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A Radicalização do Regime
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De Felice fala em “outono fértil do fascismo” para qualificar o período que separa a proclamação do Império da entrada da Itália na guerra. Período de crise, sem dúvida, ligada mais aos eventos externos e às escolhas autárquicas feitas por um Mussolini que envelhecia do que aos efeitos prolongados da depressão mundial, mas um período de profunda transformação do regime no sentido de um totalitarismo até então fragmentário cujo objetivo era adequar o conjunto do corpo social ao modelo concebido pelo grupo dirigente. Ainda hoje, a opinião dos historiadores sobre a interpretação dessa mutação não é unânime: para uns, resultado de uma evolução endógena da própria natureza do regime; para outros, consequência das opções voluntaristas do Duce para “inverter o curso da história” ou do alinhamento puro e simples com o modelo hitlerista. O que quer que seja, Mussolini e as decisões que toma, sozinho ou de comum acordo com seus principais tenentes, estão no centro da “revolução cultural” do fascismo.
A ofensiva antiburguesa
A virada totalitária que os dirigentes fascistas impõem a seu país a partir de 1936 tem sua origem e sua justificativa na adoção por Mussolini de uma visão do futuro da qual não subestima as incertezas. É nesse sentido que a utopia de Europa 2000, que, como vimos, esboçava os objetivos de longo prazo da diplomacia fascista, constitui material importante da ideologia mussoliniana. Define – e não só em política externa – o horizonte do fascismo e lhe assinala um objetivo maximalista, que é fazer com que a Itália figure na lista das grandes potências do terceiro milênio. Mas, ao mesmo tempo, considera que esse “encontro com a história” está inscrito no presente, por pouco que o fascismo e seu chefe ponham o país nos trilhos.
Com efeito, o que constata Mussolini na leitura dos números fornecidos pelos demógrafos do Instituto de Estatística em 1936? De todos os grandes povos “civilizados” – leia-se os que realmente contam no turbulento jogo das relações internacionais – somente alemães, russos, japoneses e italianos conhecem expansão demográfica e estão, como consequência, destinados a um futuro de grandeza. “Os povos em flor – escreve o Duce no Popolo d’Italia – não temem o amanhã. (...) Felizes as nações que têm e mantêm o magnífico segredo dessa arma silenciosa e invencível, boa ao mesmo tempo para a guerra e a paz.” Os outros estão irremediavelmente fadados ao esgotamento, à senilidade e à decadência.
Ora, Mussolini, que esquadrinha as estatísticas, não pode ignorar que o caso da Itália não é assim tão assegurador quanto o dos três outros grandes estados totalitários. Em dez anos, sua taxa de natalidade caiu cinco pontos, a despeito dos esforços do regime para estimular casamentos e nascimentos. Não é esse o início do processo que conduziu as velhas nações industriais ao declínio demográfico irreversível? Mussolini não evita a questão. Ao contrário, multiplica as intervenções nesse sentido, sob a forma de notas e artigos publicados anonimamente no Popolo d’Italia ou de instruções aos arautos normais da boa palavra fascista. E busca uma explicação que possa se encaixar em sua visão do mundo e da história.
A mais evidente, que já usara dez anos antes no “discurso da Ascensão” e nas primeiras medidas natalistas, é a explicação dos germes da decadência portados pela civilização industrial. Em 1927, Mussolini convidara os italianos a seguirem o exemplo dos habitantes da Basilicata – a região de mais alta taxa de natalidade da Itália porque não contaminada pela modernidade – e se declarara pronto a, se necessário, fazer da Itália um país rural. No fundo, na polêmica cultural que opunha “bárbaros” e “modernistas,” os primeiros agrupados em torno de Mino Maccari e sua revista Il Selvaggio – na qual colaboraram Ardengo Soffici, Papini e Malaparte – os segundos alardeando com Massimo Bontempelli o novecentismo e a herança futurista, ele estava, sem dizer, do lado dos adversários da industrialização. A escolha nada tinha de surpreendente, uma vez que se inscrevia em uma visão da história que, de um lado, aparentava-se àquela da revolução conservadora e, do outro, fazia referência à romanidade. Do mesmo modo que o Império Romano nutrira seu impulso vital com as virtudes de seus camponeses-soldados, a nova Itália encontraria o seu num retorno às origens tonificantes do ruralismo.
Mas o fascismo caminhara na direção oposta no fim dos anos 1920. Não havia contradição no ditador ao querer fazer da Itália uma grande potência, em uma época em que potência se media em milhares de toneladas de aço, pontos de crescimento e capacidade de enfrentar uma guerra moderna, ao mesmo tempo que procurava restaurar as estruturas de outra era? Entre o retorno à ordem tradicional apregoado pelos “selvagens” e a aspiração a uma nova ordem anunciada pelo novecentismo, Mussolini foi obrigado a escolher, provavelmente contra sua própria inclinação, apoiando a segunda contra o primeiro, da mesma maneira que escolhera reforçar as tendências industrialistas e monopolistas da economia italiana em detrimento dos outros setores e categorias sociais.
Em 1936, quando se encontrava envolvida – pela vontade de seu guia – em uma partida diplomática que tinha todas as chances de terminar em guerra, não se imagina de que modo a Itália poderia recuar. Mussolini pode escrever no Popolo d’Italia: “Em todos os centros tocados pela decadência da civilização industrial e urbana, há mais caixões que berços, a moral declina e a raça se torna senil. A força demográfica da Itália está sempre no campo.” Mas não pode ir na contracorrente de uma evolução que faz coincidirem potência e modernidade, força das armas e industrialização, destino manifesto dos povos e domínio de tecnologia avançada.
A explicação tropeça em um ponto essencial. A civilização industrial e a urbanização, às quais é imputado o arqueamento demográfico de certos países, não têm as mesmas consequências em todos os lugares. A Alemanha, o Japão, a própria URSS, potências hegemônicas do futuro, são grandes nações industriais e urbanizadas cuja população continua a crescer em ritmo acelerado. É necessário concluir que sua superioridade nessa matéria se deve a qualidades biológicas e antropológicas ausentes nos habitantes da península? Isso Mussolini não pode de modo algum admitir. Não fazem parte de seu universo mental, nutrido por referências tradicionais e por uma cultura espiritualista, a ideia de uma inferioridade qualquer do povo italiano nem um racismo fundado principalmente em critérios biológicos. Ele estima que é preciso buscar alhures a causa das falhas demográficas de seu país: nos desvios de uma marcha histórica cujo final pode ser modificado.
O drama da história contemporânea da Itália não está, aos olhos do ditador latino, na industrialização em si, efetuada como na Alemanha, por iniciativa e em benefício exclusivo de uma burguesia nacional cujos traços específicos não foram destruídos, o germanismo, o apego aos valores tradicionais, individuais e coletivos. Reside mais na alteração do clima moral que acompanhou as transformações da economia. Porque o processo de industrialização foi durante muito tempo impulsionado e controlado do exterior e, com o capital e a tecnologia vindos de fora, penetraram as ideias e os hábitos dos burgueses “cosmopolitas.” Porque a nova classe dirigente italiana se adaptou, desde o século XVIII, a esses modelos “subversivos,” principalmente o francês, liberal, individualista e hedonista. E aí perdeu sua alma e as virtudes que fazem grandes os povos.
Não é, portanto, a natureza da raça que está em causa, mas o enfraquecimento das elites que brotaram sobre o húmus do capitalismo selvagem. Em todos os lugares onde este triunfou sobre as antigas estruturas, eliminando os valores, as hierarquias tradicionais, triunfaram com ele o individualismo burguês, o egoísmo de classe, a recusa do esforço e do sacrifício pessoais, a aspiração à felicidade, ou melhor, ao bem-estar material e ao prazer; em suma, todos os ingredientes de uma filosofia hedonista cuja consequência principal é – no sentido estrito do termo – a adoção de um comportamento malthusiano. Daí a ideia de que é preciso romper de maneira radical com esse modelo estrangeiro e corruptor sobre o qual se construíra no passado a Italietta da época giolittiana. É necessário que a Itália mude de história, que encontre o fio de seu próprio futuro e sua própria cultura. E também que as antigas elites sejam substituídas por uma “aristocracia do espírito,” saída diretamente do povo e, como ele, detentora da força viva da nação.
Esse discurso populista e antiburguês, opondo o egoísmo senil dos ricos à saúde moral e ao instinto de vida das classes populares, tampouco era novo. Simplesmente deixara de nutrir a retórica dos dirigentes fascistas empenhados em encontrar um compromisso durável com os representantes das grandes forças conservadoras: Igreja, monarquia, propriedade latifundiária, grande burguesia comercial, exército. A partir de 1936, ele entra novamente em alta e em pouco tempo adquire uma amplitude e uma intensidade que jamais conhecera até então.
Por mais que, para muitos, a constatação do encolhimento demográfico de seu país explique essa mudança de atitude do Duce, ela não diz tudo. Ao mesmo tempo que avalia a falência de sua política natalista, Mussolini aprende amargamente a lição dada pela evolução recente do regime e se interroga sobre suas chances de sobreviver a seu próprio desaparecimento. São pequenas. Na verdade, nenhuma ameaça séria, interna ou externa, pesa imediatamente sobre o fascismo. Fabricado ou não, o consenso jamais foi tão forte quanto em seguida à proclamação do Império. Com o caso etíope resolvido, nada impede a Itália de retomar o diálogo com as democracias, como desejam as antigas elites e uma boa fração do establishment fascista, o que, aos olhos do Duce, comporta tripla ameaça. Significaria ao mesmo tempo renunciar aos objetivos maiores da diplomacia mussoliniana, repor a Itália na órbita política e cultural das velhas potências dominantes e, acima de tudo, criar uma desmobilização progressiva dos espíritos, talvez para a liberalização do regime desejada por parte daqueles que contribuíram para sua instauração. Daí a necessidade de Mussolini erradicar essa deriva conservadora, esse emburguesamento do fascismo que, após sua morte, levaria ao puro e simples retorno ao passado, de radicalizar o regime, enraizá-lo duravelmente no país, dar à sociedade italiana um movimento irreversível, impedindo às antigas elites a possibilidade de reconquistar suas posições perdidas. A virada totalitária dos anos 1936-1938, a escolha da aliança alemã e o recurso a uma mitologia futurista cujo objetivo é manter o país em permanente estado de tensão derivam dessa opção inicial.
Mussolini instrui esse processo contra a burguesia italiana com mais ardor por jamais ter se identificado com ela. Saído de um meio modesto, alimentado pela cultura revolucionária, tendo vivido a segregação humilhante do colégio, os estudos truncados, o desemprego intelectual, o exílio forçado na Suíça e os anos de vacas magras, conservou pelos ricos uma animosidade e um espírito de revanche que o tempo e as compensações do poder não fizeram desaparecer. Compartilha esses sentimentos com numerosos velhos fascistas cujo percurso e cultura política são semelhantes aos seus. Como eles, acha que, em 1922, a burguesia aderiu majoritariamente ao fascismo apenas pela preocupação tática de preservar seus privilégios e seu poder econômico, sua adesão ao regime é superficial e o espírito burguês constitui um obstáculo à realização da “revolução fascista.” “Não nego,” declarou em 1934, “a existência de temperamentos burgueses, mas não aceito que possam ser fascistas. O credo do fascismo é o heroísmo; o do burguês, o egoísmo. Contra esse perigo, há somente um remédio: o princípio da revolução permanente.”
O mito do “novo homem”
Para Mussolini, o porvir da Itália como potência hegemônica do futuro, de peso comparável ao da Alemanha, do Japão e da URSS, passa, portanto, pela ruptura com a ordem burguesa, considerada um desvio da história italiana, a captação da energia vital acumulada pelas massas no curso do processo unitário em benefício de uma classe estranha à essência da raça; em suma, uma traição ao Risorgimento.
O pequeno grupo reunido em torno do guia supremo deseja a substituição do indivíduo decadente, moldado por mais de um século de cultura “humanista” e burguesa, por um “novo homem,” definido pelo que Starace chamará de “modos fascistas.” Daí resultam as opções totalitárias dos últimos anos do fascismo ou, se querendo, a “revolução cultural” que Mussolini tenta impor a seu país e seu povo, com o objetivo de quebrar a hegemonia das antigas elites. Escolhas antiburguesas que devem se religar às perspectivas revolucionárias do primeiro fascismo. Conhecem-se as manifestações mais espetaculares e mais grotescas dessa revolução cultural, da qual o próprio Mussolini deu o tom em seu discurso de 25 de outubro de 1938, qualificando de “potentes socos no estômago” da burguesia italiana as medidas adotadas pelo Gran Conselho: a substituição, na linguagem cotidiana, da forma polida da terceira pessoa, lei, “bom para um povo de lacaios,” por tu e voi, e a introdução do passo de ganso, rebatizado “passo romano,” nos desfiles militares.
Mencionaremos mais tarde o terceiro “soco no estômago,” que não se presta à derrisão: o anúncio da legislação racial. Restemos ainda um instante no domínio do burlesco, com este extrato do discurso, no qual o Duce se empenha em legitimar com argumentos históricos a adoção do passo de parada:
O povo hoje o adora. Mas a burguesia o detestou. (...) Não sabia que foi inventado por Eugenio de Savoia e adotado por todos os exércitos. (...) Falou-se que era parecido com o “passo de ganso.” Primeiro, não é verdade. Em seguida, supondo-se que fosse verdade, há um fato curioso: o povo italiano é talvez o único povo da Terra que tem o ganso em sua história. Todos os historiadores de Roma o atestam, havia um acantonamento de romanos no Capitólio. Ora, o ganso assegurava melhor guarda que os cachorros. Além disso, o ganso era dedicado a Juno, e portanto um animal altamente respeitável, e é muito normal que o ganso tenha acordado os romanos, que talvez estivessem fatigados e dormissem. Foi assim que o Cônsul venceu os gauleses (hoje franceses) e impediu que atingissem o cume do Capitólio. Todos os que viram nosso passo de parada e o passo de parada alemão puderam constatar que há entre eles uma diferença essencial.
A diferença essencial não parece ter sido claramente percebida pela massa de italianos, menos permeáveis que no passado à pesada pedagogia de seu guia. E se a campanha antilei encontra certo eco – inclusive entre escritores como Vittorini, Quasimodo, Pratolini e Savinio – é um fiasco a guerra aos vocábulos de origem estrangeira recente, ou presumidos como tal, banidos do léxico oficial porque reveladores de tendências “cosmopolitas” da burguesia. Mas, acima de tudo, zomba-se dos exercícios de “modo fascista” exigidos dos hierarcas. Em junho de 1938, durante a reunião em Roma do diretório nacional e dos federali, os dirigentes do partido devem se submeter a três provas esportivas: salto em distância com trampolim, equitação e natação. Mussolini assiste às competições e Starace participa delas. Em setembro do mesmo ano, decide-se que todos os funcionários deverão usar uniforme de serviço com insígnias correspondentes a seu posto. Enfim, durante as paradas do regime, vê-se que o Duce e os hierarcas passam revista à Milícia em “acelerado,” o que, levando-se em conta a idade e as condições físicas de certos dignitários, não deixou de produzir efeitos cômicos.
Para além dessas manifestações bufas, vividas como tal por um número crescente de italianos, existe a vontade de romper, pelos “modos fascistas,” com o modelo “negativo” encarnado pelas antigas elites e substituí-lo pelo “novo homem,” dinâmico, viril, decidido, eficaz, heroico, pronto a todos os sacrifícios, endurecido por uma educação espartana e pelos efeitos sublimados do rigor autárquico – o discurso sobre as virtudes redentoras das privações e da dor faz parte do meio ideológico desse tempo – totalmente submisso ao estado e a seu chefe. Até aí, nada de muito original. O ideal permanece classicamente aquele do camponês-soldado que deu a Roma seu império sobre o mundo. Aquele, igualmente, do herói saído do povo, em luta contra o patriciado decadente das cidades medievais como surge, desenhado em grandes traços, no filme de Luis Trenker – I Condottieri – um dos monumentos do cinema fascista de imediatamente antes da guerra. Da mesma maneira, o que representa no imaginário dos dirigentes fascistas a “nova civilização” (Nuova Civiltà) da qual ele é presumivelmente o promotor, senão uma espécie de digest inflado dos grandes séculos da italianidade – a República pura e dura, vitoriosa sobre os mercadores cartagineses, o apogeu da pax romana, o Quattrocento – à imagem desse urbanismo neoclássico cujo sincretismo pesado triunfa sobre o Foro italico e sobre o subúrbio da EUR [Esposizione Universale Romana]? Onde está o futurismo nisso tudo?
Está em uma aceitação seletiva da modernidade. A Itália do ano 2000 não se parecerá com a Basilicata dos anos 1920. Na época do discurso da Ascensão, Mussolini estava bem perto de dar razão aos turiferários da “Contrarreforma” e ao Malaparte de Italia barbaba e de L’Arcitaliano. “A Revolução fascista – escrevia então Malaparte – é um processo de revisão total dos valores civis, culturais, políticos e espirituais, uma crítica objetiva e radical à forma atual da vida civil, a tudo que é moderno.” Dez anos mais tarde, o Duce se inclina mais para o lado do novecentismo e de Marinetti, o qual, lembre-se, antes da guerra desejava a edificação sobre os canais “enfim aterrados” de Veneza, “essa velha alcoviteira curvada sob seu pesado xale de retalhos,” de uma grande cidade “industrial e militar.” É verdade que Mussolini não aprecia todas as exuberâncias do antigo papa futurista, mas acha que o discurso e o comportamento de Marinetti (voluntário para a Abissínia em 1936, com sessenta anos) combinam com o “estilo fascista” que ele e Starace querem imprimir na nova Itália. A exaltação da velocidade, das belas máquinas (o avião, o carro de corrida), das armas de destruição em massa, já presente no Manifesto de 1909, encontra eco amplificado e renovado na retórica da “revolução cultural” fascista.
Tudo isso permanece muito vago e, finalmente, muito negativo. No fundo, a “nova civilização” da era mussoliniana se define mais como a imagem invertida do que é chamada a destruir – a ordem burguesa, os modelos senescentes oferecidos pelas democracias moribundas – que por um projeto coerente e estruturado.
Visionário do futuro, o Mussolini de Europa 2000? Digamos antes o criador tardio de uma mitologia elementar, com o objetivo de manter seu povo no estado de tensão necessário à sobrevivência do regime. Para além desse projeto conservador, não se tem certeza de que ele tenha acreditado na possibilidade de dar nova têmpera à raça. Sim, há a juventude, portadora das esperanças de regeneração do fascismo e objeto de todos os seus cuidados. Mas e o presente? E o homem italiano do fim dos anos 1930 que – todos os testemunhos confirmam e Mussolini não tem ilusões a respeito – aspira à paz e a uma melhoria razoável de seu destino? Quais as chances de vê-lo transformado pelas instruções delirantes de Starace? A não ser que a guerra, essa “barricada da revolução,” concentre bruscamente as energias para, enfim, fazer nascer a “mentalidade autárquica,” a “raça espiritual” e a “nova aristocracia do espírito” que o secretário-geral do partido e o Duce não cessam de evocar, a partir de 1938, em seus dramáticos apelos à nação italiana.
Na decisão de entrar na guerra, em 10 de julho de 1940, além do fato de dar ao fascismo a chance de quebrar em um único golpe as “barras da prisão mediterrânea” para aceder aos espaços oceânicos e atingir muito mais cedo que o previsto os objetivos maximalistas de Mussolini, há o desejo dele de que seu povo dê um decisivo salto qualitativo na via da nova civilização. Esperança irrisória de mudar o homem com um gesto mágico. Onde fracassaram até então a educação, a propaganda e os modos fascistas, a ética da dor que nutre o fato guerreiro pode ainda modificar o curso das coisas no sentido desejado pelo fascismo e por seu chefe. Mussolini tem 57 anos em 1940. Está esgotado e sabe que o tempo não está do seu lado. Para enraizar seu regime, não pode esperar as novas gerações forjadas pela revolução cultural do fascismo. A guerra lhe oferecerá a oportunidade, provavelmente única, de uma brusca mutação da qual surgirá, ou ao menos é o que acredita, o novo homem, armado para assumir o destino hegemônico da Itália.
Crise do consenso?
Acentuando os fundamentos antiburgueses da “revolução cultural” fascista e o laço que a une à preparação e ao início da guerra, Renzo De Felice questionou o esquema proposto pelos marxistas e aceito por muitos historiadores: de que o endurecimento do totalitarismo, a militarização da sociedade e a agressividade da política externa que levaram a Itália a entrar na guerra europeia estavam diretamente ligados à crise e resultavam de uma escolha deliberada do capitalismo italiano.
Em 1938, o capitalismo italiano é, sob vários aspectos, um capitalismo de estado, e são os detentores das alavancas de comando do estado que tomam as decisões essenciais. Isso não significa que os financistas e grandes patrões da indústria estejam marginalizados. A forte concentração que acompanhou o salvamento da economia italiana pelos poderes públicos pôs a produção sob controle de pequeno número de grupos, tendo na direção de cada um deles uma personalidade notável. Agnelli, Falck, Pirelli, Cini, Volpi, Conti e Donegani dominam os diversos ramos da indústria e têm assento, ao lado de representantes do estado e do partido, nos conselhos de administração das empresas controladas pelo IRI: 80% das construções navais, 77% das fundições, 67% dos materiais ferrosos, 50% do aço e dos armamentos e 22% da produção mecânica.
É evidente que influenciam a decisão nos seus setores, talvez até a política econômica e financeira do governo. Daí a imaginar que estão na origem das orientações do regime em política externa – que o “grande capital” quis a guerra para conquistar mercados ou atenuar os efeitos da depressão mundial – há um passo que não pode ser dado levianamente. Ligados ao mundo político dirigente, ao qual escolheram associar seu destino em 1922, os capitães da indústria e das finanças se beneficiaram de alguns efeitos da política de armamentos e de certas escolhas autárquicas feitas por Mussolini. Mas não as decidiram. Mui frequentemente, elas lhes foram impostas por considerações ideológicas ou de política internacional que iam de encontro a seus interesses. Foi nesse sentido a afirmação do ministro de Scambi e Valute Felice Guarneri, feita a Ciano em 1938: “A política monetária e de câmbio é dominada pela política externa e sofre suas variações. É a razão pela qual o verdadeiro dirigente da política de câmbios e valores é você.” Contra sua vontade, os industriais tiveram de se curvar às imposições da autarquia e aceitar a canga do controle do câmbio, com o sistema de cotas afetando importações e exportações, e uma série de regras concernentes à produção.
Merece igualmente exame a ideia de que a adoção pelo poder fascista de uma política de armamento e contração autárquica foi consequência direta da crise. Em 1936, o pico da crise fora ultrapassado havia pelo menos dois anos. Já perceptível em 1934, a retomada se acelerou graças à guerra da Abissínia e – paradoxalmente – à política de sanções aplicada à Itália pela Liga das Nações, com a produção nacional tendo de substituir a oferta de produtos estrangeiros. Após o fim do embargo, o volume de trocas aumentou tanto na entrada quanto na saída. Embora Mussolini tenha se oposto até então a toda e qualquer desvalorização da lira – cujo valor fora “definitivamente” fixado em 1927 – em outubro de 1936 foi obrigado a se decidir por uma redução de mais de 40% cujo efeito foi precisamente estimular as vendas para o exterior. A crescente intervenção do estado na vida econômica, a política de recuperação de terrenos pantanosos e de grandes obras iniciada no fim dos anos 1920 e seguida até a guerra (eletrificação de parte da rede ferroviária, urbanismo e valorização da romanidade, construção da primeira rede rodoviária europeia de alta velocidade), o crescimento do gasto público e o uso “keynesiano” do déficit orçamentário (limitado por um aumento dos impostos que atingia particularmente os patrimônios) contribuíram, em graus diversos, para a retomada.
Certos setores, especialmente o da agricultura, cresceram menos, a despeito dos esforços do governo para desenvolver a colonização de terras recuperadas e valorizar certas zonas exploradas de maneira extensiva pelos latifundiários.
Se a economia italiana conseguiu atravessar a crise sem maiores prejuízos, o efeito da depressão sobre muitas categorias sociais não foi tão facilmente superado. O desemprego permaneceu alto: entre 600 mil e 700 mil, com ligeira diminuição na véspera da guerra com a ida de dezenas de milhares de colonos para a Líbia e o envio de trabalhadores agrícolas para a Alemanha. O nível de vida caiu. Os aumentos de salário – um por ano entre 1936 e 1940 – não foram suficientes para compensar o grande aumento dos preços. No conjunto, os operários, especialmente os da grande indústria, mantiveram ou melhoraram suas posições, mas os camponeses, particularmente os braccianti, foram os grandes perdedores da política econômica adotada na metade dos anos 1930 pelo regime mussoliniano.
Foi menos a persistência do desemprego e o aumento do custo de vida, dois males que os italianos já enfrentavam na era liberal, que o drástico racionamento imposto pela comissão central de autarquia que levaram parte da população a se afastar do fascismo. A partir de 1938, a palavra de ordem dada ao partido é mobilizar a sociedade na perspectiva de uma guerra que Mussolini acredita longínqua, mas inevitável. Revezando-se com o guia supremo e seu principal tenente, Starace, os dirigentes fascistas exaltam em seus discursos as virtudes da “frugalidade romana” e a grandeza do sacrifício cotidiano. No ano seguinte, a autarquia adquire aspectos dementes: proibição de beber café, de servir nos restaurantes mais de 50 gramas de pão e de exportar alimentos, supressão da venda livre de carne, limitação dos jornais a quatro páginas nas quintas e sextas-feiras, fechamento à meia-noite de cafés, restaurantes e locais de diversão e racionamento de combustível a particulares a trinta litros por mês. A Itália é submetida, em plena paz, a uma economia de guerra.
A que ponto esses atentados às condições de vida da população italiana erodiram um consenso que conhecera o zênite após a guerra da Etiópia? Comprovada pelos relatórios e notas endereçados ao ministério do Interior por prefeitos e pela polícia, e pelas memórias de contemporâneos – a tendência é afastamento da população do regime e de seu chefe. Mas a intensidade do refluxo varia por categoria social.
Curiosamente, se o fascismo, cuja massa militante era da classe média e conquistou o poder com o apoio da classe dominante após ter eliminado ou desmantelado as organizações operárias, é entre as classes dirigentes que a desafeição é mais manifesta. As críticas ao regime raramente levam à verdadeira oposição política, e na maioria das vezes poupam o chefe de governo. As dificuldades e os defeitos do sistema são imputados ao partido, seus dirigentes nacionais e locais, em particular Starace, considerado responsável e símbolo de tudo que é negativo no fascismo. Aqui também há nuances no afastamento dos diversos estratos da burguesia. Embora todos sejam afetados pela erosão do consenso, alguns o são mais que outros. Próxima do poder e beneficiando-se da retomada de prestígio fornecida pela instauração de um estado forte, a burguesia funcional permanece favorável ao fascismo. O mundo dos notáveis está mais dividido, diante de uma radicalização totalitária do regime que, a termo, ameaça a autonomia local e a influência tradicional de seus representantes. Mas, sobretudo, é nos meios de negócios que, a partir de 1937, aparece um descontentamento cujas razões são ao mesmo tempo econômicas e psicológicas. O grande patronato industrial e o mundo das finanças que, em troca da paz social e de vantagens diversas, até esse momento serviram lealmente à ditadura, começam a acusar o Duce e seus principais executantes de uma política econômica suicida ao isolarem a Itália do mundo exterior, reduzirem sua autonomia em benefício do estado e dos sindicatos e, principalmente, desenvolverem uma retórica antiburguesa e anticapitalista tão virulenta quanto a dos socialistas revolucionários de antes da guerra. Pois não é uma das figuras mais ilustres do patronato italiano, o industrial Ettore Conti, que, em seu Dal taccuino di un borghese se queixa de ver a si mesmo e a seus colegas serem considerados “plutocratas, esfaimadores do povo, reacionários” e se inquieta com o possível advento de um “socialismo de estado”? Indubitavelmente, Mussolini não está errado ao estabelecer uma relação entre o espírito da burguesia – no qual condena o individualismo hedonista e “decadente” – e os “modelos externos” que nutrem a cultura e as ideias de importante fração das elites tradicionais, nas quais a francofilia, a anglofilia ou a admiração pelo modelo econômico americano se adaptam mal à orientação pró-alemã impressa pelo ditador a sua política externa. A aliança com Hitler, longe de suscitar a adesão de todos os hierarcas do partido – Balbo, Grandi e, no fim, o próprio Ciano lhe são hostis – encontra nesse meio seus principais detratores.
O afastamento das massas é menos evidente. Embora uma fração das camadas médias urbanas se queixe dos efeitos da autarquia – aumento do custo de vida, falta de certos víveres, medíocre qualidade dos produtos de substituição – e da pressão fiscal que pesa particularmente sobre as categorias intermediárias, ela não recrimina Mussolini diretamente, endereçando suas críticas aos “chefetes” do partido e da Milícia. Os relatórios de prefeitos e da polícia, as cartas interceptadas, as escutas telefônicas, as súplicas enviadas ao secretariado particular do Duce fervilham de queixas – fundamentadas ou não – sobre a corrupção dos hierarcas e dos dirigentes do PNF, sua moral duvidosa e o abismo entre um discurso oficial chamando ao sacrifício e ao ascetismo do povo e o apetite da elite partidária por vantagens.
A atitude do mundo operário é mais complexa. A crise, o desemprego, o achatamento do poder de compra e as restrições (menor acesso ao “mercado negro” que as outras categorias) sem dúvida alimentaram um mal-estar social que acentuou ainda mais a degradação das condições de trabalho (horários, ritmo de produção) em muitas fábricas e o aumento dos encargos sociais. Mas não foi nesse setor que a crise do consenso se mostrou mais acentuada. Em sua maioria, os operários haviam aderido ao fascismo apenas da boca para fora. Seu comportamento revelava mais resignação e oportunismo que aprovação entusiástica, e conhecera altos e baixos. No início dos anos 1930, as dificuldades ligadas à crise provocaram certa agitação nas regiões industriais com a qual o poder se inquietara, mas nunca o descontentamento se traduzira em levante do antifascismo militante.
Como explicar que a deterioração das condições de vida do mundo operário tenha provocado em suas fileiras apenas manifestações pontuais de mau humor? Sem dúvida o matracar psicológico serviu para alguma coisa. À força de ouvir o Duce e seus principais tenentes desenvolverem uma temática anticapitalista e antiburguesa e proclamarem que o futuro do regime estava no “povo,” alguns seguramente terminaram por acreditar. Mas, acima de tudo, esse discurso populista não era inteiramente vazio de conteúdo. Foi acompanhado, no próprio seio do partido e dos sindicatos fascistas, de uma ação de “mudança social” e de “redução da distância entre as classes.” O surgimento, nos anos antes da guerra, de uma nova “esquerda” fascista que de certa forma levou ao pé da letra a retórica antiburguesa do ditador caminhou ainda mais nessa direção, por reunir essencialmente a nova geração e, por isso, beneficiar-se de certa benevolência por parte de um homem que construíra sua visão do futuro sobre a juventude.
Ora, a constatação do aburguesamento do regime e a vontade de retorno às origens do primeiro fascismo não concerne só aos pequenos círculos da juventude estudante cuja história Ruggero Zangrandi retraçou em sua “longa viagem através do fascismo.” Ganhou os sindicatos fascistas, também afetados por forte renovação dirigente e pela chegada aos postos de comando de certo número de militantes moços saídos do mundo operário. Iniciou-se assim, em 1937-1940, uma reaproximação com os sindicatos fascistas. É verdade que estes não tinham grande liberdade de manobra: o papel que lhes fora designado pelo poder não foi modificado. Mas, ao menos, foram levados a assumir suas responsabilidades, tratando-se, por exemplo, da denúncia de infrações às convenções coletivas ou do apoio a certas reivindicações dos trabalhadores. Mesmo nos meios antifascistas clandestinos reconhecia-se que eram numerosos os operários que, mesmo conscientes dos limites de sua ação, viam nesses sindicatos o único instrumento de defesa de seus interesses. De fato, sua ação permitiu obter do patronato e do poder certo número de medidas sociais: o reconhecimento e a reintegração dos delegados sindicais nas fábricas, a adoção de nova legislação de assistência, a melhoria das pensões por invalidez e velhice, a extensão da segurança social a novas categorias de trabalhadores, o aumento das alocações familiares e dos prêmios de casamento e nascimento.
O resultado foi o relativo reaquecimento das relações entre o regime e parte do mundo proletário urbano, o que explica por que tantos operários pegaram sua carteirinha do partido quando este decidiu, em dezembro de 1939, reabrir as inscrições ao Partido Nacional Fascista para ex-combatentes, e por que um funcionário de polícia servindo em Milão escreveu, em abril de 1940, sem dúvida exagerando a situação na capital lombarda:
A classe operária é talvez a mais tranquila. É quem se ocupa menos de política. A classe dos empregados o é igualmente. Os eternos descontentes são, na maioria, proprietários de casas e terrenos, comerciantes e industriais.
Ao menos tão “tranquila” quanto as classes populares citadinas era a massa rural que, é preciso lembrar, constituía mais da metade da população italiana. Nesse setor, e mais na metade sul do país e nas regiões montanhosas do centro e do norte, o isolamento relativo no qual vivia o mundo camponês, o arcaísmo das estruturas agrárias, o peso das tradições e a persistente influência de notáveis e padres faziam com que se distinguisse mal o fascismo do regime precedente. As preocupações cotidianas permaneciam as da época liberal, talvez mesmo do tempo dos estados pré-unificação. Era lá que o mito mussoliniano, sob sua forma mais elementar e mais estreitamente ligada ao fenômeno religioso de “pai do povo” e “homem da Providência,” estava mais bem-integrado à mentalidade coletiva. Era dessas regiões que afluíam os testemunhos mais numerosos da devoção popular, e que viriam, até o extremo fim do regime, as últimas manifestações de um fervor alhures extinto.
No total, uma erosão incontestável do consenso estabelecido depois da paz com a Igreja, um mal-estar difuso nutrido pelo medo da guerra e pelo pé atrás sobre a aliança alemã, mas que afetava as antigas elites mais que as massas, as velhas gerações mais que as novas, e gerava em muitos italianos uma rabugice dirigida mais contra a hierarquia partidária que contra o homem do Palazzo Venezia.
Mussolini, de fato, fora poupado desse desamor em relação ao regime. O mito do Duce conservava sua força, a despeito do que se podia saber de seu estado de saúde e das errâncias de sua vida sentimental. É verdade que o carisma do ditador não era mais tão poderoso sobre seus colaboradores mais próximos. Os “diários” e as “memórias” de vários deles – Ciano, Grandi, Bottai, De Bono e Bastianini, entre outros – estão repletos de anotações que traem real incompreensão em relação ao personagem que Mussolini se tornara na véspera da guerra. Mas o homem das ruas, ainda que sorrisse das “boas histórias” a respeito dos amores do Duce, só o via através de imagens escolhidas e retocadas com perícia pelos serviços de propaganda. E essas imagens continuavam a inculcar nas mentes a figura emblemática do herói multidimensional: grande homem de estado, estrategista de gênio, espírito aberto a todas as disciplinas intelectuais, atleta de destaque em todas as práticas do corpo, operário, artesão, trabalhador da terra, artista.
Mussolini velava com cuidado escrupuloso pela preservação dessa imagem, escolhendo as fotografias e as sequências de cinegiornali destinadas ao público e zelando pela cenografia de suas aparições na tela. Dispondo, com o partido, a polícia, os prefeitos, os carabinieri e sua secretaria particular, de imensa rede de informações, mantinha-se a par dos menores tremores da opinião pública e se empenhava, tanto quanto possível sem mudar as regras do jogo, em ajustar sua política à demanda social: autorizando, por exemplo, um aumento de salários. Quando teve consciência de que Starace, sempre servidor leal de sua política, tudo somado, nada fizera além de dar conteúdo concreto a seu projeto totalitário, tornara-se a bête noire dos italianos, e que sua presença na direção do partido corria o risco de prejudicar sua própria imagem, destituiu-o sem qualquer consideração e o substituiu por Muti.
Mussolini e o funcionamento do estado totalitário
A realização do programa mussoliniano, concebido em uma perspectiva futurista e milenarista, passava por uma autêntica fascistização da Itália, transformada em poucos anos em país totalitário, no sentido lato do termo. Por muito tempo, a historiografia clássica reteve desse totalitarismo à italiana apenas o que tinha em comum com seu homólogo názi – partido único, enquadramento das massas em organizações paramilitares, chefe carismático todo-poderoso, uso obsessivo da propaganda, um sistema repressivo, aliás muito mais suave que o modelo hitlerista – ou o que apresentava de mais caricatural. Renzo De Felice, e sua contribuição foi essencial, mesmo que hoje seja questionada, valorizou o que constituía, a seus olhos, a especificidade do totalitarismo mussoliniano: a politização exagerada da sociedade civil par a par com uma despolitização crescente do estado. Diferindo dos totalitarismos hitlerista e stalinista que tenderam, o primeiro, a nulificar o estado ou ao menos subordiná-lo estreitamente ao partido e, o segundo, a considerá-lo uma estrutura contingente, teoricamente destinada a desaparecer, o fascismo italiano, ao contrário, teria se identificado fortemente com o estado destinado a absorver o partido e todas as suas funções.
Na expectativa desse “enfraquecimento” do partido único, o Duce, se não tivesse tido de levar em conta o peso de certos hierarcas pouco dispostos a ceder seu lugar aos tecnocratas, teria de boa vontade governado com um gabinete de diretores-gerais de administração, tão grandes eram seu pessimismo sobre a natureza dos homens e sua desconfiança desencantada do oportunismo da burocracia. Foi, aliás, o que tentou fazer entre janeiro e maio de 1941, após ter enviado para o front greco-albanês os dirigentes fascistas de departamentos ministeriais. É verdade que as disfunções da máquina governamental e os veementes protestos dos interessados o levaram a encerrar a experiência tão logo acabou a “campanha da Grécia,” mas nada indica, explica De Felice, que renunciara a sua ideia e não pensava em retomá-la em momento menos difícil.
Enquanto aguardava a “despolitização do estado” de acordo com sua ideia do totalitarismo fascista, Mussolini se contentou em reforçar seu próprio poder e instaurar os primeiros elementos do dispositivo que organizaria sua sucessão. Com efeito, o problema do após-Mussolini começara a se apresentar nos meios dirigentes, e o principal interessado estava mais preocupado do que deixava entrever a seu entourage. Quanto ao nome do eventual sucessor, a questão parecia resolvida depois que o Duce, em seguida à guerra da Etiópia, confiara a seu genro a direção da diplomacia italiana. Desse modo, Ciano estava claramente designado como delfim potencial do ditador. Mas ainda era necessário, de um lado, que os chefes históricos do fascismo, na maioria hostis ao jovem ministro e invejosos da ascensão fulgurante proporcionada por seu status familiar, homologassem a decisão após a morte do ditador e, do outro, que os procedimentos constitucionais, que reconheciam ao soberano papel eminente na designação do chefe do governo, a permitissem.
Sob vários aspectos, foi para liquidar essas hipotecas e adquirir os meios necessários para designar seu sucessor – ou permitir ao Gran Conselho fazê-lo após sua morte – que Mussolini se fez conceder, em março de 1938, em seguida a um voto “espontâneo” da Câmara dos Deputados e do Senado, e em conjunto com o Rei, o grau de “primeiro marechal do Império.” O caso fora cuidadosamente preparado por um pequeno círculo de dirigentes fascistas, na primeira fila dos quais figuravam os dois Cianos – Costanzo, o pai, então presidente da Câmara, e Galeazzo – e o secretário do partido, Achille Starace. Encarregado da presidência do Senado, Federzoni pretendeu em seguida que ele e os senadores tinham se mantido à parte do “complô,” mas sua versão dos fatos é pouco crível. Se é exato que a iniciativa partiu da Câmara, cuja sessão extraordinária fora convocada por Starace, e que os deputados, após votarem por aclamação a proposta apresentada por Constanzo Ciano, partiram em delegação ao Palazzo Madama para convencer os senadores a seguirem seu exemplo, estes, que tinham acabado de aclamar o Duce e de registrar em ata seu discurso sobre as perspectivas das forças armadas, não se fizeram de rogados para confirmar o voto de seus colegas. É claro que uma fração da classe política estava a par do que ocorreria, e os dirigentes do partido haviam feito o necessário para que nenhum parlamentar fascista faltasse ao chamado.
O que estava em jogo nessa partida codificada? Mussolini nunca tivera paixão por honrarias. Depois da proclamação do Império, o Rei lhe oferecera um título de nobreza que ele recusara, declarando não pretender negar suas origens plebeias. Não foi, portanto, para acrescentar uma linha a sua titulação que se fez conceder o posto de primeiro marechal do Império. Porém, já comandante-geral da Milícia, presidente da Comissão Suprema de Defesa e titular, desde 1933, dos ministérios da Guerra, da Marinha e da Aeronáutica, o comando supremo dos exércitos não lhe era indiferente. Desde 4 de fevereiro de 1938, Hitler era comandante das forças armadas do Reich: sua anunciada vinda a Roma certamente apressara as coisas, pois o ditador romano se preocupava em não acrescentar aos constrangimentos protocolares resultantes da prerrogativa real a humilhação de se encontrar na posição que fora a do Führer durante o encontro de Stra em 1934.
Contudo, muito mais que questões de precedência e prestígio, o que estava em jogo era a própria relação entre a monarquia e o poder fascista. Mussolini mantivera-se até então em prudente reserva em face da instituição monárquica. Não há dúvida de que tinha a intenção de se desembaraçar dela, mas pretendia escolher o momento certo. Na primavera de 1938, a conquista da Etiópia e seu reconhecimento pelas potências eram fatos consumados, a vitória na Espanha parecia definitiva, talvez tivesse chegado a hora de iniciar a ofensiva contra o trono. Numerosos eram os que, na cúpula da hierarquia fascista, impeliam-no a cruzar o Rubicão, os mais determinados sendo Starace e Galeazzo Ciano, sobretudo o segundo, que, preocupado com a sucessão, via com olhos favoráveis a eliminação da hipoteca real. Mas o Duce ainda hesitava. É claro que Vittorio Emanuele o incomodava, e ele sabia que um dia ou outro seria necessário pôr fim à “diarquia.” Mas a opinião pública não lhe parecia madura para proceder sem danos à operação. Aceitando dividir com o soberano o “primeiro marechalato do Império,” ele geria as frações do corpo social que permaneciam ligadas à instituição real e ao soberano, ao mesmo tempo que dava um passo na direção desejada por Starace e Ciano.
Vittorio Emanuele, que não era bobo, não se deixou iludir. Assim como os dirigentes fascistas que desejavam essa solução, entrevia o momento em que Mussolini, cujo título de “Duce do fascismo,” ligado não mais somente a sua pessoa, mas a sua função, adquirira há pouco caráter constitucional (em todo caso reconhecido como tal pelos juristas fascistas), se veria de certo modo levado – nas palavras de De Felice – “a essa espécie de Olimpo que, espera-se, o afastará do exercício do poder” e desse modo abriria espaço a seu sucessor na direção do governo. Reagiu com extrema vivacidade ao anúncio da votação das duas câmaras e manifestou insistente mau humor em relação a Mussolini, chegando ao ponto de ameaçar não assinar a promulgação da lei. Como o Duce pediu ao presidente do Conselho de Estado para se pronunciar sobre a legitimidade do texto em questão, e este concluiu por sua perfeita conformidade com a Constituição, ficou-se por aí, mas o episódio suscitou no soberano um rancor tenaz. “Nesse momento,” escreveu Mussolini mais tarde, “Vittorio Emanuele jurou vingança.”
Outra importante reforma institucional teve lugar no início de 1939. A Câmara dos Deputados, que a reforma radical de 1928 colocara sob estreito domínio do partido, mas cujo recrutamento conservava caráter eletivo, foi suprimida e substituída por uma nova assembleia: a Câmara de Fasci e Corporações. Desde a metade dos anos 1930, Mussolini manifestara a intenção de substituir por uma assembleia de dignitários fascistas aquilo que considerava uma herança do antigo regime. No fim de 1936, o Gran Consiglio decidiu criar uma comissão sob a presidência de Costanzo Ciano e da qual faziam parte Starace, Solmi, Bottai e Lantini, para formular a composição e o funcionamento da nova câmara. Os principais artigos da reforma foram adotados pelo Gran Conselho em março de 1938, quase ao mesmo tempo que era conferido ao Duce o título de primeiro marechal do Império e aprovado o novo estatuto do partido.
A lei de 19 de janeiro de 1939 instituía um sistema representativo muito diferente daquele ao qual o Statuto de 1848 dera nascimento. A característica essencial da Câmara de Fasci e Corporações era o fato de os indivíduos que a compunham não serem mais eleitos, tornando-se membros da nova assembleia apenas por pertencerem a outros órgãos colegiais do regime: o Conselho Nacional do Partido, composto por seu secretário-geral, membros de sua diretoria nacional, inspetores, federali e presidentes de associações nacionais de mutilados, inválidos de guerra e ex-combatentes, e o Conselho Nacional de Corporações. Mussolini e os membros do Gran Conselho participavam a título pessoal.
A Câmara, cujo efetivo era variável, tomava um caráter permanente, não estando submetida a renovações periódicas. Assim que um membro se encontrava, por qualquer razão, afastado do cargo em virtude do qual fora chamado a participar, devia ceder a cadeira a seu sucessor, o que punha o conjunto do sistema nas mãos do Duce, ao qual, em última instância, cabia confirmar ou recusar todas as nomeações efetuadas no seio do partido.
Na aparência, portanto, as coisas eram simples. Desde o fim de 1925, todos os poderes estavam concentrados por Mussolini. Duce do fascismo e Capo inamovível do partido, no qual nomeava e revogava o secretário-geral sem ter de se referir a quem quer que fosse, era ao mesmo tempo “chefe do governo, primeiro-ministro e secretário de estado.” Responsável apenas perante o Rei, “propunha” a esse último a nomeação e revogação de ministros. Na verdade, era ele mesmo quem procedia às designações, solicitando apenas a aprovação formal do monarca. Além disso, tinha, como se viu, o hábito de colecionar carteiras ministeriais, e não era raro vê-lo monopolizar seis ou sete das mais importantes. Por fim, ao mesmo tempo que dividia com o soberano o direito de indulto e o caráter quase sagrado conferido aos dois pela aplicação da pena de morte a qualquer um que atentasse contra eles, Mussolini possuía a iniciativa das leis e o direito de legislar por decreto.
É obrigatório daí concluir, como certos historiadores e teóricos políticos, que o sistema político fascista se reduzia ao “mussolinismo” ou, se preferindo, a uma forma de ditadura pessoal de tipo clássico, ao mesmo tempo dotada de imensos poderes e incapaz de impor o primado do partido sobre o estado e realizar a integração da sociedade ao estado ou, dito de outra forma, de dar corpo ao programa totalitário? Trabalhos recentes – especialmente os do historiador italiano Emilio Gentile – revelam uma realidade um pouco mais complexa, na qual a questão fundamental são as relações de força entre o ditador e o Partido Nacional Fascista.
As duas outras instituições que, na Itália dos anos 1930, teriam podido se opor a Mussolini ou, ao menos, impor limites a seu poder foram perfeitamente dóceis. A “diarquia,” como se viu, funcionou sem maiores conflitos até a crise final de julho de 1943, com o Rei acabando sempre por aceitar as iniciativas do Duce, e o exército não abandonou sua atitude submissa, dividido entre sua fidelidade à Coroa e a tendência de parte de seus comandantes a jogar com as possibilidades de promoção oferecidas pela cumplicidade partidária. Ficou rigorosamente sujeito ao regime e a seu Capo, que não hesitava em destituir seus mais altos comandos – De Bono no início da campanha da Etiópia, Badoglio após a desastrosa campanha da Grécia, e Graziani em seguida à derrota na África – e impor suas diretivas estratégicas.
Permanece a questão do partido e seu papel durante o ventennio fascista. Por muito tempo, pensou-se que, embora tenha tido papel considerável na fase de consolidação da ditadura, depois de 1925 o Partido Nacional Fascista servira essencialmente de correia de transmissão para as ordens do Duce e instrumento de controle da sociedade italiana, em particular graças à organização, em seu seio, de um verdadeiro exército de fiéis, a Milícia, que podia a qualquer momento ser mobilizada para manutenção da ordem interna, antes de participar – na Etiópia e depois na Espanha – de operações militares fora da península. O próprio De Felice, para quem o fascismo constitui um fenômeno composto não redutível à ditadura pessoal de seu fundador, sustentou a tese da liquidação política do partido depois da passagem de Farinacci pela secretaria-geral do PNF, considerando uma diferença entre a versão italiana do totalitarismo e os regimes hitlerista e stalinista.
Essa interpretação, que destaca a crescente marginalização política do partido, é hoje parcialmente contestada por historiadores e teóricos políticos que veem no partido fascista uma função mais determinante no regime, como agente da fascistização da sociedade civil e instrumento de mediação social, via uma representação política que a submissão das assembleias parlamentares não suprimiu.
Se para Emilio Gentile, a quem se devem os trabalhos mais esclarecedores sobre o papel do Duce e do partido no sistema político fascista, a partir de 1926 houve personalização do poder e subordinação do partido ao estado, isso não significa que a organização partidária cessara de existir politicamente. Nem que Mussolini, como ele mesmo afirmou em 1929, tenha desejado vê-la desaparecer:
Os que levantaram uma hipótese tão insensata são inconscientes, traidores ou vindicativos que gostariam de destruir o Partido Nacional Fascista que fez a revolução, e privar o regime de uma força espiritual para lhe deixar somente forças materiais. (...) Não se trata de saber se o partido deve existir ou não, porque se o partido não existisse, eu o inventaria, e o inventaria como é o Partido Nacional Fascista: numeroso, disciplinado, ardente e de estrutura rigorosamente hierárquica.
Com efeito, Mussolini precisava do partido para manter a ordem, enquadrar o corpo social, fazer penetrar por capilaridade a ideologia e as instruções do regime na massa de italianos, manter o mito e desenvolver o culto de sua própria pessoa. Foi o partido que fez a ditadura evoluir na direção de um “cesarismo totalitário” organizado em torno da figura carismática do “guia da nação.” O “mussolinismo,” portanto, é inseparável da organização política que fundou e constitui a base sobre a qual se edificou seu poder.
Nos regimes totalitários de partido único – escreve Emilio Gentile – nos quais o partido não foi criado do alto, mas constitui um movimento de massa autônomo que dá nascimento ao regime, caso do fascismo, a “personalização do poder” é um fenômeno que deriva do partido único quando emerge em seu seio, devido a sua força pessoal e/ou por razões funcionais, um indivíduo dominante. Em situações desse gênero, mesmo privado de vontade política autônoma, o partido permanece o detentor dos poderes de controle e organização da sociedade, com vistas à instauração da experiência totalitária, no sentido de que não pode ser eliminado sem pôr em perigo o próprio poder do ditador.
Isso posto, é preciso evitar considerar a ação do partido fascista o resultado de decisões mais ou menos autônomas sobre as quais o chefe do governo teria tido pouca influência. Até a derrocada de 1943, essencialmente devida à derrota militar, Mussolini controlou todas as engrenagens do partido. Como os hierarcas de todos os postos eram nomeados por ele, por iniciativa do secretário-geral, ele pôde, segundo seus caprichos, proceder às “trocas de guarda” e dispensar tantos “federais” quanto julgou útil. No cargo desde 1931, o secretário do partido, Achille Starace, foi aposentado oito anos mais tarde sem a menor consideração pelo trabalho realizado por esse grande ordenador dos “modos fascistas.” Por meio de nomeações ao comando do PNF e das corporações, o Duce exerceu, além disso, um controle mais e mais cerrado sobre as assembleias deliberativas: a Câmara de Fasci e Corporações, da forma mencionada acima, e o Senado, composto por membros vitalícios, mas sobre o qual o poder exercia sua autoridade por meio da União Nacional Fascista do Senado. Para Didier Musiedlak, que examinou essa questão em uma notável tese, embora esse crescente domínio do poder central sobre as assembleias tenha se traduzido na “despolitização” do trabalho parlamentar, com mais e mais frequência no seio de comissões e tratado de maneira técnica, ele não suprimiu a discussão, ou mesmo os debates contraditórios. Mas, como destacou Bottai, o confronto de pontos de vista podia se operar apenas em limites ideológicos muito estritos, definidos pela equipe dirigente e, em última análise, pelo próprio Mussolini.
A “estratégia de expansão” do PNF e
a fascistização da sociedade italiana
No fim de 1939, o Partido Nacional Fascista representava uma força considerável no papel: mais de 2,6 milhões de inscritos nos Fasci di combattimento, cerca de 8 milhões de moços nas diversas seções da Gioventù Italiana del Littorio – Balilla, Piccole Italiane, Avangguardisti, Giovani Fascisti – mais de 100 mil membros dos Grupos Universitários Fascistas, 800 mil mulheres nos Fasci femminili, 4 milhões nas organizações do Dopolavoro. Ao menos um italiano em quatro participava de alguma organização do partido único. Não que fossem todos fascistas convictos. Mesmo com as purgas frequentes, as fileiras do PNF estavam povoadas de oportunistas em todos os níveis da hierarquia partidária. Ainda assim, o núcleo duro do partido constituía uma potência mobilizável a qualquer momento e à qual Mussolini confiara uma dupla missão: transformar a adesão passiva das massas em consenso ativo e forjar o material humano de que o Duce precisava para “fazer a história.”
A primeira tarefa exigia que o Partido Nacional Fascista estendesse a influência e o controle sobre o maior número possível de instituições e organizações, ou que estivesse em posição hegemônica tanto no campo político-administrativo quanto nos setores ainda não conquistados da sociedade civil. Essa “estratégia de expansão” nem sempre coincidia com os intentos de Mussolini, que pretendia se manter mestre do jogo e desconfiava das tendências anexadoras de um partido cujas principais engrenagens controlava, é verdade, mas cujo domínio sobre o aparelho do estado queria limitar. Daí sua prudência ao abrir as portas da burocracia aos membros da organização fascista e sua preocupação em governar com a administração, sem, contudo, poder impedir que ela fosse pouco a pouco infiltrada pelo partido. É evidente que a vontade de “despolitização do aparelho do estado,” segundo De Felice um dos traços essenciais do “mussolinismo,” encontrou resistências intensas que obrigaram o Duce a se adaptar, renunciando a continuar a experiência de governo “técnico” empreendida no início da campanha da Grécia, em 1940.
Em contrapartida, foi com a bênção do ditador que, desde o fim dos anos 1920, o partido iniciou uma política de conquista da sociedade civil, assegurando-se o controle direto dos sindicatos ou pura e simplesmente anexando as organizações de massa até então sob tutela da administração. Foi o caso da Opera Nazionale Dopolavoro, que em 1932 passou do ministério das corporações para o partido, e da Opera Nazionale Balilla, encarregada da arregimentação de crianças e adolescentes, que em 1937 Starace subtraiu do controle do ministério da educação nacional e fundiu em uma organização única da juventude diretamente dependente do PNF.
O objetivo dessa tomada de controle da sociedade civil pelo partido único fascista fora claramente fixado no novo estatuto do partido, adotado em abril de 1938. Tratava-se de assegurar “a defesa e o reforço da revolução fascista” e realizar a “educação política dos italianos” – “fascistizar” a sociedade. Projeto seguramente totalitário, que confiava ao partido, concebido como “aristocracia do comando,” a tarefa de forjar o “novo homem” e transformar as massas compostas de indivíduos “atomizados” em uma comunidade orgânica unitária integrada ao estado, o que supunha a fusão do privado no público e a submissão total do indivíduo à coletividade. As grandes missas fascistas, com seu caráter lúdico e litúrgico, assim como os esportes de massa e as atividades de lazer do Dopolavoro, visavam, por meio da socialização “fascista” dos indivíduos, a uma politização da sociedade civil.
A outra tarefa do PNF era formar uma nova classe dirigente, capaz de substituir as elites da Itália liberal e assegurar a perenidade do regime. Ora, na véspera da guerra, o partido fascista estava longe de ter dado ao mundo esse “exército de verdadeiros crentes” que Mussolini esperava que ocupasse os postos de comando da nova Itália. Os militantes de primeira hora e os de segunda geração, quando não tinham dado as costas ao regime ou desaparecido, dividiam-se entre nostálgicos do fascismo intransigente, cujas esperanças frustradas eram encarnadas por Farinacci, e oportunistas, prontos a ligar seu destino ao do establishment e partilhar com ele as prebendas do pós-fascismo. Quanto às antigas elites, embora em sua maioria tenham aderido ao fascismo e ocupem posições dominantes no aparelho do estado, na pilotagem da economia e no mundo da cultura, não romperam com o espírito e as práticas da burguesia, cujo caráter dissolutivo é energicamente denunciado por Mussolini e Starace. No fim dos anos 1930, os quadros do partido e das organizações anexas não têm muito mais que 200 mil pessoas, entre as quais numerosos indivíduos de qualidade medíocre e fiabilidade incerta. E a reserva é de uma exiguidade extrema. O chamado às armas, em 1940, de milhares de hierarcas locais e nacionais, frequentemente saídos do primeiro fascismo e, portanto, pertencentes à fração mais militante e experiente do movimento, apresentará imensos problemas de substituição às instâncias dirigentes do Partido Nacional Fascista.
Quer se tratasse de oferecer aos principais organizadores dos “modos fascistas” o material maleável do qual sairia o “novo homem” ou de moldar uma nova elite, era para a juventude que se voltavam os olhares do ditador latino. Só ela, porque crescera sob o fascismo no culto da pátria e de seu “salvador,” podia aos olhos deste assegurar, mesmo após sua morte, a sobrevivência do regime. Daí o cuidado do regime na fascistização das novas gerações e a escolha de retirar as organizações da juventude do ministro da educação para confiá-las ao Partido Nacional Fascista. Nessa ótica, em outubro de 1937, foram reagrupadas no seio da Gioventù Italiana del Littorio. Todos os inscritos – praticamente todos os jovens, mais de 8 milhões com idades entre quatro e 21 anos – deviam prestar juramento de defender com seu sangue a causa da revolução fascista. A organização era de tipo militar. Sob as ordens de Starace, comandante-geral da GIL, assistido por um chefe e um subchefe de estado-maior, todos os comandantes dos grupos masculinos pertenciam à Milícia. O objetivo era formar uma juventude sadia, corajosa, disciplinada, habituada aos exercícios corporais, fanaticamente devotada ao regime e à pessoa do Duce, e também selecionar aqueles que, por suas qualidades de inteligência e caráter, estavam destinados aos postos de responsabilidade. Para esse fim, a GIL dispunha de seus próprios colégios: dois para os órfãos de guerra, duas “academias” de educação física, uma de esgrima, um conservatório de música, dois de especialização militar, dois navais e um de aeronáutica, três para a formação de professores. Os jovens fascistas podiam seguir a formação em cursos de política para “promover o preparo daqueles que formarão a direção da Nação fascista do amanhã.”
Essa formatação totalitária da juventude não era muito compatível com um sistema educacional regido pela reforma Gentile, que tivera a ambição de criar uma escola seletiva de ensino de alta qualidade cultural e fundado sobre as ciências humanas clássicas, uma escola de classe, concebida para a burguesia liberal e adequada aos valores e às necessidades dessa categoria social. Nada disso condizia com o desejo de homogeneização do regime e com a retórica antiburguesa com que Mussolini nutria seu discurso. Desde o início dos anos 1930, o Duce achou que a reforma de Gentile não respondia mais à “revolução fascista” nem ao crescimento da população escolar. Era conveniente, portanto, modificar o conteúdo ideológico do ensino e adaptá-lo à demanda social (preocupação de ascensão da classe média) e às perspectivas do mercado de trabalho.
Até 1935, foram feitas reformas parciais que não mudavam a economia de conjunto do sistema. Em 1930, o governo decidiu pela adoção, nas escolas elementares, de um novo e único livro de Textos, aprovado pelo estado e cujo uso se tornaria obrigatório no ano seguinte. No liceu, as instruções ministeriais impunham aos professores a introdução de lições especiais para exaltar os fastos do regime e difundir as palavras de ordem do Duce. Mas essa sucessão de comandos, aplicada em um sistema educacional globalmente mantido, não era suficiente para modificar o espírito tradicional. A universidade, sobretudo, foi objeto de ofensivas destinadas a fazer penetrarem o espírito e a ideologia do regime em um mundo que – do lado tanto dos professores quanto dos estudantes – era afeito ao modo de pensar e aos valores do establishment. Não faltam exemplos dessa “melhoria” da cultura universitária. Em 1927, foi criada em Perugia uma faculdade “fascista” de ciência política, experiência estendida em seguida a todas as universidades, com as cadeiras de estudos fascistas e direito corporativo se tornando verdadeiras escolas teóricas de fascismo. Em março de 1930, Augusto Turati, secretário-geral do partido, abriu na universidade de Roma um ciclo de conferências sobre a “História da Revolução Fascista.” Em Pisa, Giuseppe Bottai, então ministro das corporações, deu uma série de aulas sobre o tema “Da revolução francesa à revolução fascista.”
Uma primeira mudança drástica teve lugar em 1935, com a chegada ao ministério da educação do ex-quadrúnviro De Vecchi: um fascista duro cuja ação consistiu em centralizar sua administração, reduzir ainda mais a autonomia de diretores de escola e professores e introduzir cursos de cultura militar nas escolas primárias e nos liceus. Mas seria sobretudo a reforma preparada e adotada em 1938 por Bottai que consagraria a ruptura com a escola elitista da era liberal. Pode parecer surpreendente que Mussolini tenha escolhido o mais “liberal” dos dirigentes fascistas para suceder a De Vecchi e incluir a instituição escolar no processo global de fascistização. Mas em sua revista Critica fascista, o antigo ministro das corporações mostrara suas diferenças com os partidários de uma educação “monolítica,” incapaz, a seus olhos, de preparar a nova elite dirigente para as tarefas futuras. Considerando a questão da juventude o problema central do fascismo, propunha um sistema educacional flexível e liberal para não sufocar as virtualidades criativas das novas gerações e salientava os riscos de esclerose que uma formação dogmática criaria para o futuro. Feitas em 1936, essas considerações defendiam a inteligência e o espírito crítico no momento em que a ideologia oficial do regime valorizava princípios radicalmente contrários: fé, disciplina, recusa do intelectualismo e do racionalismo “burgueses.” É natural que na época elas tenham sido rejeitadas por Mussolini em nome da coesão orgânica do regime.
Mas foi a Bottai que confiou, no ano seguinte, a tarefa de reformar a escola em sentido totalitário, considerando que se ele tinha uma abordagem diferente da sua e da maioria do grupo dirigente fascista, ao mesmo tempo tinha uma visão clara sobre a maneira como poderia se realizar o controle totalitário do estado sobre a sociedade civil. Bottai não era liberal por princípio, mas por preocupação tática de conseguir a adesão do maior número possível de italianos – e principalmente de jovens – ao projeto totalitário do regime. Os dois não estavam, portanto, em desacordo, como mostram as palavras pronunciadas em 1937 pelo novo ministro da educação nacional aos professores de Ferrara:
O fascismo que durará, o fascismo que ultrapassará o curso de nossas vidas, o fascismo que perpetuará através dos anos o nome e a glória de Mussolini, cabe a vocês moldá-lo, e vocês o moldarão na consciência, nas almas, nos corações das crianças da Itália.
Na Carta della Scuola aprovada em outubro de 1938 pelo Gran Conselho, estavam os princípios que presidiram a reforma escolar preparada por Bottai. O primeiro dos 29 artigos desse documento afirmava sem rodeios seu caráter totalitário:
Na unidade moral, econômica e política da nação italiana, que se realiza integralmente no estado fascista, a escola, fundamento da solidariedade de todas as forças sociais, da família às corporações e ao partido, tem por tarefa formar a consciência humana e política das novas gerações.
Adotada em 1939, a reforma Bottai foi instaurada somente a partir do ano escolar 1941-1942, um ano antes da queda do regime. Assim, é impossível medir seus efeitos sobre a população em idade escolar. Pode-se apenas reter suas intenções, que caminhavam no sentido da “revolução cultural” do fascismo. Para além do caráter prático da reforma, que introduzia o trabalho manual nos programas sob a forma de estágios efetuados por estudantes e formandos em empresas e explorações agrícolas e instituía uma “escola média inferior” – correspondente ao primeiro ciclo do secundário – uma espécie de tronco comum de três anos com ensino de latim para todos, o essencial residia na vontade de instaurar uma verdadeira educação popular de massa e, sobretudo, romper com a cultura burguesa. “Era necessário – escreve De Felice – que a escola exprimisse, em todos os níveis, não uma cultura fascistizada, mas uma cultura real e completamente fascista, e conseguisse fazer com que os jovens agissem como fascistas desde seu primeiro contato com a realidade extrafamiliar.”
Na cúpula do dispositivo que visava a moldar a nova elite dirigente se encontravam os GUFs, os Grupos Universitários Fascistas. Na véspera da guerra, eles reuniam mais de 100 mil estudantes e se consagravam à preparação militar e à formação ideológica e intelectual da juventude universitária. Desde sua fundação, em março de 1920, constituíam, por meio de seus organismos de imprensa, um polo de discussão e reflexão crítica no interior do fascismo, tolerado pelo poder. Mussolini nutrira por eles uma longa desconfiança por pertencerem ao mundo dos privilegiados e intelectuais. Mas com o tempo, e sob influência de Bottai, tomara consciência das vantagens que o regime podia tirar do não conformismo dos GUFs, que tinha mais de um ponto em comum com o discurso mussoliniano que fustigava o conservadorismo covarde da burguesia e o egoísmo da classe capitalista. Na verdade, as críticas visavam não só aos representantes da classe dirigente tradicional. Endereçavam-se também aos que haviam aderido ao fascismo por oportunismo ou, fascistas de primeira hora, renunciaram a seu fervor juvenil para aproveitar em paz as honrarias e prebendas que o regime generosamente lhes prodigalizara. Em um caso como no outro, filiavam-se no campo dos que clamavam pela “revolução permanente” e pelo retorno às origens do primeiro fascismo.
Como essa crítica ao fascismo em vigor provinha dos que estavam incumbidos de fornecer ao partido e ao aparelho de estado seus dirigentes mais dinâmicos e competentes, ela coincidia com a preocupação de Mussolini em conduzir “uma revolução dentro da revolução.” Ainda era necessário que o movimento impulsionado pelos GUFs pudesse ser controlado e dominado. Nessa perspectiva, foram criados os Littoriali della Cultura e dell’Arte, espécie de estágio anual que dava lugar a concursos organizados em torno de temas cuidadosamente preparados durante o ano. De 1934 a 1939, essas competições culturais, recheadas de recompensas, estimulariam, no seio da juventude intelectual fascista, qualidades de reflexão e criatividade aplicadas à doutrina, à cultura, à análise do fenômeno corporativista. A relativa liberdade de expressão concedida pelo poder aos jovens que frequentavam os Littoriali permitia aos membros da direção fascista sentir o pulso da nova geração e selecionar os futuros dirigentes do partido.
A política de arregimentação e formatação totalitária da juventude não podia deixar de afrontar violentamente a hierarquia católica e o Papado. Mais que as medidas raciais adotadas contra os judeus e a reaproximação com a Alemanha názi, que mereceram, é verdade, severas críticas do papa, foi a queda de braço iniciada pela Igreja com o objetivo de preservar sua influência sobre os jovens por meio de organizações filiadas à Ação Católica que provocou, em 1938-1939, uma grave crise entre os dois poderes.
A política de conciliação com a Igreja, que fora um dos objetivos maiores do Duce no fim dos anos 1920, dez anos mais tarde não tinha mais a mesma importância. Mesmo que, por motivos táticos, Mussolini tenha dado a sua vida pessoal uma conformidade aparente às exigências da religião, ele não era católico fervoroso, longe disso. O velho fundo de anticlericalismo que nutrira sua cultura política quando era jovem fora apenas provisoriamente reprimido e só esperava a ocasião de ressurgir. Os valores cristãos, se antes puderam se entender com um fascismo conservador, respeitoso da moral tradicional e dos direitos da família em matéria de educação, surgiam agora como obstáculo à radicalização totalitária do regime e à criação do “novo homem.”
Para além do simples conflito “territorial” opondo o estado fascista à hierarquia católica a respeito do controle das organizações da juventude, perfilava-se uma oposição irredutível entre a concepção mussoliniana do que devia ser a cidadania futura e a doutrina da Igreja, considerada “perniciosa” pelo ditador pois, ao pregar a renúncia e a humildade, contribuía tanto quanto as práticas hedonistas da burguesia para “desvirilizar” o povo italiano.
Ao mesmo tempo, Mussolini não tinha a ingenuidade de acreditar que poderia, de um dia para o outro, afastar os italianos da religião de seus pais. Ciano escreveu em seu diário que o Duce considerava o combate dos názis contra o catolicismo “idiota e inútil,” quando mais não fosse porque tornava o Eixo impopular junto às massas católicas italianas. Dessa forma, mais que uma batalha frontal contra a Igreja cujo resultado era incerto, ele preferiu conduzir uma guerrilha cujo alvo principal era a Ação Católica, deixando às organizações fascistas o trabalho de multiplicar vexames, intimidações, ameaças e violências contra ela.
Mas, no início de 1938, a tensão chegara a tal ponto que Pio XI julgou útil endereçar a Mussolini uma advertência, por intermédio do padre Tacchi Venturi. Nela, o soberano pontífice alternava cenoura e porrete, declarando-se pronto a procurar com o Duce uma “solução amigável satisfatória,” ao mesmo tempo que, de maneira alusiva, fazia pairar sobre os dirigentes fascistas a ameaça de excomunhão. O tom geral era suficientemente firme para que Mussolini compreendesse que o papa não recuaria diante de nada para defender a Ação Católica. A batalha se apresentava ainda mais difícil para o Duce porque, aos protestos pontificais concernentes a essa organização, juntaram-se rapidamente os relacionados com a evolução racista do regime. Quando Hitler foi a Roma, em maio de 1938, o Papa adotara uma postura francamente hostil: o Vaticano permanecera fechado, e ele se recolhera a Castel Gandolfo. Durante o verão, fez diversos discursos nos quais eram denunciados o nacionalismo excessivo do regime, as primeiras disposições antissemitas e o próprio conceito de desigualdade racial. Temendo uma ruptura que lhe alienaria ao menos parte dos católicos, Mussolini preferiu recuar, deixando a Starace a tarefa de encontrar o presidente da Ação Católica, Lamberto Vignoli, e negociar, em agosto de 1938, um modus vivendi que, no conjunto, confirmava os acordos de 1931. O Papado, que saía provisoriamente vitorioso da prova, comprometia-se não obstante a refazer os estatutos da Ação Católica e despolitizá-la. A morte de Pio XI, em 10 de fevereiro de 1939, e a eleição, em 2 de março, do cardeal Eugenio Pacelli, considerado mais bem-disposto que seu predecessor em relação ao regime e à aliança com a Alemanha, marcariam o desanuviamento das relações entre o estado fascista e o Papado.
Mussolini e os judeus
Tão importante quanto a submissão intelectual e moral da juventude e significativa do desejo de ruptura que caracteriza o fascismo de imediatamente antes da guerra é a política de “defesa da raça” inaugurada em 1938 pelas disposições adotadas contra os “não arianos,” em oposição às práticas de tolerância em vigor até então.
A Itália não conhecera no século XIX, como outros países europeus – inclusive os de cultura liberal, como a França – o antissemitismo de massa. Existiam, como em toda parte, preconceitos antijudaicos na consciência e no inconsciente coletivos, mas não eram diferentes dos que se aplicavam ao Outro, quem quer que fosse. Parece mesmo que, no imaginário do italiano do norte, a imagem do judeu livorniano ou romano tinha uma conotação menos negativa que a do napolitano ou calabrês. Antissemitismo propriamente dito, quando existia, era circunscrito a setores minoritários. Podia-se, assim, distinguir um antissemitismo religioso (tema do judeu “deicida” e inimigo da Igreja) e clerical (tema do judeu aliado à maçonaria e à monarquia piemontesa) e um antissemitismo político, tão marginal quanto os outros, que se dividia entre um pequeno número de sindicatos revolucionários (tema do capitalista cosmopolita) e a legião não menos dispersa de gurus do nacionalismo: Oriani, Corradini e Giovanni Preziosi, entre outros; esse último – padre que deixou a batina – sendo antes de 1914 a figura mais representativa de um antissemitismo que devia infinitamente menos à cultura italiana que aos ideais e às fantasias importados da França ou de alhures.
Até a Marcha sobre Roma, o fascismo teve com o mundo israelita uma relação complexa. Na verdade, as duas famílias ideológicas no seio das quais as tendências antissemitas começaram a se manifestar – sindicalismo revolucionário e nacionalismo – formavam os dois componentes maiores da aliagem fascista, e isso não podia deixar de ter influência sobre a evolução do primeiro fascismo, ou ao menos sobre o discurso produzido por ele. Percebido na imprensa fascista da época – especialmente em pequenos jornais como L’Assalto, Balilla, Audacia – e nos escritos de certos intelectuais fascistas ou de tendências fascistas, como Ardengo Soffici ou Malaparte, esse discurso portava sem nenhuma dúvida traços antissemitas que De Felice, na obra pioneira que consagrou a essa questão, teve talvez tendência a minimizar. Admitamos simplesmente que, salvo exceções, não havia a virulência do discurso antissemita em vigor em outros países europeus, a começar pela França, nem, sobretudo, o mesmo eco na população.
Tratando-se de Mussolini, é evidente que ele não tinha originalmente – e não terá após sua chegada ao poder – verdadeiras prevenções antissemitas. Nutria mesmo (um pouco como de Gaulle) certa admiração pelo povo judeu. O velho fundo de antijudaísmo tradicional do qual era portador não teve consequências práticas. Não o impediu de colaborar em publicações dirigidas por judeus, ter amigos e colaboradores de confissão israelita nem manter durante vinte anos uma ligação amorosa com uma judia, Margherita Sarfatti. Jamais assumiu o caráter racista “biológico” que quiseram lhe atribuir, depois de 1938, os apologistas da “defesa da raça.” Do mesmo modo, até 1936-1937 não teve significação política. Mussolini jamais partilhou das teses de Preziosi (pelo qual não tinha nenhuma simpatia) e outros turiferários italianos e franceses do antissemitismo renhido. Isso para o comportamento dos fascistas em relação aos judeus.
Em sentido inverso, podem-se notar os seguintes pontos. Há certo número de personalidades israelitas entre os primeiros financiadores do fascismo: o commendatore Elio Jona, o banqueiro Giuseppe Toeplitz, alguns grandes proprietários da região de Ferrara que apoiaram os esquadrões de Balbo. Podem-se recensear ao menos cinco judeus entre os “sansepolcristas” de 23 de março de 1919 e no mínimo três judeus no martirológio da “revolução fascista.” Duzentos e trinta israelitas receberam o brevê atestando sua participação na Marcha sobre Roma e, no fim de 1922, ao menos 750 tinham carteirinha do PNF. Essas constatações não alteram o fato de que, uma vez dissipados os equívocos e as ilusões do primeiro fascismo, numerosos foram os judeus italianos que se juntaram às organizações antifascistas. Simplesmente, elas permitem avaliar que não existia nessa data, no seio do movimento fascista, verdadeiro clima antissemita. Se havia antissemitismo em suas fileiras, era em indivíduos isolados.
Após a ascensão do fascismo e até a virada de 1935, as relações entre, de um lado, a comunidade judaica italiana e o movimento sionista e, do outro, Mussolini e o grupo dirigente fascista conheceram altos e baixos. Um período difícil para começar, de 1922 a 1926, marcado por campanhas de imprensa antissemitas motivadas, entre outras razões, pela presença de numerosos israelitas nas organizações antifascistas, sem que se possa, contudo, falar de verdadeiro excesso: nada diferente, em todo caso, do que se passava no mesmo momento em um país de democracia liberal como a França. Ligeira melhora em seguida, de 1927 a 1932, caracterizada pelo estabelecimento de boas relações entre o Duce e as principais personalidades do judaísmo italiano, pela reaproximação entre o governo fascista e os meios sionistas – Chaim Weizmann foi recebido pelo Duce pela primeira vez em 1926 e ficou com a impressão de que o ditador não era hostil à ideia sionista – pela retomada da adesão ao fascismo por numerosos judeus italianos (cerca de 5 mil adesões entre outubro de 1928 e outubro de 1933, ou seja, perto de 10% da população judaica da Itália) e, enfim, pelas propostas apresentadas pelo Duce durante suas entrevistas com Emil Ludwig. No livro que daí resultou e que foi publicado por Mondadori em 1932, antes de ser traduzido para diversas línguas, o racismo era condenado sem reservas pelo anfitrião do Palazzo Venezia e definido como uma estupidez. “O antissemitismo,” disse Mussolini, “não existe na Itália. (...) Os judeus italianos sempre se comportaram bem como cidadãos e sempre combateram bem como soldados.”
Os anos 1932-1935 conheceram o apogeu dessas boas relações. Dos dois lados não se escondia a satisfação e não se economizavam manifestações mútuas de simpatia, à exceção de pequenos núcleos fascistas agrupados em torno de Farinacci e Giovanni Preziosi e sua revista La Vita italiana ou de publicações como Antieuropa, de Gravelli, ou La Nobilità della stirpe, de Stefano Maria Cutelli, todas de circulação reduzida. No plano internacional, Mussolini continuava a julgar o racismo com severidade e a manter boas relações com Weizmann, recebido com sua esposa, como se viu, em audiência privada no Palazzo Venezia e atendido em seu pedido de uma foto autografada do ditador.
Como se passou, em poucos anos, dessa relação pacífica à perseguição racial de imediatamente antes da guerra? Como Mussolini, que até então se declarara chocado pelo racismo e tinha – taticamente, é verdade – bom relacionamento com o sionismo, pôde tão rapidamente dar o tom de uma campanha antissemita que culminou, em 1938, com medidas discriminatórias contra a comunidade judaica? Porque foi a conversão do Duce ao racismo e ao antissemitismo que levou a guinada do fascismo em direção à costa tumultuada da “política racial.”
Aparentemente, as obrigações da política externa e a mudança radical que se operou nesse terreno em 1935-1936 pesaram fortemente sobre a atitude de Mussolini em relação aos judeus. Estes, contudo, foram credores no consenso que, como vimos, conheceu seu apogeu durante a guerra da Etiópia. Numerosos foram os voluntários para a África, ao ponto de o ministério da Guerra e a União da comunidade judaica entrarem em acordo para criar um rabinado militar. Muito grande, igualmente, foi a adesão ao “Dia das Alianças” e à oferta de ouro para o financiamento da guerra. A vitória e a proclamação do Império foram saudadas com entusiasmo pela imprensa judaica e celebradas nas sinagogas como nas igrejas. Em contrapartida – e este é um fato novo – as relações até então muito boas entre o sionismo e o governo fascista começaram a se deteriorar, por três razões concomitantes: a reaproximação com a Alemanha, a busca de um gentlemen’s agreement com a Inglaterra fundado sobre o reconhecimento dos interesses das duas potências no Mediterrâneo e o abandono pela Itália de sua política de penetração no Egito e na Palestina e, enfim, a aproximação da Itália – e da Alemanha, aliás – com o mundo árabe. Orientação simbolizada pelo gesto de Mussolini ao brandir, em 18 de março de 1937, a “espada do Islã” em Tripoli.
Em resumo, a carta sionista, que Mussolini conservara no jogo com o único objetivo de constranger os ingleses, deixara de ter valor no momento em que ele se preparava para jogar com as da aliança alemã e da aproximação com os árabes. A partir daí, o Duce – que procurava boas razões para justificar seu alinhamento à política hitlerista – não perderia a ocasião de generalizar certas posições antifascistas assumidas, durante as guerras da Etiópia e da Espanha, por personalidades e organizações judaicas estrangeiras, ainda que bastante isoladas, para proclamar que a “internacional judaica,” aliada aos inimigos do fascismo, estava em guerra contra ele.
É claro que havia outros motivos na escolha de Mussolini e do grupo dirigente fascista por uma política de “defesa da raça.” É preciso notar, antes de tudo, que esta não começou com as medidas antissemitas adotadas em 1938 pelo governo fascista. Os primeiros alvos, desde o início da guerra da Abissínia, foram as populações da África oriental: eritrianos, somalianos e, acima de tudo, abissínios. Assim, a imprensa fascista, o discurso dos hierarcas, os comentários dos cinegiornali pululam de afirmações racistas em relação aos autóctones, considerados seres inferiores e selvagens com os quais a “raça italiana” devia evitar se misturar. Sintomática é a interdição feita por Mussolini aos soldados italianos de cantarem a célebre canção “Facetta nera bell’Abissina” (“Carinha preta, bela abissínia”), considerada uma incitação ao “madamismo,” a união com as mulheres nativas e, daí, à mestiçagem. As medidas coercitivas não tardaram a se seguir. Em abril de 1937, um decreto real estabelecia que todo italiano que tivesse relações seguidas com uma mulher etíope estava sujeito à pena de cinco anos de prisão. Sua aplicação deu lugar a interpretações muito diversas segundo os tribunais envolvidos e, sobretudo, não impediu soldados e colonos italianos de manterem relações sexuais com mulheres negras. Mesmo que se tenha instituído o “bilhete amarelo” (il foglio giallo) incitando os culpados a obedecerem à lei sob pena de perseguição ou proposto, como o secretário do Fascio de Addis-Abeba, Guido Cortese, importar da Itália vários milhares de mulheres brancas destinadas às casas de prostituição da África oriental, o madamismo continuou a prosperar sob os céus abissínios.
A pouca pressa demonstrada pelos colonizadores em transformar hábitos que remontavam à conquista da Eritreia no fim do século XIX não significa que eles tenham se mantido surdos a todas as propostas apresentadas pelos defensores da “higiene racial” nem às que os incitavam a se comportarem como “senhores” nos países conquistados. O próprio Mussolini dera o tom ao declarar em diversas ocasiões que considerava os ingleses colonos-modelo, por terem sabido manter distância dos nativos. Ele desejava que os italianos de partida para a África se inspirassem nesse exemplo, a fim de instaurar no Império o “prestígio da raça”: palavra de ordem que se tornaria antífona da política fascista de colonização, antes de inspirar a lei de 29 de junho de 1939, que instituía nos territórios de ultramar o “delito de atentado contra o prestígio dos italianos,” sujeito a pesadas penas de prisão. A verdadeira selvageria, por parte tanto de militares e fascistas quanto de numerosos colonos não inscritos no PNF (na maioria camponeses originários do Mezzogiorno), que se seguiu à repressão da população negra de Addis-Abeba depois do atentado contra o marechal Graziani em 19 de fevereiro de 1937 diz bastante sobre o impacto da campanha de ódio racial lançada alguns meses antes pelas autoridades italianas. Vários milhares de pessoas “passadas nas armas,” nas palavras do “vice-rei” Graziani, ou massacradas durante as caçadas nas ruas da capital etíope, dezenas de representantes da intelligentsia abissínia assassinados, jogados no rio que atravessa a cidade ou em poços nos quais os cadáveres eram queimados com petróleo: no total, entre 5 e 6 mil vítimas segundo as fontes italianas, 30 mil segundo as fontes etíopes examinadas por Fabienne Le Houérou no livro originado de sua tese, A epopeia dos soldados de Mussolini na Abissínia, 1936-1938. Quatro dias após o atentado, Mussolini telegrafou a Graziani: “Eliminar todos os suspeitos sem fazer investigações.”
“Defesa da raça,” “higiene da raça,” “prestígio da raça,” eis, portanto, as fórmulas em curso no mais alto nível da hierarquia fascista muito antes de ser adotada a legislação antissemita. O que significa que o terreno fora preparado para que a opinião pública não se surpreendesse demais com a reviravolta efetuada pelo poder fascista em relação aos judeus da Itália, uma pequena comunidade de cerca de 47 mil pessoas, essencialmente reunidas em cidades como Livorno, Ancona, Ferrara e Roma. O discurso racista, como funcionara por dois anos contra as populações nativas do Império, com sua argumentação centrada na desigualdade dos povos, na suposta relação entre mestiçagem e decadência das sociedades humanas e na necessidade de preservar a “pureza” da raça, estava de acordo com os princípios enunciados pelos promotores da “revolução cultural fascista.” Bastava substituir negro por judeu para que, no espírito de parte da população italiana, se impusesse a ideia de segregação contra o mundo israelita.
Em busca de uma interpretação plausível para o “declínio” demográfico de seu país, o Duce, como foi mostrado, via nesse fenômeno a consequência do hedonismo ambiente, que lhe parecia ligado à persistente influência dos costumes da burguesia sobre o conjunto do corpo social. Mas faltava uma pedra ao edifício para que a explicação não tivesse nenhuma falha e pudesse ser usada para satisfazer as massas: essa pedra era a “judaização” das sociedades ocidentais, as mesmas, assegurava, cuja cultura servia de modelo às antigas elites dirigentes, nutrindo seu individualismo, intelectualismo e cosmopolitismo. Agindo desse modo, não fazia mais que resservir uma argumentação que, desde o fim do século XIX, estava no coração do antissemitismo europeu. Mesmo assim, temperada à moda mussoliniana, ela constituía elemento central na construção do edifício totalitário.
Resta examinar o problema do eventual contágio do modelo názi em um Mussolini que, depois de sua viagem triunfal à Alemanha em 1937, devotava ao Führer uma admiração certamente não desprovida de inveja e rancor, mas seguramente profunda. Uma coisa é certa: não foi sob pressão alemã que o Duce escolheu se introduzir na via do antissemitismo de estado. Ciano não formula nenhuma antífrase quando escreve em seu Diário, em 3 de dezembro de 1937: “Os judeus me cobrem de injúrias anônimas, acusando-me de haver prometido sua perseguição a Hitler. Falso. Os alemães jamais nos falaram disso.” Tivessem falado e o Duce, com toda a verossimilhança, teria reagido com vigor, considerando que o governo fascista não tinha de obtemperar a uma instrução externa. Mas nem Hitler nem qualquer dos dirigentes fascistas precisou correr esse risco. Foi por sua própria iniciativa que Mussolini se pôs na órbita da política názi em matéria racial. Sua única preocupação foi tornar essa escolha aceitável pelos italianos, como fizera com o “passo romano,” ligando-a à “revolução cultural” fascista e a uma tradição “italiana” e “romana” completamente ilusória.
É verossímil que, ao se alinhar desse modo com a Alemanha názi, além de achar que estava dando mais coerência ao projeto totalitário fascista, Mussolini tenha querido dar a Hitler um penhor sobre questão relativamente pouco incômoda para a Itália, mas fundamental para o chefe do III Reich. Ainda era necessário fazer essa mudança ser aceita por uma população, e mesmo por uma base militante, que a questão “judaica” até então não preocupara muito. Mussolini foi auxiliado nessa tarefa pelos representantes da ala intransigente do partido e por intelectuais devotadamente submissos ao regime. O chute inaugural da campanha antissemita foi dado em julho de 1938, com a publicação no Giornale d’Italia de um artigo anônimo que será conhecido como “Manifesto dos sábios” e que, redigido por um grupo de universitários – antropólogos, psicossociólogos, patologistas etc. – sob a égide do Minculpop e com o pleno acordo de Mussolini, alinhava certo número de proposições sobre “problemas raciais”: “As raças humanas existem; há raças inferiores e superiores; o conceito de raça é puramente biológico; os judeus não pertencem à raça italiana etc.” A despeito dos sinais que, no curso dos dois anos precedentes, teriam podido alertar os mais clarividentes dos membros da comunidade israelita – repetidos ataques de certos jornais fascistas, manifestação antissemita na cidade de Ferrara, certas propostas apresentadas por hierarcas em altas posições – a maioria dos judeus italianos ficou estupefata diante de uma declaração de guerra tão violenta quanto súbita.
Starace deu enorme publicidade ao “Manifesto” e encarregou o Instituto Fascista de Cultura, o Partido Nacional Fascista, os GUFs – que deviam se mostrar particularmente agressivos na denúncia do “perigo judeu” – e os “sábios” de difundirem entre a população o novo conceito racista do poder. Para escapar à acusação de imitação servil do nazismo, Mussolini o apresentou como complemento da política demográfica que perseguia desde a metade dos anos 1920 e, em 1º de setembro de 1938, criou o Conselho Superior para a Demografia e a Raça. Preocupado em acentuar a autonomia ideológica do fascismo, distinto da doutrina hitlerista por sua concepção “espiritualista,” procurou o concurso de intelectuais capazes de teorizar a distinção entre o antissemitismo italiano e seu homólogo názi. Mas foi preciso esperar 1941 para que o filósofo Julius Evola fornecesse, com sua “Síntese das doutrinas raciais,” uma teoria que respondia a suas expectativas, uma vez que se fundava mais sobre a obscura ideia de “raça interior,” “raça do espírito,” que sobre critérios biológicos e antropológicos. Mas nem por isso deixava de conduzir a uma visão hierárquica dos povos, na primeira fileira dos quais Evola e seu discípulo todo-poderoso situavam a “raça ario-romana,” destinada a se tornar – regenerada pelo fascismo e pela prova da guerra – uma das “raças-guias” da humanidade.
As medidas discriminatórias não tardaram a se seguir ao “Manifesto dos sábios.” Começaram por interditar a inscrição nas escolas dos filhos de judeus estrangeiros, depois se procedeu à expulsão dos que entraram na Itália depois da guerra, os mais numerosos sendo os que haviam deixado a Alemanha e a Áustria em função da perseguição názi. Todas as naturalizações concedidas a judeus depois de 1919 foram revogadas e os desnaturalizados tiveram de deixar o país. Vem em seguida o turno dos judeus de nacionalidade italiana, identificados como judeus em virtude de critérios que se referiam ora ao pertencimento religioso, ora à “raça,” e que os dispositivos adotados em novembro de 1938 tornavam de um dia para o outro cidadãos de segunda classe. Estavam excluídos do ensino, de academias, institutos ou associações científicas, artísticas ou literárias e do exército. O casamento entre italianos e “não arianos” foi proibido, o direito de possuir bens imobiliários e dirigir empresas foi submetido a estritas limitações, o acesso à função pública e o pertencimento a organizações mistas como o IRI totalmente proibido. Bottai, encarregado da educação nacional – e que, a despeito de sua reputação de “liberal,” foi um dos hierarcas que se aplicou com mais zelo à política de “defesa racial” – acrescentou medidas específicas: os alunos judeus foram excluídos das escolas públicas e enviados para escolas especiais, dotadas de pessoal judeu. Nos estabelecimentos escolares italianos e nas universidades foram interditados os livros de autores judeus e as obras comentadas por judeus.
A memória coletiva – na Itália, mas também alhures – reteve a imagem de uma resistência passiva da população e da administração às medidas adotadas pelo governo fascista. Ora, estudos recentes e trabalhos em curso – os da historiadora francesa Marie-Anne Matard, por exemplo – conduzem à revisão parcial dessa ideia. Se é verdade que o regime, até a derrocada em 1943, demonstrou certo comedimento em sua política de segregação racial – multiplicando, por exemplo, as isenções por feitos de guerra ou participação na “revolução fascista” – e que a população italiana em seu conjunto aderiu pouco ao intenso matracar midiático orquestrado pelo partido e pelo Minculpop, a imagem de uma Itália crítica, opondo sua força de inércia às ordens do poder é excessiva. Nas fileiras fascistas, raros foram os que – como Balbo, De Bono e Federzoni durante a sessão do Gran Consiglio na qual foi examinada a “Carta racial” – ousaram elevar a voz para manifestar seu desacordo com o guia supremo. Centenas de dirigentes e militantes que manifestaram solidariedade com os judeus foram excluídos do partido. A administração seguiu, no conjunto, as instruções de sua hierarquia, aplicando ora com rigor (como em Trieste), ora de maneira mais suave a legislação antissemita aprovada por quase unanimidade pelas duas câmaras e assinada pelo Rei.
Quanto a Mussolini, cuja responsabilidade pessoal na adoção pela Itália de uma política de exclusão racial que preparou o terreno para as deportações exterminadoras do tempo de guerra é total, sua preocupação em fornecer garantias a Hitler ao duplicar, ao menos verbalmente, as propostas de seu homólogo názi surge nessa confidência de Ciano em 12 de novembro de 1938: “O Duce está cada vez mais exaltado contra os judeus. Ele aprova incondicionalmente as medidas de represália adotadas pelos názis. Diz que, em uma situação análoga, faria ainda mais.”