Em defesa de um otimismo trágico27
Comecemos por perguntar-nos o que deve entender-se por «otimismo trágico». De forma abreviada, significa que uma pessoa é otimista, e continua sempre a sê-lo, independentemente da «tríade trágica», como é designada na logoterapia, uma tríade que consiste naqueles aspetos da existência humana que podem ser circunscritos por: 1) dor; 2) culpa; e 3) morte. De facto, este capítulo levanta a questão: Como é possível dizer sim à vida apesar de tudo isso? Como, para colocar a questão de forma diferente, pode a vida reter o seu potencial de sentido apesar dos aspetos trágicos? Afinal de contas, «dizer sim à vida apesar de tudo», para usar uma frase na qual se inspirou o título de um livro meu publicado em alemão, pressupõe que a vida tem potencialmente significado em quaisquer circunstâncias, mesmo nas mais miseráveis. E isto pressupõe, por seu lado, a capacidade humana de transformar criativamente os aspetos negativos da vida em algo positivo e construtivo. Por outras palavras, o que importa é conseguir o melhor de qualquer situação. «O melhor» é, no entanto, aquilo que em latim se refere como optimum – daí falar de um otimismo trágico, isto é, de um otimismo ante a tragédia e em vista do potencial humano que, quando no seu melhor, permite sempre: 1) transformar o sofrimento em realização e aperfeiçoamento humano; 2) retirar da culpa a oportunidade de nos mudarmos para melhor; e 3) retirar da transitoriedade da vida um incentivo para levar a cabo ações responsáveis.
Convém ter em mente, no entanto, que o otimismo não é algo que possa ser controlado ou requisitado. Uma pessoa não pode sequer ser otimista de forma indiscriminada, contra tudo e todos, contra qualquer esperança. E o que é válido para a esperança é-o também para os outros dois componentes da tríade, na medida em que a fé e o amor não podem igualmente ser controlados nem requisitados.
Para os europeus, é uma característica da cultura americana o facto de, uma e outra vez, se pedir às pessoas para «serem felizes». Mas a felicidade não pode ser procurada; tem de resultar de algo. Uma pessoa tem de ter uma razão para «estar feliz». Todavia, logo que essa razão é encontrada, ficamos felizes automaticamente. Como se pode ver, um ser humano não é alguém em busca da felicidade, mas antes à procura de uma razão para ficar feliz, mediante a efetivação do sentido potencial inerente, e adormecido, numa dada situação.
Esta necessidade de uma razão é semelhante noutro fenómeno especificamente humano: o riso. Se queremos que alguém se ria temos de lhe dar uma razão, temos, por exemplo, de contar uma anedota. Não é de forma alguma possível evocar o riso a pedido, nem instar uma pessoa a provocar em si própria esse riso. Fazê-lo seria o mesmo que instar pessoas colocadas em frente a uma máquina fotográfica para sorrirem, e acabar por descobrir nas fotos rostos paralisados em esgares artificiais.
Na logoterapia, esse padrão de comportamento é designado «hiper-intenção». Desempenha um papel importante no desencadear de neuroses sexuais, sejam elas a frigidez ou a impotência. Quanto mais um paciente, em vez de se esquecer de si mesmo para se entregar, se esforça diretamente para chegar ao orgasmo, isto é, ao prazer sexual, tanto mais a sua busca de prazer se anula a si mesma. Na verdade, aquilo que se designa como «princípio de prazer» é, isso sim, um desmancha-prazeres.
Logo que a busca de sentido de um indivíduo tem sucesso, isso não só o torna feliz como lhe dá a capacidade de lidar com o sofrimento. E o que acontece se a procura de um sentido tiver sido em vão? Isso pode muito bem resultar num estado fatal. Recordemos, por exemplo, o que aconteceu por vezes em situações extremas como os campos de prisioneiros de guerra ou os campos de concentração. Nos primeiros, como me foi dito por soldados americanos, havia um padrão de comportamento cristalizado ao qual se referiam como «desistite»28. Nos campos de concentração, este comportamento tinha paralelo no daqueles que, às cinco da manhã, recusavam sair da cama e ir trabalhar, ficando na caserna, deitados na palha molhada de urina e fezes. Nada – nem avisos nem ameaças – conseguia levá-los a mudar de atitude. E acontecia, então, algo típico: tiravam um cigarro do fundo de um bolso, onde o tinham escondido, e começavam a fumar. Naquele momento sabíamos que nas próximas 48 horas, pouco mais ou menos, íamos vê-los morrer. A orientação de sentido tinha-se desvanecido e, em consequência, a busca de prazer imediato tinha assumido o controlo.
Isto não faz recordar outra coisa, algo com que nos vemos confrontados todos os dias? Estou a pensar naqueles jovens que, a uma escala mundial, se referem a si próprios como a geração «sem futuro». Na verdade, não se limitam a recorrer a cigarros; usam drogas.
De facto, a questão das drogas é um aspeto de um fenómeno de massas mais generalizado, a saber, o sentimento de falta de sentido que resulta da frustração das nossas necessidades existenciais, algo que, por sua vez, se tornou um fenómeno universal nas nossas sociedades industrializadas. Hoje em dia, não são apenas os logoterapeutas a afirmar que o sentimento de falta de sentido desempenha um papel de crescente importância na etiologia das neuroses. Como revela Irvin D. Yalom, da Universidade de Stanford, no seu livro Existential Psychotherapy: «De quarenta pacientes consecutivos que recorreram a tratamento numa clínica psiquiátrica, doze (30 por cento) tinham algum problema importante relacionado com o sentido (como foi determinado por auto-avaliações, por avaliações terapêuticas e por juízes independentes).»29 Milhares de quilómetros a leste de Palo Alto, a situação diverge somente em um por cento; as mais recentes estatísticas pertinentes indicam que, em Viena, 29 por cento da população se queixa de uma ausência de sentido na sua vida.
Quanto à causa do sentimento de falta de sentido, podemos dizer, embora de maneira muito simplificada, que as pessoas têm muito com que viver mas nada pelo que viver; possuem os meios mas não têm um sentido. A dizer a verdade, alguns nem sequer têm os meios. Penso, em particular, na imensa massa de pessoas que estão desempregadas. Publiquei, há 50 anos, um estudo30 dedicado a um tipo específico de depressão que diagnostiquei em casos de pacientes jovens sofrendo do que designei «neurose de desemprego». E consegui mostrar que este tipo de neurose tem realmente origem numa identificação duplamente errada: estar desempregado era considerado equivalente a ser inútil, e ser inútil era considerado equivalente a ter uma vida sem sentido. Em consequência, sempre que consegui persuadir os pacientes a oferecerem os seus préstimos a organizações juvenis, a centros de educação de adultos, a bibliotecas públicas e coisas semelhantes – por outras palavras, logo que consegui preencher o seu abundante tempo livre com algum tipo de atividade não remunerada mas com sentido – a depressão desapareceu, embora a situação económica de cada um não tenha mudado e a sua fome fosse a mesma. A verdade é que o Homem não vive somente de bem-estar e prosperidade.
A par da neurose de desemprego, que é desencadeada pela situação socioeconómica, existem outros tipos de depressão que podem ligar-se a condições psicodinâmicas ou bioquímicas, consoante os casos. Por consequência, a psicoterapia é a mais indicada no primeiro tipo de casos e a terapia com fármacos nos segundos. No entanto, quando estamos a lidar com o sentimento de falta de sentido não devemos ignorar nem esquecer que, por si, isso não é matéria patológica; não só não é sinal e sintoma de uma neurose, como é, diria eu, a prova da nossa humanidade. Mas, embora não seja causado por nada de patológico, pode muito bem causar uma reação patológica; por outras palavras, é potencialmente patogénico. Basta pensar na síndrome neurótica de massas tão frequente na geração mais jovem: há bastas provas empíricas de que as três facetas desta síndrome – depressão, agressão e vício – se devem ao que em logoterapia se chama «o vácuo existencial», um sentimento de vazio e de falta de sentido das coisas.
Escusado será dizer que nem todos os casos de depressão podem relacionar-se com um sentimento de falta de sentido e também não é verdade que o suicídio – no qual a depressão por vezes vai desembocar – resulte sempre de um vazio existencial. Mas ainda que todos e cada um dos casos de suicídio não tenham sido levados a cabo por causa de um sentimento de ausência de sentido, pode muito bem ser verdade que o impulso de uma pessoa para acabar com a sua própria vida pudesse ter sido superado caso essa pessoa estivesse consciente de algum sentido e propósito pelo qual valesse a pena viver.
Assim sendo, se uma forte orientação de sentido desempenha um papel decisivo na prevenção do suicídio, o que dizer da intervenção em casos em que há o risco de suicídio? No início da minha carreira de médico passei quatro anos no maior hospital da Áustria, onde era o responsável pelo pavilhão dos pacientes com depressões profundas – a maioria dos quais tinha dado entrada após tentativas de suicídio. Fiz uma vez um cálculo e penso que terei examinado doze mil pacientes durante esses quatro anos. O que, acumulado, representava uma apreciável bagagem de experiência, à qual ainda recorro sempre que me vejo confrontado com alguém propenso ao suicídio. Explico a essa pessoa que os pacientes que tratei me disseram repetidamente como se sentiam felizes pelo facto de a tentativa de suicídio não ter sido bem-sucedida; semanas, meses, anos depois diziam-me que afinal havia uma solução para o seu problema, uma resposta para as suas interrogações, um sentido para a sua vida. «Ainda que as coisas só tenham esse desenlace feliz em um de cada mil casos», prossigo assim a minha explicação, «quem pode garantir que no seu caso isso não vai acontecer um dia, mais cedo ou mais tarde? Mas, em primeiro lugar, tem de viver para ver chegar o dia em que isso pode acontecer, tem por isso de sobreviver de modo a poder ver esse dia, e de hoje em diante a responsabilidade pela sobrevivência nunca o vai deixar.»
Em relação à segunda faceta da síndrome neurótica de massas – a agressão – permitam-me que refira uma experiência levada a cabo por Carolyn Wood Sherif. Ela conseguiu criar artificialmente situações de agressão mútua entre grupos de escuteiros e verificou que as agressões só diminuíam quando os jovens se empenhavam juntos num objetivo comum – isto é, na tarefa conjunta de puxar para fora de uma poça de lama a carruagem usada para transportar comida para o acampamento. De imediato se sentiram não apenas desafiados a realizar alguma coisa, mas igualmente unidos por um sentido que tinham de preencher.31
Quanto à terceira questão, a dependência ou vício, recordo-me das descobertas apresentadas por Annemarie von Forstmeyer que fez notar que, como revelavam testes e estatísticas, 90 por cento dos alcoólicos que estudou tinham sofrido de um sentimento abissal de falta de sentido. Quanto aos viciados em drogas estudados por Stanley Kripper, 100 por cento estavam convencidos de que «as coisas pareciam não ter sentido».32
Voltemos agora a nossa atenção para a questão relativa ao próprio sentido. Para começar, gostaria de esclarecer que, em primeiro lugar, o logoterapeuta está preocupado com o sentido potencial herdado e adormecido em todas as situações que uma pessoa tem de enfrentar ao longo da vida. Por conseguinte, não me debruçarei aqui sobre o significado da vida como um todo, embora não negue que um tal significado abrangente exista de facto. Para usar uma analogia, imaginemos um filme: consiste em milhares sobre milhares de imagens individuais, e cada uma delas faz sentido e tem um significado, contudo o significado de todo o filme não pode discernir-se antes de a última sequência ser mostrada. No entanto, não podemos entender o filme sem primeiro ter compreendido cada um dos seus componentes, cada uma das imagens individualizadas. Não acontecerá o mesmo com a vida? O significado da vida não se revelará somente, se é que se revela, no final, à beira da morte? E esse significado final não dependerá, também, de que o significado potencial de cada situação tenha sido efetivado até ao limite do melhor conhecimento e convicção do respetivo indivíduo?
Não deixa de continuar a ser verdade que o sentido, e a perceção do mesmo, tal como olhados de um ponto de vista logoterapêutico, são completamente terra-a-terra e próximos da realidade, e não vagos ou residentes numa torre de marfim. De uma forma genérica, eu localizaria o conhecimento do sentido – do sentido pessoal de uma situação concreta – a meio caminho entre uma experiência «aha», semelhante à definida no conceito de Karl Bühler e, por exemplo, uma perceção Gestalt, semelhante à definida na teoria de Max Wertheimer. A perceção do sentido difere do conceito clássico da perceção Gestalt na medida em que esta última implica a consciência súbita de uma «figura» sobre «um fundo», enquanto a perceção do sentido, tal como eu a vejo, acaba por ser mais especificamente a tomada de consciência de uma possibilidade sobre o fundo de realidade que a envolve ou, para o dizer de forma mais simples, o ganhar consciência do que pode ser feito com uma dada situação.
E como é que um ser humano anda por aí a descobrir sentido? Como Charlotte Bühler afirmou: «Tudo quanto podemos fazer é estudar as vidas das pessoas que parecem ter encontrado respostas próprias às questões sobre aquilo em que consiste a vida humana em última análise e compará-las com as que não conseguiram fazê-lo»33. Além desta abordagem biográfica podemos, contudo, levar igualmente a cabo uma abordagem biológica. A logoterapia concebe a consciência como algo semelhante a um ponto no teatro, que, se necessário, indica a direção em que temos de seguir numa dada situação da vida. De modo a levar a cabo tal tarefa, a consciência tem de aplicar uma medida de referência à situação com que nos vemos confrontados, e essa situação tem de ser avaliada à luz de um conjunto de critérios, à luz de uma hierarquia de valores. Estes valores não podem, todavia, ser defendidos e adotados por nós a um nível consciente – constituem algo que nós somos. Cristalizaram no decurso da evolução da espécie; estão fundados no nosso passado biológico e enraizados nas nossas profundezas biológicas. Konrad Lorenz podia ter algo de semelhante em mente quando criou o conceito de um a priori biológico; e quando discutimos recentemente a minha perspetiva sobre os fundamentos biológicos do processo de avaliação, ele manifestou de forma entusiástica o seu acordo. Seja como for, se existe um entendimento de si pré-reflexivo e axiológico, podemos presumir que está, em última instância, ancorado na nossa herança biológica.
Como ensina a logoterapia, há três vias principais que nos conduzem ao sentido da vida. A primeira delas consiste em criar uma obra ou realizar um feito. A segunda consiste em viver uma experiência marcante ou encontrar uma pessoa especial; por outras palavras, o sentido pode ser encontrado não somente no trabalho mas também no amor. Edith Weisskopf-Joelson observou, neste contexto, que a noção logoterapêutica de que «viver uma experiência pode ter tanto valor como alcançar alguma coisa tem um efeito terapêutico, porque compensa a nossa ênfase assimétrica no mundo exterior das realizações à custa do mundo interior das experiências»34.
Mais importante, todavia, é a terceira via para o sentido da vida: mesmo a vítima indefesa de uma situação irremediável, colocada ante um destino que não pode mudar, pode erguer-se acima de si mesma, pode crescer para além de si mesma, e desse modo mudar quem é. Pode transformar uma tragédia pessoal numa vitória. Uma vez mais, foi Edith Weisskopf-Joelson quem, como referi no capítulo sobre o sentido do sofrimento, expressou uma vez a esperança de que a logoterapia «possa ajudar a contrariar algumas tendências pouco saudáveis da cultura atual dos EUA, onde o doente incurável tem escassas oportunidades de sentir orgulho no seu sofrimento e de o considerar enobrecedor em vez de degradante», de tal modo que «ele sente-se não só infeliz, como também envergonhado por estar infeliz».
Durante um quarto de século dirigi o departamento de neurologia de um hospital público e fui testemunha da capacidade dos meus pacientes de transformarem as suas situações dramáticas em realizações. Além desta experiência prática, existem também provas empíricas que confirmam a possibilidade de as pessoas encontrarem sentido no sofrimento. Investigadores da Escola de Medicina da Universidade de Yale «ficaram impressionados com o número de prisioneiros de guerra da guerra do Vietname que afirmou explicitamente que, embora o cativeiro tenha sido extremamente duro – devido à tortura, às doenças, à alimentação precária e à detenção em isolamento – apesar de tudo… beneficiou com a situação, encarando-a como uma experiência de crescimento».35
Mas os mais fortes argumentos em favor de um «otimismo trágico» são aqueles que em latim se designam argumenta ad hominem. Para dar um exemplo, Jerry Long é uma testemunha viva do «poder desafiador do espírito humano», como é designado pela logoterapia36. Citando a Texarkana Gazette, «Jerry Long está paralisado do pescoço para baixo desde que, há três anos, um acidente de mergulho o deixou tetraplégico. Tinha dezassete anos quando o acidente teve lugar. Hoje, Long consegue usar um ponteiro bucal para escrever no computador. “Frequenta” dois cursos no Community College por meio de um telefone especial. O intercomunicador permite a Long ouvir e participar nas discussões da aula. Ocupa ainda o seu tempo a ler, a ver televisão e a escrever». E, numa carta que recebi dele, diz: «Encaro a minha vida como estando cheia de sentido e de objetivos. A atitude que adotei naquele dia fatídico tornou-se o meu credo pessoal de vida: parti o pescoço, mas isso não me derrotou. Estou atualmente inscrito no meu primeiro curso de psicologia na universidade. Estou convencido de que a minha deficiência só aumentará a minha capacidade para ajudar os outros. Sei que, sem o sofrimento, o crescimento que alcancei não teria sido possível.»
Quererá isto dizer que o sofrimento é indispensável à descoberta de sentido? De modo algum. Insisto somente em que o sentido está ao nosso alcance apesar do sofrimento – ou melhor, até mesmo no meio dele – desde que, como fiz notar na segunda parte deste livro, esse sofrimento seja inevitável. Caso seja evitável, a coisa sensata a fazer é afastar a sua causa, pois o sofrimento desnecessário é masoquista e não heroico. Se, por outro lado, uma pessoa não puder alterar uma situação causadora de sofrimento, pode ainda assim escolher a sua atitude.37 Long não escolheu partir o pescoço, mas decidiu realmente não se deixar vencer pelo que lhe aconteceu.
Como podemos ver, a prioridade cabe à criatividade para mudar a situação causadora do nosso sofrimento. Mas a superioridade vai para o «saber como sofrer», se não tivermos como evitá-lo. E existem provas empíricas de que – literalmente – o «homem comum» partilha dessa opinião. Estudos de opinião pública na Áustria revelaram recentemente que as pessoas mais estimadas pela maioria dos inquiridos não são nem os grandes artistas, nem os grandes cientistas, nem os grandes estadistas, nem mesmo as grandes figuras do desporto, mas sim aqueles que conseguiram superar de cabeça erguida um destino difícil.
Ao voltar a atenção para o segundo aspeto da tríade trágica, a culpa, gostaria de começar por um conceito teológico que sempre me fascinou. Refiro-me ao que se designa como mysterium iniquitatis, significando isso, tal como eu o entendo, que um crime permanece, em última análise, inexplicável, na medida em que não pode ser inteiramente relacionado com fatores biológicos, psicológicos e/ou sociológicos. Explicar por inteiro o crime de alguém equivaleria a dar uma explicação da culpa dessa pessoa e em ver nela, não um ser humano livre e responsável, mas sim uma máquina com necessidade de reparação. Até mesmo os criminosos detestam este tipo de tratamento e preferem ser responsabilizados pelos seus atos. Recebi uma carta de um recluso a cumprir pena numa penitenciária do Illinois na qual lamenta que «o criminoso nunca tenha a possibilidade de explicar o que fez. Dão-lhe a escolher entre várias desculpas. Culpa-se a sociedade e, em muitos casos, a culpa é imputada à vítima». Além disso, quando falei com os presos de San Quentin, disse-lhes: «Vocês são seres humanos como eu, e como tal tiveram a liberdade de cometer um crime, de se tornarem culpados. Contudo, são responsáveis agora por ultrapassar a culpa erguendo-se acima dela, crescendo para além de vós mesmos, mudando para melhor». Sentiram-se compreendidos.38 E de Frank E. W., um antigo preso, recebi uma nota na qual declarava que tinha criado «um grupo de logoterapia para antigos criminosos. Somos 27 e os mais recentes estão a conseguir manter-se fora da prisão graças à força que lhes dão os outros do grupo original. Só um deles voltou e agora já está em liberdade»39.
Quanto ao conceito de culpa coletiva, penso, pessoalmente, que é inteiramente injustificado considerar alguém responsável pelo comportamento de outra pessoa ou de um conjunto de pessoas. Desde o final da Segunda Guerra Mundial não me tenho cansado de batalhar publicamente contra o conceito de culpa coletiva.40 No entanto, é por vezes necessário um conjunto de truques didáticos para afastar as pessoas das suas superstições. Uma americana confrontou-me uma vez, fazendo-me a seguinte reprimenda: «Como é que ainda consegue escrever alguns dos seus livros em alemão, a língua de Adolf Hitler?» Em resposta, perguntei-lhe se tinha facas na cozinha, e quando ela respondeu que sim, fingi-me consternado e chocado, exclamando: «Como é que ainda consegue usar facas depois de tantos assassinos as terem usado para apunhalar e matar as suas vítimas?» Deixou de fazer objeções aos meus livros em alemão.
O terceiro aspeto da tríade trágica diz respeito à morte. Mas diz também respeito à vida, pois em qualquer altura, cada um dos momentos que compõem a vida está a morrer, e esses momentos nunca mais voltam. E, no entanto, não será essa transitoriedade um alerta que nos desafia a fazer o melhor uso possível de cada momento das nossas vidas? Por certo que é, e daí o meu imperativo: Vive como se fosse pela segunda vez e tivesses agido da primeira vez de forma tão errada como estás à beira de agir agora.
De facto, as oportunidades para agir de forma adequada, as potencialidades para preencher um sentido, são afetadas pela irreversibilidade das nossas vidas. Mas, por outro lado, só as potencialidades são afetadas dessa forma, pois, logo que usámos uma oportunidade e efetivámos um sentido potencial, fizemo-lo de uma vez por todas. Resgatámo-lo para o passado, onde foi entregue de modo seguro e onde ficou depositado. No passado, nada está perdido e sem remédio, antes pelo contrário, tudo está irrevogavelmente armazenado e tudo é devidamente apreciado. Na verdade, as pessoas tendem a ver apenas os campos ceifados da transitoriedade, mas ignoram e esquecem os celeiros cheios de passado, nos quais depositaram a colheita das suas vidas: o que fizeram, os amores que tiveram e, por último, mas não menos importante, os sofrimentos que enfrentaram com coragem e dignidade.
Podemos ver, por isso, que não há razões para lamentar os velhos. Os jovens deveriam, antes, invejá-los. É certo que os velhos não têm oportunidades, não têm possibilidades no futuro. Mas têm mais do que isso. Em vez de possibilidades no futuro, têm realidades no passado – as potencialidades que efetivaram, os significados que preencheram, os valores que realizaram – e nada nem ninguém pode alguma vez roubar esses bens ao passado.
Tendo em conta a possibilidade de descobrir sentido no sofrimento, o sentido da vida é incondicional, pelo menos potencialmente. Esse sentido incondicional é, no entanto, acompanhado pelo valor incondicional de todas as pessoas. É isso que assegura a qualidade indelével da dignidade do Homem. Assim como a vida permanece potencialmente significativa sob quaisquer condições, até mesmo nas mais miseráveis, assim também o valor de cada pessoa permanece com ela, e isso porque se baseia nos valores que realizou no passado, não dependendo da utilidade que essa pessoa possa reter no momento presente.
Para ser mais específico, essa utilidade é habitualmente definida tendo em conta o funcionamento em benefício da sociedade. Mas a sociedade atual é caracterizada pela orientação em função de realizações e, em consequência, adora pessoas bem-sucedidas e felizes e, muito especialmente, adora os jovens. Ignora virtualmente o valor de todos aqueles que não cabem nesse molde, e ao fazê-lo apaga a diferença decisiva entre ser valioso no sentido da dignidade e ser valioso no sentido da utilidade. Se uma pessoa não for sabedora desta diferença e mantiver que o valor de um indivíduo resulta somente da sua atual utilidade, então, podem acreditar, apenas a incongruência pessoal a levará a não defender um regime de eutanásia semelhante ao de Hitler, ou seja, um programa de mortes «piedosas» de todos quantos perderam a utilidade social, seja por causa da idade avançada, de doenças incuráveis, de deterioração mental, ou de qualquer outra incapacidade.
Confundir a dignidade do Homem com a mera utilidade resulta de uma confusão concetual que, por seu lado, tem origem no niilismo contemporâneo transmitido em muitas universidades e em muitos e muitos divãs de psicanálise. Até mesmo durante a formação analítica pode ter lugar uma tal doutrinação. O niilismo não defende que nada existe, mas declara que tudo está destituído de sentido. E George A. Sargent tinha razão quando publicou o conceito de «falta de sentido aprendida». Ele próprio recordou o caso de um terapeuta que lhe disse: «George, tens de perceber que o mundo é uma brincadeira. Não há justiça, tudo é casual e sem razão. Só quando puderes aceitar isto é que conseguirás compreender quão idiota é levarmo-nos a sério. Não há nenhum grande propósito no Universo. Pura e simplesmente existe. Não há um sentido especial em saber qual a decisão que vais tomar hoje sobre como agir.»41
Não devemos generalizar esta crítica. Em princípio, a formação é essencial, mas se assim é, os terapeutas deveriam encarar como sendo função sua imunizar os formandos contra o niilismo, em vez de os inocularem com o cinismo que mais não é que um mecanismo de defesa contra o seu próprio niilismo.
Os logoterapeutas podem até conformar-se com alguns dos parâmetros de formação e licenciamento estipulados para outras escolas de psicoterapia. Por outras palavras, podemos uivar com os lobos, se necessário, mas ao fazê-lo, deveremos ser, diria eu, ovelhas com pele de lobo. Não é necessário faltar à verdade do conceito básico de humanidade e aos princípios da filosofia da vida inerentes à logoterapia. Tal lealdade não é difícil de manter tendo em conta que, como referiu Elisabeth S. Lukas, «ao longo da história da psicoterapia, nunca existiu uma escola tão pouco dogmática como a logoterapia».42 E no Primeiro Congresso Mundial de Logoterapia (San Diego, Califórnia, 6 a 8 de Novembro, 1980) defendi não só a reumanização da psicoterapia, como também aquilo que designei «a deguruficação da logoterapia». Não me interessa criar papagaios capazes de reciclar «a voz do dono», mas sim passar o testemunho a «espíritos independentes e inventivos, criativos e inovadores».
Sigmund Freud declarou uma vez, «deixemos alguém tentar expor à fome um certo número dos mais diversificados tipos de pessoas. À medida que aumentar a necessidade imperativa da fome, todas as diferenças individuais tenderão a esbater-se e a dar lugar à expressão uniforme do único instinto por saciar». Graças a Deus, Freud foi poupado ao conhecimento dos campos de concentração por dentro. Os seus pacientes deitam-se num divã luxuoso de estilo vitoriano e não na imundície de Auschwitz. Aí, as «diferenças individuais» não se «apagaram», pelo contrário, as pessoas tornaram-se mais diferentes; as pessoas desmascararam-se, tanto os porcos como os santos. E hoje em dia já não precisamos de hesitar em usar a palavra «santos»: basta pensar no padre Maximilian Kolbe, forçado a passar fome e por fim assassinado com uma injeção de ácido carbólico em Auschwitz e que em 1983 foi canonizado.
O leitor pode sentir-se inclinado a censurar-me por invocar exemplos que constituem a exceção à regra. «Sed omnia praeclara tam difficilia quam rara sunt» (tudo o que é ilustre é tão difícil quanto raro), lê-se na última frase da Ética de Espinosa. Pode perguntar-se o leitor, naturalmente, se será realmente necessário falar de «santos». Não seria suficiente referir as pessoas decentes? É certo que estas constituem uma minoria. E, contudo, encaro esse facto como um desafio a engrossar a minoria. Pois o mundo está em muito mau estado, mas tudo se tornará ainda pior se cada um de nós não der o seu melhor.
Por isso, estejamos atentos – e atentos num duplo sentido:
Desde Auschwitz sabemos do que o Homem é capaz.
E desde Hiroshima sabemos o que está em jogo.
27 Este capítulo é baseado numa conferência que apresentei no Third World Congress of Logotherapy, na Universidade de Ratisbona, Alemanha Ocidental, em Junho de 1983.
28 Give-up-itis, na versão inglesa. (N. do T.)
29 Basic Books, Nova Iorque, 1980, pág. 448.
30 «Wirtschaftskrise und Seelenleben vom Standpunkt des Jugendberaters», Sozialärztliche Rundschau, Vol. 4 (1933), págs. 43-46.
31 Para mais informações sobre esta experiência, veja-se Viktor E. Frankl, The Unconscious God, Nova Iorque, Simon and Schuster, 1978, pág. 140; e Viktor E. Frankl, The Unheard Cry for Meaning, Nova Iorque, Simon and Schuster, 1978, pág. 36.
32 Para mais informações, veja-se The Unconscious God, págs. 97-100; e The Unheard Cry for Meaning, págs. 26-28.
33 «Basic Theoretical Concepts of Humanistic Psychology», American Psychologist, XXVI (Abril de 1971), pág. 378.
34 «The Place of Logotherapy in the World Today», The International Forum for Logotherapy, Vol. 1, n.º 3 (1980), págs. 3-7.
35 W. H. Sledge, J. A. Boydstun e A. J. Rabe, «Self-Concept Changes Related to War Captivity», Arch. Gen. Psychiatry, 37 (1980), págs. 430-443.
36 «The Defiant Power of the Human Spirit» foi, de facto, o título de uma conferência apresentada por Long no Third World Congress of Logotherapy, em Junho de 1983.
37 Nunca esquecerei uma entrevista que ouvi na TV da Áustria, concedida por um cardiologista polaco que, durante a Segunda Guerra Mundial, ajudou a organizar a revolta no gueto de Varsóvia. «Que feito heroico», exclamou o jornalista. «Oiça», respondeu calmamente o médico, «pegar numa arma e matar não é grande feito; mas se as SS o levarem para uma câmara de gás ou para uma vala comum para o executarem, e não puder fazer nada para o evitar – exceto seguir adiante com dignidade – está a ver, é a isso que eu chamo heroísmo». Heroísmo de atitude, por assim dizer.
38 Ver também Joseph B. Fabry, The Pursuit of Meaning, Nova Iorque, Harper and Row, 1980.
39 Conforme Viktor E. Frankl, The Unheard Cry for Meaning, Nova Iorque, Simon and Shuster, 1978, págs. 42-43.
40 Veja-se Viktor E. Frankl, Psychotherapy and Existentialism, Nova Iorque, Simon and Schuster, 1967.
41 «Transference and Countertransference in Logotherapy», The International Forum for Logotherapy, Vol. 5, N.º 2 (Outono/Inverno 1982), págs. 115-18.
42 A logoterapia não é imposta aos interessados em psicoterapia. Não pode comparar-se a um bazar oriental; é mais parecido com um supermercado. No primeiro, o cliente é levado a comprar alguma coisa. No último, são-lhe mostradas, e oferecidas, várias coisas de entre as quais ele pode escolher o que considerar útil e valioso.