e murros. E nós, as ovelhas, pensávamos somente em duas coisas – como escapar aos cães malévolos e como conseguir um pouco de comida.

Tal como ovelhas que se juntam timidamente no centro do rebanho, cada um de nós tentava meter-se no meio da formação. Isso dava, a cada um, uma melhor possibilidade de evitar as agressões dos guardas que caminhavam nos lados e também na frente e na parte de trás da coluna. Ficar no centro tinha a vantagem adicional de oferecer proteção contra os ventos gélidos. Era, portanto, numa tentativa de salvar a própria pele que tentávamos literalmente submergir na multidão. Isso era feito de forma automática nas formações. Mas outras vezes era um esforço muito consciente da nossa parte – de acordo com uma das mais imperativas leis de autopreservação do campo: Não dês nas vistas. Tentávamos em todos os momentos não atrair as atenções das SS.

Havia alturas, é claro, em que era possível, e até necessário, mantermo-nos afastados da multidão. É bem sabido que a vida comunitária forçada, na qual é prestada toda a atenção, em todos os momentos, à mais pequena coisa que fazemos, pode dar origem a uma vontade irresistível de fugir, nem que seja por instantes. O prisioneiro ansiava poder estar sozinho consigo mesmo e com os seus pensamentos. Ansiava por privacidade e solidão. Depois de ser transportado para um chamado «campo de repouso», tive a sorte muito rara de poder desfrutar de solidão por cinco minutos de cada vez. Atrás da cabana com chão de terra na qual trabalhava, e onde estavam amontoados cerca de 50 pacientes delirantes, havia um local tranquilo num canto da cerca dupla de arame farpado que rodeava o campo. Tinha sido improvisada aí uma tenda com umas estacas e ramos de árvores, de maneira a abrigar uma meia dúzia de cadáveres (a média diária de mortes no campo). Havia igualmente um poço que conduzia às canalizações de água. Eu costumava acocorar-me na tampa de madeira desse poço sempre que os meus serviços não eram necessários. Limitava-me a ficar sentado a olhar para as encostas verdes floridas e para as distantes colinas azuis da paisagem da Baviera, enquadradas pelas malhas do arame farpado. Sonhava ardentemente, e os meus pensamentos vagueavam para norte e noroeste, na direção da minha casa, mas a única coisa que conseguia ver eram nuvens.

Os cadáveres junto a mim, pejados de piolhos, não me incomodavam. Só os passos dos guardas conseguiam despertar-me dos meus sonhos; outras vezes era uma chamada para a área de doentes ou para ir buscar uma remessa de medicamentos recém-chegada – consistindo, talvez, de cinco ou dez pastilhas de aspirina, que teriam de durar vários dias e servir para 50 doentes. Ia recolhê-las e depois fazia as minhas rondas, media as pulsações dos doentes e dava meios comprimidos aos casos mais graves. Mas os pacientes em estado muito grave não eram medicados. Não ajudaria e, além disso, privaria de tratamento aqueles para os quais ainda havia alguma esperança. Para os casos ligeiros, não tinha nada, a não ser, talvez, uma palavra de encorajamento. Arrastava-me assim de paciente para paciente, embora eu próprio estivesse fraco e exausto devido a um ataque grave de tifo. Depois, voltava para o meu lugar isolado, na cobertura do poço.

Este poço, diga-se de passagem, salvou uma vez as vidas de três companheiros. Pouco antes da libertação, eram organizados transportes em massa para Dachau e esses três presos tentaram, sensatamente, evitar a viagem. Desceram pela escada do poço e ficaram aí escondidos dos guardas. Eu sentei-me calmamente na tampa, com ar inocente, enquanto atirava pedrinhas ao arame farpado. Ao ver-me, o guarda hesitou por instantes, mas depois foi-se embora. Pude em breve dizer aos homens lá em baixo que o perigo pior tinha passado.

É muito difícil a alguém de fora compreender o pouco valor que a vida humana tinha nos campos. Os presos estavam endurecidos, mas tornavam-se possivelmente mais conscientes deste desprezo total pela existência humana quando era organizado um comboio de doentes. Os corpos emaciados dos doentes eram atirados para carrinhos de duas rodas que eram depois puxados por prisioneiros durante quilómetros, muitas vezes no meio de tempestades de neve, até ao campo mais próximo. Se um dos doentes morria antes de o carro partir, era atirado para lá na mesma – a lista tinha de estar certa! A lista era a única coisa que importava. Um homem só contava porque tinha um número de preso. Cada um de nós tornava-se literalmente um número: morto ou vivo, isso não importava; a vida de um «número» era completamente irrelevante. O que ficava por detrás desse número e dessa vida importava ainda menos: o destino, a história, o nome do homem. No transporte de doentes que eu, na qualidade de médico, tinha de acompanhar de um campo da Baviera para outro, havia um jovem preso cujo irmão não estava na lista e que por isso teria de ficar para trás. O jovem implorou com tanta insistência que o guarda decidiu fazer uma troca, e o irmão tomou o lugar de um homem que, naquele momento, preferia ficar onde estava. Mas a lista tinha de estar certa! Isso era fácil. O irmão limitou-se a trocar de número com o outro preso.

Como referi anteriormente, não tínhamos documentos; cada um de nós tinha a sorte de ter o seu próprio corpo pois, afinal de contas, ainda respirava. Tudo o resto a nosso respeito, isto é, os andrajos pendurados dos nossos esqueletos descarnados, só interessava se fôssemos destacados para um transporte de doentes. Os «muçulmanos» que iam partir eram examinados com uma curiosidade sem peias, para ver se os seus casacos ou sapatos não estariam em melhor estado do que os nossos. Afinal de contas, os seus destinos estavam traçados. Mas os que ficavam para trás no campo, aqueles ainda capazes de fazer algum trabalho, tinham de usar todos os meios para aumentar as suas probabilidades de sobrevivência. Não eram sentimentais. Os prisioneiros sabiam-se completamente dependentes do estado de espírito dos guardas – como joguetes do destino – e isso tornava-os ainda menos humanos do que as circunstâncias permitiam.

Em Auschwitz estabeleci para mim mesmo uma regra que demonstrou ser boa e que mais tarde a maioria dos meus camaradas seguiu. Em geral, respondia com sinceridade a todos os tipos de perguntas que me faziam. Mas mantinha-me em silêncio relativamente a todas as coisas que não me eram expressamente perguntadas. Se me perguntavam a idade, dizia. Se me perguntassem qual era a minha profissão, dizia «médico», mas não dava pormenores. Na primeira manhã em Auschwitz um oficial das SS foi ao local da formatura. Tínhamos de nos integrar em grupos diferentes de presos: mais de quarenta anos, menos de quarenta anos, metalúrgicos, mecânicos, e por aí adiante. Éramos depois examinados para saber se tínhamos ossos partidos e alguns prisioneiros tinham de formar um novo grupo. O grupo em que fiquei foi levado para outra caserna, onde formámos de novo. Depois de sermos selecionados e agrupados de novo e depois de respondermos a perguntas sobre idade e profissão, fui mandado para outro pequeno grupo. Fomos enviados mais uma vez para outra caserna e agrupados de maneira diferente. Isto prolongou-se por algum tempo e eu fiquei bastante infeliz, dando comigo entre desconhecidos que falavam línguas estrangeiras ininteligíveis. Chegou por fim a última seleção e dei comigo de volta ao grupo que tinha estado comigo na primeira caserna! Eles praticamente não tinham notado que durante aquele tempo andei de caserna em caserna. Mas estava consciente de que nesses poucos minutos o destino passou por mim sob diferentes formas.

Quando foi organizado o transporte de doentes para o «campo de repouso», o meu nome (isto é, o meu número) foi posto na lista, pois eram necessários alguns médicos. Mas ninguém estava convencido de que seguisse mesmo para um campo de repouso. Algumas semanas antes tinha sido preparado o mesmo transporte de presos. Nessa altura, também, todos pensaram que era destinado aos fornos de gás. Quando anunciaram que quem se oferecesse para o temido turno da noite seria retirado da lista de transporte, oitenta e dois prisioneiros ofereceram-se de imediato. Um quarto de hora depois o transporte foi cancelado, mas os oitenta e dois continuaram na lista para o turno da noite. Para a maioria deles, isso significava morrer dentro de poucas semanas.

Agora, o transporte para o campo de repouso foi organizado pela segunda vez. Ninguém sabia, de novo, se isto era um estratagema para conseguir da parte dos doentes um último pedacinho de trabalho – ainda que por somente quinze dias – ou se seguia para os fornos de gás, ou para um verdadeiro campo de repouso. O médico principal, que se tinha afeiçoado a mim, disse-me furtivamente, uma noite, quando faltavam quinze minutos para as dez: «Fiz saber na sala dos ordenanças que você ainda pode riscar o nome da lista; pode fazê-lo até às dez».

Disse-lhe que não gostava de fazer as coisas assim; que tinha aprendido a deixar o destino seguir o seu rumo. «Posso muito bem ficar com os meus amigos», disse. Vi um olhar de piedade nos seus olhos, como se ele soubesse. Apertou-me a mão em silêncio, como se dissesse adeus, não para a vida, mas à vida. Regressei lentamente à minha caserna. Encontrei aí um bom amigo à espera.

«Queres mesmo ir com eles?», perguntou, com tristeza.

«Sim, vou.»

Vieram-lhe as lágrimas aos olhos e eu tentei reconfortá-lo. Havia outra coisa que tinha de fazer – o meu testamento:

«Escuta, Otto, se não voltar para a minha mulher e se a vires outra vez, diz-lhe que falei dela todos os dias, a todas as horas. Não te esqueças. Segundo, amei-a mais do que a qualquer outra pessoa. Terceiro, o pouco tempo que estive casado com ela supera tudo, até mesmo aquilo por que passámos aqui.»

Otto, onde estás agora? Estás vivo? O que foi feito de ti desde a nossa última hora juntos? Reencontraste a tua mulher? E lembras-te ainda de como te obriguei a aprender o meu testamento de cor – palavra por palavra – apesar das tuas lágrimas de criança?

Na manhã seguinte parti com o transporte de presos. Desta vez não era um ardil. Não seguíamos para as câmaras de gás e fomos mesmo para um campo de repouso. Aqueles que tinham lamentado a minha sorte ficaram num campo onde a fome grassaria de forma ainda mais cruel do que no nosso novo campo. Tentaram salvar-se, mas limitaram-se a selar os seus próprios destinos. Meses depois, após a libertação, encontrei um amigo do antigo campo. Contou-me como, na qualidade de polícia do campo, tinha andado à procura de um pedaço de carne humana que faltava numa pilha de cadáveres. Confiscou-a de uma panela onde a descobriu quando estava a ser cozinhada. Começara o canibalismo. Tinha partido mesmo a tempo.

Isto não faz lembrar a história de Morte em Teerão4? Um persa rico e poderoso caminhava certo dia no seu jardim na companhia de um dos seus criados. O criado gritou que tinha acabado de encontrar a Morte, que o tinha ameaçado. Implorou ao amo que lhe desse o cavalo mais rápido de maneira a poder fugir para Teerão, onde poderia chegar nessa mesma noite. O amo acedeu e o criado afastou-se a galope no cavalo. Ao regressar a casa, o amo encontrou também a Morte, e questionou-a: «Por que razão assustaste e ameaçaste o meu criado?» E a Morte disse: «Não o ameacei; limitei-me a mostrar surpresa por estar ainda aqui quando tinha planeado encontrar-me com ele esta noite em Teerão.»

Os presos dos campos tinham medo de tomar decisões e assumir qualquer tipo de iniciativas. Isto era o resultado de um sentimento muito forte de estarmos nas mãos do destino e de que não convinha influenciá-lo de maneira nenhuma, sendo antes conveniente deixá-lo seguir o seu curso. Para além disso, havia uma grande apatia, que contribuía em muito para os sentimentos dos prisioneiros. Por vezes, tinham de ser tomadas decisões quase instantâneas, decisões de que dependia a vida ou a morte. Os presos teriam preferido deixar o destino tomar a decisão por eles. Este escapar às obrigações era mais evidente quando um preso tinha de decidir a favor ou contra uma tentativa de fuga. Naqueles minutos em que tinha de tomar uma decisão – e era sempre uma questão de minutos – sofria torturas infernais. Deveria tentar escapar? Deveria correr esse risco?

Também eu passei por esse tormento. À medida que a frente de batalha se aproximava, tive a oportunidade de fugir. Um colega meu que tinha de visitar casernas fora do campo no decurso das suas obrigações médicas queria fugir e levar-me com ele. Com o pretexto de fazer uma consulta a um paciente que requeria o conselho de um especialista, tirou-me do campo. Do lado de fora, um membro de um movimento de resistência estrangeiro deveria dar-nos uniformes e documentos. No último momento, houve algumas dificuldades técnicas e tivemos de regressar ao campo. Aproveitámos a oportunidade para nos abastecermos de provisões – umas quantas batatas podres – e para procurarmos uma mochila.

Entrámos numa caserna vazia do campo das mulheres, que estava deserto, pois as mulheres tinham sido levadas para outro campo. A caserna estava em grande desordem; era óbvio que muitas mulheres tinham arranjado mantimentos e tinham escapado. Havia farrapos, palha, comida podre e louça partida. Algumas tigelas estavam ainda em boas condições e teriam sido muito valiosas para nós, mas decidimos não as levar. Sabíamos que nos últimos tempos, à medida que as condições se tornavam desesperadas, eram usadas não apenas para comida, mas também para lavar as mãos e ainda como penicos. (Havia uma norma rigorosa contra a posse de qualquer utensílio nas casernas. No entanto, algumas pessoas eram forçadas a violar a norma, especialmente os pacientes de tifo, que ficavam demasiado fracos para poderem ir lá fora, até mesmo com ajuda). Enquanto fiquei de vigia, o meu companheiro entrou no barracão e voltou pouco depois com uma mochila escondida debaixo do casaco. Tinha visto outra lá dentro para eu levar. Por isso trocámos de lugar e eu entrei. Quando rebuscava no lixo, onde encontrei a mochila e até uma escova de dentes, vi de súbito, entre todas as coisas deixadas para trás, o cadáver de uma mulher.

Voltei a correr à minha caserna para pegar em todas as coisas que possuía: a minha tigela de comida, um par de mitenes «herdado» de um doente de tifo falecido, e uns poucos pedaços de papel cheios de notas estenográficas (nas quais, como referi anteriormente, tinha começado a reconstruir o manuscrito que perdi em Auschwitz). Fiz uma última ronda rápida pelos meus doentes, que estavam deitados uns em cima dos outros nas pranchas de madeira apodrecidas em ambos os lados das casernas. Fui ter com o meu único compatriota, que estava à beira da morte e cuja vida tinha ambicionado salvar, apesar do estado em que se encontrava. Tive de guardar para mim a intenção de fugir, mas o meu camarada pareceu adivinhar que se passava alguma coisa (talvez eu tivesse mostrado algum nervosismo). Numa voz fatigada, perguntou: «Também tu vais fugir?» Neguei, mas tive dificuldade em evitar o seu olhar de tristeza. Quando acabei a ronda, voltei para junto dele. Um olhar desesperado saudou-me uma vez mais e senti-o como sendo, de certa forma, uma acusação. O sentimento desagradável que me acometera quando disse ao meu amigo que fugiria com ele tornou-se então mais intenso. Subitamente, decidi tomar por uma vez o destino nas minhas próprias mãos. Saí da caserna a correr e fui dizer ao meu amigo que não podia ir com ele. Assim que lhe disse, de forma convicta, que tinha tomado a decisão de ficar com os meus pacientes, o sentimento de infelicidade desapareceu. Não sabia o que os dias seguintes podiam trazer, mas acabara de conseguir uma paz interior que nunca antes tinha experimentado. Regressei à minha caserna, sentei-me nas tábuas aos pés do meu conterrâneo e tentei reconfortá-lo; depois, conversei com os outros, tentando acalmar os seus delírios.

Chegou o nosso último dia no campo. Com o aproximar da frente de batalha, os transportes em massa tinham levado quase todos os prisioneiros para outros campos. As autoridades do nosso, os capos e os cozinheiros tinham fugido. Naquele dia, foi dada a ordem de evacuar totalmente o campo até ao pôr-do-sol. Até mesmo os poucos prisioneiros restantes (os doentes, uns quantos médicos e alguns «enfermeiros») teriam de partir. À noite o campo deveria ser incendiado. Ao fim da tarde, os camiões que iam recolher os doentes ainda não tinham chegado. Em vez disso, os portões do campo foram subitamente fechados e a cerca de arame farpado ficou sob vigilância apertada, para evitar qualquer tentativa de fuga. Os prisioneiros restantes pareciam destinados a arder com o campo. Pela segunda vez, o meu amigo e eu decidimos escapar.

Mandaram-nos enterrar três homens do lado de fora da vedação. Éramos os dois únicos do campo com força suficiente para fazer o trabalho. Quase todos os outros jaziam nas poucas casernas ainda em uso, prostrados pela febre e pelo delírio. Delineámos então os nossos planos: juntamente como o primeiro cadáver, iríamos passar para o exterior a mochila do meu amigo, escondida na velha cuba da roupa suja que servia de caixão. Quando levássemos para fora o segundo corpo, levaríamos também a minha mochila e, na terceira viagem, pretendíamos realizar a fuga. As primeiras duas viagens decorreram de acordo com os planos. Quando regressámos, esperei enquanto o meu amigo tentava encontrar um pedaço de pão para podermos ter alguma coisa para comer nos próximos dias nos bosques. Passaram vários minutos. A minha impaciência cresceu, pois ele não voltava. Após três anos de cárcere, antecipava a liberdade com imensa alegria, imaginando como seria maravilhoso correr para a frente de batalha. Mas não chegámos tão longe.

No preciso momento em que o meu amigo voltou, os portões do acampamento abriram-se de par em par. Um esplêndido carro cor de alumínio, no qual estavam pintadas enormes cruzes vermelhas, entrou lentamente na parada. Tinha chegado um delegado da Cruz Vermelha Internacional, de Genebra, e o campo e os detidos estavam agora sob a sua proteção. O delegado alojou-se numa quinta das redondezas de maneira a poder estar sempre perto do campo para o caso de uma emergência. Quem se preocupava agora em escapar? Caixas de medicamentos foram descarregadas do carro, foram distribuídos cigarros, fomos fotografados e a alegria reinou sem restrições. Já não havia a necessidade de corrermos o risco de fugir em direção às linhas de combate.

Na nossa excitação, tínhamos esquecido o terceiro cadáver, por isso levámo-lo lá para fora e deitámo-lo na estreita sepultura que tínhamos escavado para os três corpos. O guarda que nos acompanhou, um homem relativamente inofensivo, tornou-se subitamente muito delicado. Percebeu que a sorte podia mudar e tentou conquistar a nossa boa vontade. Juntou-se às breves orações que fizemos em honra dos mortos antes de os cobrirmos de terra. Depois da tensão e excitação dos dias e das horas mais recentes, daqueles últimos dias da nossa fuga à morte, as palavras da nossa oração pedindo paz foram mais fervorosas do que quaisquer outras alguma vez proferidas por uma voz humana.

E o último dia no campo decorreu então enquanto antecipávamos a liberdade. O delegado da Cruz Vermelha assegurou-nos que tinha sido assinado um acordo e que o campo não deveria ser evacuado. Mas nessa noite as SS chegaram com camiões e trouxeram consigo uma ordem para limpar o campo. Os últimos prisioneiros deveriam ser levados para um campo central, do qual seriam enviados para a Suíça dentro de 48 horas – para serem trocados por prisioneiros de guerra. Tínhamos dificuldade em reconhecer as SS. Eram tão amigáveis, tentando persuadir-nos a entrar nos camiões sem medo, dizendo-nos que devíamos sentir-nos gratos pela nossa sorte. Os que tinham ainda algumas forças treparam para os camiões e os doentes graves e os débeis foram erguidos com dificuldade. O meu amigo e eu – agora não escondíamos as mochilas – ficámos no último grupo, do qual seriam escolhidos treze para ir no penúltimo camião a partir. O médico principal contou o número de presos requerido mas omitiu-nos. Os treze foram carregados no camião e nós tivemos de ficar para trás. Surpreendidos, muito zangados e desiludidos, culpámos o médico, que se desculpou dizendo que andava muito cansado e distraído. Disse-nos que pensava que ainda pretendíamos fugir. Impacientemente, sentámo-nos, mantendo as mochilas às costas, e esperámos pelo último camião junto dos presos restantes. Tivemos de esperar durante muito tempo. Por fim, deitámo-nos nos colchões da sala de guarda agora vazia, exaustos pela excitação das últimas horas e dos últimos dias, durante os quais tínhamos oscilado continuamente entre esperança e desespero. Dormimos vestidos e calçados, prontos para a viagem.

O barulho de disparos de espingarda e canhão despertou-nos; o clarão das balas tracejantes e o estrondo da artilharia entraram pela caserna adentro. O médico principal entrou de rompante e ordenou-nos que nos abrigássemos no chão. Um preso caiu-me em cima do estômago, de sapatos calçados, ao saltar da cama por cima de mim. Aquilo acordou-me mesmo! Percebemos então o que se estava a passar: a frente de batalha tinha chegado junto de nós! O tiroteio perdeu intensidade e a manhã chegou. Lá fora, no poste do portão do campo, drapejava uma bandeira branca.

Muitas semanas depois descobrimos que até nessas últimas horas o destino tinha brincado com os poucos presos que ainda restavam no campo. Ficámos a saber como são incertas as decisões humanas, especialmente em questões de vida e morte. Fui confrontado com fotografias tiradas num pequeno campo não muito distante do nosso. Os nossos amigos que naquela noite pensaram estar a viajar rumo à liberdade tinham sido levados nos camiões até esse campo, e aí chegados foram encerrados nos barracões e queimados até à morte. Os seus corpos parcialmente carbonizados eram reconhecíveis na fotografia. Pensei de novo em Morte em Teerão.

Para além de ser um mecanismo de defesa, a apatia dos prisioneiros resultava também de outros fatores. A fome e a falta de sono contribuíam para ela (como também o fazem na vida normal) e para a irritabilidade geral, que era outra característica do estado mental dos presos. A falta de sono devia-se em parte ao incómodo causado pela bicharada que infestava as casernas terrivelmente sobrelotadas, devido à generalizada falta de higiene e de condições sanitárias. O facto de não termos nicotina nem cafeína contribuía igualmente para o estado de apatia e irritabilidade.

À parte estas causas físicas, havia outras de ordem mental, sob a forma de certos complexos. A maior parte dos prisioneiros sofria de uma espécie de complexo de inferioridade. Todos nós, em algum momento, tínhamos sonhado «ser alguém». Agora, éramos tratados como completas não entidades (a consciência do nosso valor intrínseco está ancorada em coisas mais elevadas, em aspetos espirituais, e não pode ser abalada pela vida no campo; mas quantos homens livres, já para não falar dos presos, a possuem?) Sem pensar conscientemente nisso, a generalidade dos presos sentia-se totalmente degradada. Isto tornava-se evidente quando observávamos os contrastes na singular estrutura sociológica do campo. Os prisioneiros mais «eminentes», os capos, os cozinheiros, os guardas de armazém e os polícias do campo, não se sentiam, de um modo geral, degradados, como acontecia com a maioria dos presos; sentiam-se, bem pelo contrário, promovidos! Alguns deles criavam mesmo ilusões de grandeza em miniatura. A reação mental da maioria invejosa e ofendida ante essa minoria de favorecidos exprimia-se de várias maneiras, por vezes em anedotas. Ouvi, por exemplo, um preso a falar com outro sobre um capo, dizendo: «Imagine! Conheci aquele homem quando era só o presidente de um banco importante. Não é uma sorte ter subido tanto na vida?».

Sempre que a maioria degradada e a minoria promovida entravam em conflito (e havia muitas oportunidades para isto, a começar pela distribuição de comida), os resultados eram explosivos. Por isso, a irritabilidade geral (cujas causas físicas referi anteriormente) tornava-se mais intensa quando a ela se acrescentavam estas tensões mentais. Não surpreende que esta tensão terminasse com frequência numa batalha campal. Uma vez que os presos assistiam continuamente a cenas de espancamento, o impulso para a violência estava potenciado. Eu próprio sentia os punhos cerrarem-se quando era tomado de fúria devido ao cansaço e à fome. Sentia-me habitualmente muito cansado, pois tínhamos de alimentar o nosso fogão – que nos era permitido manter na caserna para pacientes de tifo – durante toda a noite. Apesar disso, algumas das horas mais idílicas que alguma vez tive, passei-as a meio da noite, quando todos os outros pacientes estavam em delírio ou a dormir. Podia deitar-me em frente ao fogão e assar umas quantas batatas pilhadas, numa fogueira alimentada por carvão roubado. Mas no dia a seguir sentia-me sempre ainda mais cansado, insensível e irritável.

Enquanto estive a trabalhar como médico no bloco dos pacientes com tifo, tive também de substituir o guarda principal do bloco que estava doente. Era, por isso, responsável pela limpeza da caserna ante a autoridade do campo – se é que «limpeza» é a palavra certa para descrever tal situação. A suposta inspeção à qual a caserna era submetida com frequência tinha mais a intenção de torturar do que de assegurar a higiene. Mais comida e alguns medicamentos teriam ajudado muito, mas a única preocupação dos inspetores era verificar se algum pedaço de palha tinha ficado no corredor central, ou se os cobertores sujos, esfarrapados e piolhosos dos pacientes estavam alisados e bem presos no fundo da cama. Quanto ao estado dos presos internados, isso não lhes interessava minimamente. Se eu informasse com vivacidade, arrancando o boné da cabeça rapada e batendo os calcanhares, «Caserna número VI/9: 52 pacientes, dois ajudantes de enfermeiros e um médico», eles ficavam satisfeitos. E depois disso iam-se embora. Mas até eles chegarem – com frequência vinham muitas horas depois do previsto, ou não vinham de todo – era forçado a passar o tempo a alisar e a endireitar cobertores, a apanhar pedaços de palha caídos das tarimbas e a gritar com os pobres diabos que se sacudiam nas camas e ameaçavam perturbar todos os meus esforços de arrumação e limpeza. A apatia era particularmente acentuada entre os pacientes febris, pelo que não reagiam de todo, a menos que lhes gritassem. Até mesmo isso por vezes falhava e era preciso um tremendo autocontrolo para não os agredir, pois a nossa própria irritabilidade assumia proporções enormes perante a apatia dos outros e, especialmente, ante o perigo (isto é, a inspeção iminente) que a causava.

Ao tentar apresentar este quadro psicológico e dar uma explicação psicopatológica das características típicas de um preso de um campo de concentração posso transmitir a ideia de que o ser humano é total e irremediavelmente influenciado pelo que o rodeia (sendo, neste caso, o que o rodeia a estrutura peculiar da vida no campo, que força o prisioneiro a adequar a sua conduta a um determinado padrão fixo). Mas, então, e a liberdade humana? Não haverá liberdade espiritual relativamente ao comportamento e reação a um determinado meio ambiente? Será verdadeira essa teoria que nos quer levar a crer que o Homem não é senão o produto de diversos fatores circunstanciais e ambientais – sejam eles de natureza biológica, psicológica ou sociológica? Será o homem apenas um produto acidental desses fatores? Mais importante ainda, serão as reações dos prisioneiros ao mundo singular do campo de concentração uma prova de que os seres humanos não conseguem escapar às influências do meio ambiente? Será que o Homem não tem escolha perante tais circunstâncias?

Podemos responder a estas questões tanto a partir da experiência como com base em princípios. As experiências da vida nos campos mostram que os homens têm realmente a possibilidade de escolher. Houve muitos exemplos, com frequência de natureza heroica, que demonstraram que a apatia podia ser vencida e a irritabilidade dominada. O Homem pode preservar um vestígio de liberdade e independência espirituais, até mesmo em condições tão terríveis de stress físico e psíquico.

Nós, que vivemos em campos de concentração, podemos recordar os homens que iam de caserna em caserna para confortar os outros, oferecendo-lhes o último pedaço de pão. Podem ter sido poucos, mas constituem prova suficiente de que tudo pode ser tirado a um homem, menos uma coisa: a última das liberdades humanas – a possibilidade de escolhermos a nossa atitude em quaisquer circunstâncias, de escolhermos a nossa maneira de fazer as coisas.

E havia sempre escolhas a fazer. Em cada hora de cada dia, havia oportunidades para tomar decisões, decisões essas que determinavam se iríamos ou não submeter-nos àqueles poderes que ameaçavam roubar-nos o nosso próprio eu, a nossa liberdade interior; que determinavam se íamos tornar-nos ou não um joguete das circunstâncias, renunciando à liberdade e à dignidade para nos deixarmos moldar e transformar no preso típico.

Encaradas deste ponto de vista, as reações mentais dos presos de um campo de concentração devem afigurar-se-nos como algo mais do que a mera expressão de determinadas condições físicas e sociológicas. Embora condições como a falta de horas de sono, a insuficiência de comida e diversos tipos de stress possam levar a pensar que os presos estavam forçados a reagir de determinadas maneiras, em última análise torna-se evidente que o género de pessoa em que o preso se transformava era resultado de uma decisão interior e não exclusivamente das influências do campo. Portanto, de uma forma fundamental, qualquer homem pode, mesmo em tais circunstâncias, decidir o que será feito dele – mental e espiritualmente. Pode manter a dignidade humana mesmo num campo de concentração. Dostoiévski disse uma vez: «Há só uma coisa que eu temo: não ser digno dos meus sofrimentos.» Lembrei-me com frequência destas palavras depois de tomar conhecimento daqueles mártires cujo comportamento no campo, cujo sofrimento e morte, foram testemunho do facto de a derradeira liberdade interior nunca se poder perder. Pode dizer-se que foram dignos dos seus sofrimentos; a forma como suportaram o seu sofrimento foi um genuíno feito interior. É esta liberdade espiritual – que não pode ser-nos roubada – que torna a vida algo com sentido e finalidade.

Uma vida ativa serve o propósito de dar ao Homem a oportunidade de realizar valores num trabalho criativo, enquanto uma vida passiva de fruição lhe concede a oportunidade de se realizar mediante a experiência da beleza, da arte ou da natureza. Mas há também um desígnio numa vida quase despojada, tanto de criação como de fruição, e que só admite uma possibilidade de comportamento moral elevado: a saber, a atitude dos seres humanos perante a sua existência, uma existência restringida por forças exteriores. Uma vida criativa e uma vida de fruição estão-lhe interditas. Mas nem só a criatividade e a fruição têm sentido. Se existe um sentido na vida, então tem de haver um sentido no sofrimento. O sofrimento é uma parte inextirpável da vida, tal como o destino e a morte. Sem o sofrimento e a morte, a vida humana não está completa.

A forma como um homem aceita o seu destino e todo o sofrimento que ele acarreta, a forma como carrega a sua cruz, concede-lhe bastas oportunidades – mesmo nas circunstâncias mais difíceis – para dar um sentido mais profundo à sua vida. Pode manter-se corajoso, digno e altruísta. Ou, durante a luta tenaz pela autopreservação, pode esquecer a sua dignidade humana e tornar-se pouco mais que um animal. Tem aí uma ocasião para aproveitar ou desperdiçar as oportunidades de alcançar os valores morais que uma situação difícil pode conceder-lhe. E aí se decide se é, ou não, digno dos seus sofrimentos.

Não se pense que estas considerações são abstratas e demasiado afastadas da vida real. É certo que somente uma minoria é capaz de alcançar padrões morais tão elevados. Entre os prisioneiros, só uma minoria manteve por inteiro a liberdade interior e alcançou os valores propiciados pelo seu sofrimento, mas um só exemplo desses é prova suficiente de que a força interior dos seres humanos pode erguê-los acima do seu destino exterior. Tais homens não se encontram somente nos campos de concentração. Por todo o lado os homens são confrontados com o destino, tendo a oportunidade de alcançar alguma coisa por meio do seu sofrimento.

Tomemos como exemplo o destino dos doentes – especialmente dos incuráveis. Li uma vez uma carta escrita por um jovem inválido, na qual dizia a um amigo que tinha acabado de saber que não iria viver por muito tempo, que nem mesmo uma operação poderia ajudá-lo. Escreveu ainda que se recordava de ter visto um filme sobre um homem que aguardava a morte de uma forma corajosa e digna. O rapaz tinha pensado que enfrentar a morte daquela maneira era um grande feito. Agora – escrevia ele – o destino estava a conceder-lhe a oportunidade de fazer o mesmo.

Aqueles que há alguns anos tiveram a oportunidade de ver o filme intitulado Resurrection5 – inspirado num livro de Tolstoi – podem ter tido pensamentos similares. Ali estavam grandes destinos e grandes homens. Para nós, naquela altura, não havia grande destino; não havia oportunidades para alcançar uma tal grandeza. Depois do filme fomos até à cafetaria mais próxima e diante de um café e de uma sanduíche esquecemos os estranhos pensamentos metafísicos que por momentos nos tinham atravessado o espírito. Mas quando nós mesmos fomos confrontados com um grande destino e com a decisão de ir ao seu encontro com uma igual grandeza de espírito, nessa altura tínhamos já esquecido há muito as nossas resoluções juvenis e fracassámos.

Talvez tenha chegado um dia para alguns de nós em que voltámos a ver o filme, ou outro parecido. Mas por essa altura outras imagens podem ter-se desvelado simultaneamente ante o nosso olhar interior; imagens de pessoas que alcançaram muito mais nas suas vidas do que aquilo que um filme sentimental poderia mostrar. Alguns pormenores da grandeza de uma determinada pessoa em particular podem ter-nos ocorrido, como a história da jovem mulher cuja morte testemunhei num campo de concentração. Há pouco a dizer e pode parecer que inventei tudo; mas a mim parece-me um poema.

Essa mulher jovem sabia que ia morrer em poucos dias. Mas quando falei com ela estava animada, apesar de consciente disso. «Sinto-me grata por o destino me ter atingido com tanta dureza», disse-me ela. «Na minha vida anterior era mimada e não levava a sério as realizações espirituais.» Apontando para o exterior pela janela da caserna, disse: «Aquela árvore ali é a minha única amiga nesta solidão.» Pela janela conseguia ver apenas um dos ramos de um castanheiro e nesse ramo havia dois rebentos. «Falo muitas vezes com essa árvore», disse-me. Fiquei espantado e não sabia muito bem como reagir. Estaria a delirar? Teria alucinações ocasionais? Perguntei, com ansiedade, se a árvore lhe respondia. «Sim.» E o que lhe dizia? Respondeu: «Ela disse-me, “Estou aqui – estou aqui – sou vida, sou a vida eterna”».

Dissemos antes que aquilo que, em última análise, era responsável pelo estado interior dos prisioneiros não eram tanto as causas psicofísicas enumeráveis como o resultado de uma decisão livre. As observações psicológicas dos prisioneiros mostraram que apenas os homens que deixaram esmorecer a ligação interior ao seu eu moral e espiritual é que acabaram por ser arrastados pelas influências degenerativas do campo. Põe-se agora a questão de saber o que poderia, ou deveria, ter constituído essa «ligação interior»?

Quando antigos presos escrevem a relatar as suas experiências, estão de acordo em que a influência mais deprimente de todas era o facto de um prisioneiro não poder saber quanto demoraria o seu encarceramento. Não lhe era dada uma data de libertação (no nosso campo era inútil sequer falar disso). Na verdade, a pena de prisão era não somente incerta como ilimitada. Um conhecido psicólogo referiu que a vida num campo de concentração poderia designar-se «existência provisória». Podemos acrescentar a definição dizendo que se tratava de uma «existência provisória com limite desconhecido».

Habitualmente, os recém-chegados não sabiam nada sobre as condições no campo. Os que tinham sido reenviados de outros campos eram forçados a manter o silêncio, e de alguns outros campos ninguém tinha regressado. Ao entrar num campo dava-se uma mudança no espírito dos homens. Com o fim da incerteza chegava a incerteza do fim. Era impossível antecipar como, ou quando, esta forma de existência teria fim, se é que chegaria a tê-lo.

A palavra latina finis tem dois significados: o termo, ou fim, e um objetivo a alcançar. O homem que não podia ver o fim da sua «existência provisória» era incapaz de visar um objetivo último na vida. Ao contrário de um homem na sua vida normal, deixava de viver para o futuro. Por conseguinte, toda a estrutura da sua vida interior era alterada; instalavam-se sinais de definhamento bem conhecidos de outras áreas da vida. O trabalhador desempregado, por exemplo, está em situação similar. A sua existência tornou-se provisória e em certo sentido não pode viver para o futuro ou visar um objetivo. Trabalho de investigação realizado com mineiros desempregados mostrou que sofrem de uma forma peculiar de deformação do tempo – tempo interior – que resulta da sua situação de desemprego. Os prisioneiros sofrem igualmente desta estranha «experiência do tempo». No campo, uma pequena unidade de tempo, um dia, por exemplo, cheio de torturas e fadiga constantes, parecia não ter fim. Uma unidade de tempo mais alargada, como uma semana, parecia passar muito depressa. Os meus camaradas concordavam quando dizia que no campo um dia durava mais do que uma semana. Como era paradoxal a nossa experiência do tempo! A este respeito podemos lembrar A Montanha Mágica, de Thomas Mann, que contém algumas observações psicológicas perspicazes. Mann estuda o desenvolvimento espiritual de pessoas que se encontram numa posição psicológica análoga, isto é, doentes tuberculosos internados num sanatório que desconhecem também a data da sua libertação. Vivem uma existência similar – sem futuro e sem objetivos.

Um dos presos, que à chegada marchou com uma comprida coluna de novos detidos da estação até ao campo, disse-me mais tarde que sentiu como se estivesse a marchar no seu próprio funeral. A vida afigurou-se-lhe como completamente destituída de futuro. Encarou-a como se já tivesse terminado, como se já tivesse morrido. Este sentimento de ausência de vida era intensificado por outras causas: no tempo, era a indeterminação da pena de cadeia que era sentida de forma mais intensa; no espaço, eram os limites estreitos da prisão. Tudo quanto estava para lá do arame farpado tornava-se muito remoto – fora do alcance e, de certa forma, irreal. Os acontecimentos e as pessoas no exterior, toda a vida normal que aí decorria, assumiam um aspeto fantasmagórico para o prisioneiro. A vida exterior, isto é, tanto quanto ele podia ver dela, surgia-lhe quase como poderia surgir diante de um morto que a olhasse a partir do outro mundo.

Aqueles que se deixavam definhar, por serem incapazes de antever qualquer objetivo futuro, davam consigo mesmos ocupados com pensamentos retrospetivos. Num contexto diferente, falámos já da tendência de olhar para o passado, de maneira a ajudar a tornar menos real o presente e todos os seus horrores. Mas há um certo risco em roubar ao presente a sua realidade. Tornava-se fácil deixar passar as oportunidades de fazer alguma coisa de positivo da vida no campo, oportunidades que existiam de facto. Encararmos a nossa «existência provisória» como irreal era em si mesmo um fator importante no processo que levava os prisioneiros a perderem a vontade de viver; de certa maneira, tudo se tornava inútil. As pessoas que agiam assim esqueciam que são justamente, com frequência, tais situações externas excecionalmente difíceis que dão aos homens a oportunidade de crescerem espiritualmente e superarem-se. Em vez de tomarem as dificuldades do campo como um teste à sua força interior, não tomavam a vida a sério e desprezavam-na como se fosse algo sem importância. Preferiam fechar os olhos e viver no passado. Para tais pessoas, a vida torna-se uma coisa sem sentido.

Como é natural, somente umas poucas pessoas conseguiram alcançar uma grande elevação espiritual. Mas algumas outras tiveram a oportunidade de atingir a grandeza humana até mesmo por meio do seu aparente fracasso e morte, uma realização que em circunstâncias normais nunca teriam alcançado. Aos restantes de entre nós, aos medíocres e aos inconvictos, poderiam aplicar-se as palavras de Bismarck: «A vida é como ir ao dentista. Pensamos sempre que o pior ainda está para vir e, no entanto, já passou.» Fazendo uma pequena variação, poderíamos dizer que a maior parte dos homens nos campos de concentração estava convencida de que as verdadeiras oportunidades da vida tinham passado. No entanto, na realidade, havia uma grande oportunidade e um desafio. Cada um de nós podia tornar aquelas experiências numa vitória, transformando a vida num triunfo interior, ou podia ignorar o desafio e pura e simplesmente vegetar, como fez a maioria dos prisioneiros.

Qualquer tentativa de combater a influência psicopatológica do campo sobre os presos, mediante métodos psicoterapêuticos ou psico-higiénicos, tinha de visar transmitir-lhes força interior, de levá-los a divisar um objetivo futuro capaz de os motivar. Alguns dos presos tentavam instintivamente encontrar um pelos seus próprios meios. É uma característica peculiar dos seres humanos só conseguirem viver a olhar para o futuro – sub specie aeternitatis. E isto é a sua salvação nos momentos mais difíceis da existência, embora por vezes tenham de forçar-se a prosseguir.

Recordo uma experiência pessoal. Quase em lágrimas por causa das dores (tinha chagas terríveis nos pés por causa de usar sapatos estragados), caminhei a coxear durante alguns quilómetros com uma coluna de homens do campo até ao local onde íamos trabalhar. Um vento frio e áspero fustigava-nos. Não parava de pensar nos intermináveis pequenos problemas da nossa vida miserável. O que haveria para comer esta noite? Se viesse uma salsicha como ração extra, deveria trocá-la por um pedaço de pão? Deveria trocar por uma tigela de sopa o meu último cigarro, que sobrava de um bónus recebido há umas semanas? Como haveria de arranjar um pedaço de arame para substituir aquele que servia de atacador num dos meus sapatos? Chegaria ao local dos trabalhos a tempo de me reunir com o meu grupo habitual ou teria de me juntar a outro, que poderia ter um capataz brutal? O que poderia fazer para me dar bem com o capo, que poderia ajudar-me a arranjar trabalho no campo em vez de ter de fazer esta caminhada diária terrivelmente longa?

Acabei por ficar enojado com o estado de coisas que me forçava, todos os dias e a todas as horas, a pensar somente em coisas tão triviais. Forçava o meu pensamento a voltar-se para outros assuntos. Vi-me, de súbito, de pé sobre o estrado de uma sala de leitura bem iluminada, quente e agradável. Diante de mim estava um auditório de pessoas atentas, sentadas em confortáveis cadeiras acolchoadas. Estava a dar uma conferência sobre a psicologia nos campos de concentração! Tudo quanto me oprimia tornou-se naquele momento algo objetivo, visto e descrito do ponto de vista distanciado da ciência. Usando este método, consegui de certa forma erguer-me acima da situação, acima dos sofrimentos do momento, e olhei-os como se já fizessem parte do passado. Tanto eu, como os meus problemas, fomos transformados no objeto de um estudo psicocientífico levado a cabo por mim mesmo. O que é que diz Espinoza na sua Ética? – «Affectus, qui passio est, desinit esse passio simulatque eius claram et distinctam formamus ideam». A emoção, que constitui sofrimento, deixa de ser sofrimento logo que formamos uma ideia clara e distinta a seu respeito.

O preso que perdesse a fé no futuro – o seu futuro – estava condenado. Ao perder a crença no futuro, perdia igualmente o controlo espiritual; deixava-se decair e ficava sujeito a um definhamento físico e mental. Habitualmente, isto acontecia de repente, sob a forma de uma crise, cujos sintomas eram bem conhecidos dos detidos mais experientes. Todos temíamos esse momento – não por nós mesmos, o que teria sido inútil, mas pelos nossos amigos. Normalmente, começava com o prisioneiro a recusar vestir-se e lavar-se de manhã, ou a não ir à formatura na parada. Nenhuma súplica, agressão ou ameaça tinha qualquer efeito. Limitava-se a ficar ali, quase sem se mexer. Se esta crise era precipitada por uma doença, recusava ser levado para a ala de pacientes ou fazer qualquer outra coisa que pudesse ajudá-lo. Limitava-se a desistir. Ali ficava, deitado sobre os próprios excrementos, e já nada conseguia incomodá-lo.

Tive uma vez a demonstração do laço estreito que une a perda da fé no futuro e esta perigosa desistência. F–, o guarda principal do meu bloco, libretista e compositor bastante conhecido, confidenciou-me um dia: «Queria dizer-lhe uma coisa, doutor. Tive um sonho estranho. Uma voz disse-me que podia desejar uma coisa, que devia dizer apenas aquilo que queria saber e todas as minhas perguntas seriam respondidas. O que é que pensa que perguntei? Que gostava de saber quando é que a guerra iria acabar para mim. Percebe o que quero dizer, doutor – para mim!? Queria saber quando é que nós, o nosso campo, seríamos libertados e os nossos sofrimentos chegariam ao fim.»

«E quando teve esse sonho?», perguntei.

«Em Fevereiro de 1945», respondeu. Estávamos naquela altura no início de Março.

«O que respondeu a voz do seu sonho?»

Furtivamente, segredou-me: «A 30 de Março».

Quando F– me contou o sonho estava ainda cheio de esperança e convencido de que a voz acabaria por ter razão. Mas à medida que se aproximava o dia prometido no sonho, as notícias da guerra que chegavam ao nosso campo pareciam tornar muito improvável que fôssemos libertados na data prometida. No dia 29 de Março, F– ficou subitamente doente e com febre muito alta. A 30 de Março, no dia em que a sua profecia lhe dissera que a guerra e o sofrimento terminariam para ele, entrou em delírio e perdeu a consciência. No dia 31, morreu. Segundo todos os indícios exteriores, tinha morrido de tifo.

Aqueles que conhecem a estreita ligação entre o estado de espírito de uma pessoa – a sua coragem e esperança, ou a falta dela – e o estado de imunidade do seu corpo perceberão que a perda súbita de esperança e de coragem pode ter um efeito mortífero. A principal causa da morte do meu amigo foi o facto de a esperada libertação não ter chegado e ele ter ficado profundamente desiludido. Isto baixou subitamente a resistência do seu corpo contra a infeção de tifo que estava latente. A fé no futuro e a vontade de viver ficaram paralisadas e o seu corpo foi vitimado pela doença – e por isso a voz do seu sonho acabou por acertar.

As observações sobre este caso, e as conclusões delas retiradas, estão de acordo com um facto para que fui alertado pelo médico principal do nosso campo de concentração. O índice de mortes na semana entre o Natal de 1944 e o Ano Novo de 1945 aumentou no campo, para além de todos os indicadores conhecidos. Em sua opinião, a explicação para esse aumento não residia nas condições de trabalho mais duras, na deterioração do abastecimento de comida, numa mudança do tempo ou numa nova epidemia. Acontecia simplesmente que a maior parte dos presos vivia na esperança ingénua de que voltaria a casa por altura do Natal. À medida que o dia se aproximava e não chegavam notícias encorajadoras, os prisioneiros perdiam a coragem e deixavam-se tomar pela desilusão. Isto teve uma influência perigosa nas suas capacidades de resistência e muitos deles morreram.

Como dissemos antes, qualquer tentativa para restabelecer a força interior de um homem no campo tinha primeiro de conseguir apontar-lhe um qualquer objetivo futuro. As palavras de Nietzsche, «Aquele que tem uma razão para viver pode suportar quase tudo», poderiam ser o lema de referência para qualquer esforço psicoterapêutico e psico-higiénico relativamente aos presos. Sempre que havia oportunidade para isso, era necessário dar-lhes uma razão – uma meta – para as suas vidas, de maneira a fortalecê-los para enfrentarem as terríveis condições da sua existência. Pobre daquele que não via sentido na sua vida, nenhuma meta, nenhum propósito, e por isso não via qualquer razão para prosseguir. Em breve estava condenado. A resposta habitual com que esses homens rejeitavam todos os argumentos encorajadores era: «Já não tenho nada a esperar da vida.» Que resposta podemos dar a isto?

O que era verdadeiramente necessário era uma mudança fundamental na nossa atitude em relação à vida. Tínhamos de aprender e, mais do que isso, tínhamos de ensinar aos desesperados, que não importava verdadeiramente o que esperávamos da vida, mas antes o que a vida esperava de nós. Precisávamos de deixar de perguntar pelo sentido da vida e tínhamos, em vez disso, de pensar em nós mesmos como aqueles que estavam a ser questionados pela vida – em todas as horas de cada novo dia. A nossa resposta deve consistir, não em conversa e meditação, mas na ação e conduta corretas. A vida significa, em última instância, assumir a responsabilidade de encontrar a resposta adequada aos seus problemas e ultrapassar os desafios que constantemente apresenta a cada indivíduo.

Esses desafios e, portanto, o sentido da vida, variam de pessoa para pessoa e de momento para momento. Assim sendo, é impossível definir o sentido da vida de uma maneira geral. As questões sobre o sentido da vida não podem nunca ser respondidas por meio de declarações genéricas. «Vida» não significa algo vago, mas sim algo muito real e concreto, assim como os desafios da vida são também muito reais e concretos. Eles constituem o destino dos homens, que é diferente e único para cada indivíduo. Nenhuma pessoa e nenhum destino podem ser comparados com qualquer outra pessoa e destino. Nenhuma situação se repete e cada situação exige uma resposta diferente. Por vezes, a situação em que um homem se encontra pode exigir-lhe que molde o seu próprio destino por meio da ação. Outras vezes, é mais vantajoso para ele aproveitar uma oportunidade para a contemplação e, dessa forma, avaliar os seus trunfos. Outras vezes ainda, o homem pode ser chamado a aceitar simplesmente o destino, a carregar a sua cruz. Cada situação se distingue pelo seu carácter único e existe sempre apenas uma resposta adequada ao problema colocado pela situação em causa.

Quando um homem descobre que o seu destino é sofrer, terá de aceitar esse sofrimento como a sua missão; a sua missão única e exclusiva. Terá de reconhecer o facto de que, até mesmo no sofrimento, é único e está só no universo. Ninguém pode libertá-lo do seu sofrimento ou sofrer em seu lugar. A sua oportunidade única reside na forma como carrega o seu fardo.

Para nós, os presos, estes pensamentos não eram especulações muito distanciadas da realidade. Eram os únicos pensamentos que podiam ajudar-nos. Evitavam que entrássemos em desespero, mesmo quando parecia não haver qualquer possibilidade de escaparmos com vida. Há muito que tínhamos ultrapassado a fase de perguntar qual era o sentido da vida, uma pergunta ingénua que concebe a vida como o alcançar de um qualquer objetivo, mediante a criação ativa de alguma coisa com valor. Para nós, o sentido da vida abarcava os ciclos mais vastos da vida e da morte, do sofrimento e da degenerescência.

Uma vez revelado o significado do sofrimento, recusávamos minimizar ou aliviar as torturas do campo ignorando-as ou alimentando falsas ilusões e um otimismo artificial. O sofrimento tornara-se um desafio ao qual não queríamos voltar as costas. Tínhamos percebido as suas oportunidades ocultas de realização, as oportunidades que levaram Rilke a escrever: «Wie viel ist aufzuleiden!» (Quanto sofrimento teremos de enfrentar!) Rilke falou de «enfrentar o sofrimento» como outros falariam de «enfrentar o trabalho». Nós tínhamos muito sofrimento para enfrentar. Era necessário, por isso, encarar toda a dimensão do sofrimento, tentando reduzir ao mínimo os momentos de fraqueza e de lágrimas furtivas. Mas não era preciso ter vergonha das lágrimas, pois elas eram prova viva de que um homem tinha a maior das coragens, a coragem de sofrer. Só uma pequena minoria percebia isso. Alguns confessavam ocasionalmente, envergonhados, que tinham chorado, como aquele camarada que respondeu à minha questão sobre como tinha superado o edema, confessando: «Expulsei-o à custa de lágrimas.»

Os frágeis rudimentos de uma psicoterapia ou psico-higiene eram, quando de todo possíveis no campo, de natureza individual ou coletiva. Os esforços de psicoterapia individual eram com frequência uma espécie de «procedimento de salvação». Estes esforços visavam geralmente a prevenção de suicídios. Uma regra estrita do campo proibia quaisquer esforços para salvar um homem que tentasse o suicídio. Era proibido, por exemplo, cortar a corda de alguém que tentasse enforcar-se. Era, portanto, especialmente importante evitar que tais tentativas acontecessem.

Recordo-me de dois casos de presumível suicídio que se assemelham de forma notável. Ambos os homens em causa falaram da sua intenção de cometer suicídio. Ambos usaram o argumento habitual – não tinham mais nada a esperar da vida. Em ambos os casos era tudo uma questão de os levar a perceber que a vida ainda esperava alguma coisa deles; havia ainda algo no futuro à espera deles. Descobrimos de facto que, para um deles, era o filho, que adorava e que o esperava num país estrangeiro. Para o outro, era uma coisa, não uma pessoa. Este último era um cientista e tinha escrito uma série de livros que precisavam de ser terminados. O seu trabalho não podia ser feito por mais ninguém, assim como também nenhuma outra pessoa poderia alguma vez ocupar o lugar do pai na afeição do filho.

Este caráter único e impartilhável, que distingue cada indivíduo e dá um sentido à sua existência, tem tanta importância no trabalho criativo como no amor humano. Quando nos apercebemos da impossibilidade de substituir uma pessoa, isso permite que a responsabilidade que cada homem tem pela sua existência e pela continuidade desta surja em toda a sua magnitude. Um homem que ganha consciência da responsabilidade que tem em relação a um ser humano que espera por ele com afeição, ou ante um trabalho inacabado, nunca será capaz de deitar fora a sua vida. Ele conhece o «porquê» da sua existência e será capaz de suportar quase todas as «provações».

As oportunidades para fazer psicoterapia coletiva no campo eram, naturalmente, limitadas. O exemplo certo era mais eficaz do que as palavras alguma vez podiam ser. Um guarda de bloco que não alinhava com as autoridades tinha, pelo seu comportamento justo e encorajador, um milhar de oportunidades para exercer uma profunda influência moral naqueles que estavam a seu cargo. A influência imediata do comportamento é sempre mais eficaz do que a das palavras. Mas por vezes uma palavra também tinha efeito, quando a recetividade mental tinha sido intensificada por alguma circunstância exterior. Recordo-me de um incidente que deu oportunidade de realizar trabalho psicoterapêutico em todos os detidos de uma caserna, devido à intensificação da sua recetividade por causa de uma determinada situação externa.

Tinha sido um dia mau. Durante a formatura fora feito um anúncio sobre as muitas ações que seriam dali em diante consideradas como sabotagem e por isso punidas com a morte imediata por enforcamento. Entre estas, contavam-se crimes como cortar pequenas tiras dos nossos cobertores velhos (para improvisar suportes para os tornozelos) e «furtos» insignificantes. Alguns dias antes, um prisioneiro faminto tinha forçado a entrada no armazém das batatas para roubar uns quantos quilos delas. O roubo fora descoberto e alguns prisioneiros reconheceram o «assaltante». Quando as autoridades do campo souberam do caso ordenaram que o culpado lhes fosse entregue ou todo o campo seria deixado à fome durante um dia. É claro que os 2.500 presos preferiram jejuar.

Na véspera desse dia de jejum ficámos deitados nas nossas casernas – muito abatidos. Falou-se muito pouco e cada palavra parecia irritada. Então, para tornar tudo ainda pior, falhou a luz. Os ânimos atingiram o seu ponto mínimo. Mas o guarda principal do nosso bloco era um homem sensato. Improvisou uma pequena conversa sobre tudo quanto nos ia na cabeça naquele momento. Falou sobre os muitos camaradas que tinham morrido nos últimos dias, de doença e de suicídio. Mas referiu igualmente aquela que poderia ter sido a verdadeira razão das suas mortes: perder a esperança. Afirmou que tinha de haver uma maneira de evitar que possíveis vítimas futuras atingissem esse estado limite. E foi para mim que o guarda apontou quando deu este conselho.

Sabe Deus que não estava com disposição para dar explicações psicológicas ou para pregar sermões – para dar aos meus camaradas uma espécie de cuidado médico para as suas almas. Estava com frio e com fome, sentia-me irritado e exausto, mas tinha de fazer um esforço e aproveitar esta oportunidade única. O encorajamento era agora mais necessário do que nunca.

Por isso, comecei por mencionar o mais trivial dos consolos. Disse que até mesmo nesta Europa no sexto ano da Segunda Guerra Mundial, a nossa situação não era a mais terrível que podíamos imaginar. Disse que cada um de nós tinha de perguntar a si mesmo que perdas irreparáveis tinha sofrido até àquele momento. Presumi que para a maior parte dos que ali estavam essas perdas tinham, na verdade, sido poucas. Quem ainda estava vivo tinha boas razões para ter esperança. Saúde, família, felicidade, capacidades profissionais, riqueza, posição social – tudo isso eram coisas que podiam ser alcançadas outra vez, ou recuperadas. Afinal de contas, ainda tínhamos todos os ossos intactos. Tudo aquilo por que tínhamos passado ainda podia vir a ser uma vantagem no futuro. E citei Nietzsche: «Was mich nicht umbringt, macht mich stärker» (Aquilo que não me mata torna-me mais forte).

Falei depois sobre o futuro. Disse que, para quem fosse imparcial, o futuro tinha de parecer desesperado. Aceitei que cada um de nós podia adivinhar por si mesmo como eram pequenas as suas possibilidades de sobrevivência. Disse-lhes que embora ainda não houvesse uma epidemia de tifo no campo, calculava as minhas próprias possibilidades em cerca de uma em vinte. Mas disse-lhes igualmente que, apesar de tudo isso, não tinha intenção de perder a esperança e desistir. Pois nenhum homem sabia o que o futuro lhe reservava e muito menos o que a próxima hora traria. Ainda que não pudéssemos esperar acontecimentos militares excecionais nos próximos dias, quem sabia melhor do que nós, com a nossa experiência dos campos, como por vezes surgiam de súbito grandes oportunidades, pelo menos para um indivíduo? Por exemplo, um de nós podia ser colocado num grupo especial com condições de trabalho excecionalmente boas – pois isto era o tipo de coisa que constituía a «sorte» do prisioneiro.

Mas não falei apenas do futuro e da cortina que o cobria. Mencionei também o passado; todas as suas alegrias e como a sua luz brilhava, até mesmo na escuridão presente. Citei uma vez mais um poeta – para evitar parecer um pregador – que tinha escrito: «Was Du erlbst, kann keine Macht der Welt Dir rauben» (Tudo aquilo que viveste, nenhum poder na terra pode roubar-te). E não somente as nossas experiências, mas tudo quanto fizemos, todos os pensamentos grandiosos que possamos ter tido, e tudo quanto sofremos, tudo isso não estava perdido, embora fosse passado; trouxemo-lo à existência. Ter sido é também uma forma de ser, e talvez das mais seguras.

Falei depois das muitas oportunidades de dar um sentido à vida. Disse aos meus camaradas (que jaziam imóveis, embora ocasionalmente pudesse ouvir-se um suspiro) que a vida humana, fossem quais fossem as circunstâncias, nunca deixava de ter sentido, e que esse significado infinito da vida inclui o sofrimento e a decadência física, as privações e a morte. Instei as pobres criaturas que me escutavam atentamente na escuridão da caserna a olharem de frente a gravidade da nossa situação. Disse-lhes que não podiam perder a esperança e que tinham de manter a coragem, na certeza de que a desesperança da nossa luta não lhe retirava a dignidade nem o significado. Disse que há alguém a olhar por cada um de nós nos momentos difíceis – um amigo, uma esposa, alguém vivo ou morto, ou um Deus – e essa pessoa não gostaria que a desiludíssemos. Esperaria ver-nos a sofrer com orgulho – e não abatidos – sabendo como morrer.

E falei por fim do nosso sacrifício, que tinha significado em todos e cada um dos nossos casos. Fazia parte da natureza desse sacrifício parecer inútil no mundo normal, o mundo do sucesso material. Mas na realidade o nosso sacrifício tinha mesmo um significado. Aqueles de entre nós que tinham uma fé religiosa, disse de forma franca, podiam entender isto sem dificuldade. Contei-lhes a história de um camarada que à chegada ao campo tinha tentado fazer um pacto com o céu para que o seu sofrimento e morte salvassem de um fim doloroso o ser humano que ele mais amava. Para esse homem, o sofrimento e a morte tinham pleno sentido; o seu era um sacrifício com a mais profunda significação. Não queria morrer por nada. Nenhum de nós queria.

O objetivo das minhas palavras era encontrar um significado integral na nossa vida, naquele preciso momento e naquele lugar, naquela caserna e naquela situação praticamente desesperada. Percebi que os meus esforços tinham sido bem-sucedidos. Quando a lâmpada se acendeu outra vez, vi as figuras miseráveis dos meus amigos a aproximarem-se de mim a coxear para me agradecerem com lágrimas nos olhos. Mas tenho de confessar aqui que só muito raras vezes tive força interior para entrar em contacto com os meus companheiros de sofrimento e que devo ter perdido muitas oportunidades para o fazer.

Chegamos agora à terceira fase das reações mentais dos prisioneiros: a sua psicologia após a libertação. Mas antes disso vamos abordar uma questão que é colocada com frequência ao psicólogo, especialmente quando tem um conhecimento pessoal destes assuntos: O que pode dizer-nos sobre as características psicológicas dos guardas dos campos? Como é possível que homens de carne e osso pudessem tratar outras pessoas como tantos prisioneiros dizem que foram tratados? Tendo escutado esses relatos e tendo acreditado que essas coisas aconteceram realmente, uma pessoa é levada a perguntar como é que, psicologicamente, puderam acontecer. Para responder a esta questão sem entrar em muitos pormenores, devem ser referidas umas quantas coisas:

Primeiro, havia entre os guardas alguns sádicos, e sádicos no sentido clínico mais puro.

Segundo, esses sádicos eram sempre escolhidos quando era necessário um destacamento de guardas realmente duro.

Havia uma imensa alegria no lugar dos trabalhos quando tínhamos permissão para nos aquecermos por alguns minutos (após duas horas de trabalho no frio cortante) em frente de um pequeno fogão que era alimentado com ramos e restos de madeira. Mas havia sempre alguns capatazes que sentiam grande prazer em tirar-nos esse conforto. Como os seus rostos refletiam claramente esse prazer quando não só nos proibiam de ficar ali como voltavam o fogão e atiravam o seu belo fogo para a neve! Quando as SS embirravam com uma pessoa, havia sempre alguém nas suas fileiras conhecido por ter uma paixão, e um jeito especial, para a tortura sádica, a quem era enviado o infeliz prisioneiro.

Terceiro, os sentimentos da maior parte dos guardas estavam embotados pelos muitos anos durante os quais tinham testemunhado, em doses cada vez mais elevadas, os métodos brutais usados no campo. Esses homens endurecidos mental e moralmente recusavam, pelo menos, tomar parte ativa nas medidas sádicas. Mas não impediam outros de as executarem.

Quarto, tem de ser dito aqui que até mesmo entre os guardas havia alguns que tinham pena de nós. Refiro somente o comandante do campo do qual fui libertado. Ficou a saber-se após a libertação – só o médico do campo, ele mesmo um prisioneiro, soubera disso previamente – que esse homem tinha pago uma grande quantidade de dinheiro do seu próprio bolso para comprar medicamentos para os presos na cidade mais próxima.6 O guarda principal do campo, ele mesmo um preso, era mais duro do que qualquer um dos guardas das SS. Batia nos outros presos à mais pequena oportunidade, mas o comandante do campo, que eu tenha sabido, nunca levantou a mão contra nenhum de nós.

Torna-se evidente que o mero conhecimento de que um homem era guarda do campo ou prisioneiro não nos diz quase nada. A bondade humana pode encontrar-se em todos os grupos, mesmo naqueles que seria fácil condenar como um todo. As fronteiras entre os grupos sobrepunham-se e não devemos tentar simplificar as coisas dizendo que estes eram anjos e aqueles eram demónios. Era, por certo, um feito considerável para um guarda ou para um capataz ser simpático para com os prisioneiros, apesar de todas as influências do campo e, por outro lado, a baixeza de um preso que tratava mal os seus próprios companheiros era excecionalmente desprezível. Como é óbvio, os prisioneiros consideravam a falta de caráter de tais homens particularmente perturbadora, ao passo que se sentiam profundamente comovidos pela mais pequena delicadeza recebida da parte de qualquer um dos guardas. Recordo como um dia um capataz me deu secretamente um pedaço de pão que eu sabia ter sido provavelmente poupado da sua ração do pequeno-almoço. Foi muito mais do que o pequeno pedaço de pão que nesse momento me comoveu até às lágrimas. Foi aquele «algo» humano que esse homem também me deu – a palavra e o olhar que acompanharam a dádiva.

De tudo isto podemos aprender que há duas raças de homens neste mundo e só estas duas – a «raça» dos homens decentes e a «raça» dos homens indecentes. Podemos encontrar uma e outra por todo o lado; elas permeiam todos os grupos sociais. Nenhum desses grupos consiste inteiramente de pessoas decentes ou indecentes. Neste sentido, nenhum grupo é uma «raça pura» – e podíamos, portanto, encontrar ocasionalmente uma pessoa decente entre os guardas do campo.

A vida num campo de concentração rasgava a alma humana e expunha as suas profundezas. Será surpreendente que nessas profundezas pudéssemos encontrar apenas qualidades humanas que, pela sua própria natureza, eram uma mistura de bem e de mal? A fenda que separa o bem do mal, e que abrange todos os seres humanos, alcança as mais recônditas profundezas e torna-se visível até mesmo no fundo do abismo aberto pelo campo de concentração.

E alcançamos agora o último capítulo da psicologia dos campos de concentração – a psicologia do prisioneiro que foi libertado. Ao descrever as experiências da libertação, que naturalmente têm de ser pessoais, vamos pegar nos fios daquela parte da nossa narrativa em que falámos da manhã em que a bandeira branca foi içada sobre os portões do campo após dias de muita tensão. Este estado de suspense interior foi seguido de uma descompressão total. Mas seria totalmente errado pensar que ficámos loucos de alegria. O que aconteceu então?

Com passos cansados, nós, os presos, arrastámo-nos até aos portões do campo. Timidamente, observámos tudo em redor e olhámos uns para os outros com ar interrogativo. Depois, arriscámos alguns passos fora do campo. Desta vez, nenhuma ordem nos foi gritada, nem foi necessário esquivarmo-nos com rapidez para evitar um murro ou um pontapé. Oh não! Desta vez os guardas ofereciam-nos cigarros! Tivemos alguma dificuldade em reconhecê-los de imediato; tinham-se mudado à pressa e vestiam roupas civis. Caminhámos lentamente ao longo da estrada que saía do campo. As nossas pernas ficaram doridas ao fim de pouco tempo e ameaçaram ceder. Mas seguimos em frente, a coxear; queríamos ver os arredores do campo pela primeira vez com os olhos de homens livres. «Liberdade» – repetíamos para nós mesmos, e no entanto não percebíamos a palavra. Pronunciámo-la tantas vezes durante todos esses anos em que sonhámos com ela que tinha perdido o significado. A sua realidade não entrava na nossa consciência; não conseguíamos perceber o facto de a liberdade ser nossa.

Chegámos a uns prados cheios de flores. Vimos e compreendemos que estavam diante de nós, mas não sentíamos nada. A primeira centelha de alegria chegou quando vimos um galo com uma cauda de penas multicolores. Mas foi só uma centelha; ainda não pertencíamos àquele mundo.

Ao fim da tarde, quando nos encontrámos novamente na caserna, um dos presos disse a outro em segredo: «Diz-me uma coisa, hoje sentiste-te satisfeito?»

E o outro respondeu, sentindo vergonha porque desconhecia que todos sentíamos o mesmo: «Para dizer a verdade, não!» Tínhamos, literalmente, perdido a capacidade de sentir contentamento e tínhamos de o reaprender lentamente.

A nível psicológico, o que se estava a passar com os prisioneiros libertados podia chamar-se «despersonalização». Tudo parecia irreal, improvável, como num sonho. Não conseguíamos acreditar que era verdade. Quantas vezes, ao longo dos últimos anos, tínhamos sido enganados por sonhos! Sonhávamos que tinha chegado o dia da libertação, éramos postos em liberdade, regressávamos a casa, reencontrávamos os amigos, abraçávamos as nossas mulheres e, sentados à mesa, contávamos tudo aquilo por que tínhamos passado – até mesmo como tínhamos visto tantas vezes em sonhos o dia da nossa libertação. E então – um apito agudo soava, era o sinal de levantar, e os nossos sonhos de liberdade chegavam ao fim. E agora o sonho tornara-se realidade. Mas conseguíamos realmente acreditar?

O corpo tem menos inibições do que o espírito. Fez bom uso da nova liberdade desde o primeiro momento. Começou a comer de forma voraz, horas e dias a fio, até mesmo durante a noite. É incrível a quantidade de comida que conseguimos ingerir. E quando um dos presos era convidado por um agricultor amigável das vizinhanças, comia e voltava a comer e depois bebia café, o que lhe soltava a língua e o punha a falar, por vezes durante horas. A pressão que estivera na sua mente durante anos era libertada por fim. Ao ouvi-lo falar, ficava-se com a impressão de que tinha de falar, de que o seu desejo de conversar era irresistível. Tenho conhecido pessoas que estiveram sob grande pressão somente durante um curto período de tempo (durante um interrogatório da Gestapo, por exemplo) e tiveram uma reação idêntica. Decorriam muitos dias até ser libertada, não só a língua, mas também alguma coisa dentro de nós; e então, de súbito, a emoção quebrava as estranhas cadeias que a tinham mantido presa.

Um dia, pouco depois da libertação, caminhei muitos quilómetros pelos campos, ao longo de prados floridos, até à cidade mais próxima do campo de concentração. Cotovias levantavam voo em direção ao céu e eu ouvia o seu cantar alegre. Não se via ninguém nos quilómetros em redor; não havia nada senão a terra imensa, o céu, o júbilo das cotovias e a liberdade daquele espaço. Parei, olhei em volta e depois olhei para o céu – e então ajoelhei-me. Naquele momento sabia muito pouco sobre mim mesmo e sobre o mundo. Tinha somente uma frase na cabeça, sempre a mesma: «Chamei o Senhor do estreito espaço da minha cela e Ele respondeu-me na imensidão livre do espaço».

Por quanto tempo estive ajoelhado a repetir esta frase já não consigo lembrar-me. Mas sei que nesse dia, naquela hora, a minha nova vida começou. Progredi passo a passo, até me tornar um ser humano de novo.

O caminho que permitiu sair da tensão mental aguda dos últimos dias no campo de prisioneiros (daquela guerra de nervos para a paz mental) não foi por certo livre de obstáculos. Seria um erro pensar que os prisioneiros libertados já não precisavam de cuidados espirituais. Temos de ter em conta que um homem que esteve sob uma tão imensa pressão mental durante tanto tempo corre naturalmente alguns riscos após a libertação, especialmente porque a pressão foi soltada de forma súbita. Este perigo (no sentido da higiene psicológica) é o correspondente psicológico da doença de descompressão7. Assim como a saúde física daqueles que trabalham em caixas de ar comprimido ficaria em perigo se deixassem a câmara de mergulho de repente (quando estão sob uma pressão atmosférica enorme), assim também o homem que foi libertado subitamente da pressão mental pode sofrer danos na sua saúde moral e espiritual.

Durante esta fase psicológica era possível verificar que homens com naturezas de um género mais primitivo não conseguiam escapar às influências da brutalidade que os tinha cercado no campo de concentração. Agora, estando libertos, pensavam poder usar a liberdade de forma licenciosa e cruel. Para eles, a única coisa que mudara é que agora eram os opressores em vez dos oprimidos. Tornaram-se instigadores, em vez de objetos da opressão e da injustiça. Justificaram esse comportamento com as suas próprias experiências terríveis. Isto revelava-se com frequência em acontecimentos aparentemente insignificantes. Um amigo caminhava comigo por um prado em direção ao campo quando de súbito deparámos com um terreno cultivado. De modo automático, evitei pisá-lo, mas ele meteu o braço no meu e arrastou-me pelo meio dele. Gaguejei qualquer coisa sobre não estragar as colheitas. Ficou irritado, lançou-me um olhar raivoso e gritou: «Não me digas! E não te parece que já nos arrancaram bastante? A minha mulher e o meu filho foram gaseados, já para não falar de tudo o resto, e tu ias proibir-me de pisar uns quantos pés de aveia!»

Só muito lentamente seria possível levar estes homens a reconhecerem de novo essa verdade trivial de que ninguém tem o direito de fazer mal a outros, nem mesmo quando alguém lhes fez mal primeiro. Teríamos de esforçar-nos para os levar a ver esta verdade, ou as consequências seriam bem piores do que a perda de uns quantos milhares de pés de aveia. Ainda consigo ver o prisioneiro que arregaçou as mangas da camisa, pôs a mão direita debaixo do meu nariz e gritou: «Que me cortem esta mão se não a manchar de sangue no dia em que for para casa!» Quero sublinhar que o homem que disse isto não era má pessoa. Tinha sido o melhor dos camaradas no campo e continuou a sê-lo depois disso.

Para lá da deformidade moral resultante da libertação súbita da pressão mental, havia duas outras experiências fundamentais que ameaçavam prejudicar o caráter do preso libertado: a amargura e a desilusão no momento do regresso à vida anterior.

A amargura era causada por uma série de coisas que tinha de enfrentar na sua antiga cidade. Quando, ao regressar, uma pessoa reparava que em muitos sítios era recebida somente com um encolher de ombros e com frases banais, tendia a ficar amargurada e a perguntar-se por que razão tinha passado por tudo aquilo. Quando ouvia essas frases praticamente em todo o lado – «Não sabíamos o que se passava» e «Também nós sofremos muito», então essa pessoa perguntava-se: não terão mesmo nada melhor para me dizer?

A experiência da desilusão é diferente. Nesse caso, não eram os nossos semelhantes (cuja superficialidade e falta de sentimentos eram tão repugnantes que uma pessoa acabava por sentir vontade de se meter num buraco e não voltar a ver nem a ouvir seres humanos nunca mais), mas o próprio destino que se afigurava tão cruel. Um homem que durante anos pensara ter atingido o limite absoluto de todo o sofrimento possível descobria agora que o sofrimento não tem limites e que podia sofrer ainda mais e com maior intensidade.

Quando falámos sobre os esforços para dar coragem mental a um homem no campo, dissemos que era preciso mostrar-lhe alguma coisa que pudesse motivá-lo no futuro. Era preciso lembrar-lhe que a vida ainda estava à espera dele, que um ser humano esperava o seu regresso. Mas, e depois da libertação? Havia alguns que descobriam que ninguém estava à sua espera. Pobre daquele que, quando o dia dos seus sonhos finalmente chegou, se viu perante uma coisa muito diferente de quanto tinha ansiado! Talvez tenha tomado um elétrico, tenha ido até à casa que durante anos viu em pensamentos, e só em pensamentos, tenha tocado à campainha, tal como desejou fazer em milhares de sonhos, para descobrir que a pessoa que deveria abrir-lhe a porta não estava lá e não voltaria a estar nunca mais.

Todos dissemos uns aos outros no campo que não podia haver felicidade terrena capaz de compensar tudo quanto tínhamos sofrido. Não estávamos à espera de felicidade – não foi isso que nos deu coragem e que deu significado ao nosso sofrimento, aos nossos sacrifícios e à nossa morte. E, no entanto, não estávamos preparados para a infelicidade. Esta desilusão, que aguardava um grande número de prisioneiros, foi uma experiência que esses homens tiveram imensa dificuldade em superar e foi igualmente difícil para qualquer psiquiatra que tenha tentado ajudá-los. Mas isso não tem de ser desencorajador; pelo contrário, deve constituir um estímulo adicional.

Mas chega um dia em que todos os prisioneiros libertados, olhando para as experiências passadas no campo, deixam de ser capazes de entender como resistiram a tudo aquilo. Assim como o dia da libertação acabou por chegar e tudo lhes pareceu um sonho lindo, assim também chega um dia em que todas as experiências do campo lhes parecem pura e simplesmente um pesadelo.

A experiência suprema entre todas, para o homem que regressa a casa, é o sentimento maravilhoso de que, depois de tudo quanto sofreu, não há mais nada a temer – exceto o seu Deus.

2 Delusion of reprieve, na versão inglesa. (N. do T.)

3 «Cântico dos Cânticos 8.6», Bíblia Sagrada. (N. do T.)

4 Conto popular persa. (N. do T.)

5 O filme referido é possivelmente a adaptação de 1931 de «Ressurreição», realizada por Edwin Carewe. (N. do T.)

6 Um incidente interessante a respeito deste comandante das SS prende-se com a atitude de alguns presos judeus em relação a ele. No fim da guerra, quando as tropas americanas libertaram os prisioneiros do nosso campo, três jovens judeus húngaros esconderam esse comandante nos bosques da Baviera. Foram depois ter com o comandante das forças americanas, que estava ansioso por capturar esse comandante das SS, e disseram-lhe que revelariam onde estava, mas só sob certas condições: o comandante americano tinha de prometer que absolutamente nada de mal aconteceria a esse homem. Decorrido algum tempo, o oficial americano prometeu finalmente a esses jovens judeus que, depois da captura, o comandante das SS seria mantido em segurança. O oficial americano não só manteve a sua promessa, como, na realidade, fez com que o antigo comandante daquele campo de concentração fosse de certa forma reinstalado no comando, pois supervisionou a recolha de roupas nas aldeias bávaras mais próximas e a sua distribuição a todos nós, que nessa altura ainda vestíamos as roupas herdadas de outros presos do Campo de Auschwitz que não foram tão afortunados como nós, tendo sido enviados para as câmaras de gás imediatamente após a chegada à estação.

7 Também conhecida como doença do mergulhador. (N. do T.)