JUNE | ![]() |
Naquela noite, Thomas passa meia hora do lado de fora da minha porta, dando uma dúzia de desculpas. Ele está realmente arrependido, não queria me magoar, não queria que eu resistisse às ordens da Comandante Jameson, não queria que eu me metesse em complicação, estava tentando me proteger.
Fico sentada no sofá com Ollie, olhando para o nada. Não consigo tirar o som das metralhadoras da cabeça. Thomas sempre foi disciplinado.
Hoje não foi diferente. Ele não hesitou nem por um segundo a obedecer à comandante. Executou o extermínio como se estivesse se preparando para uma varredura rotineira contra a praga, ou para uma noite vigiando um aeroporto. Será pior que ele tenha seguido as ordens tão ao pé da letra ou que ele não faça a menor ideia de que seja por isso mesmo que quero que ele se desculpe?
– June, você está me ouvindo?
Eu me concentro em coçar Ollie atrás das orelhas. As anotações de
Metias continuam espalhadas na mesinha de centro, com os álbuns de retratos de nossos pais.
– Você está perdendo seu tempo – grito para ele.
– Por favor, deixe-me entrar, quero ver você.
– Vejo você amanhã.
– Prometo que não demoro. Eu lamento muito mesmo.
– Thomas, vejo você amanhã.
– June…
Levanto a voz:
– Já disse que vejo você amanhã!
Silêncio.
Espero mais um minuto, tentando me distrair acariciando Ollie.
Depois de um tempo, eu me levanto e olho pelo olho mágico. O corredor está vazio.
Finalmente me convenço de que ele foi embora. Fico deitada no sofá por mais uma hora. Minha mente se move rapidamente, vai dos acontecimentos na praça ao aparecimento de Day no telhado, e até as afirmações ultrajantes de Day sobre a praga e a Prova, e depois volta a Thomas. O Thomas que obedece cegamente às ordens da Comandante Jameson é um Thomas diferente daquele que se preocupava com minha segurança no setor Lake. Ao crescer, Thomas era desajeitado mas sempre gentil, especialmente comigo. Ou talvez seja eu que tenha mudado. Quando rastreei a família de Day e vi Thomas atirar na mãe dele, ou quando olhei hoje para a multidão na praça sendo alvejada. Nas duas vezes fiquei imóvel e não fiz nada. Isso me faz igual ao Thomas? Estamos fazendo a coisa certa ao seguir as ordens que nos dão? Será verdade que a República é que está certa?
Quanto ao que Day me contou… fico irada só de pensar. Meu pai trabalhou atrás daquelas portas duplas, Metias trabalhou com Chian na supervisão das Provas. Por que envenenaríamos e mataríamos nosso próprio povo?
Suspiro, sento no sofá e agarro uma das anotações de Metias na mesinha de centro.
Esta é sobre uma semana de trabalho exaustivo de faxina, depois que o furacão Elias devastou Los Angeles. Outro registro detalha sua primeira semana na patrulha da Comandante Jameson. Um terceiro é curto, tem apenas um parágrafo, e reclama sobre trabalhar dois turnos noturnos seguidos. Isso me faz sorrir. Ainda me lembro das palavras dele. “Mal consigo ficar acordado”. Metias me disse depois da primeira noite em serviço. “Será que ela acha mesmo que a gente consegue vigiar qualquer coisa depois de trabalhar duas noites seguidas? Eu estava tão cansado hoje, que o próprio chanceler das Colônias poderia ter entrado no Batalla Hall, e eu nem teria percebido.”
Sinto uma lágrima me descer no rosto e rapidamente a seco. Ollie geme a meu lado. Estendo minha mão e a afundo no espesso e branco pelo em volta do pescoço dele, ele descansa a cabeça no meu colo, com um suspiro.
Metias se inquietaria com essas coisas tão pequenas.
Meus olhos vão ficando pesados à medida que continuo a ler. As palavras começam a se embaralhar na página, até que já não consigo compreender totalmente o que cada registro significa. Finalmente, ponho o diário de lado e caio no sono.
Day aparece em meus sonhos. Ele segura minhas mãos entre as suas, meu coração se acelera a seu toque. Seu cabelo lhe cai nos ombros como uma cortina de seda e tem uma faixa vermelha de sangue. Seus olhos expressam dor. “Eu não matei seu irmão.” Ele me puxa para perto do seu corpo. “Garanto a você que eu não poderia ter feito isso.”
Quando acordo, fico deitada imóvel por algum tempo, e deixo que as palavras de Day percorram minha cabeça. Meus olhos miram a mesa do computador. O que realmente aconteceu naquela noite fatídica? Se Day atingiu o ombro de Metias, como a faca foi parar no peito de Metias? Essa ideia me dá dor no coração. Olho para Ollie.
– Quem ia querer ferir o Metias? – Eu pergunto. Ollie me retribui o olhar com olhos pesarosos. – E por quê?
Vários minutos depois me levanto do sofá, depois vou até minha mesa de trabalho e ligo o computador.
Volto ao relatório do crime emitido pelo Hospital Central. São quatro páginas de texto e uma de fotos. Resolvo examinar minuciosamente as fotos. Afinal de contas, a Comandante Jameson só tinha me concedido alguns minutos para analisar o corpo de Metias, e eu usei mal esse tempo. Mas como eu poderia ter me concentrado? Nunca duvidei de que o assassino fosse outra pessoa que não o Day. Não estudei as fotos tão detidamente quanto deveria.
Clico duas vezes nas primeiras fotos e as amplio para a tela toda. O que vejo me deixa tonta. O rosto frio e sem vida de Metias virado para o céu, seu cabelo está espalhado debaixo da cabeça, num pequeno círculo. Sangue lhe mancha a camisa. Respiro fundo, fecho os olhos e digo a mim mesma para me concentrar desta vez. Eu sempre conseguia ler o texto dos relatórios, mas jamais consegui estudar as fotos. Agora, preciso fazer isso. Abro os olhos e focalizo novamente o corpo do meu irmão. Eu queria ter analisado pessoalmente os ferimentos quando tive oportunidade.
Primeiro me certifico de que a faca na foto está realmente enterrada no seu peito. Gotas de sangue mancham o cabo. Não vejo nenhum pedaço da lâmina. Então olho para o ombro de Metias.
Embora esteja coberto pela manga, é possível ver que um grande círculo de sangue mancha o tecido. Não poderia ser do sangue que se espalhou do peito: deve haver outro ferimento. Amplio a foto de novo. Não dá para ver direito, está muito enevoada.
Mesmo se houver um corte semelhante ao de uma faca no ombro dele, não consigo ver deste ângulo.
Fecho a foto e clico em outra.
É então que me dou conta de uma coisa. Todas as fotos desta página foram tiradas do mesmo ângulo. Mal consigo distinguir os detalhes no ombro, e até da faca. Franzo a testa. Fotos mal tiradas de uma cena de crime. Por que não há fotos em close dos ferimentos? Volto ao início do relatório, procurando páginas que eu tenha deixado de ver. Mas é tudo. Volto à mesma página e tento encontrar algum sentido nela.
Talvez as demais fotos sejam confidenciais. E se a Comandante Jameson as pegou, para me poupar o sofrimento? Sacudo a cabeça. Não, isso seria burrice. Se fosse assim, ela não teria mandado nenhuma foto com o relatório. Olho fixamente para a tela, então me atrevo a imaginar uma alternativa.
E se a Comandante Jameson pegou as fotos para esconder alguma coisa de mim?
Não, de jeito nenhum. Eu me recosto na cadeira e fixo a primeira foto mais uma vez. Por que a Comandante Jameson iria querer esconder de mim os detalhes do assassinato do meu irmão? Ela adora seus soldados. Ficou indignada com a morte de Metias, até providenciou o funeral. Ela o queria em sua patrulha. Foi ela que o promoveu a capitão.
Mas duvido que o fotógrafo da cena do crime estivesse tão apressado que tirasse um conjunto tão ruim de fotos.
Penso no assunto sob vários ângulos, mas chego sempre à mesma conclusão. Esse relatório está incompleto. Passo a mão no cabelo, frustrada. Não compreendo.
Subitamente, olho mais de perto a faca na foto. Está granulada, é quase impossível distinguir os detalhes, mas algo acende uma antiga lembrança que faz meu estômago dar um nó. O sangue no cabo da faca está escuro, mas lá também há outra marca, algo mais escuro do que o sangue. A princípio penso que é parte do padrão esmaecido da faca, mas essas marcas estão em cima do sangue. Elas são pretas, espessas e irregulares. Tento me lembrar da aparência da faca na noite do acontecimento, quando tive oportunidade de vê-la pessoalmente.
Essas marcas pretas parecem graxa de rifle. Quase como a mancha de graxa na testa de Thomas, na primeira vez que o vi naquela noite.