10 Uma estratégia de ensino inspirada em Lakatos com orientação racional por meio de uma reconstrução racional didática1

Osmar Henrique Moura da Silva2; Roberto Nard3; Carlos Eduardo Laburú4

Introdução

Uma estratégia de ensino inspirada em Lakatos (1978) foi inicialmente estruturada por Niaz (1998), sugerindo contribuições ao fornecer orientações para que um professor possa seguir quando interessado nesse tipo de estratégia. O presente estudo fundamenta-se no referencial lakatosiano para elaborar uma estratégia de ensino de conceitos científicos e, portanto, muito será aproveitado dessas orientações. A razão está na recomendação de Niaz (ibid., p.123) para que mais estudos avancem e fortaleçam sua estratégia de ensino lakatosiana antes que ela seja recomendada para o professor em sala de aula. E para caminhar nessa direção, será adotada aqui uma sequência de passos semelhante à de outra estratégia instrucional explícita (elaborada por Rowell, 1989).

O presente estudo, como síntese de um trabalho maior (Silva, 2008), tem como principal contribuição o desenvolvimento de uma orientação na qual se persegue o objetivo de se trabalhar a racionalidade5 com os estudantes. Mais especificamente, para o caso do entendimento da aceitação de uma teoria científica, ao superar uma rival, como racional ou irracional, tem-se um problema fi losófico de demarcação generalizada em que, conforme Lakatos (1978, p.169), a racionalidade está envolvida. Logo, sendo um tópico central em Filosofia da Ciência, Mathews (1994, p.93) afirma que a racionalidade é fundamental no Ensino de Ciências. Todavia, embora as estratégias de Niaz (1998) e Rowell (1989) busquem uma racionalidade nas discussões sobre os méritos e deméritos de concepções rivais (alternativas e científicas) em sala de aula para que haja a escolha da melhor, alguns autores como Villani et al. (1997, p.41) ressaltam que é ingenuidade supor algum modelo racional muito enraizado nos estudantes. Sem uma preparação, discussões racionais mais diretas para a escolha entre teorias, com inspiração filosófica implícita ou não, podem não alcançar êxito, conforme assinala Mathews (1994, p.86), por meio da seguinte analogia: "Estudantes que não tiveram uma preparação anterior para tal debate assemelham-se a uma criança da zona rural em sua primeira visita à cidade grande". Quer dizer, se uma criança encontra-se perdida em uma cidade grande por mal conhecê-la e não saber o caminho de casa, semelhantemente, um estudante encontra-se perdido em seu primeiro debate racional por mal perceber o rumo que uma conclusão tenha tomado.

No ensino das Ciências Naturais, de situações em sala de aula que par-tem de pontos de vista conceituais distintos para estabelecer um debate racional, uma conclusão (julgamento) sobre a superação teórica e/ou empírica de um deles somente é alcançada por consenso quando há a predominância de um critério pertinente. No entanto, critérios racionais para avaliação de concepções ou teorias científicas relacionam-se a sistemas de conhecimento específicos que são analisados filosoficamente, mais especificamente, pela Filosofia da Ciência. De acordo com Chalmers (2000, p.137), uma posição filosófica na Ciência é racionalista por estabelecer um critério universal e atemporal, com referência ao qual se podem avaliar os méritos relativos de teorias rivais6. Assim, não são critérios que os estudantes naturalmente carregam. Para que um estudante avalie concepções por um critério desejado no processo de ensino/aprendizagem, é preciso, primeiramente, que ele o conheça. Para isso, este trabalho elabora uma estratégia que busca exemplificar uma discussão racional por meio de uma história distorcida da Ciência em que o professor conduz os alunos à, inicialmente, entenderem um determinado critério, para que posteriormente utilizem em um dado contexto e também melhor acompanhem os caminhos que conduzem a uma decisão baseada naquele critério.

Preocupação não divulgada por Niaz (1998) e Rowell (1989), essa preparação parte da pressuposição de que as discussões iniciais destinadas a influenciar o aluno com certa racionalidade possam ajudar a aprendizagem de conceitos científi cos em um posterior debate racional entre concepções rivais em classe. Ao visar melhor influenciar o aluno com determinada racionalidade, este trabalho propõe a Reconstrução Racional Didática como um passo importante da presente estratégia de ensino inspirada em Lakatos (1978), deixando-a sofisticada em relação às propostas formuladas por Niaz (1998) e Rowell (1989) nas quais ela se apoia.

Referenciais teóricos

Abaixo são sinteticamente discutidos alguns aspectos do referencial lakatosiano assim como, relacionados a ele, alguns aspectos pedagógico-epistemológicos das duas estratégias racionais de ensino comentadas na introdução e que servem de base a este estudo.

A epistemologia e o conceito de reconstrução racional da história das Ciências de Imre Lakatos

Epistemologicamente, Lakatos (1978) define uma metodologia dos programas de pesquisa científica na qual as teorias não são elementos isolados, mas pertencentes a um determinado programa de pesquisa. Este é caracterizado por regras metodológicas: "algumas nos dizem quais são os caminhos de pesquisa que devem ser evitados (heurística negativa), outras nos dizem quais são os caminhos que devem ser palmilhados (heurística positiva)" (ibid., p.47). A heurística negativa especifica o "núcleo" do programa7, considerado irrefutável por decisão metodológica dos seus protagonistas. A heurística positiva especifica o "cinto de proteção", considerado refutável. Pode-se modificar e sofisticar o cinto de proteção como, por consequência disso, salvaguardar o cientista de ficar sem rumo em um oceano de anomalias. Os cientistas assim desenvolvem, em um programa de pesquisa, uma cadeia de modelos, cada vez mais complicados, que simulam a realidade ao mesmo tempo em que passam a ignorar os dados disponíveis (contraexemplos reais) que surgem, chegando, em alguns casos, durante o desenvolvimento dos modelos, a antecipá-los. Com essas características, é somente quando o cinturão de hipóteses auxiliares enfraquece que se pode dar maior atenção aos dados anômalos. Portanto, em função da existência de cinturões protetores, as teorias nucleares são preservadas de refutações, resguardadas nos programas de pesquisa. E para o caso das revoluções científicas, há uma razão objetiva que, segundo Lakatos, acontece quando um programa de pesquisa supera um rival (refutando sua heurística: núcleo e cinturão protetor) por meio de demonstrações de força heurística8. Embora essa refutação não seja um processo instantâneo, historicamente pode-se verificar a vitória de um programa de pesquisa ao explicar o êxito anterior de seu rival e demonstrar um acréscimo de força heurística. Sendo assim, somente por meio de uma longa visão retrospectiva é que se denomina uma experiência de "crucial". Isto é, quando um programa de pesquisa, assim chamado progressivo ao possuir um excesso de conteúdo empírico comparativamente com outro (então degenerativo), possui uma corroboração de seu conteúdo empírico adicional. Um aspecto interessante no caso da degeneração de um programa está no sinal típico da proliferação de fatos contraditórios que ele apresenta. Mesmo que nenhum "equivoco experimental" seja cometido, é possível conseguir, ao se usar uma teoria falsa como teoria interpretativa, proposições fatuais contraditórias, resultados experimentais incongruentes (ibid., p.77). Para exemplificar essa situação, ele comenta que Michelson, mantendo-se fiel ao éter até o fim, e frustrou-se pela incompatibilidade dos fatos que obteve por intermédio das suas precisas mensurações. Em 1887, uma experiência de Michelson "mostrava" que não havia vento de éter sobre a superfície da Terra, enquanto a aberração "mostrava" que havia. Além do que, sua experiência de 1925 também "mostrava" que havia.

Já para o conceito de reconstrução racional da história das Ciências, Lakatos afirma que a Filosofia da Ciência oferece metodologias normativas nas quais o historiador reconstrói a "história interna"9 de modo a dar uma explicação racional do desenvolvimento do conhecimento científico10. O indutivismo, por exemplo, é uma das mais influentes metodologias da Ciência. O indutivismo só admite, como pertencentes ao corpo da Ciência, enunciados que descrevem fatos puros ou infalíveis generalizações indutivas a partir destes. Por essa metodologia, um enunciado científico somente é aceito por demonstrações convincentes e indiscutíveis, do contrário, o indutivista o rejeita. Desse modo, um historiador indutivista não admite mais que dois tipos de descobrimentos científicos genuínos: os enunciados fáticos puros e as generalizações indutivas. Apenas estes dois tipos constituem a coluna vertebral de sua história interna. Quando escreve a história, o historiador indutivista busca esses tipos de descobrimentos científicos; encontrá-los é outra questão. De modo similar, um historiador popperiano buscaria grandes e "arriscadas" teorias falseáveis e importantes experimentos cruciais negativos. Já pela metodologia dos programas de pesquisa científica de Lakatos, um historiador buscaria programas de pesquisa que podem ser avaliados em termos de mudanças progressivas e degenerativas de problemas, e interpretaria as revoluções científicas como eventos nos quais um programa de pesquisa passa a suceder outro (superando-o em progresso). Consequentemente, cada reconstrução racional revela seu modelo característico do desenvolvimento racional do conhecimento científico (ibid., p.118). Logo, é sempre possível mostrar como uma metodologia pode influenciar a seleção de determinados fatos em lugar de outros, sendo suas interpretações ocorridas por alguma inclinação teórica. Desse modo, como todo estudo histórico deve ser precedido de um estudo heurístico, Lakatos caracteriza esse procedimento para redigir um estudo de um caso histórico adotando as seguintes condições: 1) faz-se uma reconstrução racional; 2) tenta-se cotejar essa reconstrução racional com a história real e criticar tanto a reconstrução racional por falta de historicidade quanto a história real por falta de racionalidade (ibid., p.52-53).

Tais condições talvez estejam na parte mais controversa das ideias de Lakatos devido à consequente "liberdade" com que muitos enunciados podem ser adaptados em uma reconstrução racional de um episódio histórico. Um exemplo refere-se à reconstrução racional do programa de Bohr. Nela, Lakatos sugere que se pode atribuir a ideia de giro do elétron corretamente a Bohr em 1913. O interessante é que mesmo pelo fato de seguramente saber que Bohr era bastante céptico da ideia de giro ainda em 1925, Lakatos afirma que essa ideia era compatível com o programa de pesquisa implicado pelo átomo de Bohr. Apesar de Bohr não ter pensado nisto (ou ao menos deixado explícito), Lakatos destaca que essa é uma reconstrução racional e que, nesse sentido, "alguns enunciados não devem ser tomados com uma pitada, senão com toneladas de sal" (ibid., p.55). Ao construir a história interna, portanto, o historiador é altamente seletivo por "omitir tudo o que é irracional à luz de sua teoria da racionalidade" (ibid., p.119). Porém, a história interna não é somente uma seleção de fatos interpretados metodologicamente. Segundo Lakatos (ibid, p.119.), "também há ocasiões em que pode ser uma versão radicalmente melhorada destes", como é o caso do programa de Bohr acima discutido.

Niaz (1998) e Rowell (1989): aspectos pedagógico-epistemológicos de apoio

Uma estratégia de ensino fundamentada na epistemologia de Lakatos (1978) foi estruturada por Niaz (1998) em uma ocasião em que se buscou facilitar a mudança conceitual dos estudantes no tema equilíbrio químico. Nessa proposta, o levantamento das concepções alternativas dos estudantes é o ponto de partida, admitindo essas estruturas como se fossem programas de pesquisa. Dessa forma, a comparação permite que essas estruturas ou "programas" tornem-se candidatas à mudança, uma vez que a complexidade cognitiva das convicções nucleares pode ser quebrada por uma série de questionamentos. Isso pode ser facilitado quando são distinguidas as concepções nucleares, mais resistentes à mudança que outras explicações. Enquanto essas explicações nucleares dos estudantes oferecem resistências em suas convicções por criarem "hipóteses auxiliares" para defendê-las, as "hipóteses ou explicações auxiliares" podem prover pistas e direções para a construção de novas táticas de ensino. Isto significa não considerar as concepções alternativas como erradas, mas como modelos semelhantes aos usados pelos cientistas para simplificar a complexidade de um problema. Assim, as concepções devem ser consideradas como "teorias" que competem com as teorias científicas e, às vezes, recapitulam teorias científicas do passado (ibid., p.122-123).

Todavia, entende-se aqui que as orientações acima ainda são muito gerais. Para facilitar a prática de um educador que mantém ressonância com suas orientações, este trabalho busca um caminho semelhante ao de Rowell (1989). Esse autor estruturou uma estratégia instrucional explícita que consiste basicamente de cinco passos fundamentados em um construtivismo piagetiano. Um aspecto importante de sua sequência é que ela inicia com o levantamento das concepções alternativas, que são então guardadas pelo professor e, só depois da construção das concepções científicas, são apresentadas aos alunos para a realização de comparações entre os méritos e deméritos das teorias rivais para que haja a escolha da melhor. Essa sequência de passos foi influenciada pela Filosofia da Ciência contemporânea, conforme especificado no primeiro parágrafo desta seção. Dessa última estratégia é preciso mencionar que, com exceção do referencial piagetiano, a aqui proposta utilizará uma sequência de passos semelhante, mas inserindo uma história distorcida da Ciência com visão filosófica implícita inspirada em Lakatos. O diferencial metodológico, portanto, é a explicitação de procedimentos destinados a preparar o aluno para envolvê-lo com a racionalidade das discussões por meio de uma reconstrução racional didática da História da Ciência. A próxima seção ocupa-se dessa forma de inserir a história distorcida da Ciência no ensino da Física.

Reconstrução Racional Didática: uma orientação para auxiliar o aprendizado dos estudantes em debates racionais entre concepções alternativas e científicas

Propõe-se aqui como Reconstrução Racional Didática (RRD) o uso da HFC como um ponto de partida para desenvolver e projetar soluções didáticas satisfatórias (Mäntylä e Koponen, 2007), que podem ser entendidas como reconstruções didáticas para auxiliar o ensino de conceitos científicos (Izquierdo-Aymerich e Adúriz-Bravo, 2003). Nesse sentido, a História e Filosofia da Ciência são usadas como recursos, pois a intenção não é obter reconstruções históricas completamente autênticas. Ao invés disso, de acordo com Mäntylä e Koponen (2007, p.292), "a história é interpretada do ponto de vista de concepções modernas, porque a meta, afinal de contas, é ensinar física, não a história da física". O pensamento de que o conhecimento científico escolarizado atual deve ser a meta do processo de ensino e de aprendizagem, estando acima do ponto de vista de um ensino historicamente autêntico, tem sido amplamente defendido no Ensino de Ciências (Mäntylä & Koponen, 2007, p.297-298; Feyerabend apud Pereira & Amador, 2007, p.193; Valente, 2005, p.4; Izquierdo-Aymerich & AdúrizBravo, 2003, p.29; Niaz & Rodríguez, 2002, p.62; Dobson, 2000, p.1). No entanto, é preciso dizer que a RRD procura manter um compromisso com alguns detalhes históricos que se encontram divulgados na literatura, como, por exemplo, as concepções dominantes, as atividades experimentais e os principais protagonistas.

Conforme Lakatos (1978), a reconstrução de um episódio histórico por inspiração em uma Filosofia da Ciência deve obedecer a certas metodologias normativas pelas quais é possível oferecer uma explicação racional do desenvolvimento do conhecimento científico. Na elaboração de uma RRD, portanto, é necessário omitir tudo o que é irracional diante da teoria da racionalidade adotada, selecionando fatos que são metodologicamente interpretados. Mais ainda, é possível adaptar comentários compatíveis com os programas científicos rivais nessa elaboração, como a "pitada de sal" no sentido lakatosiano que se exemplificou no caso do programa de Bohr. Assim, a RRD que aqui se propõe elaborar com fins instrucionais obedece aos seguintes aspectos:

A presença de duas ou mais teorias em um mesmo campo científi co é, em geral, a situação que antecede e desencadeia as mudanças científi cas. Perante isso, à medida que os cientistas se veem diante de um novo sistema teórico alternativo e, em grande parte, incompatível com o primeiro, a partir do qual em um passado mais ou menos remoto seus campos de pesquisa fundamentaram e desenvolveram-se, é certo que a escolha por algum desses sistemas sempre ocorre por uma avaliação mediante determinados critérios. Desse entendimento, a História da Ciência deve conter pelo menos duas posições teóricas rivais e sucessivas, caracterizando os critérios que influenciaram a aceitação da sucessora;

Os postulados que constituem o núcleo de uma teoria devem ser apresentados como difíceis de serem refutados, pois neles os cientistas depositam grande confiança;

Devem-se estabelecer contraexemplos que caracterizem as difi culdades teóricas. Por meio de tais dificuldades, apresentar o surgimento de hipóteses auxiliares que devem ser entendidas como tentativas para se obter sucesso, mantendo as concepções nucleares intactas;

A avaliação teórica não ocorre entre a teoria e a experiência, sendo esta última juíza para a primeira, mas com testes entre pelo menos duas teorias e a experiência. Assim, somente após o surgimento de uma teoria rival sucessora que explique o êxito de sua rival e a suplante por uma demonstração adicional de força heurística é que se verifica a superação de uma teoria por outra.

Como as estratégias de Niaz (1998) e Rowell (1989) valorizam a aprendizagem racional dos conceitos científicos, é importante ressaltar que a RRD deste estudo é incorporada como um passo específico de uma estratégia de ensino inspirada em Lakatos (1978), em que uma racionalidade esteja presente. Dessa forma, conforme já mencionado, uma primeira discussão racional pela RRD, fundamentada na racionalidade deste modelo de reconstrução racional, pode vir a auxiliar o estudante a melhor acompanhar um posterior debate igualmente racional entre concepções alternativas e científicas.

Uma nova estratégia de ensino inspirada em Lakatos (1978)

Lakatos (1978) estabelece critérios para analisar e concluir quando um programa de pesquisa se torna progressivo ou degenerativo em comparação a um rival. Uma vez compreendido o arcabouço teórico e empírico de ambos os programas, ao julgar seus méritos relativos, é comum que tais critérios de escolha façam com que o programa degenerativo ceda seu espaço para um rival mais progressivo. Por analogia, essa estratégia baseia-se na transposição do critério de escolha racional lakatosiano para o ambiente de sala de aula em momentos de instrução dos conceitos científicos. Ou seja, sempre que se crie uma dinâmica de discussões sobre as explicações e previsões das teorias, acredita-se que isso possa ser uma ferramenta que auxilie a aceitação dos novos conceitos pelos alunos (como em Niaz, 1998, e Rowell, 1989). Outras pesquisas (Laburú et al., 1998; Laburú & Niaz, 2002) já apontavam para essa direção ao afirmar a possibilidade das concepções alternativas serem classificadas em programas alternativos que competem em termos explicativos com as rivais que o professor pretende ensinar, classificadas como programas científicos. Nesses últimos casos, um paralelismo foi estruturado a partir das heurísticas negativa (destinadas à preservação do núcleo do programa) e positiva (cinturão de hipóteses auxiliares). Uma aproximação mais completa sugere a estratégia de se seguir, por analogia, o critério de eliminação de teorias proposto por Lakatos, que diz que uma razão objetiva para uma escolha entre programas de pesquisa é proporcionada por um programa que explica o êxito anterior de seu concorrente e o suplanta por uma demonstração adicional de força heurística (Lakatos 1978, p.191). Lakatos (ibid., p.202) comenta que um sinal típico de degeneração de um programa é a proliferação de "fatos contraditórios" que podem se originar de resultados experimentais incongruentes com as previsões e modelos derivados do programa. Assim, a presente proposta admite, juntamente com as orientações de Niaz (1998), uma analogia geral entre a metodologia dos programas de pesquisa científica de Lakatos e uma metodologia das concepções alternativas dos alunos diante das científicas.

De maneira mais objetiva do que faz Niaz (ibid.) e com a inserção da RRD, apresenta-se abaixo a sequência de passos da presente estratégia de ensino:

Viabilidade da proposta

A viabilidade a ser discutida refere-se ao principal detalhe desta estratégia, que é a inclusão da RRD, pois os aspectos presentes nos outros passos já foram divulgados na literatura (Niaz, 1998; Rowell, 1989). Uma característica favorável a tal viabilidade no processo de ensino/aprendizagem de conceitos de Física está no fato de a história dessa Ciência possuir vários episódios que podem ser "reconstruídos" com muitas controvérsias interessantes para estimular/convidar o adolescente a pensar (Dobson, 2000; Niaz & Rodríguez, 2002).

Um exemplo de sua aplicação pode estar voltado para o ensino dos conceitos de calor e temperatura no Ensino Médio. Primeiramente, é necessário escolher pelo menos dois programas de pesquisa rivais da história da física, por exemplo, a teoria do calórico e a teoria cinético-molecular da matéria. A partir daí, o professor deve apresentar os modelos e explorar seus postulados básicos, apresentando-os como invioláveis, cuja filosofia implícita entende como concepções centrais, núcleos de programas de pesquisa por analogia com a heurística negativa. Seguindo o passo 2, o professor deve escolher fenômenos que ambas teorias explicam sem contradizer seus postulados. Posteriormente, o professor poderá "abusar" de sua criatividade para ilustrar de forma racional (por inspiração no falseamento lakatosiano) como o programa de pesquisa cinético-molecular tornou-se progressivo diante de seu rival, então, degenerativo, por analogia ao sinal típico de degeneração de um programa que se comentou em seções anteriores. Nessa ocasião, contrariamente ao que se fez no passo 2, deve-se discutir fenômenos em que as interpretações enfraquecem os postulados da teoria calórica, enquanto fortalecem os da rival cinético-molecular. Nesse sentido, o professor pode ser auxiliado por uma RRD elaborada para auxiliar o entendimento de seus alunos em relação à racionalidade que direciona a tomada de decisão para escolher a teoria vencedora. Dessa maneira, quando em passos posteriores da estratégia confrontar as concepções alternativas dos alunos com as científicas, então vencedoras na RRD, ficará mais fácil "energizar" a racionalidade para auxiliar o aprendizado racional, como propõem Niaz (1998) e Rowell (1989). Isso porque, parafraseando Mathews11(1994, p.83) e Allchin12(2004, p.188): todo debate, então racional, realizado para explicar a superação de uma teoria entre rivais, exemplifica/ensina um critério pelo qual a racionalidade assim permitiu entender a aceitação dessa superação.

Conclusões

O principal destaque da estratégia de ensino lakatosiana apresentada refere-se à função que a RRD deve assumir, quando inserida no momento específico do processo. Discutiu-se que a intenção neste trabalho é que sua função seja de melhor preparar o aluno para uma posterior discussão racional entre as concepções rivais (alternativas e científicas), que as estratégias de Niaz (1998) e Rowell (1989) já estabeleciam de maneira mais direta, auxiliando os processos de ensino e de aprendizagem. Frente a essas últimas estratégias, a aqui mostrada encontra-se fortalecida, visto que na literatura existem advertências (Mathews 1994, p.86; Villani et al., 1997, p.41) para a ingênua suposição da existência de algum modelo racional muito enraizado nos estudantes. Isto justifica a importância de se preparar de algum modo os estudantes para debates racionais. Nesse sentido, este estudo oferece uma alternativa possível por meio da RRD sobre inspiração nas ideias de Lakatos (1978). Assim sendo, mostrou-se coerência também com a recomendação de Niaz (1998, p.123), ou seja, para que novos estudos fossem desenvolvidos, visando fortalecer sua estratégia racional de ensino fundamentada em Lakatos (1978).

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