DAY

Volto a ter pesadelos. Desta vez, com Tess.

Estou correndo nas ruas do Lake. À minha frente, Tess também está correndo, mas não sabe onde estou. Ela vira para a esquerda e a direita, desesperada para ver meu rosto, mas só encontra desconhecidos e guardas municipais e soldados. Grito o nome dela, mas minhas pernas mal conseguem se mexer, como se eu estivesse caminhando com dificuldade no lodo.

“Tess!” Grito. “Estou aqui, bem atrás de você!”

Ela não consegue me ouvir. Olho impotente quando ela esbarra num soldado, e quando ela tenta escapar dele, ele a agarra e a atira no chão. Grito alguma coisa. O soldado empunha a arma e a aponta para Tess. Então eu vejo que não é Tess, que é minha mãe, caída numa poça de sangue. Tento correr até ela, mas, em vez disso, eu me escondo atrás de uma chaminé num telhado, agachado como um covarde. É culpa minha ela estar morta.

Então de repente estou de volta ao laboratório do hospital, os médicos e as enfermeiras me rodeiam. Aperto os olhos sob a luz ofuscante. A dor repuxa minha perna. Estão abrindo meu joelho de novo, puxando minha carne para revelar os ossos, raspando-a com seus bisturis. Curvo as costas e grito. Uma das enfermeiras tenta me conter. Meu braço se debate, e derruba uma bandeja em algum lugar.

– Fica quieto! Droga, menino, não vou machucá-lo.

Demoro um minuto para acordar. A cena enevoada do hospital muda, então me dou conta de que estou olhando fixamente para uma luz fluorescente, e que um médico está me olhando. Ele usa óculos de proteção e máscara. Grito e tento me sentar reto, mas estou preso a uma mesa de operação por um par de cintos.

O médico suspira e abaixa a máscara, dizendo:

– Que absurdo! Eu tendo de pôr ataduras num criminoso, quando eu podia estar ajudando soldados do front.

Olho em volta, confuso. Guardas se enfileiram contra as paredes desta sala de hospital. Uma enfermeira está limpando equipamentos ensanguentados na pia.

– Onde estou?

O médico me olha, impaciente:

– Você está na ala hospitalar do Batalla Hall. A agente Iparis me ordenou que cuidasse de sua perna. Parece que não temos permissão para deixar você morrer antes de sua execução formal.

Levanto a cabeça ao máximo, e olho para minha perna. Ataduras limpas cobrem o ferimento. Quando tento mexer a perna um pouquinho, noto com surpresa que a dor diminuiu muito. Olho de relance para o médico e pergunto:

– O que foi que o senhor fez?

Ele apenas encolhe os ombros, tira as luvas e começa a lavar as mãos em uma das pias:

– Dei um jeito. Você vai poder ficar de pé em sua execução. – Ele faz uma pausa e diz: – Não sei se você queria ouvir isso.

Eu desabo de novo na maca e fecho os olhos. A pouca dor na minha perna me alivia tanto que tento saboreá-la, mas trechos do meu pesadelo permanecem na minha cabeça, recentes demais para serem eliminados. Onde estará Tess? Será que ela consegue se sair bem sem ninguém lá para cuidar dela? Ela é míope. Quem vai ajudá-la quando não conseguir distinguir as sombras da noite?

Quanto à minha mãe… não estou forte o bastante para pensar nela agora.

Alguém bate ruidosamente na porta:

– Abram! – Grita um homem. – A Comandante Jameson está aqui para ver o prisioneiro.

Prisioneiro… sorrio ao ouvir isso. Os soldados não gostam nem de me chamar pelo nome.

Os guardas na sala mal têm tempo para destrancar a porta e sair do caminho antes que a Comandante Jameson irrompa no quarto, visivelmente aborrecida. Ela estala os dedos e manda:

– Tirem esse garoto da maca e o prendam com correntes – ela praticamente rosna. Depois põe o dedo no meu peito e diz: – Você aí. Você não passa de um menino. Nunca frequentou uma faculdade, foi reprovado em sua Prova! Como conseguiu ser mais esperto do que os soldados nas ruas? Como provoca tantos transtornos? – Ela arreganha os dentes para mim. – Eu sabia que você iria ser um problema muito maior do que aquilo que você vale. Você tem a tendência de desperdiçar o tempo dos meus soldados, para não citar os soldados de vários outros comandantes.

Preciso cerrar os dentes para não revidar seus gritos. Soldados vêm rapidamente até onde estou e começam a soltar os cintos da maca.

A meu lado, o médico inclina a cabeça e pergunta:

– Se não se importa, Comandante, alguma coisa aconteceu? O que está havendo?

Jameson fixa nele o olhar furioso. Ele se encolhe todo:

– Gente protestando em frente ao Batalla Hall – ela responde. – Estão atacando a polícia municipal.

Os soldados me puxam da maca e me põem de pé. Eu me contraio quando transfiro meu peso para minha perna machucada.

– Gente protestando?

– É. Baderneiros. – A Comandante Jameson agarra meu rosto: – Meus próprios soldados foram convocados para ajudar, o que quer dizer que minha agenda está inteiramente desorganizada. Um dos meus melhores homens já voltou para cá com lacerações no rosto. Delinquentes desprezíveis, como você não imagina, estão enfrentando nossos soldados. – Ela empurra meu rosto para o lado, possessa, e dá as costas para mim. – Levem-no daqui – ela grita para os soldados me segurando. – E rápido.

Saímos do quarto do hospital. No corredor soldados correm para cá e para lá. A Comandante Jameson comprime uma das mãos na orelha, escuta atentamente, depois começa a gritar ordens. Enquanto sou arrastado para o elevador, vejo vários grandes monitores, e paro um minuto para admirar, porque nunca os vi no setor Lake, estão transmitindo exatamente o que Jameson nos contou. Não consigo ouvir a voz do narrador, mas as legendas são inequívocas: “Tumulto do lado de fora do Batalla Hall. Unidades militares reagem. Aguardam futuras ordens”. Dou-me conta de que essa não é uma transmissão pública. O vídeo mostra a praça em frente ao Batalla Hall apinhada, com várias centenas de pessoas. Vejo a cena dos soldados vestidos de preto lutando para conter a multidão perto da entrada. Outros soldados correm em telhados e parapeitos, posicionando-se rapidamente com seus rifles. Quando passamos pelo último monitor, tenho uma boa visão dos que protestam, dos que estão reunidos debaixo das luzes dos postes.

Alguns deles pintaram uma faixa vermelho-sangue no cabelo.

Então chegamos aos elevadores. Os soldados me empurram para dentro. Eles estão protestando por minha causa. Esse pensamento me enche de animação e medo. De jeito nenhum os militares vão deixar que isso passe em branco. Vão isolar os setores pobres inteiramente, e prender todo manifestante na praça.

Ou vão matá-los.