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Epílogo

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Reunido em Milão no mesmo dia em que se realizava o ritual macabro do Piazzale Loreto, o Comitê de Libertação Nacional da Alta Itália, pressionado por Sandro Pertini para avalizar a execução dos hierarcas, decidiu adotar e tornar pública a seguinte resolução:

 

O Comitê de Libertação Nacional da Alta Itália declara que o fuzilamento de Mussolini e de seus cúmplices, ordenado pelo Comitê, é a conclusão necessária de uma luta insurrecional que assinala o renascimento e a reconstrução da pátria. O povo italiano não poderia reencontrar uma vida livre e normal – uma vida que o fascismo lhe recusou durante vinte anos – se o Comitê não tivesse dado essa demonstração de sua decisão férrea de tornar seu um julgamento já pronunciado pela história. Só ao preço dessa ruptura clara com um passado de vergonha e de crimes o povo poderia ter a certeza de que o Comitê de Libertação Nacional da Alta Itália estava decidido a avançar com firmeza na renovação democrática do país. (...) O fascismo é o único responsável pela explosão de ódio popular que, nessa única ocasião, degenerou em excessos, compreensíveis somente no clima desejado e criado por Mussolini.

 

Emitindo essa declaração, os responsáveis máximos da resistência afirmavam de modo solidário sua vontade de ruptura com o fascismo, o assassinato de Mussolini e de seus ministros, de certo modo, simbolizando o fim de uma época e a emergência de uma nova Itália, fundada sobre a aliança das forças que participaram da luta contra a ditadura. O destaque dado ao caráter “único” dos “excessos” cometidos pela multidão milanesa pretendia salientar o papel central que o governo da República Social, e principalmente Mussolini, tivera na tragédia da qual o povo italiano fora ator e vítima. Como se a eliminação física do ditador e a cerimônia bárbara do Piazzale Loreto pudessem de um golpe apagar as atrocidades da guerra civil e reconciliar os italianos consigo mesmos.

Pisoteando e mutilando o corpo e o rosto do Duce, tornando-o irreconhecível, reduzindo seu cadáver ao aspecto de um fantoche grotesco e obsceno, não foi um pouco como se os profanadores seviciassem a si mesmos? Claro que a multidão no Piazzale Loreto em 29 de abril de 1945 não era obrigatoriamente a mesma que havia aclamado Mussolini na saída do Teatro Lírico quatro meses antes. Admitamos que nela houvesse numerosos antifascistas desde muito tempo convencidos da perversidade do regime. E também algumas vítimas mais recentes da crueldade názi e republicana. Mas quem, nessa multidão heterogênea, em algum momento, três, cinco ou dez anos antes, não vibrara com os discursos triunfalistas do ditador? Antes de vir a se tornar (com Ciano e Starace, depois com Pavolini e alguns outros) “o homem mais odiado da Itália,” acaso não fora a ele que os italianos mais amaram? O corpo e o rosto sobre os quais se encarniçaram os justiceiros do Piazzale Loreto acaso não foram, durante vinte anos, objetos de culto e adoração em todas as camadas da sociedade? Não foi o carisma pessoal de Mussolini a pedra angular do consenso de massa? É de surpreender que, nessas condições, o César taumaturgo tendo traído as esperanças de seu povo e o conduzido à ruína, tenha sido contra a imagem concreta, palpável, do herói abatido que se focalizassem os atos profanadores?

Mas, uma vez destruída a imagem vivente do guia desencaminhado e vencido, que fazer de seus restos mortais? A exposição pública do corpo de Mussolini, seguida da difusão, em toda a Itália, das fotos tiradas em 29 de abril no Piazzale Loreto pelos melhores fotógrafos da imprensa milanesa – algumas reproduzidas até em cartões-postais, com expressa autorização do gabinete de propaganda do Corpo dos Voluntários da Liberdade – tinha, entre outros, o objetivo de atestar claramente aos olhos de todos que o tirano estava morto, e com ele morto o sistema político que havia conduzido à guerra e à ruína da Itália. Agora era necessário fazê-lo desaparecer, ou ao menos fazer com que a última morada do Duce não viesse a se tornar cedo demais um lugar de memória para os nostálgicos da ordem mussoliniana. Então foi desse modo que, tão logo retirado do Instituto de Medicina Legal da Universidade de Milão, local onde o doutor Caio Cattabeni procedeu à autópsia – cercado de jornalistas, partigiani e curiosos que nenhum serviço da ordem conseguiu fazer dispersar – o corpo do ditador defunto foi rapidamente transportado e enterrado secretamente no cemitério Musocco, em Milão.

Segredo de curtíssima duração: com efeito, em muito pouco tempo, o túmulo anônimo se tornou objeto de atos ultrajantes ou, ao contrário, de marcas de atenção piedosa por parte dos irredutíveis de ambos os lados. Até o dia em que, um pouco antes do aniversário de um ano da execução do Duce, um antigo funcionário da República Social, Domenico Leccisi, e dois outros jovens fascistas, membros como ele de um fantasma “Partido Fascista Democrático,” entraram à noite no cemitério Musocco para exumar e sequestrar os restos mortais do ditador. Eles foram encontrados alguns meses mais tarde, após a prisão dos três neofascistas, escondidos em uma mala no mosteiro da ordem cartuxa de Certosa di Pavia, para onde tinham sido transportados por dois padres franciscanos.

Seguiu-se um longo período de segredo em nome de razões de estado e da circunstância de vínculos de política interna e externa impostas pela Guerra Fria. Por ordem do governo democrata-cristão, que não queria que se reproduzissem as profanações do cemitério Musocco nem, sobretudo, que a tumba do antigo ditador se tornasse local de culto para os nostálgicos do ventennio fascista, os restos mortais de Mussolini foram, com o acordo do cardeal Schuster, inumados em uma capela do convento dos capuchinhos de Cerro Maggiore, a vinte quilômetros de Milão.

Permaneceram 11 anos nesse retiro somente conhecido por alguns responsáveis políticos e um punhado de religiosos. Em 1957, o governo italiano julgou que os restos mortais de Benito Mussolini podiam ser devolvidos à família. Eles foram, conforme seu desejo, inumados no cemitério San Cassiano, em Predappio, sua cidade natal, durante muito tempo local de peregrinação e culto para os sobreviventes e os inconsoláveis torcedores, tifosi, da aventura mussoliniana.

Hoje, mais de meio século depois do metralhamento de Giulino di Mezzegra, os visitantes são raros. Frequentemente, são admiradores estrangeiros do ditador morto, que, ignorando ou ocultando os aspectos mais odiosos do fascismo, querem ver em seu chefe apenas o homem providencial que soube poupar a Itália dos horrores do bolchevismo. Como essa lady inglesa que, em 1998, comprou um iate que pertenceu ao ditador para “agradar” os clientes de seu hotel.

 

 

Quanto aos italianos, eles bem ou mal acertaram suas contas com a história. Certamente, não perdoaram Mussolini por sua aliança criminosa com o diabo e pelo que dela resultou. Mas numerosos são os que, em seu julgamento do fundador do fascismo, reconhecem que ele não foi somente um oportunista hábil, pronto a tirar vantagem dos bons ventos que o conduziram ao auge do poder, que seu itinerário intelectual e político não foi o de um homem isolado e que, nos eventos que conduziram à guerra e à catástrofe final, toda uma geração, idólatra de seu “Guia” ou espectadora passiva de suas empresas megalomaníacas, esteve diretamente envolvida.

E eis-nos de volta à relação entre o homem Mussolini e seu contexto histórico. Para explicar sua ascendência sobre as massas italianas, principal razão de seu sucesso e da longevidade de um regime cuja queda resultou acima de tudo de erros tardios de política externa, não é suficiente evocar a personalidade do ditador, seu carisma, seus talentos como orador, sua aptidão para guiar as massas e forjar os instrumentos de seu próprio culto. Mais determinante é o elo que une seu próprio destino à história geral e da Itália contemporânea. Muito mais que outros candidatos potenciais à ditadura, como o aristocrático d’Annunzio, por exemplo, o filho do ferreiro de Dovia é produto de seu tempo, encarnando, pelo menos até a declaração de guerra de 1915, uma das faces ideológicas da Itália risorgimentista. Socialista à moda romagnola, ele pertence a essa corrente da ultraesquerda nutrida pelos ideais contrastantes do coletivismo libertário, do jacobinismo de tradição mazziniana e de um marxismo elementar. Filho do povo que subiu aos degraus mais altos da ascensão social, partilha com muitos moços de classe média um desprezo raivoso pela burguesia e pelo conservadorismo indolente da Italietta giolittiana. Nessas condições, deve-se pensar que os traços específicos de seu caráter – violência, ambição, autoritarismo – e as frustrações da juventude de certo modo predispuseram o chefe do socialismo romagnol a se tornar o que se tornou? Alguns de seus biógrafos não escaparam dessa armadilha e acreditaram ver no Mussolini do início do século a figura programada do tirano dos anos 1920 e 1930.

Ora, boa parte dessas características, e das que compõem sua heterogênea cultura política, Mussolini partilha com numerosos representantes de sua geração com os quais se engajará, em 1914, na campanha intervencionista, ponto de convergência de uma das veias do Risorgimento. Nada indica então qual será seu progresso ulterior. Excluído das fileiras do PSI, Mussolini permanece um socialista revolucionário para quem a guerra constitui o prólogo da grande mudança política e social. Se um dos numerosos estilhaços da granada de morteiro que o feriram gravemente em 1917 tivesse sido fatal, seria essa a imagem que ele teria legado à posteridade.

A história decidiu diferente. Com o fascismo em sua primeira versão, foi uma das potencialidades do Risorgimento que surgiu em seguida à guerra, rapidamente substituída pelo espírito da contrarrevolução. Mussolini foi o homem de uma e de outra: o responsável pela queda da classe política liberal que triunfara com Cavour e o salvador da direção capitalista, isso em nome da nação e em benefício de uma nova elite saída das trincheiras, da qual ele mesmo foi a emanação e a figura emblemática.

A fortuna política do dirigente fascista está muito ligada a essa relação entre seu destino pessoal e aquele de uma clientela que, nutrida pela mesma cultura política, conheceu experiências – a começar pela guerra – e sofreu frustrações comparáveis às que ele mesmo viveu. Se isso pode explicar em parte a ascensão ao poder do fascismo em seguida à Primeira Guerra Mundial, permanece que a conquista do poder pelos camisas-negras foi resultado de um golpe ajudado pelos representantes do establishment e que se operou em um clima de terror contrarrevolucionário cujas principais vítimas foram os antigos companheiros do Duce.

Como um homem que para se impor recorreu desse modo ao terror conseguiu, alguns anos mais tarde, reunir em torno de si um consenso quase geral? Entre as razões que explicam essa adesão da grande maioria do corpo social a sua pessoa e a sua política, está em primeiro lugar o fato de que, após um longo período de turbulências, Mussolini trouxe paz civil aos italianos. É verdade que, como se viu, nem todos se beneficiaram da mesma maneira desse retorno à calma. Contudo, se a burguesia só teve a se felicitar – ao preço, é verdade, de sua abdicação política – pelas escolhas econômicas do regime e pela sujeição do movimento operário, o Duce e seu governo se empenharam em fornecer compensações às outras categorias sociais: para os representantes da classe média, possibilidades de ascensão social pela via das organizações do partido; para as camadas populares, uma legislação social avançada e a organização do “tempo livre;” a exaltação dos valores rurais para o mundo camponês; e, para todos, satisfações de prestígio ligadas à expansão do regime no exterior e aos sucessos da política interna. Sem esquecer o ponto essencial constituído, para os católicos, pela conclusão da paz com a Igreja. E, é claro, tudo que se relaciona com a eficácia do aparelho repressivo – no entanto, menos brutal que em muitas outras ditaduras – a formatação dos espíritos pela propaganda e a invenção de uma religião cívica construída em torno da figura quase divinizada do ditador.

Assim, durante uma década, estabeleceu-se uma espécie de modus vivendi ou, talvez melhor, um contrato tácito entre os italianos e seu Duce, seu “guia,” com Mussolini se empenhando, como contrapartida às restrições impostas pela ditadura, em reunir seu povo num projeto social que transcendia as clivagens de classe, em inaugurar uma terceira via entre socialismo e liberalismo e, sobretudo, em fazer da Itália uma nação poderosa, temida, finalmente levada a sério por seus parceiros internacionais e capaz de desempenhar um papel de primeiro plano na cena mundial. Enquanto sua política foi coroada de êxito e ele obteve sucessos incontestáveis, tanto no plano interno quanto no externo, até a metade dos anos de 1930, ele pôde contar com a adesão, passiva para uns, entusiasta para outros, das massas italianas. As coisas começaram a se deteriorar quando, sob influência de seu aliado názi, quis radicalizar o regime e impor a seus súditos ideias e práticas que os afastavam radicalmente de sua cultura e seus modos de vida habituais.

Mas foi sobretudo a guerra, a derrota, com tudo que comportava em desilusões abissais para os que acreditavam na invulnerabilidade da cidadela fascista e nas declarações triunfalistas do Duce, que rompeu de um único golpe o elo entre o povo italiano e seu Capo, agora lastimável comparsa do Führer. Qual o significado da cena canibalesca do Piazzale Loreto, senão evidenciar aos olhos do mundo a ruptura irreversível?