DAY
Quando June volta a me visitar, na manhã seguinte, até ela se impressiona, pelo menos por um segundo, com a minha aparência, largado contra uma parede da cela. Inclino a cabeça na direção da garota. Ela hesita ao me ver, mas rapidamente se recompõe.
– Suponho que você tenha feito alguém se zangar – ela diz, e estala os dedos para os soldados. – Todos para fora. Quero conversar em particular com o prisioneiro. – Ela aponta com a cabeça para as câmeras de segurança posicionadas em cada canto da cela. – E desliguem essas câmeras também.
O soldado encarregado presta uma continência e diz:
– Sim, senhora.
Quando vários soldados se apressam a desligar as câmeras, eu a vejo pegar duas facas do cinto. Acho que fiz alguma coisa que a aborreceu. Uma risada borbulha na minha garganta e se transforma num ataque de tosse. Bem, acho que devemos nos livrar do que nos atrapalha.
Quando os soldados vão embora e a porta se fecha, June se aproxima e se agacha a meu lado. Eu me preparo para sentir uma lâmina contra minha pele.
– Day.
Ela não se mexeu. Em vez disso, repõe as facas no cinto e pega um cantil de água. Acho que foi só um teatrinho para os soldados. Ela derrama um pouco do líquido frio em meu rosto. Eu vacilo, mas depois abro a boca para pegar um pouco da água, que nunca foi tão saborosa.
June derrama alguma água diretamente na minha boca, e depois guarda o cantil.
– Seu rosto está horrível! – Há preocupação e mais alguma coisa em sua expressão. – Quem fez isso com você?
– Legal você perguntar. – Fico surpreso por ela se importar. – Você pode agradecer a seu amiguinho capitão.
– Thomas?
– É esse sujeito aí. Acho que ele não está muito satisfeito porque eu ganhei um beijo de você, e ele não. Por isso, ele me interrogou sobre os Patriotas. Aparentemente, a Kaede é uma Patriota. Mundo pequeno, né?
O rosto de June expressa sua raiva:
– Ele não mencionou nada disso. Ontem à noite ele… bom, vou levar o assunto à Comandante Jameson.
– Obrigado. – Lágrimas gotejam dos meus olhos. – Eu estava me perguntando quando você viria. – Hesito por um segundo e pergunto: – Você já tem alguma notícia sobre Tess? Ela está viva?
June baixa o olhar e responde:
– Desculpe. Não tenho como saber onde ela está. Tess deve estar a salvo, desde que se mantenha discreta. Não falei sobre ela com ninguém. Ela não foi presa recentemente… nem morta.
Fico frustrado com a falta de notícias, mas aliviado, ao mesmo tempo.
– E meus irmãos, como estão?
June aperta os lábios e diz:
– Não tenho acesso ao Éden, embora esteja certa de que ele continua vivo. John está indo tão bem quanto o esperado. – Quando ela ergue os olhos de novo, vejo que eles mostram confusão e tristeza: – Lamento você ter precisado lidar com o Thomas ontem.
– Obrigado – sussurro. – Há alguma razão especial para você estar mais legal comigo hoje do que de hábito?
Não espero que June considere essa pergunta seriamente, mas isso acontece. Ela me olha fixamente, depois se senta à minha frente com as pernas dobradas debaixo do corpo. June está diferente hoje. Dócil, talvez, e até triste. Insegura. Com uma expressão que nunca vi antes, mesmo quando a conheci nas ruas.
– Alguma coisa a está perturbando?
June fica em silêncio por um longo momento, com os olhos para baixo. Finalmente, ela me olha. Percebo que está procurando alguma coisa. Estará tentando encontrar uma forma de confiar em mim?
– Ontem à noite voltei a estudar o relatório da cena do assassinato do meu irmão.
Sua voz baixa até um murmúrio, preciso me inclinar para frente para ouvi-la.
– E daí? – Indago.
Os olhos de June procuram os meus. Ela hesita de novo:
– Day, você pode afirmar, sincera e verdadeiramente, que não matou Metias?
Ela deve ter descoberto alguma coisa. Ela quer uma confissão. A noite no hospital lampeja em meus pensamentos: meu disfarce, Metias me observando quando entrei no hospital, o jovem médico que fiz refém, as balas ricocheteando na geladeira, minha longa queda até o chão, depois o confronto com Metias, a maneira como atirei a faca nele. Eu vi que atingiu seu ombro, tão longe do peito que não poderia nunca tê-lo matado. Enfrento o olhar de June e digo:
– Eu não matei seu irmão. – Estendo o braço para tocar sua mão e hesito com a dor que sobe pelo meu braço. – Não sei quem o matou. Lamento tê-lo machucado, mas eu tinha de salvar a minha vida. Eu queria ter tido mais tempo para refletir sobre o que fazer.
June acena positivamente com a cabeça. A expressão em seu rosto é tão emocionante que por um segundo tenho vontade de abraçá-la. Alguém precisa abraçá-la.
– Sinto muita falta dele – ela sussurra. – Pensei que ele fosse viver por muito tempo, entende, alguém com quem eu sempre poderia contar. Ele era tudo que tinha me sobrado. E agora ele foi embora. Eu queria saber por quê.
Ela sacode a cabeça lentamente, como se derrotada, depois faz que seus olhos encontrem os meus mais uma vez. Sua tristeza a torna incrivelmente linda, como neve cobrindo uma paisagem árida:
– E eu não sei por quê. Essa é a pior parte, Day. Eu não sei por que ele morreu. Por que alguém o quereria morto?
Suas palavras são tão semelhantes a meus pensamentos sobre minha mãe, que mal consigo respirar. Eu não sabia que June havia perdido os pais, embora eu devesse ter adivinhado pela maneira como se comporta. Não foi June que atirou na minha mãe. Não foi ela que levou a praga para minha casa. Ela era uma garota que perdeu o irmão e alguém a levou a acreditar que tinha sido eu. Então, angustiada, ela havia me rastreado. Se eu estivesse no seu lugar, teria feito algo de outra maneira?
Ela está chorando. Eu lhe dou um pequeno sorriso, depois me sento mais ereto, e estendo a mão para seu rosto. As algemas no meu pulso chacoalham. Seco as lágrimas sob um dos seus olhos. Nenhum de nós diz coisa alguma. Não é preciso. Ela está pensando. Se eu estou certo sobre o seu irmão, sobre que mais eu não estaria certo?
Depois de um instante, June pega minha mão e a pressiona contra seu rosto. Seu toque faz que um calor gostoso percorra meu corpo. Ela é fascinante. Morro de vontade de puxá-la para junto de mim, comprimir meus lábios nos dela, e desfazer a dor que vejo em seu olhar. Queria muito voltar àquela noite no beco por apenas um segundo.
Sou o primeiro a falar:
– É possível que você e eu tenhamos um mesmo inimigo. E ele tenha nos colocado um contra o outro.
June respira fundo:
– Não tenho certeza ainda – ela diz, embora eu possa dizer pela sua voz que ela concorda comigo. – É perigoso nós estarmos conversando assim. – Ela desvia o olhar, enfia a mão no manto e tira algo que eu pensei ter perdido no hospital. – Tome. Quero devolver isto a você. Não tenho mais uso para ele.
Tenho vontade de tirá-lo da sua mão, mas o peso das correntes me impede. Na palma, está meu medalhão, a textura lisa da superfície gasta e suja, mas ainda quase inteira. A parte do colar está empilhada na mão dela.
– Você estava com ele! – murmuro. – Você o encontrou no hospital naquela noite, não foi? Foi por isso que me reconheceu quando finalmente me encontrou. Eu devo ter tentado pegá-lo.
June acena com a cabeça, depois pega minha mão e larga o pingente na minha palma. Eu o olho, emocionado.
Meu pai. Não consigo afastar sua lembrança agora, que estou de novo contemplando meu medalhão. Recordo o dia em que ele nos visitou, depois de seis meses sem uma palavra. Quando ele estava a salvo dentro de casa, fechamos as cortinas das janelas, ele abraçou minha mãe com força e lhe deu um demorado beijo. Manteve uma das mãos de modo protetor no estômago dela. John, com as mãos nos bolsos, esperou pacientemente para cumprimentá-lo. Eu ainda era muito novo, e abracei suas pernas. Éden ainda não era nascido, ainda estava na barriga da mamãe.
– Como vão meus meninos? – Meu pai perguntou, depois de finalmente largar mamãe. Ele me deu um tapinha nas bochechas, e sorriu para John.
John lhe deu um sorriso grande e dentuço. Ele havia conseguido deixar o cabelo crescer o bastante para prendê-lo num rabo de cavalo. Ele disse:
– Pai! Eu passei na Prova!
– Verdade?
Meu pai deu um tapinha nas costas de John, como se ele fosse um homem. Ainda me lembro do alívio em seus olhos, o tremor de alegria na voz. Naquele tempo, todos nos preocupávamos que John pudesse ser reprovado na Prova, considerando a dificuldade que ele tinha para ler:
– Estou orgulhoso de você, Johnny. Bom trabalho!
Depois ele olhou para mim. Lembro de ter analisado seu rosto. O emprego oficial de papai na República era fazer a limpeza depois que os soldados voltavam do front, mas havia indícios de que essa não era a única tarefa que ele tinha. Indícios como as histórias que ele às vezes contava sobre as Colônias, sobre suas cidades reluzentes, sua tecnologia avançada, seus feriados festivos. Nesse momento, eu quis perguntar a ele por que nunca ia para casa, mesmo quando o rodízio no trabalho deveria proporcionar isso, por que ele nunca ia ver a gente.
Mas outra coisa me distraiu:
– Tem uma coisa no bolso de sua jaqueta, papai.
Era verdade: uma protuberância circular estava comprimida contra o tecido.
Ele deu um risinho, depois pegou o objeto:
– Isso mesmo, Daniel. – Ele olhou de relance para mamãe e comentou:
– Ele é muito observador, não é?
Mamãe sorriu para mim.
Meu pai hesitou, depois nos mandou ir para o quarto, então disse para mamãe:
– Grace, veja o que encontrei.
Ela olhou detidamente para o objeto, e perguntou:
– Que é isto?
– É mais uma comprovação.
A princípio papai tentou mostrar o objeto apenas à mamãe, mas consegui ver direitinho o que era, quando ele o revirou nas mãos. De um lado havia um pássaro, do outro, o perfil de um homem. “Estados Unidos da América, Confiamos em Deus, Vinte e Cinco Centavos” estampado em relevo de um lado, e “Liberty” e “1990” no outro.
– Viu? Prova. – Ele comprimiu a moeda na mão dela.
– Onde você achou isto? – Mamãe perguntou.
– Nos pântanos sulistas, entre os dois fronts. É uma moeda oficial de 1990. Viu o nome? Estados Unidos. Era verdade.
Os olhos de minha mãe brilharam de animação, mas ainda assim ela olhou muito séria para papai, e disse:
– Esta é uma coisa perigosa de ter – sussurrou. – Não vamos ficar com isto em nossa casa.
Meu pai concordou com a cabeça e disse:
– Mas não podemos destruí-la. Temos de protegê-la; pelo que sabemos, esta pode ser a última moeda de sua espécie no mundo. – Ele dobrou os dedos da minha mãe sobre a moeda e disse: – Vou fazer uma capa de metal para ela, alguma coisa que cubra ambos os lados. Vou soldar bem, para que a moeda fique segura.
– Que vamos fazer com ela?
– Esconder em algum lugar. – Meu pai fez uma breve pausa, depois olhou para John e para mim. – O melhor lugar pode ser um local óbvio para qualquer pessoa. Dê a moeda a um dos meninos, talvez como um medalhão. As pessoas vão pensar que é apenas um enfeite infantil. Mas, se os soldados a encontrarem aqui em casa quando derem uma batida, escondida debaixo de um piso, vão ter certeza de que se trata de uma coisa importante.
Fiquei calado. Mesmo naquela idade, eu compreendia a preocupação de meu pai. Nossa casa já tinha sido vasculhada antes em inspeções de rotina pelas patrulhas, como todas as casas de nossa rua. Se papai escondesse a moeda em algum lugar, eles a encontrariam.
No dia seguinte meu pai saiu cedo, antes mesmo do nascer do sol. Nós só voltaríamos a vê-lo mais uma única vez. Depois, ele nunca mais foi para casa.
Aquelas lembranças percorrem minha mente num momento. Ergo os olhos para June e digo: – Obrigado por encontrar isto. – Eu me pergunto se ela consegue perceber a tristeza na minha voz. – Obrigado mesmo, por me devolver este pingente.