Saskia havia falado com a Karla do Zusterschap e ela havia concordado em conversar comigo. O encontro foi marcado em Jordaan, a oeste de Grachtengordel.
Sendo uma teia de estreitas ruas e agradáveis canais, Jordaan continha uma mistura de casas, lojas, cafés e bares. Sendo, originalmente, um refúgio do século XVI que recebia protestantes e, mais tarde, judeus, o Jordaan se desenvolveu como parte do país. Em alguns aspectos, as origens do distrito cosmopolita me lembravam de casa e de Tiger Bay.
Lá pelo século XIX, o Jordaan havia se desenvolvido para um reduto da classe trabalhadora, uma região altamente politizada. E, na década de 1980, as classes profissionais, confrontadas com o preço do mercado imobiliário, estabeleceram novas casas no Jordaan, contribuindo assim para a atraente personalidade da região.
O labirinto de ruas, consequência do desenvolvimento orgânico, apontava uma possível confusão no caminho, então, com o mapa em mãos, eu pedalei até o ponto de encontro.
Karla havia concordado de me encontrar perto do Homomonument, um memorial dedicado aos homens e mulheres homossexuais que foram oprimidos. Simbolizado por três triângulos rosas feitos de granito, o monumento relembrava os anos em que os fascistas forçaram os gays a usar um distintivo de triângulo rosa.
Eu não sabia quem era Karla, mas reconheci Lia. Ela estava em pé, perto do monumento, com seu cabelo cacheado balançando com a brisa e com olhar intenso enquanto ela limpava seus óculos de armação preta. Enquanto isso, ela conversava com uma mulher mais alta, presumivelmente Karla.
Na metade dos quarenta anos, Karla possuía cabelos ruivos flamejantes que radiavam de sua cabeça como raios de sol, olhos castanhos escuros e bochechas finas e contraídas. Seu nariz era proeminente e pontudo e, sendo magra, ela media por volta de 1,78 cm. Suas roupas eram indescritíveis, escondidas embaixo de um longo sobretudo. Sem dúvida, o cabelo dela se destacava como sua característica mais marcante. De fato, ela me lembrava uma pintura clássica, retratando uma deusa.
Karla se aproximou de mim e me ofereceu um sorriso, que revelou uma série de obturações e três dentes pretos. Obturações e dentes pretos. Se ela uma deusa, era uma divindade com um fraco para doces.
— Você é a Sam? — ela perguntou e eu concordei com a cabeça.
— E você é Karla.
— Sim. Você é um detetive particular.
— Sou.
— Você está provando aos homens que pode ter sucesso no mundo deles.
— Se eu tiver sucesso — comentei.
— Você está provando aos homens que você é melhor do que eles.
— A primeira entre iguais — respondi.
— Você é melhor do que eles — Karla insistiu.
— Para provar a sua teoria, eu preciso voltar para casa com a maleta.
Karla arqueou uma sobrancelha fina e depois olhou para Lia.
— Que maleta?
— A maleta que Velvet roubou de Jeremy Loudon e Lia roubou de Velvet.
— Eu não estou com essa maleta — Karla insistiu e seus lábios se curvaram em um sorriso sacarino.
— Talvez você pode me ajudar a encontrar — sugeri.
Ela inclinou a cabeça para a direita e franziu o cenho. O retrato de uma mulher confusa e perplexa.
— Por que eu deveria fazer isso?
— Um ato de sororidade?
— A maleta e seu conteúdo vão muito além da sororidade — Karla disse.
— Então, você a viu — eu concluí.
Karla me virou as costas e com Lia seguindo seus passos, andou ao longo da calçada, passando pelo Westerkerk. Empurrando minha bicicleta, eu as segui.
O Westerkerk era outro exemplo esplêndido da arquitetura eclesiástica holandesa. Mesmo que eu beirasse o ceticismo, presumi que as igrejas de Amsterdã ofereciam aos visitantes inúmeros momentos de deleite. Existiam muitas razões filosóficas para minha falta de crença religiosa, no entanto, provavelmente poderia vincular meu ceticismo à minha infância. No natal de meus sete anos, minha mãe me comprou uma bíblia suntuosa, muito colorida e lindamente ilustrada. Sendo viciada em livros, mesmo naquela idade, comecei a ler a bíblia até chegar em sua metade, quando descobri que as páginas se duplicaram: a gráfica havia errado na hora de imprimir o livro. Por alguma razão, isso rompeu o tênue fio entre aquela que vos fala e a religião. São em linhas muito tênues que nossas vidas mudam.
Alcançando Karla, eu voltei a perguntar:
— A maleta...
Ela girou no meio do caminho e me lançou um olhar irritado.
— O conteúdo da maleta vai financiar o nosso movimento, espalhar nossa mensagem e empoderar todas as mulheres no mundo.
— Tem só um problema... — eu disse. — Esse conteúdo não pertence a você.
— Se eu estivesse em posse da maleta, era isso o que eu faria — Karla afirmou, voltando a andar e se locomovendo com forte propósito. — Usaria o conteúdo para empoderar as mulheres ao redor do mundo.
— Se você não está com a maleta, por que concordou em me encontrar?
— Eu estava curiosa. — Ela parou de repente e seu olhar se fixou no canal e seu barco branco. — E agora minha curiosidade já foi satisfeita.
— Eu preciso da maleta para salvar Velvet — disse.
— Não posso ajudar — Karla respondeu. Ela voltou a se virar e marchou mais uma vez pela calçada.
— Velvet é uma mulher — insisti. — Uma mulher vulnerável que está com problemas.
— Não posso ajudá-la também — Karla reafirmou, marchando até passar pelo barco e apressando o passo.
— Suas palavras não parecem demonstrar muito essa sua sororidade — comentei. — Na verdade, o que elas demonstram é egoísmo.
— Líderes precisam ser egoístas para obterem sucesso — Karla respondeu. Ela parou e me direcionou um olhar condescendente. — Líderes precisam tomar decisões difíceis pelo bem do movimento. Algumas vezes, essas decisões impactam nossas irmãs, há ocasiões em que algumas das irmãs precisam ser deixadas à beira do caminho.
— E agora é a Velvet que precisa pagar e ser deixada à beira do caminho?
— Ela é uma verdadeira irmã — Karla afirmou. — Uma mártir da causa.
Com uma certeza em seu passo e arrogância em sua caminhada, Karla logo tomou distância e desapareceu de minha vista. Olhando à minha direita, fui me dar conta que nós estávamos conversando do lado de fora da casa de Anne Frank. Como alguém podia ter destruído uma flor tão bonita? Como as pessoas podiam ser tão cruéis? Se Deus existia, Ele olhava para baixo e balançava a cabeça em sofrimento? Ele se enfurecia com os extremistas e suas ideologias sem coração e sua falta de compaixão? Ele se desesperava diante de líderes que manipulavam as multidões? Que valor tinha a humanidade se as pessoas eram capazes de mandar crianças para à morte? Que valor tinha o nosso futuro se nós permitíssemos que a história se repetisse?
Atormentada com esses pensamentos, eu me virei e vi que Lia ainda estava ali. Ela se aproximou para dizer:
— Espero que um dia você possa entender Karla. Espero que Velvet entenda. Karla está certa, nós precisamos fazer isso pelo bem de todas as mulheres.
Então, Lia também se retirou para ir se juntar a sua deusa.