Prólogo
Este livro é resultado de longa caminhada pela história da Itália contemporânea e do fascismo. A partir do instante em que pensei seriamente em escrever um livro sobre Mussolini, surgiu a questão do “modelo” a seguir. Deveria, sob a capa de uma biografia do Duce, refazer por outro ângulo de abordagem uma história da Itália fascista, adicionando subsídios mais recentes da historiografia italiana e internacional? Não tendo que me justificar diante de um areópago científico para o qual havia muito o gênero biográfico era sinônimo de romance ou trabalho de “popularização,” não tive qualquer escrúpulo em descartar esta escolha.
Evidentemente, não podia pensar num simples relato dos acontecimentos, ou ver pelo anedótico malicioso, pois o risco nesta direção talvez fosse maior para o personagem de que eu iria tratar do que para outro (Roosevelt, Robert Schuman ou Franco!). Nem por isso escolhi passar a borracha em aspectos pessoais e mesmo íntimos do chefe fascista e ver no homem que dirigiu por mais de vinte anos os destinos da Itália apenas o homem público. Claro que me preocupei em apresentar uma interpretação o mais justa possível do fenômeno mussoliniano e em relacionar o destino individual de meu “herói” com o contexto do qual ele é produto, sem cair em um determinismo fora de tempo. De qualquer forma, parece-me que, para compreender o “mussolinismo,” pegar o significado de certas atitudes, de determinadas decisões do ditador, não basta fazer referência ao meio em que interagiu, às forças que apoiaram suas iniciativas, à sua cultura política, bem como aos acontecimentos mais importantes aos quais esteve ligado antes de chegar ao poder e passar, ele próprio, a causar os acontecimentos. Importa olhar o peso que possam ter “as coisas da vida” no comportamento de um indivíduo que não era imune ao aleatório de uma existência comum.
Para captar as múltiplas facetas do personagem, hoje dispomos de grande quantidade de documentos e de inúmeras publicações. Não existe aspecto da vida pública e privada – ou quase não há – do chefe da Itália fascista que não esteja público e dissecado. Ainda hoje, as dúvidas que subsistem quanto ao número e à identidade de suas conquistas amorosas, aos filhos que teve em relações extraconjugais e às circunstâncias de sua morte abastecem na Itália um filão editorial aparentemente inesgotável. Além dessa literatura menor, historiadores acadêmicos e jornalistas de talento conjugam o esforço de nos oferecer um panorama completo dos círculos de poder e da gente mais próxima em torno do ditador romagnol. Vale dizer que poucas zonas de sombra restam na vida deste personagem e que as fontes documentais que fundamentam suas biografias, como as de outras figuras importantes do regime, têm sido examinadas sob todos os ângulos.
Portanto, após ter lido e anotado a maior parte desses livros – a começar pela summa inacabada à qual De Felice dedicou mais da metade de sua vida – não seria o caso de abandonar um requisito essencial para o historiador, qual seja o recurso direto às fontes e, sobretudo, aos arquivos? Evidentemente não se punha esta indagação, mas já não me era possível ver ou rever tudo. Era preciso, pois, fazer uma escolha, que foi facilitada pela familiaridade anterior com os arquivos italianos e pelo substancial auxílio que me foi prestado por Mario Serio, por muito tempo diretor do arquivo central do estado em Roma, e por seus colaboradores – em particular a doutora Giovanna Tosatti – pelos quais tenho profundo reconhecimento.
Entre as fontes que consultei, uma delas merece menção especial. Trata-se dos arquivos da secretaria particular do Duce (Segreteria particolare del Duce) e mais especificamente da “correspondência sigilosa” (carteggio riservatto). Estes, reunidos ao longo de vinte anos por diferentes pessoas que estiveram à frente da secretaria particular de Mussolini (Alessandro Chiavolini, Osvaldo Sebastiani e Nicolo De Cesare) – e que, de certa forma, constituem o arquivo “secreto” de Mussolini – ocupam uma centena de caixas que examinei muito bem. Nelas há grossas pastas sobre praticamente todos os personagens importantes do regime, cada uma contendo a correspondência entre o interessado e o Duce, notas redigidas por este último ou por seu secretário particular, relatórios oriundos dos diversos serviços de polícia ou dos prefeitos, cartas endereçadas a Mussolini por outros dirigentes fascistas em guerra aberta com o titular do registro, recortes da imprensa, denúncias visando esta ou aquela autoridade, ou, ao contrário, testemunhos a favor etc. Dediquei muitos dias em Roma a examinar exaustivamente essas fontes, com o objetivo principal – além do que se poderia visar a propósito de certos episódios da vida do Duce (cartas se candidatando ao cargo de mestre-escola, seus “documentos militares,” os registros de sua baixa no hospital ao ser ferido em 1917 etc.) – de descobrir como funcionava no dia a dia o “sistema Mussolini” e como o ditador usava os homens que o cercavam e lidava com suas rivalidades.
Já se passou mais de meio século do desaparecimento trágico do último ditador romano. “César de carnaval” para uns, estadista genial para seus admiradores de ontem (entre eles Churchill, Roosevelt e Gandhi) ou de hoje, o ex-diretor do Avanti! suscitou, com o passar do tempo, todas as nuances possíveis de idolatria e ódio. No momento em que se encerra o século que viu nascer e morrer todas as formas imagináveis de ditaduras, fossem de “direita” ou de “esquerda,” autoritárias ou totalitárias, terroristas e sanguinárias ou moderadamente repressivas, pode-se indagar o lugar na hierarquia dos tiranos contemporâneos que ocupa aquele homem que “inventou” o fascismo. Para tanto, dispomos, ao contrário dos que tiveram que analisar há trinta anos a importância histórica do personagem, de suficiente perspectiva proporcionada pelo tempo, se não para banalizar os crimes dos quais se revela culpado ou cúmplice – afinal, até que ponto foi um aliado de Hitler? – ao menos para examinar na devida proporção alguns desses crimes, à vista do que sabemos sobre os cometidos por Stalin, Franco, Pinochet ou Pol Pot, e até mesmo sobre os desvios de nossas democracias quando se permitiram “excessos” nas guerras coloniais e nas práticas purificadoras da eugenia.
Não tenho dúvida de que meu argumento leva alguns a identificar um “revisionismo” latente. Como se a tentativa histórica aplicada ao período contemporâneo pudesse ser entendida de outra forma que não uma série de “verdades” estabelecidas e depois “revistas” à luz de novas fontes, de novas indagações, de novas revelações referentes ao século em que vivemos. Não se trata de reabilitar o “assassino de Matteotti” e o companheiro de viagem do nazismo, mas de focalizar um destino que marcou incontestavelmente este século na Europa e que sintetiza as esperanças enganadoras – aquelas da revolução social e da nação triunfante – as contradições e os erros criminosos.