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Capítulo Vinte e Sete

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Com Lia em meu encalço, eu voltei para o hotel, onde me encontrei com Mac, Saskia e Velvet.

— Karla pode estar se escondendo em um moinho, perto de Wormeveer. Como podemos chegar até lá? — perguntei e Saskia sorriu.

— O jeito mais fácil, assim como a maioria dos caminhos de Amsterdã, é pela água.

— Um barco? —perguntei e Saskia concordou. — Podemos alugar um barco?

— Não é necessário — ela respondeu. — Eu tenho um.

Saskia era tão prestativa e eficiente! Era bem possível que eu saísse mesmo de Amsterdã com os diamantes e era bem possível que eu saísse também com um complexo de inferioridade

Do hotel, nós dirigimos ao norte, para a marina e o barco de Saskia. Seu barco era grande, lustroso, uma embarcação motorizada de cor branca e aspecto elegante que podia acomodar confortavelmente a capitã Saskia, Velvet, Mac, Lia e esta que vos fala.

Não sou nenhuma marinheira, então escolhi um assento no salão, onde tentei espantar a sensação de que minhas pernas tremiam como gelatina. Velvet e Lia se sentaram à minha frente, enquanto Saskia e Mac traçavam nosso curso.

Continuando sempre rumo ao norte, nós nos conectamos com o rio Zaan. Durante a Era de Ouro holandesa do século XVII, novecentos moinhos enfeitavam Zaan. Esses moinhos processavam farinha, madeira, cânhamo, tintura e papel e transformaram a região em uma das primeiras que se industrializou no mundo.

O cenário também era belo. De fato, o pintor impressionista Claude Monet morou em Zaandam durante o verão de 1871, quando produziu vinte e quatro pintura. Monet escreveu a um amigo afirmando que “em Zaandam, há o suficiente para pintar durante uma vida inteira”.

Conforme o rio se ampliava para dentro de De Poel, notei construções ao longo da margem esquerda e campos verdes à minha direita. Ao contrário de casa, onde a paisagem é montanhosa e coberta de ovelhas, aqui ela era plana e pontilhada de vacas.

Ao longe, pude ver um bom número de moinhos, mas Lia chamou a minha atenção quando se dirigiu a Velvet:

— Olha só...

— Sim? — Velvet inclinou a cabeça para o lado esquerdo e franziu as sobrancelhas.

— Eu sinto muito — Lia disse. Ela murmurava as palavras enquanto olhava para seu tênis branco e preto e encarava o chão, o assoalho quadriculado que forrava o salão.

Um pesado silêncio se seguiu, um vácuo preenchido apenas pelo barulho do maquinário do barco.

— Acho que devíamos esquecer o que aconteceu e continuarmos amigas — Lia sugeriu. Rapidamente, ela olhou para cima, apenas para dar um sorriso tímido e desviar o olhar de novo.

— Como eu posso esquecer? — Velvet quis saber. — Como podemos continuar amigas? Você me usou e me largou em Amsterdã sozinha, sem dinheiro algum.

— Você podia ter ganhado algum dinheiro — Lia argumentou. — Suficiente para comprar sua passagem de volta para casa.

— Como? — Lia fechou a expressão.

— Pelo de Wolff.

— Pelos filmes pornôs? — Velvet balançou a cabeça em desalento, sacudindo seu rabo de cavalo. — Pensei que você era uma feminista.

— Eu sou — Lia insistiu.

— Então por que me sacrificaria ao de Woolf?

— Fiz isso por você! — Lia disse. — Pensei que queria estrear filmes.

— Eu quero cantar, não estar em filmes — Velvet suspirou. — Às vezes me pergunto se você me conhece, mesmo que um pouco. Às vezes me pergunto se você já escutou uma palavra que eu disse.

— Sinto muito —Lia repetiu.

— E mesmo que eu conseguisse dinheiro, como eu poderia voltar para casa com Loudon a minha espera?

— Ele vai te perdoar — Lia disse.

— Ele vai me entregar a polícia — Velvet brigou. — Você me colocou nessa situação.

— Eu sinto muito — Lia disse, mais uma vez.

— As pessoas me usaram durante toda a minha vida, mas agora não vão mais usar. Não vou confiar em mais ninguém, não até terem merecido minha confiança. Não vou ser feita de boba mais uma vez.

Em algum lugar dentro de si, Velvet possuía um anjo de guarda assertivo. Talvez ela estivesse exagerando no tom agressivo, mas suas palavras eram compreensíveis, uma expressão de sua mágoa.

Em uma inversão de papéis, Lia se sentou calada e parecendo desconfortável, sem dúvida ofendida pelo comportamento de Karla e o roubo dos diamantes.

Estávamos nos aproximando dos moinhos, passando por uma fila de casas pintadas brilhantemente, quando Lia voltou a falar:

— Então, ainda podemos ser amigas?

— Não — Velvet disse. Ela cruzou os braços sobre o peito e ofereceu Lia o seu ombro.

— Acho que você está sendo egoísta — Lia disse.

— Eu estou sendo egoísta? — Velvet brigou. — Talvez você deveria olhar para si mesma. Por que eu dei ouvidos a você? Por que roubei aquela maleta?

— Você estava cega pelas luzes da ribalta —eu disse.

— Eu fui uma tonta — Velvet afirmou. — Mas já chega.

Com os olhos úmidos, Lia virou a atenção para a paisagem. Nós estávamos nos aproximando de uma curva no rio, uma região isolada. À nossa direita, eu observei um moinho e um grande celeiro.

— É aquele! — Lia disse, olhando pela janela do salão até o moinho. — A família de Karla é dona daquele moinho e celeiro.

Uma cerca octogonal envolvia o moinho e seguia toda a margem. Campos inundados de água se estendiam para nossa direita e iam até onde alcançava a vista. Mais para o norte, vi mais dois moinhos e um estaleiro.

Deixando o salão, fui até Saskia e Mac na cabine do barco. Havíamos viajado treze quilômetros ao noroeste, para fora de Amsterdã. Ao leste, um sol apologético piscou através das nuvens enquanto uma brisa fria bagunçava meu cabelo. Tudo parecia tranquilo e pacífico, como uma calmaria antes da tempestade.

Uma fila de vegetação se estendia pela margem do rio, de modo que Saskia não teve outra alternativa a não ser guiar seu barco em direção ao moinho de vento. Ela desligou os motores e então Mac e esta que vos fala pularam do barco para o solo encharcado.

Seres humanos possuem a capacidade de aguentar muita dor e sofrimento, mas, em minha experiência, ter as costas molhadas junto de um pé molhado, pode deixar você na pior. Chapinhando através do pântano, acrescentei uma sola de sapato encharcada aos meus pés molhados, sola que logo deixei de lado quando pressionamos nossos corpos contra a parede do celeiro.

Olhei para Mac e ele se esgueirava por um dos cantos até o moinho de vento. Se Karla estivesse mesmo ali, nós permanecíamos fora de seu campo de visão, mas o barco de Saskia se destacava à vista de todos, com graça e elegância difíceis de não serem percebidas.

Em uma enseada ao norte do moinho, vi um segundo barco, azul claro e fino, bem gasto em comparação. Talvez Karla havia chegado naquele barco, ou alguém mais havia chegado para visitar o moinho, porque além dele não havia mais nada por perto.

Caminhamos ao redor da parede do celeiro, na direção do moinho, que me lembrava um pote de pimenta, mesmo que fosse mais próximo de um pote com telhado de palha. Os juncos na palha pareciam novos, alguém havia renovado a tela das lâminas também. O celeiro não mostrava nenhum sinal de armazenamento recente, então Karla provavelmente estava reformando o moinho de vento para uso pessoal, um abrigo, um santuário longe de Amsterdã.

Durante os dias de glória, o moinho havia moído milho, cevada e aveia para alimentar a comunidade. Uma pedra rachada do moinho estava apoiada contra uma das paredes de celeiro, o que confirmou esse fato.

Nós passamos pelo moinho a uma distância segura do toque de suas lâminas de vento. Como Karla reagiria se nos visse? Ela me parecia imprevisível, então sabia que era melhor proceder com cautela.

Foi quando uma nova surpresa apareceu e Mickey Anthony deu um passo à frente, emergindo do moinho com um sorriso sarcástico e imbecil em seu rosto. Otto Visser, Karla e três homens que eu não reconheci seguiam Mickey. Todos eles seguravam armas que apontavam para a têmpora de Karla.

— Sinto muito, Sam — Mickey deu de ombros. — Eles me forçaram a fazer isso.

— Merda — xinguei, como sempre, sendo muito eloquente quando estava sob estresse.

Um dos capangas de Visser mandou Saskia Velvet e Lia saírem do barco e elas prontamente se juntaram a nós, ao lado do moinho. Então, os capangas empurraram as mulheres para dentro, para ficarem longe dos olhares curiosos e barcos que passavam.

Otto Visser me estendeu o braço direito, convidando-me a entrar no moinho:

— Agora é hora de os adultos conversarem — ele disse.