Nada mais fácil e nem mais tentador que apresentar a crítica e a poesia como duas manifestações literárias radicalmente antagônicas. É um prazer para o espírito poder descansar nessas delimitações rígidas, sugestivas e lapidares que consentem o abandono de toda inquirição mais profunda. Não admira que se tenha procurado definir aquelas manifestações pela intensidade com que parecem excluir-se mutuamente, e não estão longe de nós as tentativas de certa escola que procurou explorar ao extremo esse suposto antagonismo.
O verdadeiro, o autêntico poeta para os surrealistas era aquele que sabia alcandorar-se nos sublimes balbucios do subconsciente, a ponto de poder dispensar a colaboração da inteligência discriminadora e discursiva. O subconsciente gera a poesia como o oceano gera as ondas, naturalmente e sem esforço. Por que admitir a intrusão da crítica, isto é, da razão, do discurso, na elaboração poética? O raciocínio é perfeitamente consequente. Baseia-se em ideias acumuladas e assentadas através de muitos anos de estudo laborioso e atento. Apoia-se em uma prestigiosa gíria científica, fruto maduro de graves indagações intelectuais. E em essência nada tem de alarmantemente revolucionário. O romantismo em suas expressões mais típicas não pretendera outra coisa. O cartaz da espontaneidade criadora, da sagrada inspiração, do transe divino, foi de todos os misticismos, de todos os alexandrinismos.
Apenas o que pretendiam os surrealistas era realizar a poesia em sua essência misteriosa e única, a poesia definida por oposição a toda atividade da inteligência, a poesia por oposição à crítica. E procuraram tão exasperadamente o segredo dela, que acabaram por descobrir-lhe a chave: qualquer indivíduo medianamente dotado é capaz de uma obra de gênio, desde que saiba colocar-se em estado de poder captar as inefáveis mensagens do subconsciente. O mundo exterior cessa de existir, mas abrem-se à exploração novos mundos fantásticos e ainda mal suspeitados. O poeta não vê com os olhos, mas apesar dos olhos.
Em realidade a oposição entre poesia e crítica é apenas metafórica, procede de uma simplificação dialética e não pode ser aceita ao pé da letra. Se fôssemos aceitá-la ao pé da letra, teríamos de conceber o crítico ideal como um monstro de abstrações armado de fórmulas defuntas e ressequidas, sempre pronto para aplicá-las à vida numerosa e multiforme. E se quiséssemos imagens em que exprimisse mais concretamente essa oposição, diríamos que a crítica está para a poesia na relação em que está um cemitério para um hospício de alienados. O antagonismo rancoroso que se procurou forjar entre as duas espécies literárias corresponde bem ao intelectualismo excessivo de nosso século, em que as ideias suplantaram violentamente os fatos, em que os conceitos formados da realidade substituíram-se à realidade. Os quadros fixos, imutáveis e irredutíveis são um apanágio do mundo das ideias. Fora dele, na vida real, nada existe de isolado e de singular, nada tem por si só significação plena.
A verdade é que o primeiro passo da crítica está na própria elaboração poética e os seguintes estão nos reflexos que o produto de semelhante elaboração vai encontrar no público. Nessa reação do público há uma parte apreciável de recriação. Cada indivíduo, cada época recria as obras de arte segundo sistemas de gosto que lhe são próprios e familiares. É graças a essa milagrosa recriação — quer dizer, criação contínua e sempre renovada — que Homero ou Cervantes podem ser e são nossos contemporâneos, compondo uma ordem simultânea com todos os outros autores do passado e do presente, embora signifiquem para nós qualquer coisa de bem diverso daquilo que significaram para os homens de seu século. A grande função da crítica, sua legitimação até certo ponto, está na parcela decisiva com que pode colaborar para esse esforço de recriação. Ela dilata no tempo e no espaço um pouco do próprio processo de elaboração poética. E nesse sentido não é exagero dizer-se que a crítica pode ser verdadeiramente criadora.
O culto exclusivista à espontaneidade, à facilidade foi uma superstição romântica, a mesma que Matthew Arnold denunciou com tanta justeza nos poetas ingleses da primeira metade de seu século. Por força de tal superstição é que, a despeito da energia criadora desses poetas, eles deixavam no crítico uma impressão irresistível de insuficiência e prematuridade. Semelhante impressão pode ocorrer-nos a cada passo diante de certas produções da moderna poesia brasileira. Enquanto nossa prosa de ficção vem adquirindo uma pujança cada vez mais considerável, quase poderíamos dizer desproporcionada, se posta em confronto com outros gêneros literários, a poesia tende ao contrário a estiolar-se como se não descobrisse razões para a própria existência. Isso se explica em grande parte pela circunstância de ser a literatura de ficção naturalmente mais insensível à ilusória sedução de pureza e autenticidade que hoje persegue a poesia.
Graças ao movimento “modernista”, reação oportuna contra os formalismos academizantes que nos anos de 20 metrificavam pomposamente contra a “mentalidade própria para o soneto”, que tão bem descreveu o sr. Pedro Dantas, abriram-se perspectivas inesperadamente vastas no remanso de nossa literatura. Mas surgiu o que costuma surgir facilmente no Brasil em casos semelhantes. O lirismo, que na tradição portuguesa e brasileira jamais pediu disciplina e nem rigor, mas quando muito aparato formal, polimento e alguma compostura, ganhou bem pouco com a mudança. E a ação do modernismo, sob esse aspecto, teria sido mais de lamentar do que de aprovar, não fosse a meia dúzia de exceções que lhe asseguram o prestígio. É claro que não se pode julgar da ação do modernismo encarando-o apenas em sua posição negativista, que foi às vezes injusta, mas sempre necessária, ou fazendo abstração de tudo quanto trouxe, afinal, de positivo. No momento em que ele renunciou às preocupações puramente estéticas foi para dedicar-se a temas deliberadamente nacionais. E isso sem programas, nem exclusivismos, pelo novo caminho. “Noturno de Belo Horizonte”, “Invocação do Recife”, “Raça e Brasil” são os marcos inaugurais dessa orientação. Todos são obras de poesia. O próprio Macunaíma, se quiserem enquadrá-lo em algum gênero, foi mais do que outra coisa obra de poesia. É indiscutível verificar que com essa obra se inaugurou em literatura aquilo a que poderíamos chamar um exame de consciência do Brasil. Hoje esse exame é praticado por sociólogos e romancistas.
O fato de ter contribuído grandemente para que tal coisa se tornasse possível ou, ao menos, para que desaparecessem barreiras de gosto, de prevenção e de falsa tradição — tradição interrompida, aliás, durante algum tempo pelo admirável movimento formado em torno de Monteiro Lobato e da primeira Revista do Brasil — é sem dúvida um dos bons resultados do chamado modernismo.
E se é bem certo que existe hoje uma crise de poesia, não deveríamos atribuí-la antes à existência de algum mal congênito em nossa literatura, que até aqui tem evoluído menos por progressão contínua do que por meio de revoluções periódicas? Isso faz com que a cada impulso renovador se siga invariavelmente uma longa fase de rotina e relaxamento. Não estou longe de crer que presentemente a revolução necessária seria uma contrarrevolução. Em outras palavras, um movimento tendente a restabelecer, nos devidos limites, a “mentalidade própria para o soneto”.
O caso do surrealismo, de que há pouco me vali, serve para ilustrar um dos traços peculiares a essa crise da poesia. Não há dúvida de que como escola ele já pertence ao passado e deu tudo quanto tinha a dar. Mas o terreno em que brotou e frutificou é o mesmo em que pisamos. Nós, homens de 1940, continuamos a viver em pleno romantismo, e uma das terapêuticas do romantismo é analisá-lo. Por isso convém que em todo verdadeiro poeta haja também um crítico vigilante e enérgico. Existe talvez um vício de sistematização, vício pedagógico, na tendência para separar como dois momentos distintos da realização literária a parte da crítica e a parte da criação. É excelente, por esse motivo, que a poetas de preferência se confie a crítica profissional. Os grandes exemplos de um Coleridge e de um Baudelaire servem para mostrar a que ponto isso é exato. E para que ir tão longe sem evocar o nome ilustre de quem me precedeu nestas páginas? Em Mário de Andrade o crítico esteve sempre à altura do poeta. Figura das mais complexas e importantes em nossa literatura, na prosa como no verso, nos trabalhos de ficção como nos de pura erudição, ele tem a rara capacidade de interessar-se suficientemente nos problemas mais vários e de poder abordá-los com conhecimento de causa. Convidado para substituí-lo, aceito ainda hesitante a proposta na expectativa, não sei se fundada, de que esta substituição seja apenas temporária e breve.
* Em O espírito e a letra, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. Publicado originalmente no jornal Diário de Notícias (RJ) em 15 de setembro de 1940.