––––––––– 5 ––––––––
Da Guerra da Abissínia
ao Pacto de Aço
––––––––––––––––––––
O início da guerra da Abissínia, no outono de 1935, constitui grande reviravolta na história da Itália fascista e das relações intraeuropeias. Para a Europa, representa o primeiro atentado perpetrado desde 1914 por uma grande potência do Velho Continente contra a independência de outro país, um desafio aberto ao espírito de Genebra e à Liga das Nações por parte de um estado fundador da instituição e com assento em seu Conselho. Para a Itália, a catarse de uma agressividade até então refreada, a revanche da “vitória mutilada” e a revelação da verdadeira natureza do fascismo nas relações internacionais, por seu alinhamento com as posições nacionalistas mais intransigentes. Qual o papel desempenhado por Mussolini nessa evolução? Foi ele motor ou simples executante de uma política desejada por esta ou aquela fração da classe dirigente e aceita pela maioria dos italianos? Havia alternativa às escolhas do Duce depois da proclamação do Império? Uma chance de ver a Itália se alinhar com as democracias para dar um basta às ambições hitleristas? Ou a aliança entre os dois nacionalismos totalitários do entreguerras era inevitável? A essas questões, segundo as fontes a que se referem ou os pressupostos ideológicos que podem orientar seu julgamento, os historiadores ainda não deram respostas consensuais.
Mussolini entre guerra e paz
É grande a distância aparente entre o homem que, em setembro de 1911, organizara em Forlì a luta contra a guerra colonial empreendida por Giolitti, apelando à greve geral e à sabotagem das estradas de ferro, e aquele que, um quarto de século mais tarde, está prestes a lançar seus exércitos contra um dos dois últimos estados independentes do continente negro para aí conduzir uma guerra de conquista. Como essa guerra deu lugar a episódios de extrema brutalidade, a tentação é forte para o biógrafo de procurar no passado de seu herói sinais de uma predestinação à violência que explicaria o pouco esforço feito pelo Duce para abrandar o zelo exterminador de seus soldados e o encorajamento dado a seus chefes para impor pelo terror a ordem imperial desejada pela “Terceira Roma.” Muitos sucumbiram a ela e quiseram ver no Mussolini chefe de guerra de 1935 apenas o produto de uma personalidade desde a infância inclinada à “selvageria.”
A explicação é breve. Por natureza – talvez – por imitação de seu pai – sem dúvida – pela impregnação de uma cultura camponesa que exalta os valores viris e também porque cresceu em uma Romagna rebelde e pronta a pegar em armas, o filho do ferreiro de Dovia é um homem violento. Um pouco mais violento que os outros, admitamos, na escala do lugarejo onde fez seu aprendizado como “galo de briga.” Mas nada disso o destina a flertar com a barbárie. A violência que o habita é a de seu tempo, seu meio, sua geração. Antes de 1914, ela se encarna nas lutas operárias e camponesas das quais participa, e coexiste com um pacifismo e um antimilitarismo militantes que também podem se exprimir de maneira brutal. Leitor assíduo de Nietzsche e Sorel, Mussolini não repudia a violência se por ela deve passar a ruptura com a Itália burguesa, conservadora, acovardada, denunciada por ele e seus amigos sindicalistas e socialistas revolucionários, assim como por seus adversários nacionalistas, futuristas ou republicanos.
A guerra fez o resto. Para numerosos representantes de suas diversas correntes – rapazes em busca de um romantismo fardado que lembra aquele dos soldados de Garibaldi, frequentemente voluntários, promovidos a oficiais, feridos, mutilados, citados, condecorados, às vezes transferidos a pedidos para o corpo de elite dos arditi – ela varreu os “preconceitos humanitários” adquiridos com a educação, quando não revelou instintos de dominação e morte até então reprimidos. Mussolini, que fez uma guerra honorável, mas não heroica, não pertence realmente a essa categoria de combatentes gloriosos que a “vitória mutilada” e a difícil reconversão à vida civil transformaram em candidatos às “aventuras viris.” Mas, de volta do front, esteve desde cedo em contato com aqueles que os combates mais castigaram – grandes feridos ou mutilados – e, acabado o conflito, foi entre os arditi e os oficiais desmobilizados que recrutou seus primeiros e mais fiéis partidários. Foi por meio deles que a ética guerreira penetrou o jovem movimento fascista, antes de constituir o cimento ideológico do esquadrismo.
Ora, o que faz de Mussolini um chefe carismático, no sentido weberiano do termo, o que lhe valeu ser o Duce, o “guia,” sucessivamente dos socialistas revolucionários, dos intervencionistas de esquerda e depois dos fascistas – antes de sê-lo do “povo italiano” – é sua aptidão em se identificar com uma causa, representar uma missão, exprimir os sentimentos de toda uma fração do corpo social. E seu sucesso após a guerra se deve ao fato de que, para muitos italianos, ele encarnou os sentimentos do mundo combatente.
Dez ou quinze anos após a Marcha sobre Roma, quando o regime há muito completou sua “normalização,” a ética guerreira conserva lugar proeminente na doutrina e na práxis fascistas. E Mussolini – que de resto não é um tirano sanguinário – foi o primeiro a mobilizar seus mecanismos no momento em que iniciou o projeto de forjar um “novo homem” sobre o modelo do cidadão-legionário da antiga Roma. O objetivo não era apenas moldar pela militarização do corpo social uma população saudável, dócil, desdenhosa do conforto material e, portanto, pouco inclinada a formular reivindicações salariais ou outras, de todo modo desarmadas pela conjugação entre repressão e corporativismo, mas sim concentrar todas as energias em vista de uma prova de força da qual a nação sairia mais poderosa e a raça, “regenerada.” Dito de outro modo, é evidente que, se a guerra engendrou o fascismo, este por seu lado alimenta, pela voz de seu Capo, uma vontade de poder e um apetite pelo domínio que levam a um afrontamento armado cuja perspectiva reforça as tendências totalitárias do regime.
Há assim uma lógica de radicalização da ditadura mussoliniana que se operará na segunda metade dos anos 1930 sob os efeitos da crise mundial, da aventura colonial, da imitação do modelo nacional-socialista e da decisão tomada pelo Duce de engajar seu regime em uma “revolução cultural” em completa ruptura com as inclinações e o comportamento das elites e dos magistérios tradicionais. Sob vários aspectos, essa lógica é portadora da guerra, termo de uma política que visa menos a modificar as relações entre os indivíduos e os grupos sociais que a dar têmpera à “raça” e forjar um “novo homem,” produto dos “costumes” e da cultura fascistas.
Ora, quanto mais se aprofunda o fosso entre as fantasias de Mussolini e dos dirigentes extremistas do fascismo, Starace, Farinacci, Pavolini, grandes organizadores do retorno à romanidade, e a sociedade italiana que sofre a radicalização do regime sem ser verdadeiramente tocada nem, sobretudo, transformada por ela, maior é a tentação para o mastro do poder de precipitar o país na guerra, a fim de que o povo italiano se encontre em uma situação que o obrigue seja a fortalecer na ação as virtudes marciais que o regime teria bem ou mal conseguido lhe inculcar, seja a adquiri-las debaixo de fogo, no terreno do enfrentamento armado. Estranha mistura de fatalismo e voluntarismo, de desprezo pelas massas e crença mágica em sua redenção pelo sangue derramado que o fascismo herdou da mística nacionalista e do delírio futurista dos primeiros anos do século, e da qual deverá assumir as trágicas consequências.
Disso resulta, nos anos que precedem a Segunda Guerra Mundial, um discurso de guerra que ocupa todos os espaços mediáticos controlados pelo poder e cuja função metafórica é mobilizar as energias da nação. Mussolini é seu principal propagador, mas não lhe detém o monopólio. Sem dúvida é ele quem dá o tom, quando fala da revisão dos tratados a ser realizada por “Sua Majestade o Canhão” ou dos “oito milhões de baionetas” prontas a serem lançadas contra os inimigos da nova Itália, ou ainda quando evoca, a partir de 1936, a inevitabilidade do confronto com as democracias. Mas, sob a influência do modelo, quantas vozes para retomar e amplificar as propostas do chefe do governo! E não somente na fração exagerada e germanófila do partido. E em muitos outros setores que o da classe política.
Evidentemente, discurso belicoso não é guerra. Não serão nem os publicitários oficiais do regime nem os futuristas convertidos em literatos de circunstância, como Ardengo Soffici, menos ainda o pequeno professor de vilarejo em camisa negra, todos adotando por conta própria a fraseologia mussoliniana, que iniciarão as hostilidades contra a França em junho de 1940. Mas suas litanias, conjugadas e reproduzidas milhares de vezes, obrigam o poder tanto quanto fazem eco às propostas do ditador. Não se mobiliza impunemente um povo durante décadas sobre o tema do “lugar ao sol” e da dignidade a conquistar pelas armas sem se ficar obrigado a harmonizar discurso e ato, quando são os imitadores alemães do fascismo que enfrentam nos campos de batalha os “ricaços” da Europa, sob o risco de ver o regime acabar em revolução ou no ridículo. Até o outono de 1935, as decisões de Mussolini na esfera das relações internacionais podiam ser conciliadas com um discurso marcial de uso essencialmente interno. A partir dessa data, a cultura de guerra desenvolvida pelo fascismo torna mais e mais improvável a adesão de Mussolini à política de Genebra e aos princípios defendidos pelas democracias. Nessa passagem de uma configuração a outra, é a guerra da Etiópia que determina a redistribuição de cartas.
O sonho imperial
Quando Mussolini chega ao poder, em outubro de 1922, faz apenas dez anos que a Itália liberal tomou posse da Cirenaica e da Tripolitânia, depois de uma guerra feroz durante a qual, para vencer a guerrilha, os italianos lançaram mão de uma repressão sanguinária e de deportações em massa da população. Essa proximidade no tempo com a era da colonização selvagem (a conquista da Líbia é quase contemporânea da do Marrocos pela França) merece ser destacada porque relativiza duplamente a política colonial do fascismo. Com efeito, esta prolonga sem grandes mudanças aquela dos governos liberais e se inscreve em uma era da colonização europeia que, para infelicidade dos italianos, coincide com o florescimento de uma ideologia “da Liga” que não impedirá ingleses e franceses de conservarem ciumentamente seus impérios aumentados pelo butim dos vencidos (alemães e turcos), porém recusando à Itália sua parte no saque. O que no início do século constituía ainda o “fardo do homem branco” e o objeto de sua “missão civilizadora” se tornou, vinte ou trinta anos mais tarde e praticado com métodos mais ou menos parecidos, agressão contra um estado soberano, membro integral da sociedade internacional. O erro de Mussolini foi não ter percebido que, ao menos no nível dos princípios, o mundo mudara de época. O erro das democracias imperiais, não ter lhe mostrado isso claramente, em Stresa ou alhures.
A aventura etíope se inscreve em um projeto imperial que, desde a chegada de Mussolini ao poder, fora objeto de cuidados por parte do governo. Desde 1923, o Duce procurou na ação colonial uma forma de assumir a herança de seus predecessores nacionalistas e imperialistas, ao mesmo tempo que realizava, ao menos nesse domínio, a aplicação imediata de seu programa. Não é por meio da colonização que pode se operar nas mentes a assimilação entre a romanidade imperial, sobre a qual se apoia o dirigente fascista, e esses impérios modernos constituídos pelas potências europeias no século XIX, em uma partilha do mundo na qual o recém-unificado estado italiano ficou praticamente de lado? Mas antes de estender sua influência sobre parte do mundo mediterrâneo e ampliar seu modesto domínio africano, era necessário que a Itália consolidasse seu domínio sobre as regiões recentemente conquistadas da Tripolitânia e da Cirenaica. Foi a missão que Mussolini confiou, a partir de 1924, a dois dos quadrúnviros da Marcha sobre Roma, De Bono e De Vecchi, e que exigiu cerca de dez anos para atingir a pacificação quase completa dos dois territórios. Para levá-la a termo, foi necessário que os italianos dessem prova de certa rudeza, transferindo dezenas de milhares de nômades para campos de reagrupamento e retirando dos nativos uma parte das terras cultiváveis.
A segunda etapa consistiu em fazer da Líbia um laboratório da ação colonial fascista, e foi Balbo quem, destituído sem maiores cuidados de seu cargo de ministro da aeronáutica, recebeu em 1933 a missão de realizar essa tarefa. Sob seu impulso, terras foram distribuídas aos colonos, na maioria camponeses originários do Mezzogiorno, ao mesmo tempo que eram empreendidos grandes trabalhos de urbanismo, adução da água e construção ferroviária e rodoviária. Os primeiros resultados foram decepcionantes, mas o que Mussolini desejava acima de tudo era obter satisfações de prestígio e ocupar uma posição estratégica entre a Tunísia, dominada pela França, e o Egito, sob controle inglês. Ao que se aliava um elemento psicológico essencial para a fabricação do consenso: as compensações do amor-próprio fornecidas aos italianos por uma empreitada de colonização que, pela primeira vez desde a Unificação, permitia que modestos emigrantes se instalassem em um país no qual tinham a ilusão de serem senhores, e não mais um subproletariado explorado e humilhado. É desse modo que se explica em grande parte a popularidade da ação do fascismo na Etiópia.
Como, no entanto, as possibilidades de acolhida da Líbia permaneciam limitadas a uma estreita faixa costeira, Mussolini pensou em estender a influência italiana sobre a maior parte da África oriental sem, contudo, desejar, ao menos não no início, conquistar a Abissínia, último estado independente da África afora a Libéria. Para favorecer a penetração italiana nesse vasto território cujos recursos, estimava-se, eram consideráveis, mas mal-explorados, e cujos espaços virgens e relativamente salubres dos altos platôs internos pareciam propícios ao estabelecimento de uma grande colônia de povoamento, o Duce reforçou as posições italianas nas duas pequenas colônias costeiras do mar Vermelho e do oceano Índico. Na Somália, os sultões que até então haviam escapado à autoridade da metrópole foram submetidos e, na Eritreia, foi construída uma estrada ligando o porto de Assab à fronteira etíope.
Sobre as razões que finalmente levaram Mussolini a transformar a penetração pacífica do Império do Negus em operação de conquista visando à anexação, as opiniões dos historiadores ainda divergem. Para a historiografia marxista ou sob influência marxista, durante muito tempo dominante no campo universitário e intelectual italiano e que conserva partidários entre os autores ingleses, as razões econômicas e os objetivos da política interna teriam sido determinantes na decisão de invadir a Abissínia no fim de 1935. Renzo De Felice fez uma análise dessa tese que destaca as consequências da crise sobre a economia italiana e as dificuldades encontradas pelo poder para manter seu domínio sobre as massas. Ele demonstra que, nessa data, os efeitos da Grande Depressão haviam perdido bastante de seu impacto e o consenso de que gozava o regime desde 1929 não fora prejudicado.
Aparentemente, duas motivações tiveram papel maior na escolha da política de conquista na África Oriental. De um lado, a ideia de que a Etiópia anexada poderia servir de suporte para o estabelecimento de um “Império” do qual o Rei da Itália teria a coroa, mas cujo verdadeiro fundador seria o chefe do governo: assim seria restabelecida a continuidade histórica entre a “Terceira Roma” e aquela dos Césares, entre o Duce e o conquistador dos gauleses. De outro, o fato – ao qual muitos italianos eram sensíveis – de que havia a derrota militar de Adowa em 1896 a vingar, e era chegado o momento de obter reparação por essa humilhação nacional.
Evidentemente, não faltavam obstáculos. A Etiópia era membro da Liga das Nações. Entrara em 1923 com o apoio da Itália e, até o início dos anos 1930, o governo fascista tivera relações muito cordiais com o Ras Makonnen, feito em 1930 imperador Haile Selassie. Mudar de política, quando um “tratado de amizade” fora concluído entre os dois países em 1928, exigia uma séria preparação psicológica que o próprio Negus ajudou indiretamente ao adotar medidas de represália contra os interesses italianos, julgados muito invasivos: recusa de concessão da estrada de ferro prevista pelo tratado anglo-italiano de 1925 (não assinado pela Etiópia), tratado de comércio com o Japão favorecendo a entrada de produtos nipônicos no país, preferência aos investimentos americanos sobre os italianos etc. Que Mussolini tenha encontrado apoio em certos meios de negócios que se declaravam vítimas de uma política de “ostracismo” não significa que o “grande capital” tenha exercido todo o seu peso na escolha do recurso às armas. Ao contrário, a maioria dos industriais foi hostil à guerra, que beneficiou somente certos setores da indústria pesada, ao passo que as sanções afetaram gravemente aqueles ligados ao comércio exterior.
Foi em 1932 que Mussolini começou a examinar a possibilidade de um conflito armado com o Negus. De Bono, então ministro das Colônias, foi enviado para a Eritreia, oficialmente em visita de inspeção, de fato a fim de fazer um relatório sobre as medidas necessárias para fazer dessa colônia uma base de partida para a intervenção militar na Etiópia. Importantes fundos foram consagrados à modernização do porto de Massaua, à construção de estradas e de campos de aviação. O efetivo de regimentos suplementares recrutados entre os nativos – os ascaris – chegou a 60 mil homens e uma estimativa das forças necessárias para a guerra de conquista foi feita por De Bono. Acredita-se que Mussolini tenha falado de suas intenções a seu ministro das Colônias no fim de 1933, prometendo-lhe o comando das operações e fixando 1936 como data limite para a missão. A primeira alusão pública ao assunto foi feita em março de 1934. Discursando durante a segunda reunião quinquenal do partido, ele evocou a “expansão natural” e a “missão civilizadora” que a Itália podia reivindicar na África.
A multiplicação de incidentes de fronteira entre a Etiópia, de um lado, e a Somália e a Eritreia, do outro, terminou por fornecer a Mussolini o pretexto diplomático para uma operação armada. Faltava encontrar uma justificativa ideológica e “humanitária” que lhe permitisse tornar a empreitada imperialista aceitável aos olhos da opinião internacional – que seria a denúncia do caráter “feudal” e escravocrata da sociedade etíope – e preparar diplomaticamente a intervenção.
Nesse aspecto, a situação parecia favorável no início de 1935. Durante a viagem de Laval a Roma, Mussolini recebera garantias equívocas, mas que julgou suficientes, do desinteresse francês. Além disso, a participação da Inglaterra na “Frente de Stresa” permitia contar com uma atitude benévola do governo de Londres. Pois não aceitara antecipadamente a expansão italiana na região quando Chamberlain assinara um tratado com o Duce em 1925? Em Stresa, a delegação inglesa não evitara cuidadosamente citar a África oriental? Claro, Mussolini estava errado ao pensar que o silêncio era adesão a seu projeto expansionista. O gabinete inglês não levava a sério sua determinação claramente perceptível à simples visão dos efetivos militares italianos na Somália e na Eritreia. Ou talvez se iludisse achando que, obcecado pelo perigo alemão na fronteira do Brenner, o Duce não ousaria se lançar em uma aventura e empregar parte importante de seu exército longe da península. Deixara sem resposta a nota entregue no fim de janeiro pelo chargé d’affaires italiano em Londres, L. Vitetti, na qual o governo de Roma oficialmente avisava John Simon do acordo franco-italiano e participava o desejo de Mussolini de ver evoluírem “de maneira harmoniosa os interesses dos dois países na Etiópia.”
Nesse jogo visivelmente codificado, Mussolini multiplicava os sinais de um ataque contra o Império do Negus, e a diplomacia inglesa fingia não percebê-los. Em Stresa não se tratara oficialmente da questão etíope, mas houve contatos informais entre o inglês Geoffrey Thomson e o italiano Guarnaschelli, ambos experts em problemas coloniais, e Guarnaschelli não escondera de seu interlocutor que, “ainda que não tivesse certeza do que ia pela cabeça do Duce,” a possibilidade de uma ofensiva italiana depois da estação das chuvas não podia ser descartada.
Só em 15 de abril de 1935, portanto quatro dias após o encerramento da conferência de Stresa, Sir John Simon anunciou a Grandi a oposição da Inglaterra a uma ação militar contra a Etiópia. Os argumentos do chefe do Foreign Office, retomados quinze dias mais tarde por Vansittart em uma conversa com o mesmo Grandi, eram de que a opinião pública inglesa não aceitaria que o Duce desprezasse impunemente a lei internacional, e que o envio à África de parte importante do exército italiano enfraqueceria consideravelmente a coalizão anti-hitlerista no caso de o chanceler alemão executar seu projeto de anexação da Áustria.
Sem dúvida, a diplomacia inglesa desejava fazer respeitar o Covenant, pacto da Liga das Nações, e a soberania de um estado membro dessa organização. Mas o fazia – como, aliás, os franceses – por puro cuidado em observar a lei internacional ou porque ela lhe permitia preservar sua posição dominante no Mediterrâneo e na África? Quanto à “coalizão anti-hitlerista,” Londres dera suficientes provas de seu pouco entusiasmo em se engajar de maneira firme sobre o Danúbio ou o Reno para que se pudesse duvidar, em Roma, da validade desse argumento. A realidade é que a perspectiva de uma ocupação italiana na Etiópia implicava que a potência fascista poderia controlar, com o lago Tana, o regime do Nilo Azul e, assim, o ritmo das enchentes no Baixo Egito. Havia, além disso, o risco de um dia Mussolini pretender ligar, pelo Sudão, a Líbia e a África Oriental tornada italiana. Um relatório enviado ao chefe do governo em junho de 1935 pelo presidente do comitê interministerial encarregado de examinar as consequências de uma eventual ocupação da Etiópia pelos italianos – Sir John Maffey – disse que ela poderia ter como efeito uma ameaça séria ao Sudão, à Somália Inglesa e ao Quênia. De qualquer modo, claramente o governo inglês não tinha as mesmas razões que a França para se desinteressar pelo que se passava no Chifre da África.
César de capacete
A tensão ítalo-etíope se agravou bruscamente no fim de 1934, depois de um incidente em Wal-Wal. Esse posto italiano de fronteira situado no limite entre a Etiópia e a Somália Italiana e ocupado por uma guarnição de coloniais nativos foi atacado com metralhadoras e canhões. O assalto foi rechaçado, mas houve cerca de trinta mortos do lado italiano. Em seguida ao incidente, os dois países decidiram apelar à Liga das Nações, cada um responsabilizando o outro pelo ocorrido.
No conjunto, a Liga das Nações era mais favorável à Itália, e as tentativas de mediação sob sua égide se inclinaram inicialmente nessa direção. A organização internacional não ousava tomar abertamente o partido de um pequeno estado – que a Inglaterra já julgara indigno de ser admitido em seu seio – contra uma potência de primeira grandeza. Assim, como fizera antes no caso da Manchúria, empenhou-se em prolongar indefinidamente a situação. As duas grandes democracias que tinham poder em Genebra não tinham muita pressa em tomar uma decisão que podia afastá-las de seu parceiro de Stresa e se portavam como se reconhecessem certa legitimidade às reivindicações mussolinianas.
Em junho de 1935, Eden, ministro para as Relações com a Liga das Nações no novo gabinete presidido por Baldwin, foi a Roma e teve diversas entrevistas com Mussolini. As conversas foram tensas, pois o Duce mostrava viva antipatia por seu interlocutor, cuja frieza cortês lhe parecia dissimular um profundo sentimento de desdém pelo povo italiano e por ele mesmo. Lembrando ao dirigente fascista que a opinião inglesa dava grande importância à Liga das Nações, Eden propôs um meio-termo que permitiria salvar as aparências. A Etiópia cederia à Itália o vasto território desértico de Ogaden e, em troca, receberia da Inglaterra uma parcela da Somália Inglesa incluindo o porto de Zeila, que daria ao Negus uma saída para o mar. Mussolini recusou com altivez, afirmando ao ministro inglês que seu país não gastara bilhões de liras na preparação de uma guerra justa contra um estado escravocrata para ganhar um deserto e “umas dezenas de palmeiras.”
Nova tentativa teve lugar em agosto, franco-inglesa e apresentada por Laval. A posição das duas potências se aproximara no intervalo, e a proposta a Mussolini estava mais de acordo com suas aspirações. A Etiópia faria à Liga das Nações um pedido de assistência técnica para a organização administrativa e o desenvolvimento econômico do país. A Liga encarregaria dessa assistência a Inglaterra, a França e a Itália, deixando a essa última a maior parte da ajuda técnica: o que estabeleceria, com a cobertura da organização internacional e sob a forma de “mandato,” um autêntico protetorado italiano sobre o Império do Negus. Este se apressou a rejeitar o projeto, assim como Mussolini, que, algumas semanas mais tarde, recusou o plano quase idêntico elaborado por um “comitê de cinco” composto por representantes da França, da Inglaterra, da Espanha, da Polônia e da Turquia.
Mussolini efetivamente desejava a sua guerra. Desde o início de 1935, duplicara os esforços para que tudo estivesse pronto em outubro, depois da estação das chuvas. O plano preparado no ano precedente, que subestimava muito a capacidade de resistência dos exércitos do Negus, foi substituído por um que incluía o envio de grandes reforços. Em 8 de março, em carta enviada a De Bono, encarregado local do preparo das operações, o Duce escreveu:
Você pede três divisões para o fim de outubro. Tenho a intenção de enviar dez. Prevendo possíveis complicações internacionais (Liga das Nações etc.), é bom acelerar as coisas. Por causa de alguns milhares de homens que não estavam lá, fomos vencidos em Adowa! Jamais cometerei esse erro. Prefiro pecar pelo excesso, nunca mais pela falta.
Um mês antes, duas divisões destinadas à Somália e à Eritreia haviam sido mobilizadas, enquanto a classe 1911 era convocada e milhares de camisas-negras se alistavam nas unidades da Milícia que partiam para a África Oriental. No início do outono, três corpos de exército, dois italianos e um de ascaris – 200 mil homens em sete divisões, com 7 mil oficiais, 6 mil metralhadoras, 700 canhões e 200 carros de combate – estavam prontos para entrar em ação. Ao mesmo tempo, para enfrentar uma eventual extensão do conflito, a Itália procedia a uma gigantesca mobilização. As fábricas funcionavam dia e noite para produzir armas e munições. Multiplicaram-se as unidades aéreas e blindadas e foram postas em pé de guerra 19 divisões reagrupadas em quatro exércitos. No total, mais de 800 mil italianos em armas, aí incluídas as divisões de camisas-negras sob responsabilidade de oficiais da ativa. A desproporção com o exército etíope, relativamente pouco numeroso e totalmente desprovido de material moderno, era, portanto, considerável.
Se os ingleses acreditaram, ao menos até junho, que Mussolini não levaria ao fim a intenção demonstrada havia meses, foi por não verem o valor dado por ele ao jogo colonial, a seus olhos mais importante que a partida que ameaçava se disputar sobre o Danúbio no mesmo momento. Não só por se tratar da Etiópia e haver uma derrota histórica a vingar. A rigor, qualquer outro território ainda não ocupado pelos ocidentais poderia servir a essa função, já que parecia necessário ao Duce validar em uma empreitada comum, e ao preço do sangue derramado, essa comunidade da nação transcendendo as clivagens sociais que o fascismo pretendera forjar e experimentar sem riscos excessivos a capacidade operacional de seu exército.
A guerra que se anunciava seria um teste para o próprio Mussolini, confirmando – ele estava convencido à força de ouvir boa parte do mundo fazer apologia de sua pessoa – seu gênio político e a infalibilidade de seu “faro.” Seria assim um jogo, um imenso Kriegsspiel em tempo real conduzido do Palazzo Venezia e que deixava aos generais a responsabilidade tática da empreitada e, eventualmente, do fracasso. Durante toda a campanha, de fato, o Duce não renunciou ao papel de deux ex machina que já fora o seu no tempo da ofensiva esquadrista. Não visitou em nenhum momento os locais de combate e se contentou em seguir a evolução no mapa, dando sua opinião aos estrategistas e apressando os chefes militares, enquanto enfrentava a ofensiva diplomática dos franco-ingleses e seus clientes. Em contrapartida, aplaudiu entusiasticamente os hierarcas fascistas – e foram muitos – que se alistaram para a África, procurando a colheita barata de glória, medalhas e proventos ou buscando reviver a excitação heroica que conheceram nas trincheiras, e sentiu imenso orgulho de ver dois de seus filhos, Vittorio e Bruno, de respectivamente dezenove e dezessete anos, juntarem-se no front a uma unidade aérea.
Mussolini, portanto, desejou essa guerra. Ela é sua. De seu resultado dependerá o destino do regime. Se for vitoriosa – e como poderia não ser? – é sobre o Duce que se derramará toda a glória de uma conquista que enfim dará à Itália o império com o qual ela sonha há meio século e que a velha classe dirigente liberal não conseguiu lhe dar. Prisioneiro de sua megalomania, mas certo de cumprir uma missão que passa agora pelo fragor das armas, é como César de capacete que o Capo da Itália fascista se dirige, na noite de 2 de outubro, à multidão romana vinda em massa para ouvi-lo anunciar, do balcão do Palazzo Venezia, a iminência da ofensiva fascista:
Ascoltate! – diz a voz do Duce, retransmitida para todas as estações de rádio da Itália. Uma hora solene soará na história da Pátria. Vinte milhões de homens estão reunidos nesse momento nas praças de toda a Itália. Jamais se viu na história do gênero humano um espetáculo assim gigantesco. Vinte milhões de homens: um único coração, uma única vontade, uma única decisão. Há meses, a roda do destino, sob o impulso de nossa serena determinação, dirige-se para o objetivo. Esperamos treze anos, no curso dos quais o cerco de egoísmos que sufoca nossa vitalidade se apertou ainda mais. Com a Abissínia, esperamos quarenta anos. Ora basta! (…)
Na Liga das Nações, em vez de reconhecerem nossos direitos, fala-se em sanções. Às sanções econômicas, oporemos nossa disciplina, nossa sobriedade, nosso espírito de sacrifício. Às sanções militares, responderemos com medidas militares. Aos atos de guerra, responderemos com atos de guerra. Que ninguém pense em nos dobrar sem ter primeiro combatido duramente. Itália proletária e fascista, Itália de Vittorio Veneto e da revolução, levante-se! Faça com que o grito de sua decisão invada os ares e encoraje os soldados que esperam na África, que ele seja um estímulo para nossos amigos e um aviso aos nossos inimigos, em todas as partes do mundo: grito de justiça, grito de vitória!
Nessa noite, Margherita Sarfatti se encontra do outro lado da praça, na janela do palácio dos Seguros Gerais, de onde observa a multidão que aclama seu herói. Nessa data, já há muito a jornalista veneziana deixou de ser a favorita e confidente do Duce, do qual continua, contudo, admiradora declarada e incansável empresária junto às agências internacionais e aos magnatas da imprensa americana. Isso não a impede de ser lúcida. Margherita é judia. Está a par do que se passa na Alemanha depois que os názis se tornaram senhores do poder. Compreende que, ao entrar na aventura africana e assumir o risco de um conflito com as democracias, Mussolini dá um passo na direção de Hitler, provavelmente sem volta. Quando o ditador termina sua peroração e dezenas de milhares de camisas-negras e simples simpatizantes escandem sobre a praça Veneza e nas artérias vizinhas: “Duce! Duce! Duce!” – como é costume durante as grandes missas fascistas – a antiga companheira do ditador se volta para o jornalista Renato Trevisani, que a acompanhara, e declara em tom falsamente indiferente: “É o começo do fim.” Surpreso, Trevisani pergunta: “Por que diz isso? Acha que perderemos essa guerra?” “Não, Renato,” replica Margherita, “digo isso porque infelizmente nós a ganharemos... e ele vai perder a cabeça.”
Genocídio racial?
Nem os diversos projetos de meio-termo elaborados em Genebra nem a tentativa de intimidação inglesa em setembro fizeram Mussolini recuar. A Inglaterra concentrou no Mediterrâneo uma esquadra de 800 mil toneladas, esperando que a ameaça fosse suficiente para deter a Itália. Mera gesticulação: o Duce sabe que se trata de navios velhos e que Laval segue a contragosto a iniciativa de Londres. Ele teme ainda menos uma intervenção inglesa porque foram publicados, no fim de junho, pouco tempo depois da visita de Anthony Eden a Roma, os resultados do Peace Ballot, uma pesquisa feita entre leitores de jornais a pedido da União pela Liga no qual se vê que, embora se dizendo favoráveis a uma ação enérgica da instituição genebrina, os ingleses afirmam antes de tudo sua vontade de paz.
Iniciada em 3 de outubro sem declaração de guerra, a campanha da Etiópia foi mais que um simples passeio militar. Já em fevereiro, debruçado sobre os planos elaborados pelo estado-maior, o Duce dera o tom falando de guerra a fondo. Havia-se mesmo pensado na utilização de armas bacteriológicas contra as populações etíopes, mas a opção não fora utilizada, sem dúvida porque apresentava tanto risco para o agressor quanto para o agredido. A infeliz experiência que levara ao desastre de Adowa em 1896 deixara traços na memória do alto comando militar: sabia-se que a Abissínia era um país de difícil acesso e que seus habitantes, ainda que desprovidos de armamentos modernos, eram combatentes temíveis. Assim, Mussolini deu a seus generais ordem de agir rápido, para não dar ao adversário tempo de se organizar e receber armas do exterior, nem às sanções votadas pela Liga das Nações tempo de dobrar a Itália.
As primeiras semanas da guerra foram de acordo com suas esperanças. A partir da Eritreia, De Bono ocupou em alguns dias uma série de cidades cujos nomes evocavam profundos ecos na Itália – Adowa, Aksoum, Makalle – e o mesmo número de lembranças de humilhantes derrotas do tempo de Crispi. No sul, partindo da Somália e desobedecendo às ordens de esperar, Graziani penetrou em Ogaden e Harrar. Rapidamente, no entanto, a ofensiva tomou rumo imprevisto, com os etíopes opondo inesperada resistência aos exércitos fascistas, muito superiores em número, armamentos e meios logísticos. Levando-se em conta o contexto internacional, francamente desfavorável à Itália, Mussolini rapidamente perdeu a paciência e acusou De Bono de indolência e incompetência. Em 13 de novembro, ele o avisou de sua destituição e o substituiu por Badoglio.
O chefe do estado-maior do exército italiano encontrou uma situação difícil e decidiu fazer virem reforços, elevando a cerca de 500 mil homens o efetivo do corpo expedicionário. Em dezembro, quando a reorganização das forças fascistas ainda estava em curso e as condições climáticas haviam se deteriorado violentamente, os etíopes tomaram a ofensiva, obrigando o alto comando a recuar suas tropas. Não por falta de empregar, para vencer os soldados do Negus, os meios mais sofisticados (para a época) e mais bárbaros. No momento em que assumira suas funções como chefe do corpo expedicionário, Badoglio recebera carta branca para conduzir na Etiópia uma guerra de terror e extermínio. A palavra não fora pronunciada, mas os métodos utilizados para dobrar o adversário não deixam dúvidas sobre as intenções dos dirigentes fascistas. Tratava-se de obter uma vitória rápida, tão barata quanto possível em vidas italianas, e eventualmente abrir espaço para a colonização do país por importantes contingentes de habitantes rurais vindos, como na Líbia, das províncias meridionais da Itália.
Essa espécie de “limpeza étnica” ante litteram se inscrevia em uma campanha racista que não esperou a vaga antissemita do fim dos anos 1930 para se manifestar, mas adquiriu toda a sua amplidão com a proclamação do Império e, na própria Etiópia, serviu de legitimação à política repressiva do marechal Graziani e às medidas adotadas pelo “vice-rei” para impedir qualquer união com a “raça bastarda” dos amharas. Em todo caso, se fez tábua rasa de tudo que retardasse o avanço do exército italiano, e uso maciço da aviação e dos gases de combate.
Foi Badoglio quem primeiro exprimiu ao Duce o desejo de utilizar em grande escala essa arma proibida pelas convenções internacionais. Tratava-se, para o comandante em chefe, de responder pela dissuasão à “barbárie abissínia,” e particularmente às mutilações de guerra infligidas aos homens do corpo expedicionário. Com aquiescência de Mussolini, o emprego de gás se generalizou, associado às metralhadoras e ao bombardeio de objetivos militares, unidades combatentes e civis.
Nesse jogo sem grandes riscos para os aviadores italianos, pois o exército do Negus não possuía caças nem verdadeira defesa antiaérea, os dois filhos mais velhos de Mussolini, seu genro e alguns dos hierarcas mais famosos, como Farinacci, talharam-se uma glória fácil, brincando de gato e rato com os infelizes etíopes que tentavam escapar, lançando bombas incendiárias sobre cidades e vilarejos e aspergindo gases tóxicos sobre as colônias de fugitivos. “Era um trabalho divertido, de efeito trágico, mas grande beleza,” escreveu Vittorio Mussolini em um livro de memórias publicado em 1937. “É bem verdade,” explicou em outra passagem da obra de grande sucesso traduzida desde a publicação em diversas línguas, que “o abissínio é um animal.”
Foi durante as últimas semanas da guerra, com o exército italiano tendo retomado a ofensiva em fevereiro de 1936, que as operações adquiriram aspecto de verdadeiro genocídio, se com essa palavra se designa – como é hábito atualmente – uma ação visando a fazer desaparecer toda ou parte de uma população (etnia, classe, confissão religiosa). No início de abril, enquanto Starace, que também voltara ao serviço à frente de uma coluna motorizada, incendiava os vilarejos conquistados e realizava execuções em massa, Badoglio lançava suas esquadrilhas de bombardeio sobre as unidades etíopes em retirada na região dos lagos Ashangi e Tana. Durante dez dias, a aviação italiana cobriu os soldados do Negus com bombas incendiárias e gás mostarda. Os feridos que se arrastavam até a beira do lago para se refrescar ou beber encontravam apenas uma massa líquida de iperita e morriam em meio a sofrimentos atrozes. Ciano e os filhos de Mussolini, designados estes para a 14ª esquadrilha e seu cunhado para a 15ª, participaram dessa demonstração das altas virtudes civilizadoras da romanidade.
As sanções
A Liga das Nações, já fragilizada pela agressão japonesa na Manchúria, não podia permanecer completamente passiva diante de uma violação do Pacto cuja vítima era um estado membro. Principalmente porque, como os interesses ingleses eram diretamente afetados pelo caso, os pequenos estados clientes do Reino Unido se mostravam determinados a apoiar a política inglesa mais enfaticamente do que o fizeram em relação à China em 1931. Além disso, começava-se a perceber, nas capitais dos países hostis à revisão dos tratados, que uma ação enérgica da Liga podia constituir um precedente apreciável nos casos, mais e mais prováveis, em que ditadores questionassem o status territorial estabelecido pelos vencedores.
Mesmo dispostos a considerar as reivindicações italianas, se fosse o preço de manter Mussolini no “front” anti-hitlerista, Londres e Paris deviam levar em conta essa evolução da opinião pública. Isso explica que, na primeira quinzena de outubro, um comitê especial compreendendo delegações da Inglaterra, da França, de Portugal, da Dinamarca, da Polônia e do Chile, e depois a Assembleia Geral (por 50 votos em 54 votantes), tenha declarado a Itália país agressor e decidido, em aplicação do artigo 16 do Covenant, infligir-lhe sanções econômicas definidas por um comitê de dezessete membros a vigorar a partir de 18 de novembro. Os estados membros deviam se abster de comprar mercadorias italianas, exportar para a Itália armas e produtos estratégicos ou dar crédito ao agressor para suas compras no exterior.
Rapidamente se tornou evidente que os políticos franceses e ingleses, que votaram as sanções sob a pressão de largas correntes de opinião, fizeram-no a contragosto e se esforçavam para reduzir seu alcance. Sobretudo Laval, a quem Mussolini informara, no fim de outubro, que, em caso de estrita aplicação do embargo, ele seria levado a se voltar para a Alemanha a fim de obter os produtos recusados pela França. O chefe da diplomacia francesa, agora também primeiro-ministro, era ainda mais sensível à ameaça de uma ruptura com Roma porque sofria no mesmo momento a pressão tanto de certos meios de negócios – especialmente os de Lyon e Marselha, particularmente implicados nas trocas com a Itália – quanto a das ligas, associações de antigos combatentes e da maioria dos jornais de direita.
O governo de Londres não se mostrava muito mais entusiástico. Baldwin e Eden eram favoráveis às sanções, mas o ministro das Finanças, Neville Chamberlain, era resolutamente hostil, como o herdeiro do trono, o príncipe de Gales, cuja simpatia pelo fascismo era conhecida. De seu lado, a Alemanha, os Estados Unidos e numerosos pequenos estados que não ousaram recusar o voto das sanções em Genebra – Bélgica, Polônia, Tchecoslováquia e Iugoslávia, mas que não pertenciam ao campo revisionista – informaram a Mussolini que não aplicariam a decisão da Liga. A própria URSS, cuja admissão em Genebra era recente, declarou-se contra uma extensão exagerada das sanções. Foi ela que, durante toda a duração da guerra, garantiu o fornecimento de petróleo à Itália.
A maneira como as sanções foram aplicadas pelos estados que em princípio as haviam aceitado terminou por tornar a decisão da Liga inútil. Aplicadas com rigor, não poderiam ter sido suportadas por mais que algumas semanas pela economia italiana, ainda que, desde o início, tivesse sido excluído dos decretos o embargo de aço, ferro, cobre, chumbo, zinco, lã e algodão. Mas as únicas medidas suscetíveis de paralisar o corpo expedicionário italiano – fechamento do canal de Suez e embargo do petróleo – que dependiam amplamente da Inglaterra, não foram aplicadas, o que bem mostrava a vontade inglesa de não cortar seus laços com Roma.
As sanções tiveram como principal efeito reforçar o consenso em torno do regime e de seu Capo. Durante os seis meses que precederam o início da guerra, a despeito da intensa propaganda realizada pelos serviços de Ciano, a população italiana manifestara certa reserva aos projetos imperialistas de Mussolini. Os relatórios da polícia e as sínteses redigidas pelos prefeitos mencionavam “sinais de derrotismo,” “difusão de falsas notícias” e mesmo “vociferações” contra o poder em numerosas províncias. Os italianos pressentiam que o envolvimento de seu país em uma iniciativa que afrontava os interesses das grandes potências coloniais podia terminar em uma conflagração geral cuja perspectiva amedrontava a muitos. Mesmo entre os camisas-negras, o entusiasmo estava longe de ser unânime, como testemunha, para citar apenas um exemplo, a carta “extremamente confidencial” enviada ao Duce por Farinacci em fevereiro de 1935. Evocando as dificuldades encontradas pelos dirigentes locais da Milícia para constituir as unidades que deveriam ser encaminhadas para a Eritreia ou a Somália, diz o ex-secretário do PNF:
Independente da maturidade política dessas unidades, apresenta-se igualmente uma questão moral. Nesses batalhões não há só moços, audaciosos e prontos a tudo, há também os mais velhos, que têm uma família da qual são o único arrimo. É inevitável que, quando a ordem de partir se der, (...) muitos sejam os camisas-negras que vão pedir dispensa, comunicando seus problemas de família e de saúde.
Já imagino, eu, que conheço você profundamente, sua reação de fúria: “Mas então pra que servem esses batalhões se, no momento de servir o país, eles criam mil dificuldades?” Mas, querido Presidente, como não admitir que uma coisa é uma guerra de defesa ou uma guerra na Europa, e outra é uma empreitada colonial que se passa longe e que a viagem, o clima, as doenças, tornam – ao menos na imaginação das famílias – mais difícil e mais preocupante?
Ora, essas reticências foram subitamente varridas nas primeiras semanas do conflito, consequência, claro, do imenso esforço de propaganda empregado pelo regime, mas também da real adesão das massas aos temas desenvolvidos por Mussolini em seus discursos: a “guerra dos pobres, deserdados, proletários” contra “o front do conservadorismo, do egoísmo e da hipocrisia”; a “guerra de libertação e civilização” contra um regime “feudal e escravocrata”; o retorno da latinidade triunfante que imporia a “pax romana” em toda a área mediterrânea. Para além dessa retórica, havia em numerosos italianos o sentimento de poder aceder, graças à empreitada colonial, a um destino melhor – seja porque o Eldorado africano verteria suas supostas riquezas sobre a Itália, seja porque ofereceria aos candidatos à emigração possibilidades de estabelecimento e, assim, maior dignidade social.
Tanto as sanções quanto as vitórias militares exageradas pela propaganda fascista transformaram o que no início era apenas aceitação fatalista da guerra em uma poderosa vaga de exaltação coletiva. Nunca mais Mussolini suscitará em torno de si fervor patriótico tão intenso. Alguns representantes das antigas elites que se mantiveram na retaguarda, como Vittorio Emanuele Orlando, ou que condenaram a ditadura, como Benedetto Croce, declararam-se solidários ao governo, imitados por alguns líderes do antifascismo no exílio: Massimo Rocca, Mario Bergamo e Antonio Labriola. Refugiado em Bruxelas, este último escreveu ao embaixador da Itália na Bélgica: “No momento em que meu país se encontra comprometido em uma ação grave e difícil, mas gloriosa, permito-me assegurar Vossa Excelência de meus sentimentos de plena solidariedade por meu país, acima e além de minhas preferências políticas.” E Sem Benelli, que se opusera vigorosamente ao regime depois do assassinato de Matteotti, declarou-se voluntário para a África Oriental.
Mais importante ainda, a indignação provocada pela quarentena imposta à Itália criou numerosas manifestações populares, algumas espontâneas, outras controladas pelo partido, todas reunindo multidões importantes. Multiplicaram-se igualmente as petições, na Itália e fora dela, entre os migrantes favoráveis ao fascismo ou temporariamente unidos a ele por reflexo patriótico. Dos países que acolhiam forte emigração italiana, especialmente os Estados Unidos, afluíram pedidos de alistamento no exército da África. Mas a demonstração mais espetacular de solidariedade com o poder foi a coleta de ouro e ferro. Às iniciativas particulares que emanavam de pequenos grupos sucedeu-se a organização pelo partido da recolha de objetos preciosos e metais indispensáveis às indústrias da guerra. O apogeu dessa campanha foi a Giornata della fede (“Dia das Alianças”), celebrada em 18 de dezembro e no curso da qual centenas de milhares de italianos doaram solenemente à nação suas alianças de casamento, recebendo em troca um pequeno círculo de ferro. Vittorio Emanuele e a rainha Helena, seguidos por outros membros da família real, dona Rachele e seu ilustre companheiro, os hierarcas fascistas ainda não enviados para o front, todos vieram depor sua oferenda diante do altar do soldado desconhecido, enquanto deputados e senadores se desfaziam de suas medalhas de parlamentares, aí incluídos oponentes do regime como Croce e Albertini. Pirandello ofereceu a medalha que lhe fora dada pelo júri de Estocolmo junto com o prêmio Nobel, e d’Annunzio, uma espada em cuja maça estava representada a cidade de Fiume. As viúvas e mães dos mortos na guerra se dirigiram ao Duce em delegação para lhe ceder as condecorações de seus maridos e filhos.
O clero não ficou à margem desse plebiscito vivo. Antes do início das hostilidades, Pio XI manifestara certa reserva à ideia de ver a Itália em uma empreitada de conquista. Exprimira sua preocupação diante das “nuvens ameaçadoras” que escureciam o céu. Mas não ofereceu seus bons ofícios para pôr fim à guerra nem protestou contra os métodos terroristas empregados por Badoglio para dobrar os etíopes. Uma vez conquistada a vitória, associou-se à “alegria triunfante de todo um grande e bom povo, em face de uma paz que se quer fator eficaz e prelúdio da verdadeira paz europeia e mundial.” No intervalo, seguindo o exemplo de monsenhor Giardina, bispo de Ancona, que dera o tom desde o fim de setembro, o clero católico se fechou em bloco em torno do governo. Em 28 de outubro, o cardinal Schuster, arcebispo de Milão, celebrou solenemente no adro do Duomo o aniversário da chegada de Mussolini ao poder, declarando que esse dia iniciara “um novo capítulo na história da Península e também da Igreja católica na Itália.” No “Dia das Alianças,” ele doou seu anel, e monsenhor Nasalli Rocca, cardeal-arcebispo de Bolonha e admirador declarado do Duce, deu seu colar.
A proclamação do Império
Desde o início das operações militares, foram mantidos contatos entre Roma e as capitais ocidentais. Os ingleses, principalmente, continuavam a negociar em segredo com Mussolini, que nada fazia para queimar as pontes e multiplicava as declarações e entrevistas à imprensa internacional afirmando que existiam numerosas “soluções possíveis” para o conflito. Em Londres, Grandi, muito favorável a uma solução negociada, prelúdio à reaproximação entre Itália e Inglaterra, esforçava-se para convencer o novo chefe do Foreign Office, Sir Samuel Hoare, do desejo de paz do Duce, enquanto em Paris Laval buscava uma solução que pudesse ser aceita por ele. Foi assim que nasceu o “Plano Laval-Hoare.”
Sob a aparência de meio-termo, o projeto franco-inglês cedia ao ditador romano o essencial de suas exigências: Ogaden e a maior parte do Tigri, dois terços, pois, do território etíope. Em compensação, o que restaria da Abissínia depois dessa divisão leonina seria aumentado por uma fina faixa da Eritreia, incluindo o porto de Assab. O Império do Negus não teria escolha senão se tornar um protetorado italiano.
Mussolini, ao qual o plano Laval-Hoare foi transmitido em 11 de dezembro e que assim via adotadas suas próprias propostas, disse a Grandi que estava pronto a negociar sobre essas bases. Uma semana mais tarde, o Gran Conselho se pronunciou pela aceitação do plano, mas a reunião da instância suprema do fascismo ainda não terminara quando um telegrama de Grandi, encaminhado apressadamente ao Duce, anunciou que Samuel Hoare pedira demissão. Em 13 de dezembro, indiscrições da imprensa francesa, em função de vazamentos do Quai d’Orsay, tornavam públicas as grandes linhas do projeto. Violentamente atacado na Câmara dos Comuns, na qual conservadores, trabalhistas e liberais fizeram coro para denunciar a “transação untuosa” e a “paz da desonra” aceitas pelo ministro, Hoare teve de pedir demissão e foi rapidamente substituído por Eden, chefe da resistência a Mussolini. Na França, onde a clivagem de opiniões era mais acentuada, Laval ganhou apertado o debate de política externa realizado na Câmara no fim de dezembro, mas, para salvar seu governo, teve de se comprometer com os deputados a seguir a linha fixada pela Liga das Nações, abandonando o plano que elaborara com seu colega inglês, de mais a mais categoricamente rejeitado pelo Negus em 18 de dezembro.
Porém, ao fracasso das tentativas de conciliação não se seguiu, como se poderia esperar, o agravamento das sanções. Eden propôs o embargo do petróleo, mas somente para poder jogar sobre os outros países – entre os quais os Estados Unidos, onde as companhias petrolíferas pressionavam os senadores – a responsabilidade pela não aplicação das sanções. Na França, Laval se deparara em janeiro com questões de política interna e, na expectativa das eleições de abril, o governo Sarraut não parecia disposto a assumir riscos.
É preciso dizer que, a partir de 7 de março, Londres e Paris foram completamente absorvidas pelo golpe hitlerista na Renânia. Se o desmanche da Frente de Stresa foi para Hitler uma circunstância favorável ao sucesso da ação, esta por seu turno prestou serviço a Mussolini obrigando as democracias a dispersar sua atenção, o que contribuiu também para paralisar a Liga. Nessas condições, a ofensiva dos exércitos italianos pôde prosseguir e adquiriu caráter decisivo no início da primavera. Addis-Abeba se encontrava pinçada entre as forças de Badoglio, no norte, e as de Graziani, no sul. Em 3 de maio, ameaçado de cerco, o Negus deixou a Etiópia em direção à Inglaterra. No dia 5, precedido por batalhões de ascaris, Badoglio fez sua entrada a cavalo na capital.
Na mesma noite, Mussolini anunciou a uma multidão de duzentas mil pessoas a vitória dos exércitos italianos. Quando surgiu no balcão do Palazzo Venezia em uniforme de comandante-geral da Milícia, a assistência lhe fez uma longa ovação, só parando de clamar “Duce! Duce! Duce!” após um sinal imperativo de seu ídolo, e foi em meio a um profundo silêncio que ele começou a falar, escandindo as sílabas e elevando o tom lentamente para aumentar a tensão:
No curso dos trinta séculos de sua história, a Itália viveu numerosas horas memoráveis, mas a de hoje é certamente uma das mais solenes. Anuncio ao povo italiano e ao mundo que a paz foi restabelecida. Não é sem orgulho e emoção que depois de sete meses de ásperas hostilidades pronuncio essa grande palavra. Mas é absolutamente necessário acrescentar que se trata da nossa paz, a paz romana, que se exprime nesta simples, irrevogável, definitiva fórmula: a Abissínia é italiana! Italiana de fato, porque ocupada por nossos exércitos vitoriosos. Italiana de direito, porque com o gládio de Roma é a civilização que triunfa sobre a barbárie, a justiça que triunfa sobre a arbitrariedade cruel, a redenção da miséria que triunfa sobre a escravidão milenar.
Quatro dias mais tarde, depois de aprovar no Gran Consiglio o decreto que colocava a Etiópia “sob a soberania plena e inteira do reino do Itália” e conferia ao rei e seus sucessores o título de “Imperador da Abissínia,” o Duce anunciou ao povo italiano, convocado a todas as praças da península, “o renascimento, depois de quinze séculos, do Império Romano.”
Momento de apogeu para o regime e para seu chefe. Em Roma, uma imensa multidão começara a se concentrar no fim da tarde, tão perto quanto possível do palácio presidencial. Por volta das 22h, o Gran Conselho e o Conselho de Ministros chegaram à Piazza Venezia iluminada, na qual se alternavam hinos patrióticos executados por uma dezena de fanfarras e “Duce! Duce! Duce!” exclamados pela claque do partido. Mussolini fez sua aparição às 22h30, saudado por salvas de trompetes, rapidamente assumindo a pose imperial que lhe era habitual. O queixo projetado à frente, as mãos pousadas sobre a balaustrada do balcão, os olhos semicerrados, começou a falar lentamente, sem procurar disfarçar a emoção. A peroração foi breve, interrompida a cada duas ou três frases pelas aclamações da multidão.
A Itália possui enfim o seu Império. Império fascista, porque leva as marcas indestrutíveis da vontade e da potência do Littorio romano, porque esta é a meta para a qual, durante quatorze anos, foram concentradas as energias transbordantes e disciplinadas das jovens e galhardas gerações italianas. Império de paz, porque a Itália deseja a paz para si e para todos e só se decide pela guerra quando é forçada por imperiosas e incoercíveis necessidades da vida. Império de civilidade e de humanidade para todas as populações da Etiópia.
É da tradição de Roma, que, após haver triunfado, associava os povos ao seu destino. (...) O povo italiano criou o Império com seu sangue. Ele o fecundará com seu trabalho ou o defenderá com suas armas contra quem quer que seja.
Nessa certeza suprema, erguei bem alto, legionários, os estandartes, o ferro e o coração para saudar, após quinze séculos, a reaparição do Império sobre as fatídicas colinas de Roma. Sereis vós dignos dele?
(A multidão prorrompe num imenso clamor: “Sim! Sim!”)
Esse brado é como um juramento sagrado que vocês prestam diante de Deus e diante dos homens, na vida e na morte! Camisas-negras! Legionários!
Saluto al Re!
O discurso encerrado, o Duce recuou rapidamente para a Sala do Mappamondo, onde estavam reunidos seus mais próximos colaboradores, entre os quais Margherita Sarfatti. Para os que presenciaram o evento, foi uma verdadeira cena da commedia dell’arte representada sob seus olhos. No balcão, para onde foi chamado não menos que quarenta e duas vezes, um Mussolini radioso, tomado pela embriaguez popular; nas coxias, um Duce de humor sombrio, murmurando que era insuportável ter de dividir esse triunfo com o Rei, que ele era o único a merecer o título de “Fundador do Império” com o qual o Gran Conselho acabara de coroar o soberano, depois acolhendo com falso calor os diplomatas dos países que não aderiram às sanções. A cortina só baixou um pouco depois da meia-noite sobre um Palazzo Venezia deserto e uma praça na qual carabinieri e milicianos fascistas mandavam embora as últimas testemunhas da festa.
Ciano nas relações exteriores
Partilha das honrarias com o soberano à parte, Mussolini tinha todas as razões para estar satisfeito. Jamais o consenso da nação fora – ou seria – tão forte quanto em seguida à vitória na África. Como durante sua nomeação para primeiro-ministro, quando, antes de tomar o trem para Roma, dissera a seu irmão: “Se papai estivesse aqui,” – o filho de ferreiro, ex-professor, ex-imigrante que dormia debaixo das pontes de Lausanne não podia deixar de lançar um olhar sobre seu passado e se orgulhar do caminho percorrido. A confiança em sua “estrela” era outra vez confirmada, e de que maneira! Mas Arnaldo não estava mais lá para freá-lo em sua arrogância megalomaníaca. Rachele, que passara a noite de 9 de maio misturada à multidão da Piazza Venezia com seus dois filhos mais novos, encontrava-se muito desestabilizada pelo curso precipitado pela História para lhe fornecer os conselhos ditados por seu bom senso camponês, que de todo modo ele não teria ouvido. Restavam os da lúcida Margherita, mas esta já perdera o essencial de sua influência sobre Mussolini. Nada nem ninguém, num entourage essencialmente de cortesãos inclinados a concordar com ele, podia impedi-lo de acreditar em sua própria infalibilidade.
Dois eventos de ordem pessoal marcaram profundamente a vida do ditador poucas semanas após a proclamação do Império. Em julho, as relações platônicas que tivera até então com Claretta Petacci viraram ligação amorosa que só acabaria em abril de 1945, em Giulino di Mezzegra. Como acabara de enfrentar uma prova dolorosa, talvez Mussolini sentisse necessidade de romper a solidão afetiva em que vivia desde a morte de Arnaldo e seu afastamento de Margherita. No mês de junho, sua filha mais moça Anna Maria teve um ataque de poliomielite que quase a matou. A garotinha se encontrava em Tivoli, para onde Rachele a levara a fim de cuidar de uma tosse rebelde, quando se manifestaram os primeiros sinais do mal, rapidamente seguidos de um início de paralisia nos braços e pernas. Mussolini, que nessa época ainda tinha de resolver o problema das sanções, abandonou imediatamente sua residência romana e o palácio presidencial para correr à cabeceira da filha.
As testemunhas descrevem um homem derrotado por esse golpe do destino, não compreendendo que sua plenipotência pudesse ser posta em xeque desse modo. “Jamais,” escreveu Vittorio, “eu o vi tão fora de si. Ele estava como que alucinado.” Nos oito ou dez dias em que Anna Maria esteve entre a vida e a morte, ele esqueceu os negócios do estado. Retomou o caminho de Roma somente quando os quatro médicos que se alternavam junto à criança lhe asseguraram que ela sobreviveria.
Mussolini quis manter em segredo a doença de sua filha, mas a notícia percorreu rapidamente a Itália. De todas as províncias da Península e do exterior afluíram, durante várias semanas, cartas e mensagens de compaixão pela jovem enferma e de devoção por sua família, presentes, medalhas pias, imagens de Nossa Senhora, conselhos e remédios caseiros, endereços de médicos e curandeiros, medicamentos expedidos por farmácias americanas ou japonesas. Rezou-se nas igrejas pela recuperação de Anna Maria. “Todos os italianos,” podia-se ler no Messagero, “estão espiritualmente à cabeceira da garotinha enferma. Apoiam-na com seu amor ansioso e imploram por sua saúde e sua vida. Que Deus ouça esse voto ardente de todo um povo, elevando-se pela disciplina e fortalecido pela fé. Esta é a oração dos italianos pelo Duce.”
No momento dessa fase penosa da vida do sogro, Ciano acabara de assumir suas funções no Palazzo Chigi. Essa promoção a ministro do Exterior estava no ar havia dois meses, e o genro do Duce fora discretamente avisado por Dino Alfieri quando ainda se encontrava na África Oriental. Confiando a esse jovem ministro de trinta e quatro anos a responsabilidade pela diplomacia fascista, Mussolini não agira por impulso. Queria, ao renunciar a três das cinco pastas ministeriais que detinha, mostrar uma página virada na história do regime e que, transformado no verdadeiro “Fundador do Império,” chegara o momento de se alijar de parte de suas responsabilidades. Ainda assim, pretendia comandar a condução do Exterior, e para isso lhe era necessário um homem de confiança, fiel, ao qual pudesse confidenciar seus planos mais secretos. Porque desempenhara com talento sua missão de grande organizador da propaganda fascista, porque lhe tinha uma dedicação aparentemente sem limites e porque era “della famiglia,” Ciano lhe pareceu o homem para a posição. Ao que se juntavam o desejo, enfaticamente expresso por este, de ter um papel maior nas cenas nacional e internacional e a preocupação do Duce em recompensar seu genro por sua conduta “heroica” na campanha da Etiópia.
Com o tempo, a escolha se revelou desastrosa. O homem, como se viu, não carecia de inteligência nem de senso político, mas era superficial demais, sensível demais às honrarias, aos elogios e aos prazeres da dolce vita romana para ser levado a sério pelos chefes do partido ou por seus interlocutores estrangeiros. Os primeiros o detestavam e desprezavam, reprovando ao mesmo tempo seu avanço rápido demais e sua ausência de firmeza. Os segundos jogavam com sua propensão a mudar de opinião ao sabor das circunstâncias. Nem por isso sua influência sobre Mussolini foi menos considerável. É verdade que ele se privava de tomar iniciativas contrárias às orientações do Duce. Tinha por ele admiração demais e medo demais para assumir o risco de um conflito que sabia perdido de antemão. Mas soube assumir suficiente ascendência sobre ele para lhe fazer aceitar opiniões nas quais o velho leão não teria pensado espontaneamente.
Ciano teve a sorte de inaugurar seu cargo com um sucesso não atribuível a sua ação. A Assembleia da Liga das Nações recusou por 23 votos a 1 e 25 abstenções a resolução apresentada pelo Negus – que viera a Genebra para a ocasião e cuja presença na sala provocou violenta agitação, desencadeada pelos jornalistas italianos – solicitando que a conquista fascista fosse condenada pela organização internacional. Embora a anexação da Abissínia não tenha sido reconhecida de maneira oficial, em 4 de julho a Liga votou o fim das sanções por quase unanimidade.
Ao se instalar no Palazzo Chigi, o novo ministro do Exterior realizou uma importante “troca de guarda.” Já na época de Grandi, numerosos diplomatas de carreira foram descartados em benefício de indivíduos mais moços e politicamente mais confiáveis. Com Ciano, a fascistização se acelerou. O papel do secretário-geral, determinante no tempo da monarquia liberal e que Mussolini bem ou mal respeitara, foi relegado ao segundo plano, enquanto o gabinete do ministro, povoado essencialmente por seus fiéis, recebia as missões mais importantes, entre as quais as relações com o serviço secreto. Em sua direção, os homens que se sucederam até 1943 – Ottavio de Beppo, Filippo Anfuso e Blasco d’Ajeta – tiveram praticamente status de vice-ministros, ao passo que o subsecretário de estado titular se via reduzido a um papel acessório. Aquele que Mussolini impusera a seu genro quando lhe confiara a direção do departamento, Bastianini, raramente manifestou desacordo com Ciano, que escreveu dele em seu Diário: “É um imbecil, mas fiel.”
A reaproximação ítalo-alemã
“Ninguém pode me acusar de ser hostil à política pró-alemã” – afirmava Ciano em setembro de 1937 – “fui quem a inaugurou.” E, de fato, foi considerável o papel do jovem ministro do Exterior nas decisões que conduziram Mussolini a ligar seu destino ao do Führer. Na origem da reaproximação entre os ditadores, contudo, há razões que mais se devem às circunstâncias, aos mecanismos internacionais e à natureza dos dois regimes que à ação conduzida pelo anfitrião do Palazzo Chigi.
Em 1936, como quarenta anos antes, a Itália se dividia entre duas vias de expansão. Ao iniciar as hostilidades na Etiópia, ela tacitamente renunciou à via danubiana e balcânica, que prevalecera até 1935, para escolher a expansão no Mediterrâneo e na África, o que resultou em confronto com a Inglaterra, diretamente interessada no setor, e com a França, que de modo algum desistiria da solidariedade com os ingleses. Essa foi a lógica que levou Mussolini a se reaproximar da Alemanha e deixá-la estender sua influência na Europa central. Hitler compreendeu à perfeição e, durante a crise etíope, apoiou a política italiana, especialmente se recusando a aplicar as sanções. Isso lhe valeu uma atitude benevolente do governo de Roma no momento em que suas tropas reocuparam a Renânia.
Os interesses econômicos jogaram no mesmo sentido. Já muito importantes na véspera do conflito, os laços comerciais com o Reich se estreitaram com a recusa alemã em aplicar as sanções e com os acordos de clearing entre os dois países. Além disso, existe uma lógica de autarquia que inclina as potências que a adotam a orientar sua economia na direção da produção de armamentos e a praticar uma política externa agressiva. As solidariedades ideológicas, enfim, encaminharam-se na direção de uma aliança entre duas ditaduras que tinham em comum o fato de desprezarem as democracias, quererem criar obstáculos ao comunismo e não darem nenhum valor aos compromissos internacionais.
Essa aliança era inevitável? Provavelmente não, quando se avalia a situação da Europa não em 1936, mas dois ou três anos antes, no momento em que Mussolini ainda não decidira atacar a Etiópia. Nessa data, Inglaterra e França talvez tivessem podido dissuadi-lo da miragem africana, com a condição de pagar o preço: por exemplo, reconsiderando a maneira de operar a distribuição das colônias alemãs em seguida à guerra ou aceitando certos retoques menores no status quo territorial da Europa. Após o golpe de julho de 1934 em Viena, ainda é provável que Mussolini tivesse podido escolher outra via que aquela adotada um ano mais tarde. Em Stresa, nada estava decidido ainda, mesmo que os interlocutores do Duce não tenham indicado até onde podia ir seu “desinteresse” pela África oriental. Ora, nem Laval nem os delegados ingleses foram claros sobre esse ponto. Preferiram deixar a questão em aberto. Na Inglaterra, tentou-se acreditar que o ditador romano não iria até o fim em seu projeto de conquista, por falta de meios ou por medo de ver Hitler absorver a Áustria e estender sua dominação até o Brenner. Do lado francês, foi-se suficientemente longe nas conversas de estado-maior para que Mussolini pudesse acreditar que adquirira adiantada a fatura da “mão livre” na África.
A Inglaterra e a França poderiam ter agido de outro modo? Reconhecer que se preocuparam muito pouco com o direito dos povos quando dividiram – com outros – boa parte do planeta, e que a Itália, que chegara tarde na conquista colonial, também tinha direito a seu “lugar ao sol”? Que a “paz de Versalhes” não só teve por objetivo garantir a segurança dos vencedores e a perenidade de uma ordem internacional fundada sobre a justiça e a paz, mas também reforçara a posição das duas principais potências imperialistas e que, clamando pelo “respeito aos tratados,” estas visavam acima de tudo a preservar suas aquisições? Não, sem dúvida, e não somente porque a ideologia “da Liga” servia de cobertura a sua política de poder, mas porque o mundo mudara depois do tempo das grandes empreitadas coloniais. Porque existia depois da guerra, no seio das elites políticas e da opinião pública, correntes que não teriam aceitado esse discurso e as equipes encarregadas do poder não podiam ignorar essa mudança nas mentalidades.
O erro dos ocidentais foi acreditar que era suficiente jogar com a ameaça hitlerista para convencer Mussolini a aderir ao princípio da segurança coletiva, ao passo que o Duce esperava que lhe fosse oferecida uma contrapartida tangível ao abandono de suas posições revisionistas. Londres e Paris só podiam dar essa compensação à Itália alienando de maneira substancial seu próprio domínio colonial, liberando aos apetites fascistas um estado membro da Liga das Nações ou, no caso da França, renunciando à miragem da aliança pela retaguarda representada pela Petite Entente. Nenhuma dessas condições tendo se realizado, Mussolini se deixou naturalmente levar para onde lhe conduziam suas ambições conquistadoras, afinidades ideológicas entre os regimes fascista e názi e o empenho de seu recém-ministro do Exterior – dirigido mais pelo desejo de assegurar seu próprio prestígio ao conduzir uma “grande política” que por simpatia por Hitler e pelo nazismo.
No início do verão de 1936, numerosas razões empurravam Mussolini a se reaproximar da Alemanha. Primeiro a presença de Anthony Eden no governo inglês, claramente menos bem-disposto em relação a ele que Chamberlain ou Samuel Hoare. Mais ainda, na França, a chegada ao poder de uma maioria do Front Populaire eleita com um programa explicitamente antifascista. Entre o Duce e os dirigentes de Londres e Paris, as tensões se focalizaram sobre o reconhecimento da anexação etíope. Em setembro, a Liga decidiu conservar a cadeira dos representantes do Negus, o que levou à determinação italiana de abandonar seu lugar na Assembleia e sair da instituição de Genebra. De outro lado, se alguns estados, como a Alemanha, a Áustria, o Japão, a Hungria e a Suíça reconheceram formalmente a anexação, a França e a Inglaterra se contentaram com um reconhecimento factual, retirando suas legações diplomáticas junto ao Negus e acreditando simples cônsules junto às autoridades italianas de Addis-Abeba. Mussolini queria mais. Quando, em outubro de 1936, a França chamou de volta seu embaixador em Roma, Charles de Chambrun, ele exigiu que o novo embaixador fosse acreditado perante “Sua Majestade, o Rei da Itália e Imperador da Etiópia.” Paris recusou e se contentou em designar um simples chargé d’affaires.
O principal efeito dessa guerrilha diplomática conduzida pelas democracias foi tornar Mussolini mais receptivo aos avanços de Hitler. No fim de março, ele enviou o chefe da polícia, Bocchini a uma missão na Alemanha. Oficialmente, tratava-se de contatar os principais responsáveis pela Gestapo a fim de coordenar a ação das duas polícias (em matéria principalmente de luta contra o antifascismo e prevenção do “terrorismo”). De fato, Bocchini devia sondar os dirigentes alemães e examinar sobre que bases poderia nascer um acordo entre os dois países. Suas conversas com Himmler foram julgadas muito frutíferas pelas duas partes. A chegada de Ciano ao Palazzo Chigi em junho de 1936, portanto, apenas precipitou uma evolução já em andamento. Mas foi sob sua influência que Mussolini decidiu, contra todas as expectativas, modificar radicalmente sua política danubiana e procurar uma solução para o problema austríaco que satisfizesse Hitler.
No contrapé das disposições que adotara em julho de 1934, o Duce convocou o chanceler Schuschnigg a Rocca delle Camminate e o aconselhou a resolver suas diferenças com o Führer. Sob sua iniciativa, para não dizer sob suas ordens, um acordo foi assinado em 11 de julho entre os dois estados germânicos: acordo pelo qual o Reich se comprometia a respeitar a plena soberania da Áustria e não exercer nenhuma pressão nos assuntos internos do país, o qual, em troca, reconhecia sua situação de “estado alemão” e prometia se inspirar nela para definir as grandes linhas de sua política internacional. Esse acordo ambíguo, tornado possível apenas pela mediação mussoliniana, punha fim às perseguições contra o partido austríaco e permitia a entrada no governo de homens cujas simpatias hitleristas eram conhecidas. Estava aberta a via que, dois anos mais tarde, levaria ao Anschluss. Para Mussolini e Ciano, era o preço a pagar por uma colaboração política entre os dois países que a Guerra Civil Espanhola revelaria à Europa e ao mundo.
A Guerra Civil Espanhola
O levante militar de 18 de julho de 1936 não foi uma surpresa para Mussolini. Havia muito existiam contatos entre a extrema direita espanhola e os fascistas italianos. O general Primo de Rivera, que governara a Espanha de modo ditatorial entre 1923 e 1930, era grande admirador do Duce, e seu filho José Antonio, chefe da Falange, recebia importantes subsídios dos serviços de propaganda italianos. Antes de assumir seu posto como governador da Líbia, Balbo mantivera relações com oficiais aviadores antirrepublicanos. Em agosto de 1932, o governo de Roma aceitou fornecer armas ao general Sanjurjo para sua tentativa de Putsch, aliás fracassado, contra a República. Em março de 1934, enfim, Mussolini prometeu a um grupo de dirigentes carlistas financiar e armar a insurreição planejada com o intuito de restabelecer a monarquia.
Uma vez iniciada a guerra contra os republicanos, Franco muito naturalmente se voltou para o Duce a fim de obter a ajuda que precisava. Ciano, que serviu de intermediário, era favorável à requisição. Ele via em uma intervenção italiana na Espanha o meio de incitar a Alemanha a colaborar com o governo fascista: primeira etapa de um processo que devia terminar na conclusão da aliança com Berlim. Mussolini era mais reservado. Ele não queria se meter em uma aventura que parecia ter começado mal e agiu com reticência, negando várias vezes as prementes demandas de Franco. Ciano, não obstante, acabou por convencê-lo, usando como pretextos o interesse da Itália em assegurar posições sólidas no Mediterrâneo Ocidental e seu dever de barrar o caminho aos franceses e aos soviéticos, aliados naturais do governo da Frente Popular: tese que se tornaria o leitmotiv da propaganda fascista e serviria de justificativa à considerável ajuda militar que a Itália aportaria aos nacionalistas.
Um primeiro contingente de doze aviões foi enviado à Espanha no fim de julho, com o objetivo de escoltar os navios que asseguravam o transporte das tropas franquistas do Marrocos espanhol. A missão fora mantida em segredo, mas, em seguida a incidentes mecânicos, dois aparelhos tiveram de pousar no Marrocos francês, obrigando o governo italiano a derrubar a máscara. Mussolini hesitou em fazê-lo porque, em 24 de julho, uma primeira entrega de armas fora efetuada pela França em benefício das forças republicanas. Isso não o impediu de assinar em agosto o acordo de não intervenção proposto por França e Inglaterra, afirmando que seu governo não interviria no conflito espanhol, mas tampouco se oporia ao alistamento de voluntários e às subscrições públicas que pudessem ter lugar na Itália em favor da Espanha franquista. Para justificar essa atitude, usava como argumento a ajuda, nessa data puramente simbólica e muito hesitante, dada por Stalin aos republicanos.
Hitler procedeu da mesma maneira, mas sua participação na guerra da Espanha foi muito mais discreta, limitada ao envio de material de guerra e de uma unidade de 6.500 homens, a “Legião Condor,” um corpo aéreo e suas unidades de apoio e algumas companhias de blindados. Essa intervenção, calculada com a máxima precisão, respondia a objetivos complexos. Para Hitler, o caso espanhol constituía um bom meio de aumentar a solidariedade entre os dois estados totalitários, mas ao mesmo tempo oferecia à Alemanha a ocasião de volver as ambições do Duce para o Mediterrâneo Ocidental e aumentar sua própria influência na área danubiana.
Sem que houvesse ainda um acordo, já se desenhava uma divisão das zonas cobiçadas pelos dois ditadores. Abandonando a Mussolini o controle da bacia mediterrânea em troca de seu desinteresse pela zona danubiana – o que no médio prazo implicava que a Itália se alinhava em seu campo para impor sua vontade de expansão à Inglaterra e à França – Hitler estimava que cabiam ao Duce os maiores riscos e os fardos mais pesados na resolução do caso espanhol. De mais a mais, se os alemães se interessavam pela Espanha por razões principalmente estratégicas (a abertura eventual de um segundo front para a França em caso de confronto com essa potência) e econômicas (concessões mineiras ao Reich autorizadas por Franco), não pareciam ter pressa de ver os nacionalistas vencerem seus adversários republicanos. Hitler desejava que a guerra durasse tempo suficiente para que as forças enviadas pela Itália para o front ibérico estivessem ainda mobilizadas no momento em que efetuasse seu golpe – longamente programado – contra a Áustria. Não dissera ele a von Neurath, na célebre sessão de 5 de novembro de 1937 na chancelaria: “Do ponto de vista alemão, uma vitória completa de Franco não é desejável. Temos mais interesse em que a guerra se prolongue”?
Mussolini, ao contrário, desejava uma intervenção maciça de seu país na guerra civil espanhola. Seus objetivos eram diferentes dos do Führer, menos econômicos que estratégicos e psicológicos. Preocupado em dar conteúdo concreto a seus sonhos de império mediterrâneo e apoiado por Ciano, exigiu de Franco, em troca da ajuda às forças nacionalistas, uma “colaboração política” no Mediterrâneo Ocidental. Não foi prevista a cessão de bases navais e aéreas, mas desde o início do conflito os italianos se instalaram em Majorca e aí permaneceram durante toda a guerra. Ainda que o Duce tenha negado, para não alarmar a opinião inglesa de maneira excessiva, rapidamente se tornou claro que a Itália buscava assegurar, a partir das posições que ocupara na Espanha, bases de partida para uma eventual expansão no Mediterrâneo.
As preocupações do ditador italiano, no entanto, não eram todas de ordem ofensiva. Uma vitória republicana, além de tornar caducas as promessas de Franco, teria tido por consequência criar nessa parte da Europa mediterrânea um eixo Paris-Madrid explicitamente “antifascista” e determinado a resistir aos projetos expansionistas da Itália, talvez mesmo fornecer um trampolim aos adversários do regime para uma eventual operação de “reconquista” da península. Carlo Rosselli, um dos líderes do antifascismo no exílio, ele mesmo combatente e organizador dos primeiros voluntários italianos na luta contra o franquismo, proclamara desde o início da guerra: “Hoje na Espanha, amanhã na Itália.”
Enfim, Mussolini viu na intervenção na Espanha, como na guerra da Etiópia, a ocasião de “dar têmpera à alma italiana,” experimentar a eficácia dos armamentos utilizados por suas tropas e aumentar o prestígio de seu país e seu regime. Ele a tornou um assunto pessoal, no qual aparentemente a ideologia desempenhou apenas papel secundário. É verdade que, para unir em torno de si um amplo consenso nacional e internacional, o Duce não hesitou em denunciar o perigo “bolchevique” e brandir o estandarte da cruzada, o que lhe valeu – ainda que Pio XI tenha adotado uma atitude relativamente reservada – o apoio do alto clero e da maioria dos católicos. Mas a luta contra o comunismo foi mais uma fachada e um álibi que a tradução dos sentimentos pessoais do ditador, que, de mais a mais, jamais desejou ver a Espanha dotada de um regime propriamente fascista.
Se Mussolini se comprometeu totalmente com a aventura espanhola, nem o povo italiano nem a massa de aderentes do Partido Nacional Fascista mostrou um entusiasmo comparável ao suscitado pela campanha da Etiópia. O nome Corpo truppe volontarie dado às forças italianas enviadas à Espanha não deve iludir – a maioria dos soldados foi designada oficialmente entre as unidades que combateram na África oriental. Mas o corpo expedicionário estava longe de ser simbólico. Em março de 1937, quatro divisões italianas estavam presentes na Espanha: três da Milícia e uma do exército regular, ou seja, cerca de 70 mil homens comandados pelo general Roatta, aporte não desprezível, considerando-se que, nessa data, Franco não conseguira alinhar mais que 250 mil homens. Juntavam-se a esse auxílio em efetivos o considerável fornecimento de material de guerra: 2 mil canhões, 10 mil metralhadoras, 250 mil fuzis, milhares de veículos e blindados ligeiros, assim como o apoio da aviação e da marinha italianas (90 navios de guerra, dos quais numerosos submarinos que atacavam sem aviso prévio e afundavam todo navio neutro suspeito de abastecer a Espanha republicana). Conjugada com aquela, modesta mas importante, do Reich, a ajuda italiana a Franco desempenhou um papel considerável na vitória das forças nacionalistas.
A guerra da Espanha não foi um passeio militar para os soldados de Mussolini. O apoio aéreo de que dispunha o exército republicano e a eficiência da artilharia antiaérea tornavam as decolagens dos aparelhos de bombardeio da aviação italiana infinitamente mais perigosas que na Etiópia. Também houve, por parte dos hierarcas, menos precipitação em se unir às esquadrilhas fascistas. Bruno Mussolini esteve entre os primeiros a se engajar para a Espanha, onde lhe foi confiado o comando de uma esquadrilha de bombardeio baseada em Palma de Majorca. Ele cumpriu numerosas missões no comando de seu S79, que lhe valeram uma segunda medalha de prata. Também enfrentou, em setembro de 1936, um combate aéreo contra o piloto americano Derek Dickinson, que comandava uma esquadrilha de caças republicana e lançara um desafio ao filho mais novo do Duce. O duelo teve lugar entre Palma e Castellon de la Plana, onde estava baseada a unidade comandada pelo americano. Esse último venceu por pouco, obrigando seu adversário a cortar o motor e agitar uma echarpe de seda em sinal de derrota, mas somente após ter sido ele mesmo atingido e ferido a mão. Uma espécie de empate, digamos, noticiado por jornais do mundo inteiro. Pouco tempo depois, Franco informou seu homólogo romano de que a participação de Bruno na guerra “não era mais necessária.” Ele estava consciente dos problemas que a eventual captura do filho de Mussolini pelos vermelhos causaria ao poder nacionalista e pedia, para evitar que ele servisse de refém aos republicanos, que o jovem chefe de esquadrilha fosse chamado à Itália, requisição prontamente satisfeita pelo Duce, para grande melindre do jovem. Mussolini recebeu nessa ocasião uma mensagem enviada de Estocolmo por um grupo de mulheres suecas, redigida nestes termos:
Milhares e milhares de mulheres sofrem, como dona Rachele, uma angústia mortal por seus filhos. Contudo, elas não podem repatriá-los como pôde fazer a esposa de Vossa Excelência, a qual, assim agindo, mostrou que condena a crueldade da guerra. É por isso que nos dirigimos ao senhor, a fim de que use sua influência de chefe do governo italiano para fazer cessar o conflito espanhol que ensanguenta a Europa. Desse modo, os filhos de todas as outras mães poderão voltar para casa.
Em fevereiro de 1937, o exército italiano conheceu um primeiro sucesso, participando de maneira determinante da batalha de Málaga. Ciano, a quem Mussolini confiara a direção política da guerra, publicou nessa ocasião um comunicado napoleônico, anunciando uma ação próxima e “decisiva” na direção de Madrid. O engajamento teve lugar um mês mais tarde, em Guadalajara, a cinquenta quilômetros a nordeste da capital, e terminou em um fracasso doloroso para os 35 mil homens do general Roatta, apoiados por 15 mil nacionalistas, aos quais se opuseram, entre 7 e 20 de março, os cerca de 10 mil combatentes do exército republicano e de voluntários internacionais. Como se sabe, entre esses últimos se encontravam numerosos antifascistas italianos, membros de brigadas internacionais ou corpos constituídos pelo republicano Pacciardi e pelo principal dirigente do movimento Giustizia e Libertà, Carlo Rosselli.
No momento em que se desenrolava esse choque fratricida, Mussolini viajava para a Líbia. Devendo assistir às manobras da esquadra italiana e inaugurar a “litorânea,” ele embarcara em Gaeta em 10 de março e foi a bordo do Pola, onde se instalara com sua comitiva, que recebeu as primeiras notícias inquietantes do front madrilenho. Os arquivos do secretariado particular guardaram numerosos telegramas enviados pelo general Roatta primeiro para o Pola e depois para Tripoli – onde, no dia 18, ele recebeu a “espada do Islã” das mãos dos principais chefes árabes. “Diga aos legionários,” respondeu em 11 de março, “que acompanho de hora em hora sua ação, que será coroada de sucesso.” Ora, uma semana mais tarde, o fracasso da ofensiva fascista se tornara patente e, no momento em que se preparava a contraofensiva republicana, Roatta enviou ao Duce uma série de comunicados nos quais expunha – fora de qualquer linguagem oficial – as razões que explicariam o que se devia considerar uma derrota dos exércitos italianos.
O chefe do corpo expedicionário fascista destacava primeiro as causas de fracasso não imputáveis aos soldados sob seu comando: más condições atmosféricas, “falta de cooperação das tropas espanholas, que deveriam atacar ao mesmo tempo que os italianos e não o fizeram,” emprego pelo inimigo de tanques de fabricação soviética etc. Vinham em seguida certas considerações inesperadas sobre o valor do exército adversário, que compreende, explicava Roatta, “tropas internacionais compostas não de camponeses, mas de operários, empregados e similares, combatendo com maestria, sobretudo de maneira fanática e raivosa. A maioria é bem-comandada, mas, mesmo quando não é, isso não muda grande coisa, levando-se em conta as características individuais mencionadas acima.”
Mas o general Roatta acentuou acima de tudo a natureza do material humano posto a sua disposição pelo alto comando e a mediocridade do pessoal de apoio. Não somente, explicou ao Duce, há a deplorar numerosos casos de deserção, abandono do posto e automutilação mas, de maneira geral, foram homens pouco treinados e desprovidos de qualidades guerreiras que tiveram de enfrentar os assaltos dos “vermelhos.” Roatta descrevia especialmente sua “passividade,” sua “credulidade,” sua “impressionabilidade,” sua obsessão com os ataques dos tanques russos e da aviação republicana e o fato de que não sentiam “nenhuma raiva do adversário.”
Há nesse resumo do fracasso de Guadalajara o eco do que Farinacci dissera a Mussolini dois anos antes, durante as primeiras mobilizações da Milícia antes do conflito etíope. Confirmação no domínio militar da realidade observável em todos os níveis da militância e dos comandos camponeses: a dificuldade do regime em instalar uma nova elite, recrutada na geração do pós-guerra. Aqueles com os quais se podia contar eram ou fascistas de primeira hora, ex-combatentes em busca de glória suplementar, de um revival nostálgico das aventuras viris do esquadrismo ou de um soldo confortável – e estes haviam passado da idade para o rude trabalho militar – ou rapazes formados na escola das organizações paramilitares fascistas, fanaticamente devotados ao regime e a seu chefe, mas desprovidos de experiência de combate. Entre os dois, situava-se a maioria dos combatentes, na maior parte homens casados, pais de família, voluntários para uma campanha colonial relativamente fácil, não para uma reedição sangrenta da grande matança de 1915-1918.
A lúcida análise do chefe do corpo expedicionário italiano, confirmada pouco depois pelo relatório enviado a Mussolini pelo professor Chiurco, contrastava com os comunicados triunfantes dos representantes civis do poder, a começar por Ciano. Desde o início do conflito, este não cessara de proclamar, urbi et orbi, que a guerra seria breve e a vitória, fácil. Depois da batalha de Guadalajara, foi preciso abandonar as ilusões. Esperando um sucesso dos exércitos fascistas que lhe permitisse voltar ao primeiro plano – o que fez depois da tomada de Santander, em agosto de 1937 – adotou um perfil discreto, deixando ao sogro a tarefa de aprender a lição dada pelo evento e assumir sua responsabilidade. O que Mussolini, que regressou precipitadamente do Líbano, apressou-se a fazer, pedindo a Franco para retirar as unidades italianas do front madrileno: “Vá imediatamente até Franco – ordenou a Ciano em um telegrama datado de 22 de março – e o convide em meu nome a substituir imediatamente nossos legionários. Em caso de recusa, reservo-me a decisão a tomar.” Recuo estratégico depois de uma batalha indecisa, mas que o ditador romano transformaria sem problemas em vitória, em um artigo não assinado (mas sobre cuja origem não há dúvidas) publicado em junho no Popolo d’Italia.
A intervenção na guerra civil espanhola custou caro à Itália mussoliniana: perto de 4 mil mortos, mais de 11 mil feridos, um pouco mais de 6 bilhões de liras em material bélico, dos quais somente uma parte seria reembolsada pelos nacionalistas. Mas ela permitiu testar novas tecnologias militares, principalmente no domínio aéreo, experimentar novos conceitos táticos e submeter várias dezenas de milhares de soldados à prova de fogo. Além disso, ocorrendo após os massacres gratuitos perpetrados na Etiópia pelos exércitos de Badoglio, confirmou o caráter feroz da guerra fascista, com pleno acordo do decisor supremo. É verdade que a guerra civil espanhola se desenrolou sob o signo global da selvageria e os próprios dirigentes fascistas foram às vezes tomados de horror pela amplitude da repressão nacionalista. Farinacci, que como se sabe não sofria de humanismo excessivo, foi o primeiro a pedir a Franco para limitar o número de execuções sumárias, e Ciano, no auge da batalha de Guadalajara, fez coro com o antigo Ras de Cremona para condenar a reação branca, julgada “desordenada, cruel e perigosa.” Isso não impediu o mesmo Ciano de encobrir as ações terroristas realizadas em Majorca por um de seus mais fiéis tenentes, Arconovaldo Bonaccorsi, tristemente célebre sob o nome de “conde Rossi,” cujos crimes (mais de 3 mil civis assassinados em alguns meses) inspiraram a Bernanos seu Os grandes cemitérios sob a lua. Nem de apoiar, em junho de 1937, a eliminação dos irmãos Rosselli pelos homens de “La Cagoule” em Bagnoles-de-l’Orne.
E Mussolini? Não foi ele quem, antes da partida para a Espanha, confiou a Bonaccorsi – do qual pudera apreciar o ardor ativista quando esse advogado, fascista de primeira hora, semeou o terror nas ruas de Bolonha – a missão de “defender a civilização latina e cristã ameaçada pela súcia internacional”? O homem não é propriamente de natureza cruel, mas não se opõe à violência se por ela passa o cumprimento da missão da qual se crê investido. Essa violência era legítima quando se tratou, em 1920-1921, de impedir na Itália o caminho do inimigo interno; legítima é, quinze anos mais tarde, na escala da guerra civil europeia da qual o conflito espanhol é de certo modo a prolongação. Ao menos é nesses termos, resolutamente ideológicos, que o Duce legitima uma intervenção que respondia a outros motivos, notadamente sua preocupação de fazer da Itália uma potência hegemônica no Mediterrâneo, herdeira da dominação romana.
Teve também papel na inflexibilidade do personagem e em sua crescente insensibilidade ao sofrimento do outro – quando o outro é um inimigo declarado – o envelhecimento, a solidão na qual se instalou depois da morte de Arnaldo, o mal-estar criado pelo stress que acompanha o exercício de um poder ao mesmo tempo imenso e continuamente cobiçado pelos outros, o cinismo e o desprezo em relação aos homens que nutrem as baixezas cortesãs: em resumo, tudo que constitui a síndrome do ditador que tantos outros experimentaram antes dele. Ao que se une, assumindo parte cada vez maior no universo mental do dirigente fascista, o peso do modelo hitlerista, ontem alvo de deboches e hoje considerado exemplo.
Assim, é o mesmo homem quem, no crepúsculo da idade madura, pôde chorar ao saudar diante do Coliseu os legionários de partida para a Espanha e telegrafar a Ciano em fevereiro de 1939: “Estamos de acordo em que, se os prisioneiros espanhóis devem ser respeitados, é conveniente fuzilar imediatamente os mercenários internacionais. E, claro, em primeiríssimo lugar, os renegados italianos.” O mesmo que a doença de sua filha Anna Maria mergulhou em depressão profunda e ordenou, em março de 1938, sangrentos bombardeios de represália sobre Barcelona, causando a morte de vários milhares de civis e a indignação do mundo inteiro (incluindo Franco).
Nascimento do Eixo
Ao orientar a diplomacia fascista na direção de uma política de preponderância no Mediterrâneo que Inglaterra e França dificilmente poderiam subscrever, a guerra da Espanha demoveu Mussolini definitivamente de suas antigas visões danubianas. O reconhecimento pela Alemanha da anexação da Etiópia e a fraternidade de armas no conflito espanhol estreitaram os laços entre os dois ditadores a partir de 1936.
Em setembro, a visita de Hans Frank, ministro sem carteira do governo názi, à capital italiana permitiu constatar a comunhão de visões ideológicas entre Roma e Berlim. Oficialmente, enfatizou-se a luta contra o bolchevismo, que Mussolini e Frank afirmaram condicionar a intervenção dos dois países ao lado dos franquistas. Mas, além desse discurso com pretensões defensivas, foi com um verdadeiro plano de partilha da Europa que o ministro alemão – encarregado por Hitler de sondar Mussolini – entreteve o dirigente fascista. Desse modo, o Führer informava Mussolini que considerava o Mediterrâneo um mar italiano, implicando, em troca, que a Itália renunciava a vigiar as questões danubianas ou, dito de outro modo, que se absteria de interferir na Áustria quando soasse a hora do Anschluss.
Em outubro, Ciano foi à Alemanha em visita oficial, em sua primeira viagem como ministro do Exterior. Algumas semanas antes, fora convidado a uma viagem particular a Berlim a fim de assistir aos Jogos Olímpicos, mas declinara, temendo que sua presença fosse eclipsada pelo evento esportivo e pela grandiosa mise-en-scène à qual o poder názi o associara. Os alemães aprenderam a lição e receberam o genro do Duce com as atenções e a pompa de chefe de estado. Depois de uma série de encontros com os principais dirigentes do III Reich, Ciano assinou com von Neurath um compromisso que não constituía ainda uma aliança, mas constatava a identidade de visões dos dois países em face dos problemas europeus e comprometia os dois governos a se consultarem e coordenarem suas ações em política internacional. No retorno, em 24 de outubro, o ministro italiano foi recebido por Hitler no “ninho da águia” de Berchtesgaden. A conversa foi cordial. O Führer falou de sua profunda admiração por Mussolini, “o primeiro homem de estado do mundo, ao qual ninguém tem o direito de se comparar, mesmo de longe.” Não se discutiu o Anschluss explicitamente, mas em dado momento Hitler conduziu seus hóspedes italianos a uma grande janela envidraçada da qual se podia entrever com binóculos a cidade de Salzburg, e se queixou de ser obrigado a ver desse modo sua própria pátria. Em seguida, entrou em violenta cólera contra os ingleses quando Ciano, que meditara seu golpe – o objetivo era impedir uma aliança anglo-alemã preparada por Ribbentrop que teria isolado perigosamente a Itália – entregou-lhe um dossiê compilado por Grandi: 32 documentos fotografados em Londres por agentes do serviço secreto italiano, e que, reunidos por Eden, continham julgamentos sobre os chefes názis, considerados “aventureiros perigosos.”
De volta ao Palazzo Chigi, “com as mãos cheias,” Ciano se empenhou em convencer o sogro do interesse para a diplomacia italiana em levar tão longe quanto possível a reaproximação com a Alemanha. Seduzido pelo fausto que os názis utilizaram em sua intenção, reforçado em seu filo-hitlerismo recente pelo entusiasmo de sua mulher – Edda também estivera em Berlim e fora acolhida “como uma rainha” (dixit Grandi) pelos dirigentes názis e pela população alemã – o genro do Duce estava tomado da ideia de um entendimento mais estreito com o Reich. Mussolini era mais reservado. Seus sentimentos em relação ao Führer não haviam mudado depois da entrevista de Stra, e, se ele efetivamente desejava manter suas relações com a Alemanha sob o signo do “entendimento cordial,” ainda não pensava em assinar com Hitler um contrato formal. Considerava as prodigiosas manifestações de simpatia ao antigo inimigo um meio de pressão aos governos francês e inglês, de maneira a forçá-los a adotar uma atitude mais conciliadora com a Itália e dar seu aval à proclamação do Império. Sobre esse ponto, essencial para quem se interroga sobre os motivos que levaram Mussolini a finalmente pender para o lado da Alemanha, eu seguiria de mais boa vontade De Felice que o historiador alemão Jens Petersen, cuja explicação repousa principalmente sobre a ideia de uma perfeita solidariedade ideológica entre as duas ditaduras.
Tal é o significado um pouco ambíguo do discurso pronunciado pelo Duce em 1º de novembro de 1936 na praça do Duomo, em Milão. Após denunciar o caráter ilusório do desarmamento, da segurança coletiva e da paz “indivisível” e criticar vivamente a Liga das Nações, Mussolini evocou o entendimento recente com a Alemanha. “Essa vertical Berlim-Roma,” declarou, “não é um diafragma. É mais um ‘eixo’ em torno do qual podem se unir todos os estados europeus animados pela vontade de colaboração e paz.” A palavra “Eixo” entraria na história para, mais tarde, designar a aliança entre os dois regimes totalitários, mas no momento revestia uma significação vaga o bastante para manter a via aberta a outras combinações. O resto do discurso era diretamente endereçado aos ingleses:
A Itália é uma ilha imersa no Mediterrâneo. Para a Inglaterra (dirijo-me igualmente aos ingleses, que nesse momento talvez escutem o rádio), esse mar é uma rota, uma entre numerosas rotas, mais um atalho pelo qual o Império inglês atinge mais rapidamente seus territórios periféricos. Se para os outros o Mediterrâneo é uma rota, para nós italianos ele é a vida. Dissemos mil vezes, e repito diante dessa multidão magnífica: não temos a intenção de ameaçar essa via. Não queremos interrompê-la, mas exigimos, por outro lado, que nossos direitos e interesses vitais sejam igualmente respeitados. (...) Um confronto bilateral é impensável, menos ainda um confronto bilateral que se tornaria imediatamente europeu. Há, portanto, somente uma solução: o entendimento sincero, rápido, completo sobre a base do reconhecimento dos interesses recíprocos.
Pressionado pela opinião pública, o governo de Londres não permaneceu insensível ao apelo das bases e, em janeiro de 1937, concluiu com a Itália um gentlemen’s agreement sobre a liberdade de circulação no Mediterrâneo, o respeito aos interesses das duas potências na região e a vontade comum de manter o status quo territorial na bacia mediterrânea.
Durante o verão de 1937, a preocupação de Hitler em desenvolver rapidamente todas as virtualidades do “Eixo” daria novo impulso ao teórico e retórico acordo do outono de 1936. Durante todo o ano de 1937 – relativamente calmo no campo das relações intraeuropeias – as visitas alemãs a Roma se sucederam. Göring veio em janeiro, von Neurath em maio, von Blomberg em junho. Para o Führer, tratava-se de multiplicar os sinais de interesse por seu colega latino e preparar a viagem que este faria no outono à Alemanha. Nessa data, a Itália mussoliniana conseguira adquirir peso nada desprezível na cena internacional. Estreitara os laços com a Áustria e com a Hungria e até mesmo assinara, em março de 1937, um acordo com a Iugoslávia, claramente filofascista sob o regime do regente Paul e do presidente Stojadinovic. O gentlemen’s agreement com a Inglaterra lhe assegurava certa liberdade de manobra em relação à Alemanha e isolava ainda mais a França, que viu as tentativas feitas desde 1932 para estabelecer um modus vivendi com Roma arruinadas pela proclamação do eixo Roma-Berlim. Roma se apressara a aderir ao pacto anti-Comintern assinado em novembro de 1936 pela Alemanha e pelo Japão. Enfim, o infeliz episódio de Guadalajara digerido, a vitória na Espanha parecia ao alcance da mão: já se podia pensar em transferir parte do corpo expedicionário fascista para o sul da Itália, em razão do planejado ataque à Albânia.
Mussolini, portanto, tinha no bolso certo número de trunfos que lhe permitiam fazer subirem as apostas quando tomou o trem para a Alemanha em 23 de setembro, em companhia de Ciano, Dino Alfieri, Starace e várias dezenas de funcionários, experts e jornalistas. Hitler, que compreendera que seu correspondente italiano era sensível às honrarias e à ostentação de poder, não economizou esforços nem despesas para impressionar favoravelmente seu hóspede. Foi a Munique para acolher o Duce e não o deixou um instante durante os cinco dias da visita, preocupando-se continuamente com seu bem-estar, inquietando-se de que pudesse pegar um resfriado, insistindo com o chefe do protocolo para que Mussolini não se queixasse de nenhum detalhe concernente tanto à decoração de seus apartamentos quanto à natureza das refeições que lhe eram servidas ou à duração das paradas durante a viagem que deveria conduzir os dois e suas comitivas de Munique a Berlim, via Mecklemburg e o Ruhr. Durante esse longo périplo em estrada de ferro, interrompido por breve estadia nos locais onde se desenvolviam grandes manobras da Wehrmacht e por uma visita às usinas Krupp em Essen – onde o Duce pôde avaliar a potência industrial e militar do Reich – os dois trens rodaram lado a lado, na mesma velocidade, simbolizando, segundo a fórmula empregada por um redator do Popolo d’Italia, “o paralelismo das duas revoluções.” Em toda parte, multidões imensas e aparentemente entusiásticas foram reunidas para aclamar os dois ditadores.
A apoteose teve lugar em 28 de setembro, em Berlim. Desde a aurora, 800 mil pessoas se reuniram no Maifeld, perto do estádio olímpico. Ao longo do percurso do cortejo oficial, cerca de três milhões de alemães tomaram lugar, transportados por ônibus ou trem, vindos de todas as regiões do Reich. Quando os dois senhores penetraram o “Campo de Maio,” por volta das 16 horas, uma imensa aclamação os acolheu. Hitler falou primeiro para apresentar seu hóspede ao “povo alemão” e exprimir sua alegria em receber “um desses homens solitários que não são somente protagonistas da história, mas fazem a história.” Mussolini respondeu em alemão, com um discurso cuidadosamente preparado, mas que pronunciou em ritmo acelerado e teve muita dificuldade de terminar, pois durante a tempestade imprevista a chuva tornou praticamente ilegíveis as últimas folhas do texto – de modo que, para a massa de espectadores, o fim da peroração foi quase ininteligível. Nem por isso Hitler apreciou menos a tirada na qual seu comparsa afirmou enfaticamente que, quando o fascismo tinha um amigo, caminhava com esse amigo “até o fim.”
Depois de assistir, no dia seguinte, a uma gigantesca parada militar, Mussolini pegou o trem para Roma. Na estação de Verona, encontrou d’Annunzio, vindo especialmente de Gardone para saudar “seu velho camarada.” Foi o último encontro entre os dois outrora rivais na marcha para a ditadura. De volta à capital italiana, em 30 de setembro, o Duce teve de responder a uma manifestação “espontânea” dos romanos e pronunciou, malchegado ao Palazzo Venezia, uma breve alocução na qual reportou de sua viagem à Alemanha e de suas entrevistas com Hitler “uma impressão profunda e lembranças indeléveis.”
O Anschluss
Durante as semanas que se seguiram à viagem à Alemanha, Mussolini e Ciano foram tomados por um verdadeiro frenesi germanófilo, considerando os projetos mais dementes: guerra preventiva contra a União Soviética (discurso de 28 de outubro de 1937); exigência de devolução à Alemanha de territórios africanos retirados pelo Tratado de Versalhes; bombardeio de surpresa da esquadra inglesa no Mediterrâneo; um depósito de armas na fronteira ítalo-francesa. Nesse contexto belicoso, uma série de decisões foi tomada, testemunhando as veleidades agressivas da Itália: retirada do embaixador italiano de Paris em 30 de outubro; adesão ao pacto anti-Comintern e reconhecimento da soberania japonesa sobre Manchukuo em 6 de novembro; saída definitiva da Liga das Nações em 11 de dezembro.
Nas conversações entre Mussolini e os principais dirigentes názis, havia-se cuidadosamente omitido o Anschluss. Hitler sabia que esse era um ponto sensível em suas relações com seu amigo romano e pretendia levá-lo a progressivamente aceitar a ideia da eliminação da Áustria. De seu lado, Mussolini acabara por admitir que não podia ao mesmo tempo se prevalecer da amizade do Führer e se opor a ele em uma questão tão importante quanto a anexação ao Reich do pequeno estado danubiano. Desse modo, mesmo declarando-se oficialmente partidário da manutenção da soberania austríaca, durante suas entrevistas com os enviados do Führer ele cederia pouco a pouco, para finalmente reconhecer – no momento de assinatura com Ribbentrop do pacto anti-Comintern – que a Áustria era afinal uma região alemã e que a Itália não tinha vocação para guardar eternamente o que subsistira do Império Habsburgo. Desejava somente, e informou isso a seu interlocutor, que o caso não fosse resolvido sem que ele conhecesse previamente as intenções de Berlim.
Ora, no momento em que Mussolini aderia ao pacto tripartite, Hitler reunia na chancelaria os principais responsáveis pela política externa e militar do Reich para lhes informar os objetivos e o calendário da futura expansão, na primeira linha dos quais figurava a anexação da Áustria. O Duce não foi informado e, quando teve lugar em fevereiro a demissão dos últimos sobreviventes do antigo regime, von Fritsch e von Blomberg no exército, e von Neurath no Exterior, Ciano se regozijou abertamente dessa “marcha em direção à nazificação integral,” afirmando que ela encontrava “sua justificativa mais sólida na identidade dos dois regimes.” Confirmada por um telegrama no qual Mussolini se declarava satisfeito de ver seu comparsa investido do comando supremo das forças armadas alemãs, essa interpretação constituía para o Führer um encorajamento para aproveitar as boas disposições do governo italiano e agir.
A única intervenção de Mussolini foi o conselho dado ao chanceler Schuschnigg de não organizar um plebiscito sobre a independência austríaca que serviria de pretexto ao ultimato názi. Confiando na palavra de Hitler de nada fazer na zona danubiana sem se referir previamente a Roma, não empreendeu nenhuma diligência junto aos responsáveis pela diplomacia alemã nem tomou qualquer disposição de ordem militar suscetível, se não de intimidar Berlim, ao menos de obrigá-la a pensar em uma “compensação territorial” em favor da Itália.
A surpresa e a desilusão foram ainda maiores para Mussolini e Ciano. Quando, em 11 de março de 1938, o Duce recebeu uma mensagem do Führer avisando-o do Anschluss, as tropas alemãs já estavam em marcha para a fronteira austríaca. Estava-se longe da ação coordenada da qual se falara em todas as conversas com os responsáveis názis, e não havia qualquer compensação para a Itália fascista. Mais grave ainda: os motivos invocados por Hitler em sua carta a Mussolini – “os alemães da Áustria estavam sendo molestados e maltratados” – legitimavam de antemão futuras intervenções em estados nos quais existissem minorias de língua alemã. Ainda que em Berlim Hitler o tenha assegurado do contrário, o Duce temia que o Alto Adige se tornasse, no médio ou longo prazo, alvo das ambições hitleristas. É verdade que, para prevenir uma reação epidérmica comparável a que levara Mussolini a mobilizar várias divisões em 1934, o Führer se apressou em confirmar sua intenção de respeitar “a impermeabilidade da fronteira do Brenner.” Mas que peso podia ter a palavra de um homem que acabara de se esquivar de todos os seus compromissos? E, acima de tudo, essa declaração de última hora não constituía para os italianos uma concessão humilhante?
Mussolini engoliu o sapo com uma aparente atitude filosófica. A aceitação do Anschluss, contudo, representou para o chefe do governo fascista o fim da política seguida por quinze anos nas áreas danubiana e balcânica. Ao anexar a Áustria, a Alemanha assumia o controle da bacia do Danúbio e das vias de comunicação que drenavam em direção ao oeste o petróleo romeno, os cereais da Hungria, os minerais e a madeira da Iugoslávia. Hungria e Bulgária agora se voltariam naturalmente para Berlim, mais que para Roma, para expor suas reivindicações revisionistas. Mussolini o sabia, mas fizera sua escolha. Completamente absorto na realização de seu sonho de império mediterrâneo e africano, admitira finalmente que Inglaterra e França não o deixariam ocupar uma posição hegemônica nesse setor, nem mesmo ampliar à sua custa o modesto domínio colonial italiano. Se resolvessem fazê-lo, seria apenas sob a ameaça de uma guerra que a Itália fascista não podia enfrentar sozinha.
Nessas condições, só restava a Mussolini aceitar o fato consumado e suportar o infortúnio com serenidade, informando a Hitler que o governo italiano não tinha “nada mais a dizer sobre o Anschluss” e seguia os eventos “com absoluta calma.” A aquiescência do Duce ao golpe foi relatada a Hitler num telefonema do príncipe de Hessen, marido da princesa Mafalda, filha do rei Vittorio Emanuele. Fora ele que o Führer encarregara de entregar a Mussolini a carta na qual anunciava sua decisão de “restabelecer a ordem e a lei em seu país natal.” Quando, tarde da noite de 11 de março, o príncipe de Hessen informou ao chanceler do Reich que o Duce aceitara “tudo de maneira amigável,” Hitler sentiu imenso alívio: “Diga a Mussolini,” declarou a seu interlocutor, “que não esquecerei jamais o que ele acabou de fazer. (...) Jamais, jamais, o que quer que aconteça. Assim que o caso austríaco estiver resolvido, estarei pronto para marchar fielmente com ele, em qualquer ocasião. Seja o que for.”
O abandono da Áustria às ambições conquistadoras do ditador názi não deixou de provocar certa agitação na Itália. O Rei manifestou descontentamento. A opinião pública, ou o que restava dela, não esquecera com que determinação Mussolini respondera em 1934 à primeira tentativa contra a independência da Áustria. Desse modo, ficou surpresa e desiludida diante da passividade com que o poder acolhera o anúncio do Anschluss. Os relatórios dos prefeitos informaram sobre reações de mau humor em muitos setores da população, incluindo as fileiras do PNF. Em Roma, por exemplo, um colóquio universitário sobre política externa deu lugar a uma manifestação antialemã da qual participaram numerosos estudantes fascistas.
Para acalmar essa oposição germinante, Mussolini fez votar pelo Gran Conselho, em 12 de março, uma moção que aprovava a atitude do governo e afirmava que o Anschluss correspondia à vontade do povo austríaco. Bottai demonstrou certa reserva, mas o único dos grandes hierarcas fascistas a expor claramente sua reprovação foi Italo Balbo. Quatro dias mais tarde, Mussolini pronunciou na Câmara um discurso um pouco constrangido no qual, sem nenhuma inibição, comparava a intervenção das tropas alemãs na Áustria à dos piemonteses nos outros estados italianos na época das guerras do Risorgimento, e que continha esta frase desiludida: “Quando um acontecimento é inevitável, é melhor que ocorra com você que malgrado você ou, ainda pior, contra você.” “Magnífico discurso,” escreveu Ciano em seu diário. “Impressão profunda e definitiva. Eco incalculável.”
Na esfera privada, no entanto, Mussolini reagiu com vigor às justificativas para o Anschluss dadas pelo Führer em nome dos “direitos” do germanismo. Mencionou mesmo a possibilidade de uma guerra contra a Alemanha no curso da qual coligaria a Europa se Hitler tocasse a fronteira do Brenner. Foi sem dúvida essa a razão pela qual, em abril de 1938, esboçou uma última tentativa de reaproximação com as democracias, assinando com a Inglaterra os “acordos da Páscoa” sobre a resolução do contencioso ítalo-inglês no Mediterrâneo, na África Oriental e no Oriente Próximo e mantendo conversações com o chargé d’affaires francês em Roma, Blondel.
Munique
No fim de abril de 1938, as inquietudes italianas a respeito da fronteira do Brenner se avivaram em seguida à agitação criada por parte da população alemã no Alto Adige. Ciano falou do assunto a Ribbentrop e propôs que os dois países assinassem um pacto de respeito recíproco das fronteiras, do qual um diplomata alemão diria que “parecia mais um tratado de paz com um inimigo que um tratado de aliança com um amigo.” Mas a vinda do Führer à Itália, entre 3 e 8 de maio, fez passarem ao segundo plano as preocupações dos dirigentes fascistas.
Hitler chegou a Roma, na estação de San Paolo, em 3 de maio, com uma comitiva imponente, Ribbentrop, Goebbels, Hess, Himmler, Frank, Sepp Dietrich e uma multidão de colaboradores mais modestos e jornalistas uniformizados. O protocolo exigia que fosse recebido não só pelo chefe do governo, mas pelo soberano, a quem cabia a honra de receber e hospedar chefes de estado. O Führer ficou surpreso ao constatar que o homem que recebera em Berlim como um imperador da Roma antiga devia se apagar diante do “reizinho.” Ele assumiu seu lugar ao lado desse último no carro que conduziu os dois ao Quirinal, onde ficou hospedado durante vários dias e no qual conheceu a hostilidade desdenhosa do soberano e da corte.
Vittorio Emanuele, que não gostava dos alemães e menos ainda dos názis, mostrou-se glacial com seu hóspede, o qual por sua vez não incluiu os moradores do Quirinal em suas conversas privadas com o Duce e outros dirigentes fascistas. Ele achou o palácio real “melancólico, desconfortável, parecido com um antiquário.” Transportado em carruagem, ouviram-no perguntar raivosamente se a casa de Savoia tinha ouvido falar na invenção do automóvel. Não admitia aquele que considerava seu inspirador e alter ego relegado a segundo plano nas cerimônias oficiais.
O rei, como Mussolini quatro anos antes em Stra, achou Hitler repugnante. Descreveu-o como um degenerado mental e toxicômano e contava que, durante a primeira noite de sua estadia no Quirinal, o Führer acordara todo o palácio dizendo “precisar de uma mulher.” O que foi tomado por manifestação de frenesi sexual surpreendeu camareiros e empregados ligados ao serviço dos hóspedes importantes, até que se compreendeu que se tratava de uma camareira: o mestre do Terceiro Reich não podendo dormir sem que antes uma representante do belo sexo arrumasse sua cama. Acabou-se por encontrar uma em um hotel vizinho.
Mussolini se sentia humilhado pela dessimetria entre seu status, restrito pela existência do rei, e o poder ilimitado de seu homólogo alemão, ainda mais porque o Führer lhe surgia sob os traços de um personagem agitado, cujo físico se harmonizava mal com sua ideia do “novo homem” názi. Tampouco se absteve de espalhar alguns dos rumores que circularam por toda Roma durante a estadia do chanceler alemão, por exemplo, o de que usava rouge para disfarçar a palidez.
Essa guerrilha anedótica, por reveladora que seja dos pensamentos secretos de cada um, não faz esquecer o essencial. Em maio de 1938, em Roma, foi definitivamente selada a aliança entre os dois ditadores. Sem poder igualar o fausto de Berlim, Mussolini fez todo o possível para impressionar seu cúmplice: parada monstruosa na via dell’Impero diante de uma multidão de 300 mil pessoas, revista naval na baía de Nápoles com exercícios de mergulho efetuados pelos submarinos da marinha real, demonstração aérea, desfiles militares em “passo romano.” Do mesmo modo, levou-se Hitler para passear em todos os altos lugares da romanidade triunfante, salvo na Roma cristã que Pio XI desertara por sua residência de Castel Gandolfo. Em 7 de maio, durante o banquete em honra da delegação alemã dado pelo Duce, Hitler pronunciou um discurso que se queria ao mesmo tempo lisonjeiro para seu anfitrião e assegurador quanto à questão do Alto Adige:
Desde que romanos e alemães se encontraram pela primeira vez na história, dois milênios se passaram. Encontrando-me aqui, sobre a terra mais gloriosa da história da humanidade, sinto a fatalidade de um destino que, já há muito, não traçou limite distinto entre essas duas raças de altas virtudes e tão grande valor. Ele é o resultado de sofrimentos indizíveis para numerosas gerações. Pois bem, hoje, após cerca de dois mil anos, graças à vossa obra histórica, senhor Benito Mussolini, o estado romano ressurge de um passado longínquo em uma nova vida. É minha vontade inquebrantável e o testamento político que endereço ao povo alemão, que seja considerada intocável a fronteira dos Alpes como erigida entre nós pela natureza.
Em 9 de maio, Hitler e sua comitiva deixaram Roma em direção a Florença, onde Mussolini pôde enfim sentir-se em posição de igualdade com o chanceler alemão e onde a população se mostrou mais calorosa que na capital. No momento da despedida, na plataforma da novíssima estação construída sobre os planos de Michelucci, os dois trocaram um longo e efusivo aperto de mãos. “De agora em diante,” declarou o Duce, “nenhuma força poderá nos separar.”
Em Roma, mesmo entre cerimônias oficiais e passeios turísticos, tinha-se reservado um tempo para falar de política. Hitler não se deixara iludir pelo que lhe fora mostrado em matéria de ferramenta militar e sabia o que esperar em relação aos recursos reais das forças armadas italianas. Ainda assim, considerava melhor ter a Itália consigo que contra si, quando mais não fosse para prender parte do exército francês na fronteira dos Alpes e liberar seu próprio flanco sul. Desse modo, propôs a Mussolini uma aliança formal. Prudente, este começou por acolher de maneira evasiva os avanços do chanceler, reforçados pelos de Ribbentrop e do embaixador alemão em Roma. Nos meses que se seguiram, a diplomacia názi acentuou a pressão, prometendo não fazer valer a futura aliança em caso de conflito a respeito dos Sudetos. Mais e mais fascinado pela potência do Reich, Mussolini teria de boa vontade se deixado dobrar, mas era agora freado por Ciano. Este começara a tomar consciência do preço que a Itália poderia ser levada a pagar pela aliança alemã e, depois do Anschluss, tentava deter seu sogro na via que poderia terminar em guerra. No fim de maio, assegurou o embaixador do desinteresse italiano na questão dos Sudetos, mas subordinou todo entendimento formal à entrada em vigor dos “acordos da Páscoa” com a Inglaterra. Pressionado por seu genro, Mussolini declarou que, antes de assinar o que quer que fosse, era importante “popularizar a aliança” – o que estava longe de ocorrer, a despeito do matracar da propaganda fascista.
Assim, o papel de freio agora desempenhado por Ciano era o principal obstáculo à aliança ítalo-alemã. Isso não impediu Mussolini, que de certo modo aceitara ser o brilhante segundo do Führer – desde que este não o tratasse como simples vassalo – de apoiar abertamente a reivindicação alemã nos Sudetos. Em setembro de 1938, à medida que a crise se tornava mais aguda, sua ação junto à opinião pública se fazia mais forte. Ele fez uma turnê de discursos pela Itália do norte (Trieste, Pádua, Treviso, Verona, Vicenza), aprovando as visões do Führer, declarando que todos os problemas de nacionalidade na Europa deviam ser resolvidos por plebiscito e excitando as massas ao proclamar que a Itália estava pronta para entrar na guerra ao lado da Alemanha, a fim de criar a “nova Europa.”
Sem dúvida o Duce desejava que a Alemanha tivesse a última palavra na questão dos Sudetos, o que teria por efeito questionar o status quo territorial estabelecido pelos tratados, tornar mais fluida a situação europeia e abrir a via para uma expansão italiana na Europa meridional. Via na ação do chanceler alemão a política revisionista que perseguia em vão desde sua ascensão ao poder. Mas desejava que Hitler o conseguisse sem recorrer à força, consciente da fragilidade e da falta de preparo da Itália, que permanecia muito comprometida na Espanha. Foi por isso que, alinhado factualmente às posições de Ciano, não procurou uma aliança formal com a Alemanha. Suas fanfarronadas, seus discursos incendiários contra a França e a Inglaterra, seus apelos à guerra não eram mais que um blefe destinado a intimidar os ocidentais e fazê-los aceitar as exigências italianas. A Tchecoslováquia era para Mussolini apenas um alvo suplementar em suas cáusticas críticas às democracias.
O Duce estava em plena campanha de discursos bélicos quando, em 26 de setembro, França e Alemanha começaram a se mobilizar, e a Inglaterra pôs a esquadra em alerta. Corria o risco de ser vítima de seu próprio jogo, podendo apenas, em caso de guerra, entrar de mau grado no conflito ou perder prestígio e cair no ridículo diante da Europa. Assim, foi com alívio que aceitou a proposta, em 28 de setembro, do primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain, de fazer o papel de mediador junto ao Führer para resolverem num encontro a questão tchecoslovaca.
A conferência, que reuniu os dois ditadores e os primeiros-ministros francês e inglês – Daladier e Chamberlain – começou em Munique em 29 de setembro. Mussolini, que nada tinha a negociar pessoalmente, foi na posição de árbitro da Europa. Amigo do Führer, cujas reivindicações apoiava, era também o homem que impedira a guerra quando tudo parecia perdido. De sua atitude dependia o destino da conferência. Se apoiasse a Alemanha, as democracias poderiam apenas se curvar, e nesse caso ele teria a possibilidade de reclamar compensações a Hitler. Se, ao contrário, apoiasse as democracias para reconstituir a “Frente de Stresa,” a Alemanha deveria recuar. Ele estava comprometido demais em sua ligação com Berlim para não escolher a primeira solução, sem se preocupar imediatamente com compensações, e propôs como sendo seu um meio-termo que Ribbentrop lhe submetera pouco antes e que satisfazia Hitler completamente.
Em seu retorno à Itália, Mussolini foi acolhido por multidões entusiastas, não como Capo de uma Itália prestes a combater ao lado do Reich hitlerista, mas como “anjo da paz,” segundo a expressão de Filippo Anfuso, um dirigente fascista do entourage de Ciano. Em Verona e Bolonha, o povo se ajoelhava à passagem do trem que trazia o ditador de Munique a Roma. E durante todo o trajeto que o conduziu da estação Termini ao centro da capital, misturaram-se ao tradicional “Duce! Duce!” os gritos de “Pace! Pace!” O que confirmarão as numerosas cartas vindas de todas as regiões da península, para agradecer ao Duce por ter, como escreveu um operário milanês, “salvo em Munique toda a humanidade e particularmente nossa cara e bela Itália.” O fundador do fascismo ficou mortificado com a exibição desses sentimentos pacifistas, em completa decalagem com o ideal guerreiro que acreditava haver insuflado em seu povo. Na mesma noite, a multidão invadiu a Piazza Venezia para aclamar seu herói e ouvi-lo dizer algumas palavras. O Duce acabou por se curvar de muita má vontade, e por pedido expresso de Starace, à exigência de seus fiéis, mas só após ter sido chamado uma dezena de vezes ao balcão e ter permanecido completamente silencioso a cada aparição.
As ambições conquistadoras do Duce
Depois da Conferência de Munique, Mussolini posa ao mesmo tempo como salvador da paz e aliado da Alemanha, potência revisionista por excelência. Seu prestígio é considerável e as próprias democracias o alimentam. Foi assim que, em 4 de outubro, o governo francês decidiu restabelecer laços diplomáticos normais com a Itália e acreditar, na pessoa de André François-Poncet, um novo embaixador “junto ao Rei da Itália, Imperador da Etiópia,” reconhecendo assim a anexação de 1936. De seu lado, considerando que a retirada da Espanha de parte do corpo expedicionário italiano (cerca de dez mil homens) constituía um empenho de boa vontade da parte de Mussolini, a Inglaterra decidiu pôr em vigor o pacto da Páscoa. A diplomacia italiana se encontrava em posição favorável para obter uma “compensação” e foi para a França – cuja fragilidade fora avaliada em Munique – que ela se voltou para fazer valerem suas reivindicações.
O primeiro contato entre o novo embaixador e os dirigentes italianos foi positivo. O Rei se mostrou “extremamente amável e cortês,” do mesmo modo que Ciano, e, na audiência oficial de 29 de novembro, o Duce rivalizou com eles em amabilidade. Portanto a surpresa e a irritação do morador do Palazzo Farnese foram ainda maiores durante as manifestações do dia seguinte no Montecitorio. O discurso – muito moderado – pronunciado por Ciano foi acolhido pelos membros da Câmara de Fasci e Corporações aos gritos de “Tunísia! Córsega! Djibuti!” Aos quais se juntaram, vindos de vários bancos, os de “Nice! Saboia!” rapidamente retomados por pequenos grupos de fascistas reunidos diante da sede do Parlamento e que apenas a polícia impediu de se manifestarem diante da embaixada da França.
O incidente era ainda mais grave porque teve lugar na presença de François-Poncet e Mussolini, que permaneceu “impassível” diante dessa explosão, fazendo apenas “um sinal para que não se prolongasse.” A provocação era evidente, e o embaixador francês, que Georges Bonnet, nessa data encarregado do Quai d’Orsay, incitara à intransigência, não se privou de dizê-lo a Ciano quando este o recebeu em 2 de dezembro no ministério do Exterior. Ciano se mostrou cortês, mas não disposto a pedir desculpas ao representante da França e nem mesmo a desaprovar enfaticamente os autores do escândalo de Montecitorio. Limitou-se a declarar que o governo italiano não podia ser responsabilizado pelos “gritos dos fascistas, tanto na sala de sessões do parlamento quanto nas praças públicas,” e devia se limitar a “constatá-los como sinal preciso do estado de espírito do povo italiano,” concluindo a entrevista ao explicar a seu interlocutor que era necessário reexaminar os acordos de 1935 relativos à Tunísia. François-Poncet teria saído (dixit Ciano) do Palazzo Chigi “pálido como uma folha de papel.”
Que houve? Que parte teve Mussolini na preparação da manifestação “espontânea”? Durante muito tempo, achou-se que o Duce e seu genro tinham sido seus instigadores diretos, com o objetivo de impressionar o governo francês no momento em que este enfrentava graves dificuldades internas (greve geral lançada pela CGT, mas que de todo modo terminaria em completo fracasso). Desse modo, Mussolini teria procurado dramatizar a situação e mobilizar uma opinião pública já havia diversas semanas submetida à violenta campanha antifrancesa orquestrada pela propaganda fascista, tudo isso a fim de negociar em posição de força com a república vizinha e obter uma “gorjeta” substancial por seu papel em Munique. Atualmente, está-se mais inclinado a pensar que Mussolini e Ciano foram ultrapassados por certos elementos do partido, em particular por Starace, que, aparentemente ignorante das intenções íntimas do ditador ou em todo caso dos prazos fixados por ele, teria cometido um excesso de zelo ao incitar os deputados fascistas a se manifestarem.
Mas quais eram, de fato, as ambições de Mussolini na área de expansão tacitamente reconhecida por Hitler? No curto prazo, tratava-se essencialmente de obter da França uma mudança do status quo em relação a três pontos, mencionados numa carta endereçada a Grandi por Ciano, por ordem de seu sogro. A graduação da natureza das reivindicações era calculada: para Suez, eles se contentariam com uma baixa das tarifas comerciais da Companhia do Canal de maioria francesa; para Djibuti, “saída natural da Etiópia italiana,” pedia-se um condomínio franco-italiano e a plena propriedade das estradas de ferro; para a Tunísia, enfim, desejava-se igualmente o estabelecimento de um condomínio que permitisse a extensão da colonização italiana e a manutenção da nacionalidade dos italianos instalados por muito tempo no país. Essa era a fatura que Mussolini desejava apresentar ao governo francês, e é pouco provável que o escândalo do Montecitorio tenha ajudado a obter um sinal qualquer de aquiescência. Tivesse essa esperança e seria rapidamente decepcionado. O incidente de 30 de novembro teve como consequência mobilizar a opinião pública francesa – houve numerosas manifestações anti-italianas em Paris e na província – e radicalizar as posições do governo. Em 13 de dezembro, Daladier declarou na Câmara que a França não cederia “nem um pedacinho de seus territórios à Itália, mesmo que disso resultasse um conflito armado,” e no início de janeiro fez uma viagem à Córsega, à Argélia e à Tunísia que, para o primeiro-ministro, foi um verdadeiro triunfo. Em 17 de dezembro, uma nota de Ciano declarava que os acordos assinados em janeiro de 1935 por Mussolini e Laval estavam “historicamente ultrapassados.”
É evidente que as reivindicações formuladas por Ciano em sua carta a Grandi constituíam para Mussolini apenas a primeira etapa de um programa de envergadura maior cujas grandes linhas conhecemos hoje e que relativiza fortemente a ideia que frequentemente se faz da política externa fascista. Entre os critérios – pouco numerosos – que autorizam o historiador a procurar uma diferença entre o fascismo mussoliniano e o nacional-socialismo, há a relação dos dois ditadores com o futuro tanto do regime que haviam instaurado quanto do resto do mundo. Oposição clássica, quase banal, entre o nazismo milenarista e coerente, que fazia coincidirem profecia e história conforme o minucioso programa exposto em Mein Kampf, e o aventurismo fascista, mais respeitador do fato que da doutrina e, por resistente a todos os compromissos, menos tributário da ideia que fazia seu chefe do futuro da humanidade. Na verdade, as coisas não eram assim simples, nem a clivagem tão acentuada, ao menos nos anos que precederam imediatamente a entrada da Itália na guerra.
A história do futuro, tal qual a concebe Mussolini, comporta dois capítulos bem distintos. O primeiro definiu em grandes traços, e em uma perspectiva temporal relativamente curta, os objetivos da política externa fascista. Projeto expansionista clássico, menos completo que o de Mein Kampf, mas não desprovido de coerência. O segundo, ao mesmo tempo mais global e mais abstrato, mas de igual peso para as escolhas impostas ao regime, é uma avaliação da hierarquia dos povos e das nações no longínquo horizonte do século XXI. Utopia esboçada a duras penas em um livro cuja redação jamais foi levada adiante, mas do qual conhecemos os temas essenciais graças aos testemunhos concordantes de Nino d’Aroma e Ciano e da análise de Renzo De Felice.
Comecemos pelo programa de médio prazo do imperialismo fascista, exposto por Mussolini aos membros do Gran Consiglio na noite de 30 de novembro. Não existe ata da sessão, mas Ciano a resumiu em seu diário de maneira lapidar:
Comunico-vos – teria declarado o Duce – os próximos objetivos do dinamismo fascista. Da mesma maneira que Adowa foi vingada, vingaremos Valona. A Albânia se tornará italiana. Ainda não posso nem quero dizer quando e como. Mas ela se tornará. Em seguida, para garantir nossa segurança nesse Mediterrâneo que ainda nos mantém prisioneiros, temos necessidade da Tunísia e da Córsega. A fronteira deve ir até o Var. Não reivindico a Saboia, já que ela se encontra fora do círculo alpino. Penso, em contrapartida, no Ticino, porque a Suíça perdeu sua força de coesão e está destinada a ser deslocada um dia, como serão muitos pequenos países. Tudo isso constitui um programa. Não posso indicar um fim temporal. Indico somente as orientações da marcha.
Algumas semanas após essa exposição, bastante próxima das reivindicações nacionalistas do fim do século XIX – mais exatamente na noite de 4 para 5 de fevereiro de 1939 – o Duce apresentou aos membros do Gran Conselho um programa muito mais ambicioso, destinado a fixar as orientações da política externa fascista “no curto, longo e longuíssimo prazo.” Nada foi dito aos hierarcas sobre o significado dessas distinções temporais, e é provável que o próprio Mussolini tivesse apenas uma vaga ideia do calendário da conquista. O documento, do qual uma cópia foi enviada ao rei Vittorio Emanuele, oferece grande interesse, pois permite compreender o quadro geopolítico claramente delimitado no qual o Duce concebia o futuro da Itália fascista. Três pontos merecem destaque.
Para começar, o futuro da Itália não é no continente. A política italiana, declarou Mussolini, não tem e não pode ter objetivos continentais de ordem territorial na Europa, com exceção da Albânia. Ruptura completa e aparentemente definitiva com um dos objetivos fundamentais do nacionalismo tradicional, e mesmo do revisionismo fascista, até 1936: o litoral adriático e a penetração das áreas balcânica e danubiana. Sem formular explicitamente, Mussolini reconhece a preponderância alemã na região e aceita tacitamente uma divisão de influência que limita, a norte e a leste, aquela da Itália do “arco alpino.”
Segundo ponto, já esboçado na exposição de 30 de novembro: o Mediterrâneo é para a Itália uma “prisão” cujas “barras” são a Córsega (“uma pistola dirigida contra o coração da Itália”), a Tunísia (mesma fórmula aplicada à Sicília), Malta e Chipre. Essas barras devem ser quebradas.
Terceiro ponto, sem dúvida o mais importante, e novo em comparação ao programa minimalista de 30 de novembro: a “marcha para o oceano.” Só são verdadeiramente independentes, explicou o Duce, “os estados que possuem costas oceânicas ou têm livre acesso aos oceanos.” O que implica que a Itália se torne mestre das “sentinelas” erguidas pelas antigas potências coloniais nas saídas dos oceanos Atlântico e Índico.
Dos diversos artigos desse programa, dois podem ser realizados em um futuro relativamente próximo: o que se relaciona com a Albânia e o que oporá a Itália e a França – a mais “decadente” e vulnerável das democracias – derrotada em uma guerra ou simplesmente obrigada a negociar sob ameaça a cessão de certas possessões mediterrâneas. Muito mais longínqua é a possibilidade de um conflito aberto com a Inglaterra, e por consequência o livre acesso aos espaços oceânicos, objetivo último do fascismo nesse ponto de sua evolução. Como se pode ver, uma guerra vitoriosa das potências do Eixo contra as forças de Inglaterra e França não coincide nessa data – fevereiro de 1939 – com a concepção de Mussolini do futuro imediato da Europa.
Para além das portas da “prisão” europeia, franqueadas não se sabe em quantos anos ou décadas, Mussolini não diz quais serão as direções do expansionismo fascista. A Índia, cujas chaves serão detidas por mãos fascistas? A África? A América Latina? Ou ele se contentará em preservar o “lugar ao sol” reclamado pelo fascismo e adquirido à custa dos imperialismos declinantes? Em um caso como no outro – conquista ou conservação do status quo – quais serão os parceiros e concorrentes do Império italiano, disputando suas aquisições ou o objeto de sua avidez? Quem serão os fortes, os poderosos, os “grandes,” e que relações manterão entre si em um mundo no qual as cartas terão sido redistribuídas?
Aqui intervém, aplicada no longo prazo, a utopia mussoliniana tal como surge no livro que o Duce não terá tempo nem paciência de escrever, mas do qual conhecemos as linhas diretrizes – reveladas em 1937 a alguns confidentes e familiares – e o título: Europa 2000.
O argumento se resume em poucas linhas. Interrogando-se sobre o futuro do Ocidente, e mais globalmente sobre o do planeta, Mussolini se declara convencido de que os estados-nação que dominarão o mundo no fim do século serão a Alemanha, a União Soviética, o Japão e a Itália. Os outros – ele se preocupa exclusivamente com países já industrializados e nem sequer imagina a emergência do que se chamará mais tarde de “terceiro mundo” – terão sido reduzidos a um papel subalterno, destruídos pelo vírus hedonista e pelo “ácido da corrupção judaica,” trate-se das velhas democracias europeias, no fim de seu fôlego, ou dos Estados Unidos, que se transformaram num “país de negros e judeus, um elemento de desprezo para a civilização.”
As razões que inclinam o ditador italiano a conceber essa futura hierarquia das nações são “raciais” e demográficas. Seu peso, sua grandeza, o fato de figurarem ou não na lista das potências hegemônicas não depende nem da riqueza potencial de seu solo nem do grau de desenvolvimento de sua economia, mas sim da vitalidade física e moral das populações que a compõem e, principalmente, de sua capacidade de crescer quantitativamente. Veremos no próximo capítulo as consequências desse postulado para a evolução do regime e o reforço do totalitarismo.
O ponto sem volta
Como não podia satisfazer imediatamente suas ambições mediterrâneas e africanas, no início de 1939 Mussolini procurou uma compensação que pudesse convencê-lo de que não se tornara simples instrumento da diplomacia alemã. Em 6 de dezembro de 1938, com efeito, Ribbentrop declarara a Georges Bonnet que a Alemanha não fora informada das reivindicações italianas à França e não pretendia apoiá-las. Foi por essa razão que ele decidiu transformar o semiprotetorado exercido pelos italianos na Albânia em pura e simples conquista. O desmembramento da Tchecoslováquia e a ocupação de Praga pelas tropas názis em 15 de março de 1939 lhe forneceram a ocasião. Novamente, Hitler avisou seu comparsa apenas quando o fato já fora consumado. “O Eixo – escreveu Ciano em seu diário – funciona somente em favor de uma das partes. Isso inquieta e humilha o povo italiano. É preciso lhe dar uma compensação: a Albânia.”
Em 7 de abril, Sexta-Feira Santa, a Itália enviou um ultimato ao rei Zogu I, acusando-o de trair a confiança italiana e não levar em conta os interesses econômicos da península. Simples cortina de fumaça, destinada a legitimar o golpe. No mesmo dia, as tropas italianas invadiram o território albanês. Zogu fugiu e, em 8 de abril, a Albânia foi declarada protetorado italiano. Alguns dias mais tarde, uma assembleia de notáveis ofereceu a coroa da Albânia ao rei Vittorio Emanuele e, em 16 de abril, a união ítalo-albanesa foi proclamada.
O êxito dessa operação de conquista, efetuada a baixos custos e com a cumplicidade benevolente do Führer, assinalava um ponto de não retorno na evolução da política externa fascista. Até essa data, Mussolini hesitara muito em concluir uma aliança formal com a Alemanha. De um lado, sentia-se inclinado a fazê-lo por razões claramente ideológicas e porque apenas com o apoio do Reich poderia fazer triunfarem suas reivindicações. Do outro, temia se ver arrastado contra sua vontade a uma guerra europeia para a qual a Itália não estava pronta, e tinha de levar em consideração as reticências causadas pela perspectiva de uma aliança com a Alemanha názi em amplos setores da opinião pública, entre os representantes dos meios dirigentes tradicionais e até no seio da hierarquia fascista.
Assim, durante vários meses, o Duce bordejaria ao sabor de ventos contrários, ora querendo se aliar a Hitler de maneira formal, ora pensando em uma reaproximação com as democracias. Mesmo após ordenar a Ciano, em 1º de janeiro de 1939, o início das negociações com Berlim para a conclusão de um tratado de aliança, ouviu atentamente as propostas de Chamberlain e de seu ministro do exterior, Lord Halifax, durante sua visita à Roma alguns dias mais tarde, os dois se declarando dispostos a retomar a amizade tradicional entre Itália e Inglaterra. Nem mesmo com a França as pontes estavam completamente queimadas. No início de fevereiro, Daladier enviou à capital italiana um emissário, Paul Baudouin, com a missão de sondar os dirigentes italianos sobre a extensão de suas reivindicações. Baudouin foi recebido por Ciano e conduzido ao Palazzo Venezia, onde Mussolini teria feito – ao menos foi o que afirmou em seu relatório – demandas extremamente moderadas: uma zona franca em Djibuti, a recompra da estrada de ferro de Addis-Abeba e a manutenção do status dos italianos na Tunísia. Mas as entrevistas vazaram e a imprensa francesa de esquerda se apropriou do caso e obrigou Daladier a suspender as negociações.
A agressão alemã à Tchecoslováquia e a anexação da Boêmia causaram viva indignação na Itália, inclusive nas fileiras do partido fascista. Quatro dias após o “golpe de Praga,” Ciano escreveu no diário:
Os eventos dos últimos dias mudaram completamente meu julgamento sobre o Führer e sobre a Alemanha: ele é desleal e falso. Nenhuma política pode ser conduzida com ele. A partir de hoje, trabalho junto ao Duce por um acordo com as potências ocidentais.
Efetivamente, desse momento em diante, o genro do Duce se empenharia em reprimir uma aliança que lhe parecia ao mesmo tempo perigosa e contrária à vontade da maioria dos italianos. Como se viu, Ciano nunca fora e jamais seria fascista convicto. Suas estreitas relações com numerosos representantes do establishment romano – majoritariamente hostil à Alemanha názi – não o inclinavam a prosseguir na via para a qual fora um dos primeiros a conduzir Mussolini. Mas não era o único entre os dirigentes fascistas a trabalhar nesse sentido. No próprio seio do Gran Conselho, De Bono não escondia sua desconfiança em relação ao Reich e Balbo se declarava contrário a um acordo que pudesse reforçar em Hitler a ideia de que os italianos tinham vocação para “engraxar as botas” dos alemães.
Mussolini se encontrava profundamente isolado diante dessa revolta geral, e os raros apoiadores da aliança alemã se encontravam na ala intransigente do partido unida em torno de Farinacci. Embora seus “feitos” na Abissínia e na Espanha tenham contribuído para seu retorno às boas graças, o Duce ainda desconfiava de seus rompantes, e o antigo Ras de Cremona exercia sua ascendência apenas sobre uma minoria de militantes e dirigentes do PNF. Nessas condições, como explicar que o patrão da Itália fascista, que agora só confiava realmente em Ciano, tenha decidido não levar em consideração as reticências das instituições tradicionais (o Rei, a hierarquia católica, tendo em sua direção o cardeal Pacelli, eleito papa com o nome de Pio XII, a maioria dos chefes militares) nem as de uma ampla fração da nova elite fascista? Sem dúvida contribuíram para essa escolha o envelhecimento, a enfermidade psicológica e afetiva e a confiança inquebrantável em sua “estrela” e em seu “faro” ou a incapacidade de julgar por critérios realistas e um fatalismo que crescera com a idade, ao mesmo tempo em que diminuía sua aptidão para não cair na armadilha das lisonjas cortesãs.
Mas, principalmente, havia o medo de ter o Führer contra si. Mussolini escolhera se reaproximar da Alemanha porque temia que seu país ficasse completamente isolado na Europa mais que por desejo de obter, graças ao peso da aliança alemã, as “gorjetas” que Hitler o deixasse embolsar. Teoricamente, ele ainda podia voltar atrás, como desejava Ciano, e se virar, como fizera alguns anos antes, na direção das democracias ocidentais. Depois que Daladier afirmou que a França não cederia um milímetro de seu patrimônio territorial e colonial, no entanto, era muito tarde para mudar de política e “ir a Canossa.” Além disso – este talvez seja o ponto essencial – havia o respeito pela palavra empenhada no “juramento” berlinense, uma espécie de senso mafioso de honra que fazia Mussolini dizer: Non siamo puttane! ao mesmo tempo que afirmava cinicamente que sua única moral nas relações internacionais era a do sucesso.
Finalmente encarregado pelo Duce de iniciar as conversações preliminares com os alemães para uma aliança militar, Ciano informou os interlocutores de que seu país estava determinado a assinar um acordo, com a condição expressa de que a guerra não começasse antes de 1943. Esse período de “paz preliminar” permitiria à Itália concluir a pacificação da Etiópia e da Albânia, construir seis encouraçados, fazer retornarem da França um milhão de italianos emigrados (apenas alguns milhares responderam ao apelo da “circular Ciano”), deslocar a indústria da planície do Po para o sul e, finalmente, organizar a Exposição Universal de Roma, prevista para 1942 e que ajudaria a economia italiana e levaria o prestígio do regime a seu apogeu, fechando o balanço do ventennio fascista.
Em 6 de maio, durante seu encontro com Ciano em Milão, Ribbentrop respondeu a essas pretensões de maneira ambígua. Declarou que o Führer estava decidido a nada fazer sem antes falar com seu aliado e a não declarar a guerra antes de 1942. Mas antes, precisou o ministro alemão, era preciso que a questão de Dantzig fosse resolvida. Informado por telefone sobre a evolução das conversações, Mussolini tomou uma decisão precipitada – motivada pela irritação causada pelo anúncio, na imprensa francesa, de violentas manifestações antialemãs em Milão – que desconcertou Ciano: deu-lhe ordem de tornar pública a notícia da assinatura iminente de um pacto entre as duas ditaduras, esperando impressionar as democracias e terminar com os rumores sobre a desintegração do Eixo.
Absolutamente desestabilizado por essa brusca decisão, Ciano demonstrou inacreditável leviandade ao deixar os alemães prepararem sozinhos o projeto do pacto, que teria caráter abertamente ofensivo. O artigo 3º, ao estipular que, no caso de uma das partes contratantes se encontrar implicada “em complicações guerreiras com uma ou várias potências,” a outra parte “se colocaria imediatamente como aliada a seu lado e a apoiaria com todas as suas forças,” punha a Itália à mercê de uma guerra declarada pelo Führer. A única cláusula redigida pelos italianos, a pedido do embaixador Attolico, relacionava-se com a fronteira do Brenner, cuja intangibilidade foi reconhecida por Hitler.
O Pacto de Aço foi assinado em 22 de maio de 1939 em Berlim, por Ribbentrop e Ciano, na presença de Hitler e Göring. Nada estipulava que o Reich deveria esperar três anos para começar a guerra, como Mussolini tivera a ingenuidade de acreditar. O artigo 2º falava de consultas em caso de ameaça à paz, é verdade, mas nenhuma cláusula tornava o estado de beligerância dependente do acordo entre as duas potências signatárias, e o artigo 3º previa explicitamente a entrada automática da outra parte na guerra. Durante a reunião exploratória de 6 de maio, Ciano informara Ribbentrop das condições italianas, mas o ministro alemão teve o cuidado de distinguir entre uma “guerra generalizada na Europa” e um “conflito localizado” com a Polônia a respeito de Dantzig – distinção ainda mais ilusória porque supunha nula e não existente a garantia dada à Polônia pelos franco-britânicos.
Ora, o equívoco não foi mencionado durante a assinatura do pacto. Hitler calou sobre o problema, e Mussolini se deixou embalar pela ilusão de uma pausa que o ditador názi não tinha a intenção de respeitar. Menos de três meses se passariam antes que fosse obrigado a assumir as consequências de sua imprudência.