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Os Círculos do Poder
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quando o fascismo se prepara para o décimo aniversário da Marcha sobre Roma com manifestações culturais das quais as mais carregadas de significado são a publicação, em junho de 1932, do décimo quarto volume da Enciclopedia Treccani contendo o verbete “Fascismo” – assinado pelo chefe do governo e escrito pelo filósofo Giovanni Gentile – e a inauguração solene da via dell’Impero, ligando o Coliseu à Piazza Venezia, o regime mussoliniano parece sólida e duradouramente implantado. A oposição interna está reduzida ao silêncio. Os chefes do antifascismo no exílio não cessam de disputar alguns milhares de militantes não desencorajados pelo refortalecimento de uma ditadura que eles acreditaram efêmera, pelas provocações dos agentes da OVRA [Organização para Vigilância e Repressão do Antifacismo] ou pela repressão episódica de parte do governo dos países de acolhida. A paz com a Igreja – posta em questão em matéria de educação e controle da juventude – favorece a adesão mais ou menos passiva dos católicos a um regime que oferece ordem, paz social e autoestima com uma política externa que firma a vocação da Itália como potência internacional de primeiro plano.
O preço a pagar – após a promulgação das leis ditas de “defesa do estado” de 1926 complementadas nos anos seguintes por disposições regendo a organização dos poderes públicos, o regime eleitoral, o funcionamento do partido único etc. – é a supressão das liberdades individuais e a eliminação de toda forma de oposição e contestação. O regime monárquico constitucional e parlamentar imposto pelo Piemonte e pela Casa de Savoia aos povos da península em 1861, e que durou até 1922, certamente não era um modelo de democracia liberal. O soberano conservava prerrogativas muito além das simbólicas. A magra elite política dirigente disputava as vantagens do poder e, para conservá-lo, não se opunha, nas eleições muito lentamente estendidas ao grande público, à violência ou às mais indignas práticas clientelistas. Sobre as classes populares, notadamente as rurais, repousara até o início do século o peso do esforço exigido dos italianos para a decolagem industrial do país e a aquisição dos meios necessários a uma política externa de grande potência. Quando, após o fracasso da aventura africana, o povo se recusou a ser o principal suporte de uma política chamada por alguns de “imperialismo dos pobres,” o governo respondeu a tiros de canhão e condecorou o general da carnificina com a ordem dell’Annunziata, “por serviços prestados à civilização.”
Mas desde o início do século, o regime começara a se liberalizar e se democratizar. Com a era Giolitti houve a integração das massas à vida política, graças ao ensino primário, à alfabetização das áreas rurais e, em 1912, ao sufrágio “quase universal.” No momento de sua entrada na guerra, a Itália tinha sérios problemas, mas estava empenhada numa democratização que não se fazia em país algum sem dificuldade e confronto. Dizer que o fascismo só precipitou a evolução para a ditadura que começara com Crispi trinta anos antes é um contrassenso. O fascismo se beneficiou de circunstâncias ligadas à guerra, aos graves problemas econômicos que a acompanharam e seguiram, ao contágio da revolução bolchevique e ao medo social que dela resultou. Na fraca resistência ao crescimento de seu poder, influiu, claro, a raiz medíocre dos ideais democráticos em boa parte da elite italiana. Mas nem por isso era inelutável a radicalização do viés autoritário da monarquia piemontesa.
O fascismo pertence a outro domínio, que faz da ditadura instaurada por Mussolini em 1922 uma variante do totalitarismo. É, na Europa de entreguerras, a primeira manifestação tangível desse fenômeno próprio do século XX que se define mais por suas práticas que pela ideologia. Ele não é, nem neste momento da narrativa nem dez anos mais tarde, um modelo de totalitarismo comparável ao da Alemanha názi e da União Soviética stalinista no fim dos anos de 1930.
Em capítulo posterior, voltaremos à questão do totalitarismo fascista e seus limites. Por ora, debuxemos suas linhas principais, como prólogo do que nos interessa: como Mussolini faz funcionar um sistema no qual ocupa o centro de comando.
No modelo totalitário descrito e analisado por Hannah Arendt e outros nos anos 1950, está a maioria dos traços que distinguem o regime mussoliniano das formas clássicas de ditadura: a primazia da política sobre a economia, a fusão de público e privado, a subordinação da vida individual e coletiva à supremacia absoluta do estado. E isso, como expõe o historiador Emilio Gentile em seu livro sobre as origens da ideologia fascista, “por meio de um partido único e da mobilização permanente da população, principais instrumentos de uma política de massa fundada sobre a utilização racional do irracional, empregando uma mitologia e uma liturgia política cuja função era formar a consciência individual e coletiva segundo um modelo de novo homem, privando os humanos de seu individualismo, transformando-os em células da coletividade nacional numa organização capilar de estado totalitário.”
Historiadores, sociólogos e cientistas políticos não estão de acordo sobre a semelhança desse “totalitarismo à italiana” ao modelo da escola americana. Se para Franz Neumann, por exemplo, a Itália fascista foi um regime totalitário pouco diferente do názi e do comunista, o italiano Fisichella o considera um “totalitarismo manqué,” e a própria Hannah Arendt conclui que, ao menos até 1938, o regime mussoliniano foi “uma ditadura nacionalista banal nascida das dificuldades de uma democracia multipartidária.”
Sem ir tão longe, Renzo De Felice demonstra no quinto volume de sua monumental biografia do Duce que faltaram ao regime mussoliniano certas características próprias aos totalitarismos, começando pelo recurso sistemático ao terror de massa e ao sistema concentrador. Para manter o compromisso que lhe permitira chegar ao poder, mas também por seu pragmatismo intrínseco, Mussolini jamais desejou passar inteiramente do estado de direito ao estado policial, e menos ainda um controle totalitário do partido sobre o estado. “É certo que ele trabalha,” escreve De Felice, “no sentido de uma concentração absoluta do poder no estado e de uma politização total da sociedade civil, mas, ainda aqui, tudo isso foi feito de uma perspectiva que não tinha muito a ver com a do nazismo ou do stalinismo.”
Entre os elementos que, na trindade totalitária, permitem distinguir o fascismo italiano dos totalitarismos alemão e russo está a função que teve nos três regimes a personalidade carismática do chefe: decisiva no caso italiano, claramente menos importante para os outros dois, porque nem Stalin nem Hitler tiveram de enfrentar o desafio da manutenção – ao menos simbólica – de um poder diárquico, imposto a Mussolini até 1943. Essa função é tal que, de vários pontos de vista, pode-se falar de “sistema mussoliniano” para descrever o funcionamento da ditadura instaurada em outubro de 1922 pelo fundador dos Fasci. Este capítulo se dedica à descrição desse sistema, que entrará em crise em 1936 e se radicalizará no sentido de um totalitarismo mais acentuado.
A diarquia
“Por vinte anos, o Rei e Mussolini se olharam e vigiaram como dois esgrimistas em guarda no tablado com ferro em punho.” Essa fórmula, extraída de uma nota de Dino Grandi em 1944, mostra bem as relações entre o soberano e o Duce durante o ventennio fascista. É incontestável que, de início, os dois tinham poucas razões para simpatizar um com o outro. Entre o herdeiro da Casa de Savoia e o filho do ferreiro e dono de café de Dovia, a distância era ainda maior que entre o marechal Hindenburg e Hitler. De um lado, o filho do povo, curioso mas autodidata, extrovertido e narcisista, ator, saltimbanco, histrião em perpétua representação; do outro, o tímido, reservado e complexado “reizinho” – desde sua acessão ao trono sua pequena altura lhe valera o título de piccolo re, e Vittorio Emanuele sofria com isso – que é também um homem culto, fala fluentemente inglês e francês, é amante de numismática e história, grande viajante e conhecedor do mundo.
Dos dois “esgrimistas,” o mais dissimulado é o herdeiro dos Savoia-Carignanos. Em 1922, ele teve a humilhação de atravessar o “passo de Caudium” do fascismo para salvar sua coroa, e jamais perdoou isso a Mussolini. Assim, tem oculto um golpe secreto de florete que pode aplicar ao menor sinal de fraqueza de seu parceiro: é o que fará sem remorsos em julho de 1943. Até lá, exerce escrupulosamente o pouco poder que lhe é concedido pelo estatuto constitucional de 1848 e pela prática governamental inaugurada pelo Duce, velando ciumentamente pelas aparências e pelo respeito a suas últimas prerrogativas.
Mussolini se expõe mais. Submete-se de boa vontade às regras formais das relações entre soberano e chefe de governo. Duas vezes por semana, impecavelmente vestido em trajes sóbrios, comparece ao Quirinal para apresentar ao rei um detalhado relatório da atividade governamental. Viu-se que, durante a negociação preliminar aos acordos de Latrão, ele informara Vittorio Emanuele sobre o estado das discussões com o Papado quase que de hora em hora. Por ocasião das revistas militares, aceita que o hino real seja tocado antes da Giovinezza e que a tropa só o saúde depois de ter saudado o monarca. Mas tem mais dificuldades que ele para refrear sua impaciência e dissimular seus sentimentos. Em caráter privado ou em seu pequeno círculo hierárquico, manifesta frequentemente seu mau humor em relação ao anfitrião do Quirinal, chamado de “vagão vazio,” “árvore morta,” “homenzinho amargo e desconfiado” e “galinha velha,” à qual se devem “arrancar as penas uma por uma para que não estrile.”
Logo, os dois se observam e desconfiam um do outro. Olhando um pouco mais de perto, porém, descobre-se que suas relações não são tão más quanto parecem, ao menos até a guerra da Etiópia. Há entre eles mais que diferenças de caráter e cultura. Vittorio Emanuele aprecia em Mussolini qualidades das quais ele mesmo não é desprovido: precisão, preocupação com detalhes, otimismo, sobriedade, uma memória a toda prova. Preza suas maneiras simples, seu desprendimento e, evidentemente, seu patriotismo, e admira seu talento como organizador e legislador. Como salienta Grandi, mesmo a desconfiança e o menosprezo pelas pessoas de que dão prova aproximam “esses dois solitários prisioneiros de sua solidão.”
Mussolini, quando não se abandona aos exageros de linguagem que Ciano tem prazer de relatar em seu Diário, manifesta forte e um pouco condescendente simpatia pelo soberano. “Admito,” confiará ele em maio de 1940 ao jornalista Nino d’Aroma, “que ele não é uma águia, mas é dotado de um realismo muito sólido e as raras opiniões que manifesta são todas concretas, práticas e sempre dirigidas a um objetivo preciso. (...) Mesmo que seja frequentemente mesquinho, com seus rancores antialemães e seu anticlericalismo de segunda, o homem tem duas qualidades importantes: um bom senso enraizado, jamais em falta, e sangue-frio.”
Até 1936, os atritos entre o Palazzo Venezia e o Quirinal foram relativamente benignos. O mais grave teve lugar em 1928, quando se decidiu, por via legislativa, que o Gran Consiglio podia intervir na sucessão tanto do Trono quanto do chefe do governo. No resto do tempo, os assaltos de esgrima se faziam a ponta de florete coberta: nem Vittorio Emanuele nem Mussolini buscavam iniciar uma confrontação cujo resultado parecia arriscado para ambos. O primeiro acabava sempre por aceitar as iniciativas do Duce, incluindo as leis raciais e a decisão de entrar na guerra em 1940, o segundo se atinha às regras não escritas do compromisso de 1922. A Carlo Silvestri, que em uma entrevista com Mussolini em 1943 perguntou se ele já pensara em se desembaraçar de Vittorio Emanuele, o Duce respondeu:
Creio ter sido sempre um fiel servidor do rei. (...) Diz-se que, depois da Marcha sobre Roma, eu poderia ter instaurado a república italiana. Não. A tentativa teria fracassado, comprometendo o futuro do movimento fascista. O povo não estava de modo algum preparado para um eventual governo republicano, e não se pode esquecer que a monarquia abrira completamente suas portas para o fascismo.
Visão realista das coisas. Não somente o povo não estava “preparado para um governo republicano” como também a monarquia gozava de considerável prestígio. Pretender derrubar uma instituição cuja legitimidade repousava sobre seu considerável papel na unidade e que ao mesmo tempo simbolizava – na pessoa do Rei, comandante das forças armadas – a vitória das armas italianas teria sido mais que arriscado, sobretudo em um momento no qual o regime ainda estava frágil. Mussolini teve a sabedoria de compreender esse fato e esperar que a situação evoluísse.
Foi depois da guerra da Etiópia que as relações entre Mussolini e o soberano começaram a se deteriorar. “Fui eu quem conquistou o Império,” declarou aquele mais tarde a Silvestri. “Chega de Vittorio Emanuele! Ele não serve para nada!” Até aqui, não havia divergência política maior entre os dois homens. A ditadura, enquanto servisse aos interesses da monarquia preservando a Coroa de um eventual perigo revolucionário, nada tinha que pudesse desagradar fundamentalmente ao rei. Este, aliás, não era hostil à política externa fascista. Ele sem dúvida a teria preferido menos aventureira, mas, até a campanha da Etiópia, esteve razoavelmente acomodado. A agressão contra o Negus e a aproximação com a Alemanha resultante da reação dos franco-britânicos a essa violação da lei internacional o levaram a ver a diplomacia dos Fasci com um olho mais crítico e a dar notícia do fato.
Para Federzoni, maio de 1936 foi quando o Duce “decretou, em seu foro íntimo, o fim da monarquia.” Mas foi principalmente a visita de Hitler e dos chefes názis a Roma, em 1938, que o levou a pensar seriamente não em derrubar Vittorio Emanuele – “ainda aguardo porque o rei tem setenta anos e tenho esperanças de que a natureza me ajudará,” disse a Ciano em 17 de julho – mas em preparar a lenta supressão da “diarquia” (termo empregado por Mussolini para designar, não sem escárnio, um sistema no qual o poder estava de fato concentrado em suas mãos). Com a morte de Hindenburg, em agosto de 1934, o chanceler alemão Hitler se tornara também presidente do Reich. Oficialmente, portanto, ele era “chefe de estado,” e com esse título foi recebido por Vittorio Emanuele e hospedado no Quirinal. Durante as cerimônias às quais o soberano compareceu, Mussolini tinha de ficar em segundo plano, o que o deixava profundamente mortificado. A humilhação era ainda maior porque os dirigentes názis nada fizeram para ajudá-lo a digerir a afronta. Eles o fizeram compreender claramente que suas relações com o Rei eram indignas de um grande dirigente fascista e pouco compatíveis – por pouco seguras politicamente – com a amizade do Führer.
É óbvio que a ideia de pôr fim à instituição monárquica não foi estranha à criação, pelo voto “espontâneo” do Senado, em 1938, do posto de primeiro Marechal do Império, conferido tanto ao Rei quanto a Mussolini. Em capítulo posterior, retornaremos ao significado dessa iniciativa, na realidade inspirada pela cúpula da hierarquia fascista. Por ora, guardemos somente que ela se inseria em uma estratégia que, na perspectiva da dupla sucessão, visava a concentrar nas mãos de um único homem os poderes – reais e simbólicos – divididos entre os dois protagonistas da “diarquia,” e que ela provocou entre Mussolini e o Rei uma crise breve porém intensa, que se transformou em vantagem para o segundo. Apesar disso, o processo de erradicação da monarquia não foi acelerado. Em 1938, as preocupações internacionais tinham precedência sobre os problemas internos. Na perspectiva de uma guerra cada vez mais provável, Mussolini não podia renunciar à parcela da opinião pública ligada à instituição real nem afrontar os chefes militares – notadamente os do exército e da marinha – cuja fidelidade à Coroa estava quase intacta. Assim, decidiu postergar a operação, primeiro até o fim da guerra da Espanha, depois, uma vez resolvida a prova de força contra as democracias, até a vitória do Eixo.
O delfim
De todos os membros do entourage do Duce que desejavam o fim da monarquia, o mais interessado era seu genro. Depois de seu retorno da China, em 1933, Galeazzo Ciano conhecera uma ascensão fulgurante, ocupando sucessivamente os cargos de secretário de imprensa de Mussolini e de subsecretário e depois ministro da Imprensa e Propaganda, antes de assumir, em 1936, a direção da diplomacia italiana e entrar para o Gran Conselho. O “menino-prodígio do fascismo” – nas palavras de Edda – tinha apenas trinta anos e surgia como sucessor designado do ditador.
Mussolini não pudera suportar por muito tempo a ausência de sua filha mais velha. No anúncio de sua segunda gravidez – um primeiro filho nascera em setembro de 1932 – decidiu trazer seu diplomata a Roma o mais rapidamente possível, “aguardando outra destinação.” “Depois de mais de trinta meses na China,” disse em telegrama a Edda, “um pouco de repouso fará bem a você. Estou satisfeito de que o exterior tenha feito subir a temperatura de seu fascismo. É a única coisa poderosa e original deste século.”
Nem Edda nem seu marido pareciam muito ansiosos para retornar à casa paterna. Em Shanghai, viveram uma longa “lua de mel” seguida da fase de adoração beatífica que acompanha a vinda do primeiro filho. No fim da estada, contudo, começaram a surgir as primeiras nuvens. Sob uma aparência branda, Galeazzo escondia um temperamento autoritário e violento que se exprimia em sua vida conjugal por bruscos acessos de cólera pontuados por gestos brutais, ao passo que a “cavallina matta,” que sempre manifestara caráter rebelde, comportava-se, ao menos no início da união, como esposa submissa e dócil.
Entre os motivos de desavença estava a paixão pelo jogo que desde essa época dominava a filha mais velha do Duce. Para passar o tempo, Edda começara a jogar bridge e pôquer com as esposas dos diplomatas estrangeiros e as damas da alta sociedade chinesa. Em seguida, pôs-se a frequentar os panos verdes durante dias e noites inteiras, apostando e perdendo grandes somas e contraindo dívidas que era necessário honrar. No começo, Ciano resmungava gentilmente e pagava, mais tarde as discussões se tornaram tempestuosas.
O retorno à Itália em nada mudou a situação, pelo contrário. Edda continuou a jogar e perder grandes somas que seus meios pessoais não permitiam saldar. Para evitar cenas domésticas, passou a apelar a Osvaldo Sebastiani, secretário particular de Mussolini, que se tornaria seu confidente e provedor de fundos. Poucas semanas após seu retorno de Shanghai, ela lhe escreveu do hotel Quisinana de Capri:
Prezado Sebastiani, se possível, gostaria que, sem o conhecimento de meu pai ou meu marido, você me enviasse a soma de 15 mil liras. Tive algumas despesas extraordinárias e preciso de um pouco de dinheiro para pagar a fatura do hotel.
Sebastiani atendeu ao pedido, depois, é claro, de citar o caso a Mussolini, que do mesmo modo aceitou pagar as dívidas posteriores da filha, diretamente ou pelo clássico expediente do Popolo d’Italia. Havia em sua atitude o desejo de recuperar, pelo viés dessa cumplicidade tácita, alguma coisa dessa filha que adorava e que estava agora sob uma autoridade que não a sua: um leve “troco” ao jovem aristocrata cheio de si que tinha por genro e pelo qual nutria sentimentos ambíguos. Pois Mussolini sentia ao mesmo tempo ciúmes do afeto que Edda devotava ao marido e admiração pela seriedade com a qual este cumpria a tarefa que lhe fora confiada em seu retorno da China. Evidentemente, Galeazzo não possuía a seus olhos apenas qualidades. Era leviano, cheio de si e muito fanfarrão. Amava o ouropel, as paradas, os belos uniformes, as condecorações e os títulos, e não era nem um pouco um modelo de virtude. Bem verdade que nesse aspecto o Duce não ficava atrás de seu genro, com a diferença de que, às burguesas de meia-idade das quais gostava, o delfim preferia as jovens e belas aristocratas, rapidamente conquistadas, abandonadas e tratadas com a mesma delicadeza dedicada às damas que visitavam o Palazzo Venezia. Ele ficava mais aborrecido com os desvios extraconjugais de Edda e sua repercussão no país, pois se tratava da imagem pública de seu eventual sucessor. Principalmente porque Mussolini apreciava o dinamismo de Galeazzo e era sensível ao ardor com que seu genro tentava se identificar com ele.
Acima de tudo, Ciano possuía aos olhos do ditador uma qualidade da qual nenhum outro colaborador podia se vangloriar depois da morte de Arnaldo. Ele era da família. Não que Mussolini fosse particularmente adepto do nepotismo, mas, na escolha dos homens destinados aos cargos mais sensíveis, preferia fidelidade a competência. Como bom patriarca romagnol, achava que parentesco era penhor de fidelidade. Foi por isso que, na direção do Popolo d’Italia, cujo papel político julgava essencial (tanto na Itália quanto no exterior o diário milanês era considerado reflexo de sua pessoa), pusera o irmão e, após sua morte, o filho de Arnaldo, Vito, nem um nem outro parecendo destinados a se tornarem grandes homens de imprensa. Deu-se o mesmo em relação a Ciano. Seu status de genro lhe serviu de passaporte para queimar etapas no cursus honorum e alçar-se, em três anos, ao primeiro plano da nomenclatura fascista.
Após semanas de espera, temperadas pelas insistentes intervenções de Edda – “Faça o que quiser, envie-o para onde quiser, mas dê-lhe algum trabalho!” – Ciano foi nomeado secretário de imprensa do primeiro-ministro, com o posto de ministro plenipotenciário. Jornalista de vocação e profissão, Mussolini conhecia o peso da arma jornalística nas mãos de quem soubesse modelar o sentimento público. Passava boa parte de seu tempo a escrutinar a imprensa regional, nacional e estrangeira, não hesitando em usar a caneta e o telefone para felicitar ou repreender este ou aquele diretor ou simplesmente dar-lhe instruções. A tarefa sendo muito pesada para ser realizada cotidianamente e de maneira exaustiva, decidira, apenas alguns meses após a Marcha sobre Roma, fazer do gabinete de imprensa da presidência do conselho, organismo até então limitado às tarefas de informação e representação, o instrumento de uma política visando a controlar e manipular a imprensa, a agir de maneira a que cada jornal fosse – como estipulava uma circular de 1931 – “órgão de propaganda da italianidade e do regime,” a difundir entre as massas as palavras de ordem decididas pelo poder e a censurar toda informação suscetível de causar prejuízo à imagem positiva do fascismo e de seu Capo.
O primeiro secretário de imprensa de Mussolini fora Cesare Rossi, ex-redator do Popolo d’Italia e colaborador bastante próximo do Duce. Como seu papel durante o caso Matteotti o levara a pedir demissão e se expatriar na França, Rossi fora substituído pelo conde Capasso Torre di Pastene. Torre não era um fascista de primeira hora, mas tinha o mérito de, em plena crise do regime, ter dirigido o extremamente ortodoxo Corriere italiano. Ele permaneceu no cargo até 1928, e foi durante seu reinado que o gabinete de imprensa da Presidência assumiu sua feição definitiva, depois de ter absorvido seu correspondente do ministério do Exterior. Mussolini, não o considerando dócil o bastante, substituiu-o por Lando Ferretti e, três anos mais tarde, por Gaetano Polverelli, ambos fascistas convictos que conseguiram fazer do serviço a cabine de comando da propaganda fascista.
Quando confiou ao genro a direção de seu gabinete de imprensa, Mussolini provavelmente já pretendia transformá-lo em organismo autônomo, no modelo do ministério da propaganda chefiado por Goebbels desde o início do regime názi. Fora levado a essa transformação por diversos artigos publicados em 1933 na revista de Bottai, Critica fascista, da qual era um dos leitores mais assíduos, e é verossímil que a escolha de Ciano estivesse ligada a esse projeto. Em 10 de setembro de 1934, o Ufficio Stampa tornava-se oficialmente subsecretariado de Imprensa e Propaganda e, no ano seguinte, era transformado no ministério que, em 1937, daria origem ao famoso ministério da Cultura Popular, o “Minculpop.”
Subsecretário ou ministro, Ciano estava entre os raros colaboradores do Duce que tinham com ele contato permanente. Todas as manhãs, a partir das 9 horas, Mussolini recebia primeiro os subsecretários do Interior e do Exterior, o secretário do partido, os comandantes dos carabinieri e da segurança pública e o responsável pela imprensa e propaganda, ao qual dava instruções aos jornais e rádios em função do que ficara sabendo de seus interlocutores sobre o “pulso da nação” e os problemas internacionais. Quando entrava na Sala do Mappamondo, no entanto, Ciano já estivera horas sob rajadas de telefonemas, pois Mussolini se levantava de madrugada para ler a imprensa do dia e reagia à menor notícia desagradável.
Você sabe – confidenciou Ciano a D’Aroma – com esse homem não se pode dormir nem comer. Ele lê tudo. Sabe tudo. Mal você entra em sua sala, ele o metralha com perguntas inesperadas. O embaixador mais minucioso, mais absurdo, vira um paraíso, um anjo, comparado a ele. Ele estraga irremediavelmente o programa de todas as nossas noites. Apesar dos elogios que faz, mesmo Edda está exausta e concorda comigo.
A tal ponto que, em duas ocasiões, o jovem subsecretário de estado pediu a sua esposa para intervir junto ao Duce a fim de que lhe fosse confiado um posto diplomático fora da Itália. Mussolini recusou. No cargo que ocupava com certa competência, e logo com real interesse pelo que lhe fora ordenado fazer, Ciano se tornara indispensável. Mussolini não desejava vê-lo afastar-se nem, principalmente, estar de novo e por longo tempo separado da filha. Galeazzo, que devia tudo a seu sogro e, em determinada época, nutria por ele uma admiração sem limites, sujeitou-se de boa vontade. Mandou preparar, para as noites de vigília – e, diziam, também para receber discretamente suas amantes – um quarto no Palazzo Chigi, bem como uma linha telefônica ligando-o diretamente ao Duce. Pouco a pouco, criou-se entre os dois uma relação de confiança que, bem ou mal, durou até a guerra. Ciano tinha a habilidade de não abusar da situação. Evitava demonstrar excessiva familiaridade com Mussolini, com o qual empregava Voi, ao passo que este o tuteava e chamava pelo prenome. Nas audiências, comportava-se como os outros hierarcas, permanecendo em pé diante da mesa de trabalho do Duce, tendo o cuidado de não interrompê-lo e respondendo a suas perguntas tão sucintamente quanto possível. Mussolini apreciava essa reserva, que contrastava com o comportamento social de seu genro. Não que Galeazzo, de temperamento extrovertido e exuberante, fosse propriamente um dissimulado. Simplesmente, a forte personalidade do pai de Edda o impressionava e ele levou bastante tempo para sentir-se à vontade diante dele.
O que não o impedia de aproveitar a influência que começava a ter junto ao ditador. Em setembro de 1934, o novo subsecretário se instalou no confortável Palazzo Balestra, via Veneto, no coração do bairro das embaixadas, onde ficou pouco menos de um ano. Em agosto de 1935, Ciano se engajou na força aérea para participar da campanha da Abissínia e teve de ceder seu lugar a Dino Alfieri. De qualquer modo, essa breve experiência ministerial, aliada aos doze meses de secretário de imprensa da presidência, permitiu estabelecer sua influência e formar uma clientela que, em breve, constituiria o núcleo do “clã Ciano.”
Para esse fim, utilizava não somente o prestígio conferido por seu laço familiar com o Duce e pelo fato de conversar com ele todas as manhãs, mas também, principalmente, a generosidade que sua função permitia. Ao assumir o Gabinete de Imprensa, encontrara o caixa bem-fornido, na previsão dos subsídios a diretores de jornal e redatores cujo zelo agradaria ao poder. Ciano se serviu amplamente – e sem dificuldade obteve o aumento – desses fundos secretos para comprar os serviços de jornalistas, artistas, escritores, intelectuais e mesmo políticos, italianos e estrangeiros, que se distinguiram por sua simpatia pelo fascismo. Chegou ao ponto de pagar um pequeno salário – mil liras por mês – a vários jornalistas debutantes cuja única obrigação era redigir, de tempos em tempos, um artigo que os funcionários do Pallazo Balestra arquivavam, antes de enviá-lo a algum tabloide provinciano com dificuldades para equilibrar o orçamento e pagar seus redatores.
Essa atividade era amplamente consagrada à imagem do Duce e é claro que, em seus dois anos à frente dos serviços de propaganda, Ciano contribuiu mais que qualquer outro para fazer nascer nas massas o culto da personalidade mussoliniana. Mas ele ao mesmo tempo soube tirar grande proveito pessoal de sua função, primeiro porque se tratava de um cargo-chave cuja ocupação podia apenas acelerar sua carreira, e também porque o investimento do jovem ministro – em clientelismo financiado pelos fundos públicos – devia concorrer para sua ascensão posterior.
Ciano não teve de esperar muito para pôr seus beneficiários à prova e constatar que a generosidade não fora inútil. Em agosto de 1935, embarcou para a África Oriental, acompanhado até Nápoles por uma Edda patética e teatral na hora do adeus. Galeazzo não era covarde, mas deve ter se violentado para abandonar o palácio ministerial na via Veneto. Podia ele, contudo, furtar-se a seu dever quando a quase totalidade da hierarquia estava de partida para a Etiópia? Ainda mais ele, o genro do Capo, o filho do herói dos ataques suicidas de surpresa contra a esquadra austro-húngara. Ele, que não cessava de expiar a falta de ter nascido muito tarde para conhecer a prova de fogo. Eis que lhe era dada a ocasião de se redimir de um único golpe desse pecado de juventude.
Mais uma vez, o preço a pagar foi desproporcional. Ciano chegou a Asmara no fim de agosto de 1935, para assumir o comando da 15ª Esquadrilha de Bombardeio, batizada La Disperata em referência a um antigo esquadrão fascista de Florença. As operações contra o famélico exército do Negus tendo começado no início de outubro, foi ao genro do Duce e a seu companheiro de equipe, Alessandro Pavolini, futuro secretário-geral do PNF à época da República de Salò, que coube a “honra” de lançar a primeira bomba sobre a Abissínia. Voltaremos em capítulo posterior a essa guerra desigual e exterminadora. Guardemos por ora que, como para os outros hierarcas e os dois Mussolinis engajados, Vittorio e Bruno, a campanha da Etiópia foi para Galeazzo uma espécie de jogo: perigoso, é verdade (a Disperata teve uma dezena de mortos), mas em nada similar à grande matança de 1915-1918.
Com 132 horas de voo, 32 ações de guerra, das quais 19 de bombardeio, e ações de metralhamento das colunas abissínias em fuga, Ciano não comprometeu o passado da família. Tais missões lhe valeram duas medalhas de prata, o grande colar da Ordem Colonial da Estrela de Itália e a nomeação para o cargo de cônsul (coronel) da Milícia, “por méritos excepcionais.” Mas, sobretudo, elas foram valorizadas por uma imprensa que não esquecia os serviços prestados pelo responsável pela propaganda fascista e praticava desmesuradamente a ênfase apologética. A ponto de, consciente do ridículo da situação e temendo que o Duce se ofendesse com esse excesso de honrarias, Ciano ter pedido a seu sucessor, Dino Alfieri, que instruísse os jornalistas amigos a moderarem seus ditirambos.
No fim de 1935, o genro do Duce obteve uma licença excepcional, oficialmente para uma cirurgia no nariz e de fato porque desejava passar o Natal em família e “tirar satisfações” com Edda, cujas aventuras extraconjugais alimentavam os rumores mais escabrosos. Foi nessa estada em Roma que Ciano soube de sua nomeação para o Gran Consiglio, distinção que fazia desse jovem diplomata de trinta e três anos uma das principais personalidades do regime. Seis semanas mais tarde, estava de retorno à Etiópia, a tempo de colher ainda um pouco de glória nessa guerra que inicialmente julgara inútil e perigosa, mas a cujo resultado vitorioso não podia permanecer indiferente. No fim de abril, quando as tropas de Badoglio ainda se achavam a algumas dezenas de quilômetros da capital abissínia, sobrevoou o aeroporto de Addis Abeba, suportando o fogo das baterias e metralhadoras etíopes antes de retomar altitude e jogar sobre a praça principal da cidade um estandarte com as insígnias de sua esquadrilha. Gesto insensato, destinado a acertar de uma vez por todas as contas com seu legendário pai e se pavonear mais tarde nos salões da aristocracia romana. De Asmara, onde recebeu um telegrama admirado de seu sogro – “Estou orgulhoso de seu voo sobre Addis Abeba” – Ciano partiu no fim de maio para a Itália. Em 9 de junho, um mês após a proclamação do Império, soube que Mussolini decidira nomeá-lo ministro do Exterior.
Certamente não foram os sentimentos fascistas de Galeazzo que predispuseram o Duce a torná-lo chefe da diplomacia italiana, equiparado aos “grandes” do regime e, um pouco mais tarde, seu provável sucessor. Ao conhecer Edda, Ciano era um pouco de tudo, menos fascista, e nunca seria mais que um fascista de fachada, de bela aparência, proclamando sua fidelidade ao regime e a seu chefe, mas nutrindo certo desprezo pela velha-guarda esquadrista e sua ideologia pseudorrevolucionária. Sua juventude se passara sem que ele tomasse parte nas lutas políticas do pós-guerra: tinha dezesseis anos na criação dos Fasci di combattimento e dezenove na Marcha sobre Roma. Com essa idade, muitos moços da pequena e média burguesia se engajaram nas fileiras de esquadristas, nem que fosse apenas para imitar a epopeia guerreira de seus irmãos mais velhos. Mas Constanzo tinha outras ambições para seu filho. Ele o incitou firmemente a não se ocupar de política e o encaminhou ainda cedo para a carreira diplomática, na qual Galeazzo conviveu com um meio em que os camisas-negras quebradores de cabeças passavam por espantalhos. Nesse contato, adquiriu hábitos sociais, reflexos, ideias que se opunham ao populismo da hierarquia partidária e ao espírito guerreiro que continuava a animar os militantes do primeiro fascismo, homens da geração de seu pai ou pouco mais jovens, que haviam sido intervencionistas em 1914-1915; combatentes valorosos, por vezes soldados de elite, citados e condecorados durante os três anos seguintes; depois pequenos chefes conduzindo seus esquadrões terroristas no assalto aos “inimigos da pátria.” Além disso, ainda que sua própria nobreza fosse recente, para ela tendiam suas inclinações fortemente conservadoras. Depois de sua designação como chefe da diplomacia italiana, que desagradou muito, imagina-se, os fascistas de primeira hora, Ciano se tornou uma espécie de coqueluche da aristocracia romana, que via nele um intercessor privilegiado nas relações ambíguas que ela mantinha com o poder. Ele se deixou prender na armadilha de uma adulação que satisfazia seu ego e seu esnobismo, mas que não tardou a isolá-lo. Detestado pela velha-guarda fascista e, no fundo, desprezado por toda uma parcela do establishment, ele só tinha “amigos” (falava-se, por brincadeira, do CAC e do CADAC, o “clube dos amigos de Ciano” e o “clube dos amigos dos amigos de Ciano”) no pequeno mundo de seus beneficiários e cortesãos, apressados em vê-lo tomar no Palazzo Venezia o lugar do Duce decadente e solitário.
Os hierarcas
Detentor de um poder quase ilimitado, Mussolini sabia que não teria podido conquistá-lo sem o apoio dos dirigentes esquadristas. Por duas vezes, em 1920-1922 e durante a crise que se seguiu ao assassínio de Matteotti, a sorte do fascismo fora decidida por sua intervenção direta. Ainda que muitos tenham ameaçado “fazer a revolução” sem ele, o Duce contraiu uma dívida de gratidão que era necessário pagar, assegurando a cada um, como prêmio por sua fidelidade e docilidade, um lugar de primeiro plano no sistema governamental e partidário controlado por ele. A aposta é clara: trata-se não somente de recompensar este ou aquele chefe de grupo tornado potentado local franqueando-lhe acesso à alta hierarquia fascista, mas também de prendê-lo ao regime e a seu chefe com força bastante para que, ao primeiro sinal de sedição – apoiada, por exemplo, no Rei e no exército – entre em jogo novamente o reflexo mobilizador que o conduziu ao poder e, mais tarde, salvou seu governo na crise do outono de 1924.
O bom funcionamento do sistema exige, de um lado, que o Duce disponha de total controle sobre o partido-exército, por intermédio de um secretário do PNF com suficiente autoridade sobre o movimento para neutralizar eventuais rebeliões dos “barões.” Do outro, que os postos de responsabilidade concedidos a esses últimos nas altas esferas do aparelho do estado não lhes ofereçam meios materiais ou simbólicos de fazer concorrência ao ditador e, por que não, tomar seu lugar. Daí as frequentes “trocas de guarda” a que Mussolini submeterá sua equipe governamental, bem como os postos-chave da direção do partido, da Milícia, da polícia política e da alta administração. Daí as bruscas mudanças de nomeação, dispensas ou quedas em desgraça mais ou menos justificadas, mais ou menos prolongadas que sofrerão, durante mais de vinte anos, homens saídos do primeiro fascismo, companheiros de primeira hora do fundador dos Fasci, tornados “hierarcas” de um regime que os cobre de títulos e honrarias, mas exige deles fidelidade absoluta, obediência cega e aceitação sem réplica das decisões do Duce concernentes a eles.
Quatro personalidades, muito diferentes umas das outras, ocupam com Ciano posição privilegiada: Italo Balbo, o condottiero sedutor, cuja imensa popularidade adquirida com os grandes voos transoceânicos fará suficiente sombra ao Duce para que ele o afaste do centro do poder; Giuseppe Bottai e Dino Grandi, os dois “intelectuais” do entourage mussoliniano que, com o genro do ditador, formarão o núcleo do “complô” de 25 de julho; e, em um regime completamente diferente, Achile Starace, o executor sem dramas de consciência, secretário do partido de 1931 a 1939 e grande organizador das “usanças fascistas.”
Entre os hierarcas fascistas, Balbo é o único temido por Mussolini, “o único” – murmura ele – “capaz de me matar.” Único que tem a audácia de, em público, chamar o senhor da nova Itália de “tu.” Nascido em 1896 perto de Ferrara, em família pequeno-burguesa, Italo Balbo tem um caráter rebelde como o de Mussolini e, também como ele, não seguiu um curso universitário regular. Nutrido por leituras mazzinianas, pertence a essa minoria de jovens republicanos ativistas que, de uma geração a outra, militaram nas fileiras dos Carbonari e depois nos grupos garibaldinos, antes de se engajar, em 1914-1915, na luta intervencionista. Balbo pertence à geração da guerra. Tem pouco mais de dezoito anos quando Mussolini lança seu panfleto antineutralista e, como acabara de se iniciar no jornalismo político, oferece seus serviços ao diretor do Popolo d’Italia ainda no começo da campanha. É um jovem magro, de sorriso insolente, cabelos compridos e barbicha arrogante – seus camaradas o chamam de pizzo di ferro (cavanhaque de ferro), alcunha que o acompanhará para sempre – quem abre a porta da sala do diretor na via Paolo da Cannobio. Mas não terá tempo de aprender os rudimentos do ofício. Já no início da guerra, alista-se nos Caçadores Alpinos, antes de ingressar em uma unidade oriunda do corpo de elite dos arditi.
Percurso clássico e consequente de pequeno-burguês romântico, atraído pelo extremismo de esquerda, que encontra na guerra uma válvula de escape de seu apetite por aventuras heroicas. Diversas vezes citado e condecorado, promovido a oficial, é daqueles aos quais o prosaico retorno à vida civil traduz a humilhação da “vitória mutilada.” Daí, Balbo se lançará com paixão na aventura fascista. Retomando a atividade jornalística e seguindo um ciclo universitário em Florença que fará dele “doutor em ciências sociais,” une-se às fileiras de Mussolini animado, como tantos outros jovens ex-combatentes, por sentimentos diversos: patriotismo ciumento, desprezo pelos “politiqueiros” e pelos compromissos dos quais se nutre a velha classe dirigente, ódio aos socialistas “inimigos da pátria” e aspiração a uma nova ordem que privilegiará a geração das trincheiras. Quando, no outono de 1920, começa a batalha entre os socialistas e os grupos armados financiados pelos proprietários de terras, ele é, junto com Farinacci, o principal representante do fascismo agrícola e um dos mais violentos entre os Ras esquadristas da planície do Po. De Ferrara, sua base operacional, onde reina uma municipalidade socialista em breve reduzida à defensiva, ele lança sobre os campos vizinhos seus esquadrões compostos dos piores elementos do lugar: ex-condenados e marginais de toda espécie, em busca de reabilitação pela violência “patriótica” ou simplesmente de um meio de subsistência, mas também jovens burgueses desocupados, frequentadores de um café da cidade onde se degusta a bebida da moda, o sherry brandy, cujo nome, deformado pelo dialeto local para celibano, servirá de rótulo à primeira squadra d’azione organizada por Balbo. Como prêmio por sua adesão à contrarrevolução, recebe dos grandes proprietários um salário mensal de 1.500 liras que permite a esse jovem diplomado universitário, com dificuldades para se estabelecer, viver em grande estilo e satisfazer seu pendor pela boa vida, pelas belas mulheres e pelos lazeres dispendiosos.
O papel desempenhado por Balbo na reconquista dos campos da Emilia Romagna pelos partidários da ordem – reconquista mortífera para os dois lados e pontuada por enfrentamentos nos quais os esquadristas nem sempre tiveram a última palavra, pelo menos não no início – fez do Ras de Ferrara personagem de primeiro plano na hierarquia do jovem partido fascista. Partidário da força, ele luta ao lado de Michele Bianchi e Farinacci pela conquista insurrecional do poder. Talvez a Marcha sobre Roma não tivesse ocorrido sem a determinação desses três, especialmente Balbo. Foi ele quem, em julho de 1922, enquanto Mussolini negociava sua lenta entrada em um segundo governo Facta, tornou esse acordo impossível ao devastar a Romagna com fogo e sangue. Foi igualmente quem, depois de preparar minuciosamente o cenário militar que levaria à capitulação do Rei, impediu dois dos quadrúnviros, De Bono e De Vecchi, de cederem às pressões dos partidários do acordo. Dois anos mais tarde, foi mais uma vez Balbo quem desempenhou o papel decisivo no “pronunciamento dos cônsules,” a invasão dos principais dirigentes esquadristas no gabinete presidencial do Palazzo Chigi, em 31 de dezembro de 1924, e o ultimato a Mussolini para que proclamasse a ditadura.
De todas as dívidas de Mussolini com os hierarcas fascistas, é Italo Balbo quem detém as promissórias mais altas. O Ras de Ferrara tem perfeita consciência disso e utiliza essa primazia com ainda maior desenvoltura porque lhe permite satisfazer seu gosto pelo vedetismo. Pois não é ele, aos olhos dos dirigentes e militantes do PNF e também para a massa de simpatizantes do regime, o fascista por excelência, aquele que, tanto antes quanto depois da tomada do poder, fez entrar em sua prática cotidiana as palavras de ordem “vivere pericolosamente”? Não é ele, de todos os hierarcas, o que publicamente usa “tu” com o Duce, chama-o de “presidente” e não nutre em sua presença nenhum complexo de inferioridade? O fato de ter se aburguesado como eles, casado com uma condessa e manter uma corte principesca nada retira de seu carisma. Balbo é um condottiero da Renascença. Tem deles a magnificência, a arrogância querelante, a generosidade seletiva, a crueldade vingativa em face dos que o desrespeitam. Seu comportamento oscila entre as maneiras de um príncipe e as de um mercenário. Ama o vinho, as mulheres, as piadas de caserna, os contatos viris, as “anedotas” – quando têm por objeto seus rivais no seio do Gran Conselho e são contadas no dialeto de Ferrara. Mas é rigoroso e intransigente na condução dos negócios públicos e sabe tirar partido do imenso capital de popularidade que lhe valeram, na Itália e fora dela, os quatro grandes cruzeiros aéreos transoceânicos que ele mesmo coordenou, o mais espetacular sendo o que termina, em julho de 1933, com o sobrevoo de Chicago e de Nova York pelos vinte e quatro hidroaviões Savoia Marchetti conduzidos pelo jovem ministro italiano da Aviação.
Após ter ocupado os cargos de comandante da Milícia e subsecretário da economia nacional, Balbo recebeu a missão de dotar a Itália de uma força aérea eficiente, primeiro como subsecretário, em 1926, e como ministro cinco anos mais tarde. Tarefa difícil para um homem cuja experiência militar é a das trincheiras e que deve enfrentar a concorrência enciumada de seus colegas do exército e da marinha, mas à qual o antigo Ras de Ferrara consagrará toda sua energia, tornando dura a vida dos funcionários da administração central, submetendo as tripulações a um treinamento severo, estimulando a atividade da aviação civil e da indústria aeronáutica e multiplicando as iniciativas que visavam a desenvolver nos italianos o gosto pela aviação. Para isso, não hesita em dar o exemplo, em começar por si mesmo. Aprende a pilotar e não tarda, como escreve um de seus biógrafos, a dirigir a força aérea “da cabine de piloto, e não de seu gabinete.”
No longo prazo, isso não pode deixar de incomodar Mussolini seriamente. Ele tem por Balbo simpatia e estima. Sabe o que lhe deve, mas ao mesmo tempo inveja esse homem mais jovem, mais sedutor e, tudo somado, mais conforme ao modelo de “homem fascista.” Sabe-se de que importância se revestia a seus olhos a simbologia aérea. Mesmo que tenha aprendido a pilotar e não perca ocasião de se fazer fotografar em uniforme de voo, Mussolini nada tem de herói do céu. O imenso prestígio internacional que Balbo ganhou com seus raides transoceânicos, a acolhida triunfal que o povo romano lhe reservou em seu retorno da América – em 23 de agosto de 1933, ele desfilou à frente de suas tripulações sob os arcos de Tito e Constantino, recebendo o bastão de marechal do ar com os cumprimentos e um abraço do Duce – e sua popularidade junto ao público da península irritam o chefe do governo fascista. Quando Starace introduz no partido uma verdadeira deificação do Duce e Ciano entra em cena, não há lugar para dois papéis principais nem para dois candidatos ao título de sucessor designado ou presumido do chefe supremo. E o fato de Balbo nada fazer para amenizar seus temores torna Mussolini ainda menos disposto a tolerar essa dupla concorrência. Ele se comporta como um igual do ditador. Multiplica os sinais de independência e não tenta calar os que veem nele um delfim pronto a substituir o fundador dos Fasci. Cerca-se, como fará Ciano, de uma corte de beneficiários e pretorianos. Empenha-se em forjar uma dupla imagem de si mesmo que coincide com a identidade ambivalente do fascismo e de seu chefe: de um lado, o guerreiro heroico sempre a postos; do outro, o administrador competente e eficaz. Em resumo, no momento em que alguns creem discernir em Mussolini os primeiros sinais de envelhecimento, Balbo se apresenta em silêncio (ou murmurando para os íntimos) como candidato natural à sucessão.
Portanto, menos de dois meses após tê-lo feito marechal do ar, o Duce decide brutalmente – sem outro motivo confesso que o de fazer uma “troca de guarda” – destituir o antigo Ras de Ferrara. Balbo não é, propriamente falando, jogado às feras, mas, em 16 de outubro de 1933, Mussolini comunica a ele sua decisão de reagrupar sob sua própria direção os ministérios da Guerra, da Marinha e da Aviação e nomeá-lo governador da Líbia, em substituição ao marechal Badoglio:
Neste momento, desejo registrar minha satisfação e aprovação pela obra que você realizou durante os anos nos quais, pela ação direta e pelo exemplo, v. deu à Itália essa força armada do Ar indispensável à sua defesa e à sua capacidade ofensiva.
Balbo acusa o golpe. O governo da Líbia não é um cargo destituído de importância ou prestígio, mas tomaram seu brinquedo e retiraram de sob seus pés o estrado que, aos olhos dos italianos, elevava-o quase ao nível de Mussolini. Em caráter privado, manifesta sua amargura dizendo a De Bono que fora incontestavelmente “despojado,” que lhe “puxaram o tapete,” e a sua mulher, Emanuela, que estava “ainda mais desgostoso que humilhado.” Mas tem o cuidado, principalmente porque ainda não assumiu o cargo, de não tornar públicos seu desapontamento e sua cólera. Há nos arquivos da secretaria particular do Duce um documento curioso, revelador da natureza das relações – marcadas pela desconfiança e pela astúcia – entre os dois dirigentes fascistas e, mais amplamente, da atmosfera de suspeita reinante no círculo do poder. Trata-se de uma das numerosas escutas telefônicas cuja transcrição era regularmente fornecida ao chefe do governo e que reproduz uma comunicação de 5 de novembro entre Balbo e seu homem de confiança em Ferrara, o secretário federal da província, Renzo Chierici. Ambos sabem que estão sendo escutados e o que dizem, especialmente o que Balbo encarrega Chierici de difundir em Ferrara, visa a convencer Mussolini da fidelidade irretocável do ex-ministro da Aviação:
Balbo. Quero contar uma coisa, para que você não saiba esta noite pela Agência Stefani. E pode contar para minha irmã Maria: não sou mais ministro da Aviação.
Chierici. Mas?
B. Como assim, mas...?
C. Mas você é o quê?
B. Sou governador da Líbia. A notícia será oficial amanhã.
C. Olhe, Italo, se isso o faz feliz, fico contente por você. De qualquer modo, vou deixar a prefeitura e partir com você.
B. Eu desconfiava.
C. Sério, Italo. Pela outra coisa eu não briguei, mas nisso eu insisto.
B. Escute, Enzo, você tem alguma reunião amanhã?
C. Posso pegar o trem amanhã.
B. Pegue o trem. Assim nós poderemos conversar. Outra coisa: eu não poderia ter sido mais bem-tratado.
C. Imagino.
B. Porque, a maneira como ele falou... Ele disse coisas tão amáveis que eu fiquei realmente satisfeito. Você sabe a distinção que ele me deu... o Arco de Tito.
C. Sempre achei que era uma homenagem pela qual você devia passar.
B. Eu não tenho do que reclamar. Naturalmente, deixo aqui, mortificado, minha casa, minha criação. Mas no fundo parto tranquilo e alegre. Não sou desses que batem a porta, ainda mais que estou contente, apesar de um sofrimento sentimental. (...) Mas, bom, eis por que telefonei. Pode acontecer de alguns dos nossos amigos, entre os mais íntimos, alguém possa ver a coisa de maneira menos simpática. Então diga a todos que escrevi, conversei, telefonei etc., que estou satisfeito, estou contente e não tenho queixa de nada. Não quero que eles sejam mais realistas que o rei. (...)
Quando a notícia oficial for transmitida pela Stefani, faça o seguinte: anuncie a coisa aos secretários federais, explicando que eu não poderia ser ministro a vida inteira, que tive satisfações, que meu cargo foi assumido pelo Capo em pessoa, e por isso nada tenho a dizer. (...)
Faça todo mundo entender, com palavras claras. Italo está satisfeito. Ele devia mesmo partir. O momento escolhido foi o melhor possível. O Capo foi pródigo em palavras comoventes. O próprio Capo assume o cargo de ministro e para Italo isso é motivo de orgulho. Além disso, ele obtém uma bela posição no exterior. Em todo caso é uma grande colônia etc. Entendeu?
C. Tudo bem. Estarei aí amanhã à noite.
Entre as razões de Mussolini para afastar Balbo do centro de comando, estava seu projeto de profunda reforma das forças militares, que teria feito dele o chefe do estado-maior geral das forças armadas e de certa forma oficializado sua posição de número dois do regime. E foi exatamente porque temia se ver suplantado por seu impetuoso ministro da Aviação que o Duce decidiu pôr um termo em suas funções e assumir ele mesmo a responsabilidade política e administrativa das três armas. Quanto a Balbo, foi “com a morte na alma” e com raiva que iniciou, em janeiro de 1934, seu exílio dourado em Tripoli. “Mussolini me mandou aqui para morrer de tédio,” confidenciará ele a seus seguidores. Assim, para aliviar o tédio, ele ao mesmo tempo se afoga na ação – realizando, durante os seis anos de seu “proconsulado,” uma obra considerável em matéria de colonização, urbanismo e equipamento – e se distrai com os prazeres refinados fornecidos pela “Versalhes do deserto” e pela corte das Mil e uma noites que servem de moldura a seu exílio africano.
Afastado do poder, o ex-ministro da Aviação não tarda a se afastar do regime, ao mesmo tempo que se aproxima da monarquia. Quando se estabelece o alinhamento com Hitler, ele não mede palavras para criticar tanto a política externa do Duce quanto as medidas raciais adotadas pelo Gran Consiglio, opondo-se a Mussolini e resistindo, tanto quanto pode, à aplicação das medidas antissemitas em Ferrara. Já bastante ligado a Bottai, na véspera da guerra aproxima-se de Grandi, também resolutamente antialemão, ao qual escreve: “Assobie, que eu chego na hora.” Imagina-se facilmente de que lado estaria em 25 de julho de 1943 se o destino não tivesse decidido para ele outra saída de cena do fascismo. Em 28 de junho de 1940, seu avião foi abatido por engano nos céus de Tobruk, pela artilharia antiaérea italiana.
Ambos nascidos em 1895, Giuseppe Bottai e Dino Grandi pertencem, como Balbo, à pequena burguesia urbana e seguiram, até a Marcha sobre Roma, trajetórias paralelas, próximas à do futuro Ras de Ferrara. O primeiro é filho de um comerciante de vinho romano. Depois dos estudos secundários no liceu Tasso, onde manifesta gosto pronunciado pela cultura clássica e pelas ideias mazzinianas, faz um curso de direito que precisa interromper ao se alistar voluntariamente – ainda não tem vinte anos – na infantaria. Após pertencer a um pelotão da escola de oficiais e combater no Carso e no monte Grappa, ingressa, em 1917, nos batalhões de assalto. Ferido, condecorado, ele também faz parte dessa geração que, depois da lama das trincheiras e da exaltação do combate, retomou sem paixão a vida das salas de aula. Na universidade romana de Sapienza, Bottai conclui seu curso de estudos jurídicos, ao mesmo tempo que debuta no jornalismo. Como muitos outros, é por esse viés que ingressa no domínio mussoliniano. Desde seu primeiro encontro com o diretor do Popolo d’Italia, fica fascinado pela personalidade do ex-dirigente socialista, e é com entusiasmo que aceita colaborar em seu jornal. Em março de 1919, ele é, com Rocca e Mario Carli, um dos fundadores do Fascio de Roma, e o ano seguinte o encontrará à frente da primeira squadra d’azione do Lazio.
Antigo combatente de tropas de assalto, mas também homem da cultura e da pena, Bottai é como que o traço de união entre duas correntes que atravessam o jovem movimento fascista: o arditismo – ele preside a seção romana da associação dos arditi da Itália – e o futurismo. Durante os dois anos que precedem a chegada de Mussolini ao poder, ele está presente em todas as batalhas que opõem o esquadrismo romano às organizações políticas e sindicais da esquerda e, durante a Marcha sobre Roma, comanda a coluna que entrará na cidade pela porta de San Lorenzo. Mas é igualmente daqueles que, logo após a vitória do fascismo, defendem a “normalização,” o abandono dos métodos violentos e a criação de um estado ético, autoritário, sim, mas fundado em sólida base doutrinária.
É à formação desse corpo doutrinário que Bottai se dedica em Critica fascista, revista que funda em 1923 e que conhece certo sucesso no meio dirigente fascista. As teses que desenvolve se opõem às dos partidários do “banho de sangue revolucionário” (Farinacci), do corporativismo integral (Rossoni) ou do estado policial ultraconservador. Bottai surge, desde essa época, sob os traços de um fascista moderado, certamente grande admirador de Mussolini e fiel entre os fiéis, mas homem de diálogo e reflexão, aspirando à criação, sob a direção do partido único e de seu chefe, de um estado moderno, autoritário, dirigido sem fraqueza nem concessões por uma oligarquia militante e tecnocrática, mas aberto à crítica e à contribuição de todos.
Mussolini não gostava de Bottai. Apreciava sua inteligência, seu talento de organizador e seu amor pelo trabalho, mas desconfiava de seu intelectualismo e de sua tendência a querer submeter o regime a um exame de consciência permanente. Foi por isso que o antigo chefe do esquadrismo romano teve muito que enfrentar o mau humor do Duce e sofrer os efeitos de sua política sinuosa. Ainda assim, até a guerra ele conseguiu se manter na primeira linha da hierarquia, jogando tanto com sua própria ambivalência de fascista crítico e adorador do deus Mussolini quanto com a preocupação deste em manter o equilíbrio entre a intransigência totalitária de um Farinacci ou um Starace e a abertura encarnada pelo diretor de Critica fascista. Dessa forma, ele foi, entre todos os hierarcas fascistas, um dos que ocuparam quase que permanentemente posição de primeiro plano no aparelho do estado: subsecretário e depois ministro das Corporações, de 1926 a 1932; presidente do instituto nacional de previdência social, a partir de 1934; governador de Roma, em 1935-1936; primeiro governador civil de Addis Abeba depois da proclamação do Império; e, enfim, ministro da Educação Nacional, de 1936 a 1943.
É bem verdade que o olhar crítico que Bottai dirigia ao regime não pretendia, de modo algum, desestabilizá-lo. Antes procurava reforçá-lo, insuflando-lhe sangue novo, gerindo com prudência os espaços de liberdade intelectual que permitiam às novas gerações exprimir-se e inovar, e Mussolini não era de modo algum insensível a isso. Principalmente porque Bottai, à diferença de Balbo, não queria disputar o primeiro lugar no coração dos italianos e demonstrava, em matéria de ortodoxia ideológica e aplicação das instruções da cúpula, uma obediência sem falhas. Testemunha disso é o zelo com que fez aplicar, pela administração sobre a qual tinha responsabilidade, as diretivas raciais de 1938-1939, ainda que não apreciasse a aproximação com a Alemanha názi.
Dino Grandi também ocupa posição privilegiada na cúpula do poder. De todos os hierarcas fascistas, foi sem dúvida o mais inteligente, o mais brilhante, o que viu primeiro o impasse em que o fascismo deixava seu país. Mussolini não gostava dele, pelas mesmas razões que não gostava de Bottai: ele o considerava um intellettualissimo e dizia que era apenas “metade fascista” (fascista a metà), mas apreciava o senso de estado e o critério de julgamento desse “fiel desobediente,” assim como seu talento diplomático.
Nascido em 1895 e criado em Mordano, perto de Bologna, romagnol como Mussolini, ele também saiu da microburguesia rural: sua mãe era professora, como Rosa Maltoni, e seu pai cultivava uma pequena área de terra. Mas Lino Grandi frequentou o liceu. Sabe um pouco de latim e tem para seu filho ambições maiores que as do ferreiro de Dovia. Dino seguirá, portanto, a escolaridade clássica, antes de começar os estudos em direito que, mesmo interrompidos pela guerra, farão dele advogado. Em outubro de 1914, estudante em Imola e cronista eventual do Resto del Carlino, encontra aquele que se tornará o chefe do intervencionismo de esquerda. A partir desse momento, escreverá ele, “eu o segui.” Mussolini publicara no Avanti! seu famoso artigo “Da neutralidade absoluta à neutralidade ativa e operacional,” e o jovem Dino – cujos ideais políticos oscilam entre o mazzinismo e o nacionalismo de inspiração dannunziana – acolhe com entusiasmo a conversão do líder socialista. “É um gênio,” comenta, “um mágico ou um doido,” e escreve-lhe uma carta transbordante de ardor patriótico:
Permita a um jovem – um solito ignoto (desconhecido comum) não socialista – exclamar toda a sua admiração por sua obra de coragem e fé. Você terá de lutar contra uma burguesia incapaz de propor ou agir, plena só de retórica e indiferença, contra uma democracia ardilosa, cosmopolita e amante do chicote, contra a nova Igreja socialista, que professa o dogma da covardia e, enfim, contra a massa de imbecis e bestalhões que estarão com você ou contra você.
Mas você terá todos os jovens, os muito moços que, plenos de inquietude e desdém por essa Itália falida, preparam-se, mal despertam para a vida nacional, para o amargo abandono de suas esperanças. É em nome deles que você combate, em nome dessa nova geração de vinte anos que amanhã estará na primeira linha das trincheiras e que se une, com fé e orgulho, aos primeiros irmãos do Risorgimento. Essa batalha é sua e também a deles.
Desejo, portanto, que você seja o primeiro soldado dessa última guerra nacional. Seu, Dino Grandi
Mussolini responde com esta mensagem lapidar:
Egrégio amigo
Obrigado pela solidariedade.
Mas é preciso lutar e deixar-se lapidar. Se necessário.
Benito Mussolini
Alguns meses mais tarde, após ter provado do manganello socialista durante um encontro intervencionista em Massalombarda, Grandi é voluntário para o front. Alistado nos alpini, duas vezes medalha de prata, é mantido em serviço após o armistício de Villa Giusti e enviado à Istria para enfrentar uma eventual ofensiva iugoslava. Só será liberado em abril de 1920, muito tarde para participar do nascimento do movimento fascista, ao qual se une em setembro do mesmo ano, decidido a se estabelecer rapidamente em uma organização que vai de vento em popa e parece responder às aspirações de sua geração e sua classe. Concluindo seus estudos de direito, escala rapidamente os degraus esquadristas e se torna, em 1921, secretário regional dos Fasci da Romagna, funda o semanário L’Assalto e entra para o comitê central do PNF. Nessa época, Grandi é ainda um ativista convicto, o alter ego de Balbo, com o qual organiza os grupos armados do fascismo agrícola que semearão o terror em toda Emilia Romagna.
Eleito deputado em maio de 1921 – ainda não tem vinte e seis anos – Grandi não tarda a mudar seu comportamento. Inicialmente hostil ao pacto de pacificação com os socialistas, pleiteia agora a “normalização” e prefere, com Mussolini, um acerto com a classe política tradicional, o que permitiria ao chefe do movimento fascista tomar a frente de um governo de coalizão e chegar ao poder legalmente. No momento da Marcha sobre Roma, ele já é, no fundo, um fascista “moderado,” e assim permanecerá, o que o afastará durante algum tempo do centro do poder.
Mas não por muito tempo: na crise do assassinato de Matteotti, Grandi se mantém prudentemente afastado do espírito de revolta que no interior do partido ameaça a proeminência do Duce e manifesta com suficiente ênfase sua fidelidade ao chefe do governo – que lutava contra a dupla oposição dos “intransigentes” e dos “derrotistas” – para recair em sua graça, levando-o a lhe confiar o subsecretariado do Interior e, depois, o do Exterior, dos quais o próprio Duce detém as pastas. “Chamei-o para esse cargo,” diz Mussolini, “porque preciso de um homem moço que tenha as qualidades necessárias para me dar uma ajuda direta. Se o resultado for positivo, em alguns anos cederei meu lugar a você.”
Estamos em maio de 1925, e Grandi deverá esperar quatro anos e meio antes de assumir a frente da diplomacia italiana. A espera não é fácil, porque seu papel no Palazzo Chigi é o de simples executor da “grande política” mussoliniana e, principalmente, porque sua magra renda de subsecretário lhe nega – ainda que tenha se casado em 1924 com uma herdeira da burguesia bolonhesa com dois milhões de liras de dote – a boa vida que julga merecer. Nos arquivos do secretariado particular de Mussolini encontra-se uma longa carta, endereçada a ele em junho de 1929 por seu vice-ministro, na qual Grandi reclama da situação financeira que lhe é causada pelo poder. Mistura de lisonja, familiaridade e audácia reivindicatória, ela define bem as relações ambíguas entre os dois homens. Depois de expor ao Duce sua situação patrimonial, explicar que tivera de fazer um empréstimo para financiar a construção de sua residência romana – uma casa “de dimensões modestas,” situada extramuros, nas proximidades da porta San Sebastiano – e negar certas insinuações sobre o seu enriquecimento pessoal, ele passa ao núcleo do problema:
Há quatro anos sirvo meu Duce no Palazzo Chigi e creio que ninguém poderia jamais servi-lo com igual fidelidade. Naturalmente, tenho a esperança de poder servi-lo o mais longamente possível. Aquele que, como eu, trabalha ao teu lado tem consciência de assistir, dia após dia, a uma prodigiosa página da história. E perto de Ti, Presidente, aquele que é bom se torna melhor, o patriota vê seu patriotismo filtrado e purificado, aquele que é inteligente afina seu espírito, até que se torne ao mesmo tempo harmonioso e aristocrático. Se, depois de cinco anos perto de Ti, eu verdadeiramente “construí a mim mesmo,” é ao que defino como teu “fascismo pedagógico” que devo. Hoje meu espírito, tornado frio, lúcido e rijo – como Tu queres que ele seja – é suficiente para minha vida. Se olho em volta de mim, sou certamente, entre todos os Teus, aquele que Tu mais “modelaste.”
Mas, como a vida é sempre a vida, não creias que tudo isso não tenha exigido, de minha vida de homem que vive sobre a terra, notáveis sacrifícios. Esses sacrifícios me preocupam unicamente porque aqueles que estão destinados a suportar suas consequências são, definitivamente, minha família e meus filhos.
Não estou falando de meus interesses profissionais destruídos. Estou entre aqueles, muito raros, que, chamados ao governo, tiveram a coragem de fechar sua banca, para grande alívio dos advogados de Bologna, Forlì e Ravenna. Em geral, os homens que vão ao governo (mesmo hoje em dia) não fecham seus escritórios, sabendo que a simples “força da inércia” pode indiretamente lhes render o dobro. De outro lado, e Tu o sabes, não me deixei tentar pelas iniciativas jornalísticas, como outros entre teus colaboradores, os quais, se dessa maneira adquiriram em face do regime um instrumento ilusório de potência política, asseguraram-se, em troca, no presente e no futuro, uma fonte abundante de ganhos materiais. Fui um herói por isso? Não. Cada um guia seus atos segundo sua própria sensibilidade.
Seguem algumas recriminações precisas. Grandi reclama de receber anualmente, como subsecretário do Exterior, um pouco mais de 40 mil liras, 10 mil liras menos que o necessário para viver decentemente em Roma, e isso enquanto “o excelente senador De Vecchi” se lamenta que “não dá” (non ce la fa) com uma remuneração de 260 mil liras e a uso gratuito de um apartamento funcional. Que ao menos o Duce lhe conceda o cargo de embaixador ou o título de secretário-geral da Consulta, com uma remuneração igual à de Contarini, que lhe permita fazer face a seus deveres de representação.
Provavelmente não foram as lamentações do antigo Ras de Bologna – simples amostra do espírito cortesão reinante nas altas esferas do poder – que alguns meses mais tarde levaram Mussolini a confiar a Grandi o cargo de ministro do Exterior. A “troca de guarda” decidida em setembro de 1929, no momento em que, com a conclusão dos acordos de Latrão, afirmava-se a estabilização do regime, traduzia de fato, da parte do Duce, a vontade de instalar nos cargos de comando os mais fiéis de seus tenentes. Ela marcava ao mesmo tempo uma preocupação de rejuvenescimento da equipe dirigente. Entre os subsecretários elevados ao cargo de ministro figuravam, ao lado de representantes da velha guarda, como De Bono, as três estrelas ascendentes do fascismo: Balbo na Aviação, Bottai nas Corporações e Grandi à frente da diplomacia, os três com menos de trinta e cinco anos.
Dino Grandi permaneceu um pouco menos de três anos encarregado do Exterior. Entre ele e o chefe do governo as diferenças de caráter e concepção da vida internacional eram por demais intensas para que a dupla formada por eles à frente da diplomacia italiana pudesse se manter por muito tempo. À brutalidade e à agressividade mussolinianas, ao desdém que o Duce professava pelas democracias e pela Liga das Nações, ao projeto imperialista e belicoso que motivava as orientações de sua política externa opunham-se a moderação e a justa percepção da realidade internacional do jovem ministro, sua preocupação em estabelecer relações de boa vizinhança com a Inglaterra e com a França e pôr seu país em um cenário internacional pacífico, organizado em torno da Liga. A imagem do “fascista de cartola” que Grandi conduz de Genebra a Londres e de Berlim a Washington, onde o presidente Hoover o acolhe saudando à romana o representante da nova Itália, não agrada muito o inquilino do Palazzo Venezia. Para Mussolini, o antigo esquadrista de Romagna se aviltara no contato com o establishment internacional, deixara-se corromper pela “atmosfera subversiva” de Genebra. Assim, em 20 de julho de 1932, Mussolini decide sem o menor aviso exonerá-lo de suas funções. A nota que Chiavolini, chefe da secretaria particular do Duce, entrega-lhe em mãos é lacônica e glacial: “Caro Grandi, peço que coloque seu cargo de ministro do Exterior à minha disposição. Amanhã, às oito horas da manhã, irei ao Palazzo Chigi para dar maiores instruções.” Grandi cumpre a ordem sem protestos, como fará Balbo quinze meses mais tarde.
Grandi tampouco é objeto de completa desgraça. Ainda que não concorde com sua concepção de relações internacionais, Mussolini aprecia a competência e a habilidade do ministro “demissionário” e se apressa em lhe fornecer um campo de pouso prestigioso: a embaixada de Londres. Tal é, de fato, o método de governo do chefe da Itália fascista. Jogar com a complementaridade, os antagonismos, mesmo as rivalidades dos homens que formam sua guarda próxima. Mover e demover seus “marechais do Império” ao sabor das flutuações da conjuntura nacional e internacional e das sinuosidades de sua própria política. Reassumir o comando do jogo quando se trata de uma mudança estratégica maior – caso em que pode assumir a responsabilidade de seis ou sete ministérios – depois redistribuir as cartas entre os executantes escolhidos por sua competência e docilidade, mas também porque respondem, no lugar em que são alocados, aos imperativos do momento. No Palazzo Chigi, Grandi era o homem certo quando a Itália ainda procurava estabelecer relações com as potências sob o signo da contemporização e do respeito aos princípios genebrinos. Em Londres, onde permanecerá sete anos com uma missão perfeitamente circunscrita, Mussolini saberá tirar partido da anglofilia de seu embaixador e de suas excelentes relações com uma parcela da classe política inglesa – a começar por Churchill – para limitar os atritos com a Inglaterra durante a campanha da Etiópia e a Guerra Civil Espanhola, e manter, pelo maior tempo possível, o jogo duplo nos teatros europeu e mediterrâneo. Ainda que Grandi não esconda sua hostilidade ao nazismo nem sua reticência em relação à política pró-Alemanha conduzida por Ciano a partir de 1936.
Após a assinatura do Pacto de Aço, que concretiza a aliança ítalo-alemã, Mussolini não tem mais razões para manter em Londres um homem que não cessa de recomendar a aproximação com as democracias. Ele chama seu embaixador, portanto, e confia-lhe o ministério da Justiça, cargo que ocupará até fevereiro de 1943 – com um intervalo militar no front greco-albanês, para onde o Duce envia em 1940 todos os ministros em condições de “pegar em armas” – aguardando substituir Costanzo Ciano na presidência da Câmara e assumir a direção da conjura que levará à queda do governo Mussolini em julho de 1943.
Além do genro de Mussolini e do trio Balbo/Bottai/Grandi, outro personagem teve papel determinante no seio do que se pode considerar o círculo interno do poder: Achille Starace, o inventor do “estilo fascista,” grande organizador das práticas destinadas a fazer nascer o “novo homem,” aquele que, no decurso de seus oito anos na direção do partido, chamou sobre si toda a zombaria que podiam provocar nos italianos a obrigação de substituir o Lei pelo Voi na linguagem diária, a introdução do “passo romano” nos desfiles militares, a proibição do café ou ainda a condenação da pasta, considerada um alimento “amolecedor” da raça.
Mas não se pode reduzir o papel de Starace a essas mascaradas. Secretário do PNF de 1931 a 1939, esse executante sem problemas de consciência foi durante todo esse período o cão de guarda de Mussolini, a sombra de sua sombra, mas também promotor e mestre de obras da “revolução cultural” fascista. O homem é medíocre, obtuso, intolerante, cheio de si e de uma falta de cultura abismal. Mas não lhe faltam energia nem coragem e, sobretudo, a fidelidade e a idolatria que nutre por seu patrão são ilimitadas. “É um cretino, eu sei” – ri-se este – “mas um cretino obediente.”
Starace é homem do sul. Seis anos mais moço que Mussolini, é originário de uma família de comerciantes abastados de Gallipoli, na Puglia. Brutal, litigante, sempre pronto a brigar e a bancar o galo da aldeia, com dezesseis anos ele deixa família e província por Veneza, onde bem ou mal consegue sobreviver, obter um diploma de ciências contábeis e se casar. O serviço militar, cumprido nos bersaglieri, tira esse pequeno-burguês ávido por aventuras da monotonia do escritório. Liberado, instala-se em Milão, flerta com os meios irredentistas e se engaja a fundo na causa intervencionista, antes de ir para o front. A guerra faz dele um verdadeiro herói: “nosso porta-medalhas,” dirá Mussolini. Capitão saído da tropa, é cavaleiro da Ordem Militar de Savoia, titular da Cruz de Guerra Francesa com Estrela, duas vezes medalha de prata, quatro vezes de bronze, duas vezes citado por ato de bravura de guerra. Não é preciso dizer que o retorno à vida civil entusiasma muito pouco o ex-contador, e seu ativismo, seu gosto pela violência e sua raiva dos “inimigos da pátria” o levam naturalmente a aderir ao movimento fascista.
Em 1920, ele está em Trento, onde dirige o Fascio local e chefia os grupos armados que espalham o terror na região. Nomeado subsecretário do PNF em outubro de 1921, no momento da Marcha sobre Roma ele comanda a região do Trentino e as províncias de Verona, Vicenza e Rovigo. Obedecendo a uma ordem de Mussolini, deixa seu quartel-general em Verona com 1.500 camisas-negras e parte para Milão, onde ocupa a sede do Avanti!, assume o comando do lugar e desarma a Guarda Regia. Eleito deputado em 1924 e nomeado inspetor do partido, torna-se novamente subsecretário em 1926, assumindo ao mesmo tempo o cargo de cônsul-geral da Milícia.
É, portanto, um apparatchik e um verdadeiro profissional da violência que Mussolini escolhe, em dezembro de 1931, para suceder Giuriati na direção do partido. Como Farinacci, Starace é um condottiero da espécie mais feroz, e carrega ainda a reputação de obcecado sexual e perverso. Seu dossiê nos arquivos da secretaria particular de Mussolini contém pastas sobre as orgias – acompanhadas de violência sexual e uso de drogas pesadas – às quais se teria entregue o futuro secretário do PNF durante a campanha eleitoral de 1924 em Lecce. Certos boletins policiais de 1932 levam a malícia ao ponto de remontar as torpezas de Starace aos “precedentes libidinosos” que teriam causado sua expulsão do colégio trinta anos antes. Todas essas acusações devem ser examinadas com prudência, ainda que algumas sejam sustentadas por queixas apresentadas ao procurador do rei ou ao ministro do Interior e que, de todos os hierarcas fascistas, Starace seja de longe o que, antes mesmo de se tornar um dos dirigentes mais influentes e detestados do regime, suscitou o maior número de denúncias e boletins relatando seus desvios, malversações, prevaricações, tráfico de influência e outras ações infames.
As relações entre o Duce e o número um do partido em nada são afetadas por esses rumores. No momento da inflexão totalitária do regime, Mussolini precisa de um homem como Starace para “vestir a Itália em uniforme” e realizar a modelagem do “novo homem.” O antigo Ras de Trento é suficientemente devotado a sua pessoa para aceitar assumir a responsabilidade e suportar o peso de tudo que a “revolução cultural” do fascismo poderá provocar em matéria de descontentamento ou zombaria. É sintomático que, em todas as barzellete, as piadas em que figura – e são incontáveis – Starace seja sempre o pateta, ao passo que Mussolini faz a réplica ideal para evidenciar sua debilidade mental.
Para todo o resto, Starace podia ser visto como exemplo do que o regime esperava da aplicação do “estilo fascista” às massas italianas, a saber, a criação de um indivíduo disciplinado, cegamente fiel ao fascismo e a seu Capo, dotado das qualidades viris e guerreiras que fazem os grandes povos: coragem, resistência, frugalidade etc. Era ainda moço – 42 anos quando assumiu a função – e parecia estar em perpétuo movimento. Como o Duce, praticava assiduamente vários esportes e se submetia a um regime alimentar severo e a longas jornadas de trabalho. Amante dos uniformes, dos desfiles militares, das paradas que lhe permitiam ostentar suas condecorações, aspirava ser a própria efígie do combatente, modelo de homem fascista para os representantes das novas gerações. Mussolini conhecia seus defeitos e, no fundo, desprezava essa caricatura malfeita de si mesmo, mas a própria rusticidade de Starace garantia, a seus olhos, a perfeita execução das instruções que fornecia e que visavam a modificar o comportamento social e cultural dos italianos.
Sua longevidade nas funções de número um do partido se deveu a essa limitada aliança, bem como à preocupação de Mussolini em fazer contrapeso às tendências críticas representadas por homens como Grandi ou Bottai. Foi necessário muito tempo para que Mussolini, que não carecia de sutileza tática, compreendesse que as gesticulações e inovações (léxicas e outras) de Starace desserviam o regime e então se separasse dele. Em outubro de 1939, quando o secretário do PNF se declarou pela entrada da Itália na guerra ao lado do Reich, ao passo que Ciano se inclinava pela neutralidade, o Duce brutalmente pôs fim a suas funções. Nomeado chefe do estado-maior da Milícia, Starace seria destituído de maneira também brusca em 1941. “A obra realizada por você nesses últimos tempos,” escreveu então Mussolini, “não me satisfez. (...) Você terá ainda algo a fazer na reconquista da África oriental.” Sem cargo, o inventor do staracismo viveu os últimos anos do fascismo na mais absoluta miséria, multiplicando as demandas de subsídios junto ao secretário do Duce e fazendo fila em Milão por um prato de minestra, antes de ser preso, em 28 de abril de 1945, e fuzilado diante do cadáver suspenso de seu ídolo.
Ao lado dessas quatro personalidades emblemáticas do regime (cinco, com Ciano), a cúpula do poder compreende trinta ou quarenta homens cujos nomes figuram, na maior parte do período, na lista de membros do Gran Conselho. Com efeito, é entre os fiéis de primeira hora, em sua maioria representantes do fascismo de raiz, que Mussolini escolhe os principais detentores de postos de comando – ministros, subsecretários, presidentes da câmara e do senado, altos dignitários do partido e da milícia – postos dos quais dispõe a seu bel-prazer, usando as “trocas de guarda” para manter ou refazer o equilíbrio entre os clãs, jogar alternadamente com a moderação e a radicalização ou ainda recompensar méritos, frear ambições excessivas e punir os sediciosos.
Entre os “homens do Duce” cuja trajetória se aparenta àquela de um Balbo, um Grandi ou um Bottai, alguns merecem mais que simples citação. Não que tenham sempre desempenhado papéis consideráveis, mas a própria continuidade de sua presença no entourage do ditador é significativa de um modo de governo que privilegia as relações homem a homem e as práticas clânicas herdadas do esquadrismo.
O mais atípico é provavelmente o marechal da Itália Emilio De Bono. Como Costanzo Ciano – pai de Galeazzo – ele se distingue da imensa maioria dos dirigentes fascistas por sua idade e por pertencer ao quadro de militares de carreira. Nascido em 1886 em uma família da média burguesia lombarda cujos representantes se distinguiram nas guerras de independência contra os austríacos, De Bono já é oficial da ativa e aluno da escola de guerra quando vêm ao mundo homens como Balbo, Grandi e Bottai, e não está muito longe da aposentadoria quando eclode a guerra de 1915-1918, que fará desse militar consciencioso mas sem brilho general de corpo de exército e comandante da ordem militar da Savoia.
Outra característica desse autêntico conservador, simples simpatizante do movimento fascista em sua versão ativista e revolucionária, é que se inscreve no Fascio de Cassano d’Adda, sua cidade natal, somente em julho de 1922. Isso não o impede de figurar no “quadrunvirato” da Marcha sobre Roma nem de ser nomeado por Mussolini para a direção da segurança pública e da Milícia, cargos dos quais deverá se demitir em seguida ao caso Matteotti e às acusações feitas contra ele por Donati. Mesmo inocentado pela justiça mussoliniana, De Bono ficará afastado do centro do poder durante alguns anos. Em 1925, é nomeado governador da Tripolitânia, e somente quatro anos mais tarde faz sua reentrada no governo, como ministro das Colônias, cargo que conserva até janeiro de 1935, data de sua nomeação para o comando das forças armadas italianas na África Oriental.
Substituído por Badoglio em novembro de 1935 e de retorno à metrópole, De Bono – que fará setenta anos – vê-se ao mesmo tempo coberto de honrarias pelo regime, que faz dele marechal da Itália, e confinado a funções de mera representação. Suas relações com Mussolini, que até o momento haviam sido boas, ainda que menos familiares que as dos outros hierarcas – os dois se tratavam por “tu,” mas De Bono se dirigia ao Duce chamando-o de “caro presidente” ou “caro capo do governo,” ao passo que os outros dirigentes esquadristas diziam “caro Benito,” “caro Mussolini” ou simplesmente “Duce” – tendem desde então a se tornar menos estreitas. Muito naturalmente, o marechal da Itália se sente cada vez mais próximo dos meios militares fiéis à monarquia. Progressivamente, afasta-se de um regime cuja evolução lhe parece grotesca – sob a forma do staracismo – e perigosa para a segurança do país. Em 1938, quando Mussolini faz adotar a legislação racial, ele se define ao mesmo tempo como “antissemita” e hostil às medidas contra os judeus e, quando eclode a guerra, alinha-se entre os partidários da manutenção da neutralidade. É lógico, portanto, que na sessão do Gran Consiglio que em 25 de julho de 1943 vota a moção Grandi, ele adote uma posição que o conduzirá, dezoito meses mais tarde, ao pelotão de fuzilamento de Verona.
Quanto a Mussolini, seus sentimentos em relação a esse personagem sem grande envergadura, mas leal, afável e amado por seus homens, variam ao sabor das circunstâncias. Ele o trata calorosamente quando precisa dele – notadamente no início da era fascista – e se contenta, no resto do tempo, em instrumentar seu status de alta figura militar, durante tanto tempo que o marechal da Itália acaba por se resignar ao lugar relativamente apagado que lhe foi designado pelo regime. Ao saber, em maio de 1934, que Balbo, então governador da Líbia, pretendia erigir à beira-mar um monumento a seu predecessor, Mussolini o fez saber claramente que estava fora de questão prosseguir com um projeto que apenas “se prestaria ao ridículo,” deixando o marechal do ar em situação constrangedora:
Devo admitir, escreveu Balbo em uma carta datada de 1º de junho, que o molde da obra já está pronto. Não posso, portanto (...) parar o artista, que, além disso, recebeu um generoso sinal. Por outro lado, se você se lembra, anunciei minha intenção durante a Páscoa, e o anúncio passou... sem dificuldade. Deixemos o trabalho prosseguir: antes de instalá-lo sobre as dunas, conversaremos novamente.
Além do mais, acrescenta ele (visando sem dúvida a sua própria glória futura), infinitamente mais ridículo que erigir um monumento a um grande colonizador no lugar mesmo em que realizou sua obra é batizar ruas e praças com o nome de contemporâneos. E propõe ao Duce o seguinte arranjo:
Em Tripoli, temos o túnel De Bono, a avenida beira-mar De Bono, a rua De Bono, o castelo De Bono, a escola De Bono e até o nome de De Bono gravado em letras enormes na abóbada do horrendo teatro Miramare! Uma vez o querido camarada monumentato, poderei substituir seu nome pelo dos mortos gloriosos.
Mas ele terá de se submeter, pois Mussolini se recusa a erigir uma estátua para seu ministro das Colônias, “muito jovem” (tem sessenta e oito anos) para tal honraria, e exige o adiamento do projeto. “Diante de sua insistência,” escreveu Balbo, “fiz o necessário e, ontem, o contrato com o escultor foi rompido. Ficamos com a maquete, para o futuro.”
Não haverá futuro para o marechal da Itália. Na véspera da guerra, ele perde a maioria de seus créditos com o chefe supremo. “De Bono,” dirá este a Ciano no vigésimo aniversário da fundação dos Fasci, “é um velho cretino. Não pelos anos, que podem poupar a inteligência quando existiu, mas porque sempre foi um cretino, e ainda mais agora, que ficou velho.”
Mais de acordo com o cursus honorum dos principais dirigentes fascistas é o de outro “quadrúnviro” da Marcha sobre Roma: Michele Bianchi. Breve carreira, contudo, a desse filho de médico calabrês, nascido como Mussolini em julho de 1883 e, também como ele, engajado desde cedo nas fileiras do sindicalismo revolucionário. De constituição e saúde frágeis, o homem que receberá as alcunhas de “vestal do fascismo” e “Richelieu do regime” deu seus primeiros passos no jornalismo no Avanti!, ao mesmo tempo em que prosseguia seus estudos de direito e participava da ação direta ao lado dos trabalhadores agrícolas da planície do Po. Desde 1912, evolui na esfera imediata de Mussolini e naturalmente participa, dois anos mais tarde, do combate antineutralista, com assento no comitê diretor dos Fasci de intervenção. Alistado voluntariamente na declaração de guerra, é mobilizado na infantaria e depois transferido para a artilharia por motivo de saúde, com a graduação de sargento.
Como muitos outros discípulos de Corridoni, Michelino Bianchi (seu pequeno porte e seu aspecto doentio lhe valeram esse diminutivo) sai transformado dos três anos e meio passados no front. O rebelde, extremista de esquerda, inimigo ardoroso dos proprietários de terras e pequeno soldado da guerra de classes se transformou em patriota ardente que agora defende, como o diretor do Popolo d’Italia, a união nacional e a eliminação dos “inimigos da classe.” Em março de 1919, ele faz parte da magra legião de “sansepolcristas” e, dois anos mais tarde, torna-se primeiro secretário-geral do Partido Nacional Fascista, cargo que abandona em seguida à Marcha sobre Roma, da qual fora um dos organizadores. Esse São Justo em camisa negra não busca desempenhar papéis principais. Ele se reconhece condenado pela doença – uma tuberculose pulmonar que o levará com a idade de quarenta e sete anos – e se contenta em ser “um instrumento fiel nas mãos do Grande Artífice,” com o qual, contudo, entra em conflito. Mussolini gosta dele, mas não suporta sua intransigência e julga seu fanatismo perigoso, uma vez superada a ameaça ao regime durante a sedição parlamentar e a revolta dos esquadristas. A partir de 1925, Michelino Bianchi será, portanto, relegado a funções subalternas: secretário-geral do ministério do Interior, subsecretário dos Trabalhos Públicos de 1925 a 1928 e, por fim, após breve passagem pelo subsecretariado, ministro do Interior até sua morte em fevereiro de 1930.
Três homens – Bastianini, Ricci e Muti – tiveram papel importante no seio do grupo dirigente fascista. Os três pertencem à geração dos mais jovens combatentes da guerra e voltam das trincheiras cobertos de glória e medalhas. Os três militaram nas fileiras do primeiro fascismo e ganharam seus galões à frente de esquadras de ação. Todos, enfim, ocuparam funções governamentais ou exerceram no partido responsabilidades do mais alto nível durante a maior parte da era fascista.
O primeiro nasceu em Perugia em 1899. Alistando-se voluntariamente com dezoito anos, combate com os arditi e termina a guerra com o posto de subtenente. Saído da média burguesia rural, está entre os fundadores do movimento fascista na Umbria, que reúne essencialmente antigos combatentes e jovens burgueses de tendência conservadora. Sua ação no seio do esquadrismo de Perugia, bem como a atenção suscitada pelo Assalto, semanário fundado por ele em agosto de 1921, permitem-lhe figurar entre os dirigentes mais destacados da organização mussoliniana desde sua fundação; ascender, com Starace e Teruzzi, a secretário-geral adjunto do partido; e ser, no congresso de Nápoles de outubro de 1922, um dos oito responsáveis pela Marcha sobre Roma.
Em 1923, Mussolini faz de Giuseppe Bastianini o secretário-geral dos Fasci italiani all’estero (Fasci italianos no exterior): função que exerce até 1926 e que consiste em organizar e disciplinar os numerosos grupos fascistas surgidos nas populações emigradas. Deputado por Perugia em 1924, Bastianini terá breve passagem no ministério da economia nacional antes de se juntar definitivamente ao ministério do exterior. Embaixador sucessivamente em Tanger, Lisboa, Atenas e Varsóvia, é chamado em 1936, quando o Duce confia ao genro a direção da diplomacia italiana, para ocupar o cargo de subsecretário do Exterior, função que conservará até outubro de 1939, data de sua nomeação para a embaixada de Londres.
A trajetória de Renato Ricci se inscreve igualmente na esfera de um fascismo provinciano, pequeno-burguês e reacionário. Nascido em 1896 em Carrara, no coração de uma região de forte tradição revolucionária, em 1915 se engaja nos bersaglieri e faz uma guerra corajosa que lhe vale duas medalhas de bronze “por valor militar.” Esquadrista da primeira safra, participa dos duros enfrentamentos que opõem os representantes do fascismo agrícola aos socialistas das províncias marítimas da Toscana e conhece rápida ascensão no seio do PNF, tornando-se comissário político do partido para a Alta Lunigiana em 1923, deputado no ano seguinte, e em breve presidente da Opera Nazionale Balilla (ONB) – a organização encarregada de educar a juventude e promover o “novo homem” fascista: duro, voluntarioso, física e mentalmente pronto a enfrentar o desafio da guerra. Ricci, esportista consumado, assume a direção entre 1927 e 1937, dirige os balillas com mão de ferro e talhando uma reputação (bastante aumentada) de dureza da qual o próprio Mussolini se vale para disciplinar os filhos. “Se vocês não ficarem quietos,” costuma dizer, “vou chamar o Ricci.” Malvisto por Starace, que o condena por querer fazer da ONB uma organização autônoma, é afastado em 1937. Após dois anos de purgatório, Mussolini o chama novamente, em outubro de 1939, para ser ministro das Corporações e o manterá nessa posição até fevereiro de 1943.
Ettore Muti é ainda mais jovem que seus dois colegas quando eclode a guerra. Nascido em 1902 em Ravenna, também em família da pequena burguesia (seu pai é funcionário público), tem apenas dezesseis anos quando, para participar do último ano de guerra, falsifica sua certidão de nascimento para se alistar nos arditi do III Exército e combater corajosamente no Piave. Em 1919, encontra-se em Fiume, ao lado de D’Annunzio – o comandante o chama de “Gim dos olhos verdes” – e, em breve, entre os admiradores mais entusiastas de Mussolini, que conhece na sede do Popolo d’Italia. Esquadrista de choque, ganha no terreno das expedições punitivas seus galões de Ras de Ravenna, participa da Marcha sobre Roma e se torna, aos vinte e dois anos, cônsul da Milícia.
Duro entre os duros, combatente heroico de todas as guerras do regime – na campanha da Etiópia é ele quem efetua com Ciano o voo rasante sobre o aeroporto de Addis Abeba – mas também imprevisível, exaltado e mulherengo, Muti terá de esperar a véspera da guerra para chegar a um posto de comando, e não dos menores, pois, em novembro de 1939, Mussolini o nomeia secretário-geral do partido, em substituição a Starace.
Diferente do percurso dos outros hierarcas é o de Luigi Federzoni. Nascido em 1878 em Bologna, em uma família da média burguesia, filho de um ilustre especialista em Dante, ele não foi fascista de primeira hora, combatente das esquadras de ação nem, como Mussolini e muitos outros dirigentes fascistas, revolucionário convertido ao nacionalismo. Jornalista e homem de letras, redator de Resto del Carlino e do Giornale d’Italia, Federzoni chegou ao nacionalismo pelo viés da literatura e pela convivência com os paladinos da ideia nacional: Oriani, d’Annunzio e, principalmente, Corradini, que o estimulará a candidatar-se a deputado por Roma, em 1913, em uma lista apresentada por seu movimento. Ele é, portanto, um homem do direito, que milita em favor de uma aliança com os liberais e com os católicos, e é desse lado do espectro político que se situa seu intervencionismo. Alistado voluntariamente em 1915, termina a guerra com o posto de tenente, uma medalha de prata e duas cruzes de guerra ganhas no Carso e no Piave.
Em 1919, Federzoni reassume seu cargo de deputado e conduz a luta nacionalista em duas frentes: de um lado, buscando um compromisso com os liberais ligados a Orlando e Salandra, com o objetivo de constituir um governo conservador forte e capaz de enfrentar a ameaça revolucionária; do outro, empenhando-se em moderar o fascismo, cujos métodos terroristas reprova. Mais próximo de Grandi e de De Vecchi que da ala ativista do PNF, não é menos solidário a Mussolini no momento da Marcha sobre Roma e – tornado ministro das Colônias no primeiro governo fascista – defende a fusão com o partido no poder no seio de sua própria organização (a Associação Nacionalista Italiana).
O caso Matteotti dará a esse moderado a chance do papel principal. Em face do aumento da oposição e da secessão parlamentar, Mussolini teve de adotar uma postura discreta e dar garantias a seus adversários. Em 17 de junho de 1924, confia a Federzoni o ministério do Interior, como maneira de afirmar sua vontade de normalização e, de fato, é contra as violências esquadristas e a atividade quase anarquista do fascismo provinciano que se volta, até janeiro de 1925, a ação do antigo dirigente nacionalista. A partir dessa data, em seguida à revolta dos Ras e ao discurso belicoso pronunciado pelo Duce no Montecitorio – “um golpe de estado dirigido principalmente contra mim,” dirá Federzoni – deverá modificar radicalmente sua política, conduzindo firmemente a repressão contra todos os adversários do regime (principalmente após o atentado de Zamboni) e dando rédea solta aos dirigentes esquadristas, encorajados em sua ação terrorista pela nomeação de Farinacci para a secretaria-geral do partido. Isso não basta para conquistar a adesão dos intransigentes, reunidos em torno do Ras de Cremona e durante algum tempo mestres do jogo. Em novembro de 1926, quando outro nacionalista convertido, o ministro da Justiça Alfredo Rocco, promulga as “leis de defesa do estado,” Federzoni deve abandonar o Viminal (sede do ministério do Interior) sob pressão das bases.
Por representar a ala conservadora de apoio ao regime, ser próximo da corte e ter desempenhado importante papel nas conversações preliminares aos acordos com o Papado, Federzoni ainda é útil a Mussolini, e é por isso que este decide mantê-lo no governo, encarregando-o, pela segunda vez e até o fim de 1928, do ministério das Colônias. Definitivamente afastado do centro do poder nessa data, ele conserva não obstante, junto aos meios conservadores e monarquistas, uma influência forte o bastante para que o Duce, sempre preocupado em não romper com a antiga classe dirigente, não o prive nem de honras nem de cargos que conjugam prestígio e remunerações compensadoras. Membro do Gran Conselho, Federzoni exercerá conjuntamente as funções de presidente do Senado (até 1939) e presidente da Academia Italiana.
Eram desse primeiro círculo do poder, englobando altos dignitários do partido e da Milícia, membros do governo, detentores de posições-chave como chefe de polícia ou procônsules encarregados dos territórios de ultramar, homens que, em sua maioria, tiveram uma trajetória comparável à dos principais tenentes de Mussolini. Assim se dá com Attilio Teruzzi, esquadrista de primeira hora, subsecretário do PNF em 1921, subsecretário de estado no ministério do Interior em 1925-1926, depois governador da Cirenaica, chefe do estado-maior da Milícia e, enfim, ministro da África italiana de 1939 a 1943; com Giacomo Suardo, subsecretário da presidência do Conselho de 1924 a 1927 e presidente do Senado a partir de 1939; com Giacomo Acerbo, também antigo combatente, condecorado com três medalhas de prata, dirigente esquadrista nos Abruzzos, subsecretário da presidência do conselho de 1922 a 1924, ministro da agricultura de 1929 a 1935, nomeado em 1943 para o ministério das finanças depois de um longo eclipse governamental; e com outros ainda, talvez trinta ou quarenta no total, que, ao sabor de ventos contrários – ora inclinando-se para a radicalização, ora vertendo para a “normalização” e a moderação – ou simplesmente porque Mussolini não quer vê-los se incrustarem em uma posição, nela tornarem-se populares ou criarem clientelas, serão sucessivamente beneficiários e vítimas das frequentes “trocas de guarda.”
O sistema mussoliniano funcionará assim durante mais de vinte anos, segundo uma regra de alternância que responde a um cenário quase imutável: nomeação de um hierarca para este ou aquele ministério, assistido por um subsecretário destinado a ser seu sucessor e, em seguida, ao termo de uma fase ministerial que geralmente não ultrapassa três anos, elevação do subsecretário de estado ao cargo de ministro, o titular do cargo se vendo nomeado para um posto não político ou pura e simplesmente merecedor de um “agradecimento” e restrito a uma função honorífica. Raros são os hierarcas que, como Bottai – ministro das corporações até 1932, depois encarregado da educação nacional entre 1936 e 1943 – escaparão dessa regra e herdarão duas vezes um ministério. O mesmo acontece com os secretários-gerais do partido, geralmente escolhidos para serem instrumentos dóceis da política mussoliniana e cuja substituição frequentemente faz-se acompanhar de um destino infeliz sem retorno.
Os enfants terribles do regime
Entre os “homens de Mussolini” chamados a cargos de primeiro plano na equipe governamental ou na hierarquia partidária figuram alguns “rebeldes,” ou simplesmente personalidades incontroláveis pelas quais Mussolini, por reconhecimento a serviços prestados e porque ainda pode precisar delas, manifestará relativa indulgência. Cesare Maria De Vecchi, conde de Val Cismon, pertence a essa categoria. Personagem pitoresco, incorrigível autor de gafes, alvo predileto das histórias engraçadas contadas clandestinamente (ele é frequentemente chamado de “conde de Val Coglione” pelos inventores dessas barzellette), ele ainda assim foi um dos “quadrúnviros” da Marcha sobre Roma em outubro de 1922, e por isso pode se permitir um número maior de besteiras que os hierarcas menos titulados. Mussolini o considera um perfeito imbecil e não esconde o fato, mas tem por esse velho companheiro – na verdade um ano mais novo que ele – uma ternura vaga que só se atenuará no fim do regime.
De Vecchi nasceu em 1884 em Casale Monferrato, na província de Alessandria. Veio de uma família da alta burguesia, muito ligada à monarquia, e conservará durante toda a vida uma fidelidade sem falhas à dinastia reinante. Após sólidos estudos em direito e letras realizados em Turim, abre nessa mesma cidade um escritório de advocacia, adquire clientela burguesa e se agrega ao meio conservador moderado da metrópole piemontesa. Nada o predispõe, portanto, a se unir em 1919 às fileiras de uma organização que contesta a ordem existente.
Como para muitos homens de sua geração, é a guerra que transforma esse burguês essencialmente conformista, ainda que pretenso conhecedor de literatura e belas-artes, em chefe de grupo que aplica sem remorsos a violência terrorista. Mobilizado como tenente de artilharia, passa para as tropas de assalto em 1917 e termina a guerra com duas medalhas de prata e os galões de capitão. Não é por ideologia revolucionária que adere ao fascismo em 1919, mas porque, a exemplo de numerosos oficiais saídos da tropa, sofre como humilhação pessoal os insultos e por vezes a violência de que são vítimas alguns de seus iguais, bem como a maneira com que seu país foi tratado pelos principais organizadores da paz de Versalhes.
Fascista de direita, por oposição aos fascistas de esquerda, antigos socialistas e sindicalistas revolucionários que seguiram uma trajetória comparável à de Mussolini, durante os dezoito meses que precedem a Marcha sobre Roma De Vecchi é ao mesmo tempo ativista, conduzindo com rudeza seus esquadristas de Turim ao assalto dos bastiões socialistas, partidário do compromisso com a classe dirigente que enche o caixa do Fascio graças aos subsídios pagos pela liga de industriais e planeja nas costas do Duce a constituição de um governo dirigido por Salandra ou Orlando. Esse jogo duplo não o impede de ser designado, em outubro de 1922, um dos quatro organizadores da ação insurrecional da qual reprova o princípio e denuncia os perigos, mas da qual participa ativamente, o que o autoriza, avalia ele, a reivindicar um lugar de primeiro plano após a Marcha sobre Roma.
Mussolini, que julga De Vecchi ao mesmo tempo pouco seguro e “metido,” recusa-lhe o ministério da guerra. Aquele que ele de farra chama “re di complemento” (rei da reserva), como se diz oficial da reserva, responsável pelos graves acontecimentos de Turim em dezembro de 1922 (ao menos vinte mortos, a maioria comunistas), vê-se restrito à posição de subsecretário de estado para a Assistência Militar e as Pensões de Guerra. Ao quadrúnviro ferido de se ver assim relegado a um “desvio” e ao qual reprova o fato de haver pronunciado em Turim um discurso incendiário contra a antiga classe dirigente, Mussolini escreve, em maio de 1923:
Quis, antes de examinar do ponto de vista do governo seu agora famoso discurso de Turim, que fosse solucionada, de um modo ou de outro, a crise municipal de sua cidade. Agora que ela se resolveu de modo satisfatório, é meu dever dizer que seu discurso de Turim deve ser retribuído com sua demissão de membro do governo. Seu discurso prejudicou gravemente o fascismo, e não menos o governo. Não só internamente, mas no exterior. Você encontrará anexas informações que me chegaram de Paris. Em seguida a um artigo publicado no Avanti!, ordenei uma investigação cujo resultado afirma que você se instalou no ministério das Finanças e transformou alguns dos escritórios em apartamento. Isso não me agrada. Não se deve misturar sagrado e profano. Pessoal e nacional.
Além disso, seu gabinete tem gente demais.
O ministro de Stefani, interrogado por mim, disse que seu subsecretário pode ser tranquilamente suprimido, o que permitirá certas economias necessárias. Cada um possui suas qualidades, e você, devo dizer francamente, jamais mostrou, até agora, possuir aquelas essenciais a um homem de governo. Você é um soldado. Um excelente soldado. Como tal, pode prestar, como já fez, serviços de primeira ordem na Milícia. Talvez sua hora de governar venha em um segundo tempo.
Julgado provisoriamente incapaz de “governar,” De Vecchi não será expulso da nomenclatura fascista. Ao contrário, o antigo advogado piemontês será talvez o mais titulado dos hierarcas. Tornado nobre pelo Rei durante sua estada na África, nomeado senador em 1923 e “ministro de estado” cinco anos mais tarde, acumulará as mais altas condecorações e vários títulos prestigiosos: presidente do Instituto para a História do Risorgimento, comissário dos Arquivos do Reino, membro da Academia Italiana, doutor em letras e filosofia pela Universidade de Turim (por aclamação) etc. Ao mesmo tempo, vê-se em funções nas quais geralmente se destaca por sua ignorância e pelos conflitos com subordinados e pares. Comandante-geral da Milícia em 1923, entra em conflito com seu ministro, o general Diaz, a respeito da incorporação dos esquadristas nas forças armadas e deve abandonar rapidamente suas funções. Destituído do subsecretariado para as pensões de guerra, é nomeado governador da Somália em outubro de 1923 e conservará esse posto até 1928 – o tempo de se alienar da população nativa por seu comportamento arrogante e seus métodos terroristas.
A única posição na qual De Vecchi pôde se manter durante seis anos sem provocar dano foi a de primeiro embaixador da Itália junto ao Papado. O homem era muito religioso e Pio XI gostava de sua atuação como mediador entre o Duce e a monarquia. Além disso, durante esses seis anos (1929-1935), ele demonstrou um tato que não era verdadeiramente de sua natureza e desempenhou um papel de apaziguamento no conflito que opôs a Ação Católica ao poder fascista. Essa, sem dúvida, é a razão que leva Mussolini a testar novamente suas qualidades de “homem de governo.” Em janeiro de 1935, no momento em que, prestes a começarem as hostilidades contra a Etiópia, pareceu-lhe necessário incluir no jogo homens que tivessem a confiança do monarca, ele lhe confia o ministério da educação nacional, com a missão de estender e acelerar o processo de “fascistização da escola.”
Recebida com consternação pelo mundo cultural, a nomeação de De Vecchi para a educação testemunha a exiguidade do viveiro no qual Mussolini se distrai escolhendo seus colaboradores. É verdade que a escolha não é completamente fortuita. O Duce se diverte em dizer que tem necessidade de um “incompetente enérgico,” alguém que “entre na escola de botas,” e o antigo chefe de esquadras de ação de Turim parece perfeitamente adaptado a essa maneira de encarar a formação da juventude. Mas De Vecchi não se contenta em proceder a uma “melhoria do ensino” que passa pela adequação forçada de alunos e professores, a fascistização dos programas e a substituição das ciências humanas clássicas por uma cultura militarizada. Ele se volta contra a autonomia das universidades. Multiplica as engrenagens burocráticas em todos os níveis do ensino e, sobretudo, torna-se odioso a seus colaboradores da Minerva (sede do ministério), que obriga a usarem, como ele, a camisa negra e a estarem no trabalho desde as primeiras horas da manhã. Numerosos são os relatórios e as notas endereçadas a Mussolini por altos funcionários do ministério que se queixam do ministro, dizendo que ele “trata o ministério da educação como tratou a Somália.”
Exasperado com essas críticas e com as que emanam ao mesmo tempo do mundo cultural e da hierarquia do partido – Starace e Farinacci lhe são hostis – Mussolini acaba por ceder e demite secamente seu ministro de botas. Em 10 de novembro de 1936, o informa de sua nomeação para governador do Dodecaneso, arquipélago do mar Egeu anexado pelos italianos, e em 1º de dezembro De Vecchi assume suas funções em Rhodes.
O enfant terrible do fascismo cedo atrairá nesse novo cargo recriminações e críticas motivadas por seu comportamento de procônsul megalômano. Os diversos relatórios endereçados ao Duce por representantes da administração, por agentes de segurança ou por autoridades militares mostram que De Vecchi impôs ao arquipélago uma espécie de estado de sítio permanente; que não somente a população autóctone, mas igualmente funcionários, militares ou simples cidadãos italianos vivem em uma atmosfera de suspeita e controle minucioso; e que o governador se conduz como um sátrapa oriental, vivendo em um palácio suntuoso, movendo-se de uma ilha a outra a bordo de um “navio de almirante” com escolta, fazendo-se anunciar por salvas de artilharia e sirenes ou passeando por Rhodes em um carro de corrida equipado com um sinal sonoro ruidoso que anuncia a todos a passagem do procônsul. Citemos, entre os numerosos relatórios endereçados ao secretariado particular de Mussolini, este, de abril de 1939, que resume bem o personagem:
Quando Sua Excelência fazia suas corridas de automóvel pelas ruas da cidade – escreve o correspondente do Duce – queria que todo mundo reconhecesse seu carro e parasse, levantando o braço para fazer a saudação romana; quando isso não acontecia, porque o carro não era conhecido por todos, descia e insultava todo mundo, burgueses e militares, ameaçando com graves represálias os que não parassem e fizessem a saudação romana. Atualmente, retirou a buzina e a substituiu por uma sirene muito estridente para que todos o reconheçam: infeliz daquele que não para e não o saúda quando passa. (...)
Por tudo isso, é considerado um desequilibrado e malvisto por todos.
Em outubro de 1938, falando com Ciano sobre o antigo Ras de Turim, Mussolini dirá: “De Vecchi criou problemas em todos os lugares onde o coloquei. Nunca soube fazer nada,” reconhecendo a dificuldade de achar, entre seus antigos tenentes, auxiliares ao mesmo tempo devotados a sua pessoa, fiéis ao regime e competentes dos cargos que lhes eram confiados. Até seu retorno de Rhodes e sua destituição definitiva em 1940, De Vecchi pôde assim se beneficiar das ambiguidades de um sistema de governo fundado na vinculação aos clãs e ao pequeno mundo dos “chefes históricos” do fascismo: sansepolcristas, dirigentes do esquadrismo provinciano e atores principais da Marcha sobre Roma, movidos de cargo em cargo enquanto podiam prestar algum serviço ao regime ou simplesmente neutralizados pela atribuição de cargos honoríficos (em geral financeiramente proveitosos).
Nem todos têm a mesma sorte, nem a mesma prudência, do “conde de Val Cismon.” Leandro Arpinati, por exemplo, também saído da nomenclatura esquadrista, conhece desde 1933 as atribulações de uma queda em desgraça que fará desse fascista de primeira hora um excluído e um exilado. Nascido em 1892, nove anos mais novo que Mussolini, Arpinati também é de Emilia Romagna, filho de um modesto dono de cantina socialista. Aprendiz de mecânico desde os doze anos, depois operário de uma fábrica de automóveis em Turim, é finalmente recrutado na véspera da guerra para as Estradas de Ferro do estado, o que lhe permite ao mesmo tempo desfrutar de um emprego estável em Bologna e ser mobilizado no próprio emprego e, portanto, não participar dos combates.
Membro da juventude socialista, depois anarquista individualista, colaborador de L’Alleanza Libertaria, de Roma, e La Lotta di Classe, de Forlì, então dirigido por Mussolini, Arpinati é considerado um moderado pela polícia do reino. Um relatório de polícia de 1927 traçando seu percurso político o descreve como um antigo “anarquista não perigoso e não militante, um idealista isolado” que, “durante os períodos de greve, nunca deixou seu trabalho e nunca hesitou em desaprovar abertamente aqueles que o fizeram.” Intervencionista ardente, conjugando, como vários representantes da esquerda antineutralista, patriotismo e rejeição da ordem social, é com naturalidade que se une a Mussolini desde o início da campanha conduzida pelo Popolo d’Italia, e em seu primeiro número o jornal publica um telegrama de apoio redigido por ele e assinado com o pseudônimo Vittorio Neri.
A ideologia contestatória e antiburguesa do fascismo original atraiu esse adversário do estado liberal, pleno de nacionalismo e desejoso de acertar as contas com os “derrotistas” de todos os lados, pertencentes quer ao establishment moderado, quer às diversas facções do socialismo internacionalista. Menos de três semanas após a reunião constitutiva do movimento fascista, está entre os membros fundadores do Fascio de Bologna e, logo, à frente dessa organização e das esquadras de ação, cuja primeira operação de envergadura é, em novembro de 1920, o assalto ao Palazzo d’Accursio, em Bologna, sede da prefeitura socialista. Ela será seguida de muitas outras, notadamente de uma “marcha sobre Ravenna” efetuada na companhia de Balbo, Grandi, Caradonna e Marsico, em setembro de 1921, durante a comemoração do sexto centenário de morte de Dante.
Admirado e amado por seus homens por sua coragem e lealdade, pouco interessado nas vantagens materiais proporcionadas pelo status de chefe de grupo estipendiado pelos fazendeiros – mas, a despeito disso, verdadeiro aliado dos grandes proprietários – Arpinati foi, antes e depois da tomada do poder, um fascista idealista para quem a ideologia mussoliniana representava a concretização de ideais libertários e patrióticos. Por isso via com olhos críticos a evolução do regime para uma “normalização” que interpretava como sinal de aburguesamento. Conduzindo em Bologna, cidade da qual era Ras e, a partir de 1926, podestà, uma política de “melhoria cultural” de inspiração fascistíssima – construção da Casa del Fascio e do Estádio Littoriale, criação da Universidade Fascista e da revista Vita Nova, promoção de numerosas atividades esportivas etc. – singularizou-se rapidamente por sua indisciplina e modo franco de falar, atraindo para si o rancor dos outros hierarcas e admoestações do Duce.
Depois do atentado de 31 de outubro de 1926 em Bologna, seus laços com a família do jovem Anteo Zaniboni, autor do tiro contra o chefe do governo, valeram-lhe ser acusado por seus adversários de cumplicidade com os conjurantes. Ele não teve nenhuma dificuldade em calar seus detratores, e Mussolini julgou com brando rigor o fato de não ter sido capaz de prever o atentado, pois Arpinati fora um dos que o apoiaram com maior vigor durante o caso Matteotti. Ele se declarava frequentemente irritado pelas violentas propostas anticapitalistas e antiburguesas do podestà de Bologna e pelo espírito contestatório que animava os fascistas da capital da Romagna. Mas Arpinati, como outros chefes do esquadrismo que pediam – com mais ou menos convicção e força – uma “segunda revolução,” representava uma massa de militantes ativistas que poderia ser útil em caso de crise e devia ser poupada enquanto suas críticas não se voltassem contra o número um do regime.
Em setembro de 1929, Arpinati foi chamado por Mussolini para o subsecretariado do ministério do interior, em substituição a Michele Bianchi: posição-chave que fazia do antigo Ras de Bologna um dos principais dirigentes do regime e que ele deixaria somente três anos e meio mais tarde, não sem antes ter manifestado sua oposição ao intervencionismo crescente do estado em matéria econômica e social, à ingerência do partido e da Milícia nos negócios públicos, à militarização da sociedade italiana e ao que considerava, após ter lido as provas da entrada “fascismo” na Enciclopedia Treccani, uma derivação idealista e plena de retórica da doutrina original à qual dera sua adesão depois da guerra.
A nomeação de Achille Starace para secretário-geral do partido marcou o fim do breve estado de graça de que se beneficiara o ex-militante anarquista. Afastado do cargo em maio de 1933, recolhido a sua propriedade em Malacappa, perto de Bologna, e acusado por seus inimigos – entre eles seu sucessor no Viminal, Buffarini Guidi – de conspirar contra o governo e o partido, ele se viu sucessivamente destituído de suas ações do Resto del Carlino, privado de sua pensão de empregado das ferrovias e excluído do PNF, antes de receber, em 26 de julho de 1934, a visita dos carabinieri e ser levado algemado à Questura, onde lhe anunciaram sua condenação a cinco anos de confino nas ilhas Lipari. Autorizado a voltar para a península dois anos mais tarde, Arpinati só deixou sua propriedade em Malacappa para um breve período militar em 1941. Não tendo tomado parte na conjuração de julho de 1943, depois da libertação de Mussolini pelos paraquedistas de Otto Skorzeny foi convocado pelo Duce à Rocca delle Caminate e convidado a assumir a direção do novo governo republicano. Arpinati, que detestava os alemães, recusou, preferindo juntar-se à Resistência e ajudar os oficiais ingleses fugitivos a escaparem das buscas. O que não o impediu de ser preso por um grupo de partigiani comunistas no dia seguinte à libertação de Bologna e fuzilado em 22 de abril de 1945.
Também sob as balas dos partigiani terminou, em 28 de abril de 1945, mesmo dia em que Mussolini e Claretta Petacci eram fuzilados em Giulino di Mezzegra, a carreira de Farinacci, o mais incontrolável e mais extremado dos chefes fascistas, o único, além de Balbo, por quem o Duce temia ser derrubado e, contudo, um dos raros a permanecer fiel até o último momento da ditadura.
Como Starace, com quem partilha a cegueira fanática e a incultura, Roberto Farinacci é um homem do sul, transplantado desde a mais tenra idade para o mundo efervescente das províncias setentrionais. Nascido em outubro de 1892 em Isernia, Molise, de pais napolitanos, teve de segui-los ao sabor das atribuições do pai, funcionário de polícia, primeiro a Tortona, na província de Alessandria, e depois a Cremona. Pouco dotado para os estudos, aos dezessete anos também consegue se fazer contratar pelas estradas de ferro do estado como telegrafista auxiliar. Após breve estada em Piacenza, é nomeado para Cremona, onde criará raízes.
Curiosamente, levando-se em conta sua evolução ulterior, é nas fileiras dos socialistas reformistas, representados em Cremona por uma das estrelas do partido, Leonida Bissolati, que o jovem Farinacci debuta como militante, de início ao lado do sindicalismo rural da região, depois, como porta-voz particularmente virulento dos reformistas partidários da entrada da Itália na guerra. Animador, em 1914, da folha antineutralista La Squilla, a violência de suas propostas contra os adversários socialistas e católicos da intervenção o fazem notado por Mussolini, que acaba de fundar o Popolo d’Italia e torna Farinacci correspondente de seu jornal: primeira etapa de uma colaboração cheia de reviravoltas que vai durar cerca de trinta anos.
Quando começa a guerra, Farinacci se recusa a tirar partido de seu status de empregado da estrada de ferro – que lhe teria permitido escapar da mobilização – e se engaja no exército. Transferido como telegrafista para uma unidade de engenharia, é enviado para a zona de combate, onde permanece pouco mais de um ano, tempo de acumular os sinais que lhe darão a reputação de ex-combatente valoroso: um ferimento, uma cruz de guerra e uma promoção ao posto de cabo obtida no front, equivalente ao livro de honra mussoliniano. Em 1917 retorna a Cremona, logo após a votação de uma lei que impõe a relocação dos ferroviários a seus lugares de atividade. Rapidamente retoma os brutais ataques contra os “derrotistas” e multiplica os artigos insultuosos, especialmente contra o católico Miglioli, a quem, após Caporetto, agride fisicamente em pleno conselho provincial: o que lhe vale ser perseguido, levado à justiça e... declarado inocente por um tribunal que sua profissão de fé patriótica inclina à indulgência.
Ponto comum essencial entre o percurso mussoliniano e o do ferroviário socialista de Cremona é o fato de que os dois estão em cena desde 1917, com a possibilidade de finalizar cuidadosamente uma evolução ideológica que liga a ideia nacional ao projeto revolucionário e reunir uma clientela que mistura feridos e mutilados de guerra recentemente desmobilizados e jovens representantes da classe média seduzidos pelo discurso contestatório, patriótico e violentamente anticomunista do Popolo d’Italia e de La Squilla. Pelo menos um ano antes da fundação do fascismo, Farinacci já se encontrava no centro de uma constelação local que, estreitamente associada à esfera mussoliniana, conta com antigos combatentes, trabalhadores agrícolas, jovens burgueses e alguns proprietários de terras e se exprime por meio de organizações como a Liga Patriótica ou o Fascio Antibolchevique. Não é de surpreender que, presente à reunião da praça San Sepolcro, ele tenha aderido ao fascismo desde seu nascimento e, menos de três semanas mais tarde, em Cremona, tenha fundado e se tornado secretário de um fascio di combattimento composto majoritariamente de empregados das estradas de ferro.
Membro do comitê central do movimento a partir de setembro de 1919, Farinacci se apoia em seu jornal – rebatizado Voce del Fascismo Cremonese – e numa organização local em rápido desenvolvimento para se içar à cúpula da hierarquia partidária. De todos os dirigentes do fascismo original, é ele quem compreende mais rapidamente que o futuro do movimento reside em uma aliança tática com os capitalistas e é sem peso na consciência que recolhe, para sustentar sua organização e seus grupos armados, a subvenção de proprietários e alguns industriais cremonenses, em troca de uma ação terrorista particularmente feroz contra as organizações e prefeituras de esquerda. Eleito deputado em maio de 1921, sua eleição será invalidada um ano mais tarde por não possuir, no momento da eleição, a idade mínima obrigatória (trinta anos) para uma cadeira no Montecitorio. Em outubro de 1922, como vimos, é ele quem, tomando a iniciativa de ocupar os edifícios e serviços públicos de Cremona e Casalmaggiore, desencadeia o processo da Marcha sobre Roma. Em 23 de novembro, quando se torna primeiro-ministro, Mussolini envia a seu “caro, velho e fiel amigo de sempre” uma mensagem que termina com estas palavras: “alalà (grito dannunziano equivalente a “hurra”) para o fascismo de Cremona e para seu chefe.”
Ei-lo entronizado “duce de Cremona” pelo fundador do fascismo. Assim permanecerá por toda a duração do regime, a despeito das desgraças repetidas que afetarão sua carreira e dos golpes visando a derrubá-lo dessa base, verdadeiro bastião do fascismo intransigente. Aos trinta anos, Roberto Farinacci é um homem estabelecido, seguro de si, arrogante, fanático e megalomaníaco, tirando sua força do apoio cego de suas legiões e dos leitores de seu jornal Cremona Nuova, rebatizado Cremona Fascista. Como seu status de condottiero não é suficiente para sua vaidade e seu apetite por honrarias e ganhos, se inscreve na faculdade de direito de Modena, obtendo em 1923, ao fim de uma sessão suplementar para ex-combatentes, um título de doutor que lhe permite abrir um escritório de advocacia do qual mais tarde retirará grandes benefícios.
Nos arquivos de Roma, há um “dossiê Farinacci” que explica em que condições foi atribuída ao Ras de Cremona a láurea em direito. Em 1930, com efeito, durante um agudo conflito com o antigo secretário-geral do PNF, Mussolini encarregou o senador Piero Alberici de uma enquete a seu respeito, especialmente sobre eventuais prevaricações, havendo rumores, além disso, sobre a maneira pela qual fora “doutorado” por um júri complacente. Favorável a Farinacci, Alberici explicita em seu relatório que, se há pouca coisa a reprovar em sua conduta em matéria de moralidade e enriquecimento pessoal ligado a suas funções, a questão da tese de doutorado deve, por outro lado, ser examinada de perto.
O dossiê comporta um exemplar da “tese” de Farinacci, um opúsculo de trinta e três páginas intitulado “As obrigações naturais do ponto de vista da filosofia do direito e do direito civil,” e um exemplar da tese defendida dois anos antes na Universidade de Turim por um certo Morenghi, que o Ras de Cremona copiou quase que vírgula por vírgula. Após pesar prós e contras, Alberici conclui que não há razão para rever a decisão do júri e privar Farinacci de seu diploma. Significativa do espírito do tempo, sua argumentação merece ser citada:
O onorévole Farinacci não nega o fato – escreve o senador, explicando que a tese fora fornecida ao deputado de Cremona pelo professor Groppali, que em seguida se tornou seu inimigo – ele nega, por outro lado, saber que a tese fornecida pelo professor Groppali já servira para o doutoramento do advogado Morenghi alguns anos antes. Ele acrescenta que preparara outra tese sobre o tema “A administração do óleo de rícino aos subversivos pelos fascistas não pode ser considerada violência privada, mas simples injúria ou, na pior das hipóteses, ataque ou ameaça leve,” mas que, no momento de apresentá-la, o professor Groppali o desaconselhara em razão das ideias políticas do professor de direito penal, Florian, de maneira que, não mais possuindo o tempo necessário para examinar outra questão, ele terminara por ceder à insistência do professor Groppali e aceitar sua oferta. (...)
Considerando: a) que o honorável Farinacci, tendo se engajado convictamente em favor da manutenção da Universidade de Modena, ameaçada pela reforma Gentile, sabia ter o favor do meio universitário (...); b) que a sessão de exame de doutoramento de dezembro de 1923 fora aberta para único benefício dos ex-combatentes fascistas e tinha, pois, condições particularmente vantajosas para Farinacci; c) que era usual, nessa época, servir-se de teses de doutoramento já apresentadas por outros candidatos e que se podia adquiri-las barato, com o conhecimento, se não a tolerância, dos próprios professores da universidade (...); e) que Farinacci provara sua intenção e capacidade de redigir sua própria tese (...), convenhamos que não há por que considerar a questão com severidade e culpá-lo particularmente por um deplorável uso comum cujo fim exigiu, em 1925, a intervenção especial do legislador.
Mussolini não está nem um pouco preocupado em aplicar sanções às práticas universitárias fraudulentas do “duce de Cremona” ou aos negócios político-financeiros em que está envolvido. Se o investiga, é com o intuito de reunir suficientes provas de desvio para, se necessário, deixá-lo em situação delicada. As relações entre os dois não cessaram de se deteriorar depois que Farinacci teve de ceder o secretariado-geral do partido a Augusto Turati. O Duce o nomeara para o cargo em fevereiro de 1925, no contexto muito particular da retomada de controle que se seguira ao discurso de 25 de janeiro. Farinacci exercera suas funções com rigor fanático, e Mussolini usara habilmente esse fanatismo repressivo para aterrorizar seus adversários, quebrar a resistência parlamentar e impor as leis liberticidas. Mas, uma vez instalada a ditadura, se apressa em desvencilhar-se de seu tenente, ao qual deve muito, é verdade, mas com o qual não partilha o gosto pela violência gratuita nem a ideia de que o fascismo deve ser uma “revolução permanente.” Desde a primavera de 1926, portanto, Farinacci se encontra novamente em seu escritório de advocacia – primeiro em Cremona, depois em Milão – na reserva do partido e excluído do Gran Conselho. Ele não deixará, desde esse momento e nos dez anos seguintes, de lutar em escritos e discursos contra o establishment fascista e com o próprio Mussolini, sendo continuamente chamado à ordem, acumulando ameaças de sanções contra seu jornal – agora chamado Il Regime Fascista e de circulação verdadeiramente nacional – e contra si mesmo, admoestado publicamente durante uma reunião da direção do PNF pelo secretário-geral Turati e por Arnaldo Mussolini. Tudo isso sem outro resultado além da multiplicação de súplicas endereçadas pelo ex-ferroviário socialista ao patrão da nova Itália, num estilo choramingas que contrasta com sua arrogância frente aos outros hierarcas.
Os dossiês do secretariado particular do Duce contêm dezenas e dezenas de cartas, com dez a vinte páginas cada, nas quais o antigo Ras de Cremona exala sua amargura, enumera suas realizações e se diz pronto a aceitar qualquer cargo, por pouco que testemunhe de seu retorno às graças do Duce. Mussolini, que conhece sua capacidade de causar danos, mas deve levar em consideração o que Farinacci ainda representa para os fascistas de primeira hora, contenta-se em mantê-lo longe da central de comando e chamá-lo vigorosamente à ordem quando estima que passou dos limites. Como os outros fascistas intransigentes que as necessidades do momento aconselham a manter afastados, ele é de certo modo deixado na reserva, para o caso em que uma mudança brusca da conjuntura política, interna ou externa, torne necessário o retorno dos partidários da estrita ortodoxia fascista.
Seu retorno às boas graças se dá em 1935, quando, preocupado em reunir um consenso tão amplo quanto possível na perspectiva do conflito etíope próximo, Mussolini decide reintegrar Farinacci à alta hierarquia fascista, abrindo-lhe novamente as portas do Gran Consiglio. É hora de cerrar fileiras e, como a maioria dos outros hierarcas, o “duce de Cremona” é voluntário para a África, onde, após seguir um curso acelerado de pilotagem (para “chegar a Roma antes de Balbo se a sucessão se abrisse” no Palazzo Venezia), combate na mesma unidade aérea de Ciano, Ettore Muti e os dois filhos do Duce: a 15ª Esquadrilha de Bombardeio Disperata. Mas se destaca durante essa campanha apenas por uma aterrissagem forçada em território inimigo, em zona deserta – o que mesmo assim lhe valerá uma medalha de prata “por valor militar” – e pela perda de sua mão direita devido a um “acidente de tiro,” na verdade uma pescaria com granada que lhe permitirá obter, em seu retorno à Itália, glória, pensão e carta de mutilado, além do apelido de Martin Pescatore, maliciosamente dado por Ettore Muti.
É, portanto, um dirigente fascista reabilitado e reconciliado com o Duce que faz sua reaparição em Cremona na primavera de 1936. Ele passa o ano seguinte na Espanha, encarregado de uma missão pessoal junto a Franco e acompanhado de uma carta que prova seu retorno às boas graças de Mussolini:
Caro Franco
O portador desta é o camarada deputado Roberto Farinacci, cuja reputação você certamente conhece. É um homem que me segue desde 1914, um dos pioneiros do fascismo, membro do Gran Conselho, lutador de raça, valoroso oficial aviador na guerra africana. Ele me informará sobre a situação da Espanha nacionalista, agora a caminho da vitória, e deve expor a você minhas ideias a respeito do futuro.
Estou certo de que você o acolherá no mesmo espírito de amizade com que eu o apresento. Mussolini.
Nomeado ministro de estado em 1938, o “duce de Cremona” deve seu retorno a sua germanofilia militante. Mussolini, que optou pela aliança com Hitler, precisa do apoio dos ultras do fascismo para impô-la aos italianos, e quem melhor que Farinacci para dar o toque de reunir aos antigos esquadristas? Na hora em que Starace procura dar forma ao mito do “novo homem,” o modelo encarnado por Farinacci – combatente fanaticamente ligado ao fascismo e a seu Capo – não é o mais irrealístico, sendo, em todo caso, o que Mussolini escolhe para mostrar aos dirigentes do III Reich. Daí sua crescente influência no seio de uma equipe decisória longe de compartilhar de sua admiração pelo nazismo (o qual, segundo ele, “fez uma verdadeira revolução e não se transformou em ditadura burguesa, como o fascismo”) e da virulência de seu antissemitismo.
Os militares
Diante dos altos dignitários do partido e dos membros do governo sucessivamente escolhidos por Mussolini para os diversos cargos governamentais, os chefes do exército representam um contrapoder?
Entre os principais representantes da casta militar – na maioria saídos da classe dirigente tradicional e partidários ostensivos da monarquia – e o dominador da nova Itália impera, desde a Marcha sobre Roma, um compromisso tácito. O exército, ao qual o fascismo deve muito, não se envolverá em assuntos políticos. Diferentemente do papel que lhe fora confiado até 1914 em matéria de manutenção da ordem, ele deixa ao braço armado do partido, constituído pela Milícia, a responsabilidade pelo front interno. Aceita sem queixas ser subordinado a um poder e a um homem que, totalmente desprovido de competência militar, concentra desde 1933 todos os cargos ministeriais em matéria de defesa. Socialmente conservadora e politicamente à direita, sua hierarquia se acomoda bem à evolução do regime e não manifesta a menor oposição à penetração da propaganda fascista nas casernas. Em troca, goza de forte autonomia em relação ao partido, e os generais reconhecem apenas a autoridade do Rei e do Duce, opondo-se vigorosamente a toda ingerência sobre a instituição militar pelos dirigentes do PNF. Os generais exigem e obtêm a Milícia afastada das forças armadas, inclusive em posição subalterna, e consideram, já que não podem ter um dos seus à frente dos ministérios dos quais dependem as três forças, que os subsecretários devem sair de suas fileiras. É um princípio que Mussolini aceita com ainda maior boa vontade pelo fato de desconfiar do aumento de autoridade e poder que o controle – mesmo parcial – do instrumento militar poderia conferir a alguns de seus tenentes. Dos vinte e um subsecretários dos ministérios da guerra, da marinha e da aviação que se sucederão a partir de 1924, encontram-se apenas um membro da alta hierarquia fascista, Balbo, e três deputados e senadores. Todos os outros são de altos postos das três forças cuja nomeação e exoneração dependem somente da decisão do Duce, é verdade, mas que, pertencentes às mesmas instituições, mantêm entre si relações de solidariedade que influenciam fortemente a política de defesa da Itália fascista.
Então, se Mussolini detém nesse domínio a aparência de poder absoluto e tira disso um acréscimo de prestígio aos olhos da hierarquia fascista e das massas italianas, é evidente que essa onipotência é bastante ilusória. Em matéria de organização dos exércitos, escolhas estratégicas e técnicas, armamentos, tudo, em suma, que concorre para a defesa do país e a preparação para a guerra, são os chefes de estado-maior e seus subordinados que tomam as decisões essenciais, e Mussolini as reveste do lacre decisório supremo, sem jamais compreender do que se trata. Para que fosse diferente, teria sido necessário criar um estado-maior pessoal, capaz de guiá-lo no exame das questões militares: perspectiva que não podia aceitar sem pôr em dúvida o dogma de sua infalibilidade e competência universal.
Mais que chefe militar supremo, Mussolini surge, portanto, como uma espécie de mediador entre as forças armadas e os clãs que estruturam a alta hierarquia militar. Na ausência de um controle político severo, como o exercido na Alemanha pelo poder nacional-socialista, ele pode impor apenas a manutenção do equilíbrio entre os grupos de pressão, o que tem por efeito o imobilismo dos estados-maiores, paralisar todos os esforços de inovação em matéria de doutrina e material e, como consequência, prejudicar gravemente os preparativos de guerra. Desde os primeiros meses do conflito, a Itália pagará caro por essa autonomia excessiva das forças armadas, pela incapacidade dos chefes militares de coordenar a ação das três forças e por sua obstinação – comparável à do estado-maior francês – em conceber os conflitos futuros com os olhos do vencedor de 1918.
Quem melhor encarna esse imobilismo é o marechal Badoglio. Piemontês, nascido em 1871 em família da pequena burguesia rural, Pietro Badoglio já tem uma longa carreira militar quando eclode a Primeira Guerra Mundial. Oficial de artilharia, diplomado pela escola de guerra, combateu na Eritreia após a derrota militar de Adowa em 1896 e, quinze anos mais tarde, na Líbia, na guerra ítalo-turca. Tenente-coronel em fevereiro de 1915, cinco anos mais tarde é general de exército, chefe do estado-maior do exército (em substituição ao general Diaz, que se afastou por motivo de saúde), grã-cruz da Ordem Militar de Savoia e senador do reino.
Inicialmente indulgente em relação ao fascismo, Badoglio não tarda a condenar seus excessos, temendo que conduzam a um processo revolucionário. Na véspera da Marcha sobre Roma, declara que algumas dezenas de prisões e uns minutos de fuzilaria serão suficientes para deter a gente de Mussolini, o que lhe vale ser mantido no purgatório durante alguns meses, antes de ressurgir, aliar-se ao novo regime e obter o cargo de embaixador no Brasil.
De volta à Itália em 1925, Badoglio é nomeado chefe do estado-maior geral e permanecerá no cargo até dezembro de 1940. Nesse período, é também governador da Líbia (1926-1933) e comandante em chefe das tropas italianas na Etiópia após a destituição de De Bono. Sua vitória sobre os exércitos do Negus faz dele marechal da Itália, duque de Addis Abeba, cidadão honorário de Roma e “combatente pelos mais altos ideais da civilização fascista.” Coberto de honrarias, é igualmente encarregado da presidência de inumeráveis comitês e comissões, com remunerações atraentes que fazem desse pequeno-burguês um homem rico e cortejado, um igual dos aristocratas de grande envergadura que povoam os salões romanos e os corredores do Quirinal.
Badoglio não é, portanto, um homem de Mussolini e nem mesmo um fascista convertido. Mussolini o detesta e o faz vigiar por seus agentes e especialistas em escuta telefônica. Badoglio tampouco o aprecia, mas joga o jogo, usa luvas de pelica e embala o Duce com as cantigas que este tem vontade de ouvir. Passa mais tempo a fazer intrigas e guerrear verbalmente com seus rivais – Graziani ou Caviglia, que diz dele: “É um cachorro de palha que vai aonde o pedaço de comida for maior” – que a participar de manobras ou controlar os relatórios de seus subordinados. Completamente ultrapassado pela evolução dos armamentos e estratégias militares, busca sobretudo sobreviver, e para isso está pronto a todos os compromissos com o regime e seu Capo, reservando-se (sem acreditar realmente) para o golpe de graça que lhe será oferecido, em julho de 1943, pela traição dos hierarcas fascistas.
Dez anos mais jovem, Rodolfo Graziani é outra figura de proa da hierarquia militar fascista. Originário da província de Frosinone (sul do Lazio), terminou a guerra de 1915-1918 no posto de major e se destacou nas campanhas africanas, operando de 1921 a 1929 a reconquista da Tripolitana e a ocupação do Fezzan, depois dirigindo as operações sobre o front sul durante a guerra da Etiópia. Homem de personalidade violenta, colérico, passional, comandante disposto ao sacrifício mais que estrategista ponderado capaz de conduzir uma guerra moderna – Badoglio, que o detesta e inveja, define-o como “bom comandante de batalhão” – é adorado por seus homens e goza de certo prestígio junto à opinião pública, mas Mussolini, ao qual por vezes se opõe com certa energia, não o aprecia muito. “Dos dois maus militares que tive de suportar na vida,” dirá ele na época da República Social, “Badoglio e Graziani, restou-me o menor.”
Poder administrativo e tecnocracia
A pequena legião de hierarcas que, recrutados majoritariamente entre os esquadristas de primeira hora, têm sede no Gran Conselho e assumem alternadamente seu “ciclo” ministerial para em seguida exercerem, ao sabor dos desideratos mussolinianos, altas funções administrativas na Itália ou nos territórios de ultramar, constitui apenas parte da nomenclatura governamental fascista. Até o início dos anos 1930, esta permanece aberta aos homens do partido, e o diretório do PNF conserva função importante como matriz do pessoal dirigente. Grandi, Farinacci, Arpinati, Balbo, Bianchi e muitas outras vedetes do primeiro fascismo, mas também alguns personagens secundários, como Ferruccio Lantini ou Raffaele Riccardi, escalaram seus degraus, passando do status de federale (secretário de federação provincial) ao de membro do diretório do partido e, depois, ao exercício de uma função governamental. A partir de 1931, as coisas mudam. Os principais tenentes do Duce continuam, como vimos, a ocupar alternadamente postos de alta responsabilidade, ao passo que a cúpula do poder tende a se fechar às personalidades saídas da hierarquia partidária. Alessandro Pavolini, que em 1939 se tornará ministro da Cultura Popular, é um dos últimos hierarcas a se beneficiar de uma promoção governamental em seguida a um cursus honorum no seio do PNF. Bem verdade que, se o partido deixa de ser o viveiro no qual Mussolini escolhe seus colaboradores diretos, o revezamento é agora assegurado pelas corporações. A partir de 1930, com efeito, de vinte e oito presidentes das principais confederações sindicais fascistas, quatorze chegarão a uma função de subsecretário de estado ou ministro.
Essa evolução ilustra a natureza das relações entre o Duce e o Partido Nacional Fascista. De um lado – voltaremos a isso no próximo capítulo – uma ligação orgânica muito forte com uma estrutura destinada a enquadrar o corpo social, modelá-lo no sentido desejado pelo poder e formar uma nova elite dirigente; do outro, a constante preocupação de Mussolini de não dar aos principais dirigentes do partido a possibilidade de contestar sua posição hegemônica, com ou sem a cumplicidade do soberano.
Daí sua tendência mais e mais acentuada de querer governar com a administração. Aguardando a virada totalitária do regime, que, como mostra De Felice, dará a esse projeto um esboço de realização, desde a Marcha sobre Roma e durante os quinze anos seguintes a administração conserva uma influência considerável. Estreitamente submissa ao poder, é ao mesmo tempo instrumento dócil de sua política e caldeirão em que se elaboram e se impõem centenas e centenas de decisões, as quais exigem de seus preparadores tal competência técnica (econômica, jurídica ou outra) que o papel do dirigente supremo e seus colaboradores imediatos é frequentemente reduzido – do mesmo modo que para as decisões de natureza militar – ao de mediadores entre os altos funcionários e os experts encarregados dos dossiês.
Ao chegar ao poder, Mussolini tinha da administração uma imagem tão negativa quanto a da maioria de seus compatriotas, e mais ainda seus ex-camaradas socialistas. Ele a julgava pletórica, retrógrada, problemática e cheia de incapazes, preguiçosos e corruptos. Contudo, embora tente não aumentar demasiadamente o número de funcionários – quando mais não fosse para não sobrecarregar o orçamento do estado e evitar a colonização da administração por militantes fascistas em busca de sinecuras – tampouco busca “cortar gorduras” da máquina administrativa simplesmente para responder às exigências populistas de sua gente. Discípulo de Roberto Michels, aprendera com seu mestre que a burocracia, preocupada em conservar seus privilégios e seu prestígio, volta-se sempre para o lado do poder que a emprega, e que este tem todo interesse em negociar seu apoio. Portanto, evita proceder, como reclamava ruidosamente a ala intransigente do partido, a uma “depuração” severa da função pública, seguida da “fascistização” drástica de seus quadros. Contenta-se, após impor em 1923 uma reforma de envergadura do aparelho do estado, em frear a progressão dos efetivos, introduzir em certas administrações sensíveis – Interior ou Relações Exteriores – certo número de fascistas fiéis e assegurar a boa vontade dos funcionários concedendo-lhes vantagens diversas.
Essa resistência do aparelho do estado à fascistização, desejada por Mussolini e de certo modo organizada por ele, não deve, contudo, iludir. Não há, nos círculos do poder da Itália fascista, dois mundos estritamente separados: da burocracia e da organização partidária. Com o tempo, pelo jogo de aposentadorias, criação de empregos ou simples adesão, a administração se povoou de titulares da carteira do PNF. De ano em ano, o número de aderentes à Associação Geral Fascista de Funcionários não cessou de crescer, e, a partir de 1929, a tessera [a carteirinha] do partido se tornou o viático indispensável para quem desejasse fazer carreira na função pública. Mas, de um lado, a adesão ao partido efetuada por agentes de todos os níveis, formados sob o regime precedente e ligados aos valores liberais, nada revela de suas convicções profundas e, do outro, mesmo entre os funcionários fascistas de estrita obediência, a lealdade ao Duce, como representante supremo do estado, prevalece geralmente sobre qualquer outra forma de aliança.
Concebe-se que, nessas condições, com exceção talvez do breve período de ausência de poder central que se segue ao assassinato de Matteotti, Mussolini tenha continuamente velado para subordinar o partido ao estado; a hierarquia partidária não engajada em funções governamentais à autoridade da alta administração. Nada ilustra melhor essa estratégia que o papel atribuído aos prefeitos em cada província da Península. Das disposições governamentais adotadas desde o fim de 1922 e, sobretudo, da circular aos prefeitos de janeiro de 1927 destaca-se claramente que, no pensamento do chefe do governo, o partido estava subordinado ao estado e que, em caso de litígio ou conflito entre o prefeito e o secretário da federação provincial do partido, a última palavra deveria pertencer ao primeiro. De novo, não se tratava de haver separação estanque entre a administração central, representada por aquela autoridade, e a organização partidária, encarnada pelo federale. Ficava bem claro que o prefeito era um prefeito fascista, agindo em nome do regime fascista, mas a natureza do regime, evidenciada pelo signatário da circular, não implicava que o partido fascista tivesse precedência sobre o representante titular do estado.
A adesão ulterior de numerosos prefeitos ao PNF ou a conversão ao regime de agentes saídos da administração liberal em nada mudaram esse dado fundamental. Nos trabalhos do inglês R.C. Fried e do historiador italiano Emilio Gentile vê-se que, de 1922 a 1929, dos 115 funcionários nomeados por Mussolini, 86 tinham saído do funcionalismo clássico, contra somente 29 vindos do partido e, na metade dos anos 1930, a repartição entre as duas categorias estava equilibrada. A osmose entre as duas estruturas, portanto, progredira nesse domínio como em todos os outros, mas em grau menor que para o conjunto do pessoal encarregado de funções administrativas.
Se o uso que Mussolini faz da máquina burocrática e dos indivíduos que acionam suas engrenagens vai principalmente no sentido do reforço de seu poder, não é exatamente essa a relação que mantém com uma nova categoria de decisores – hoje chamados “tecnocratas” – que, na Itália dos anos 1930, reúne funcionários especializados em questões que exigem grande competência técnica, principalmente nos domínios econômico e financeiro, professores universitários de grande competência e homens de negócios saídos do setor privado. Seu campo de intervenção privilegiado é o da esfera pública da economia, à qual a política fascista de luta contra a crise conferirá, a partir de 1931, um formidável poder de absorção e um papel de condução da economia que se traduz notadamente pelo desenvolvimento de grandes institutos e agências controlados pelo estado: Istituto per la Ricostruzione Industriale (IRI), Istituto Mobiliare Italiano (IMI) etc.
As personalidades com papel importante nesse setor determinante para a condução da política econômica do partido, e por extensão para a da diplomacia fascista, saíam de esferas políticas diversas. Oscar Sinigalia e Agostino Rocca – o primeiro eliminado em 1938 por ser judeu, o segundo discípulo da “revolução gerencial” de James Burnham – eram originalmente fascistas convictos, ao passo que Alberto Beneduce e Arturo Osio tinham saído respectivamente das fileiras da social-democracia e do Partido Popular. Todos, em contrapartida, eram adeptos do primado da técnica sobre a política e se acomodavam perfeitamente bem a um sistema que ligava a economia de mercado ao intervencionismo do estado, desde que este respeitasse os privilégios do capital e garantisse a ordem pública.
O exemplo de Giuseppe Volpi é emblemático do lugar ocupado por certos homens de negócios – cuja carreira se desenrolou sobre as duas vertentes do privado e do público – nos círculos de poder da Itália fascista. Nascido em 1877 em Veneza, em uma família da média burguesia (seu pai era engenheiro civil e combatera em 1859 ao lado de Garibaldi), Volpi é autodidata. Ao sair do liceu, fez estudos em direito, que abandonou rapidamente para se lançar em uma carreira comercial orientada para os Bálcãs, primeiro no negócio de grãos, depois no de importação e exportação. Verdadeiro aventureiro dos negócios, cedo engajado nas frutíferas empresas mineiras, ferroviárias e outras, muito ligado à aristocracia veneziana e ao mundo italiano das altas finanças – gente como Stringher, Joel e Toeplitz – na véspera da Primeira Guerra Mundial encontra-se à frente de um formidável império industrial e financeiro cuja peça-mestra, a SADE (Società Adriatica di Elettricità), alguns anos mais tarde se tornará uma das “grandes” da indústria elétrica italiana graças à utilização do “carvão branco.”
Quando a Itália entra no primeiro conflito mundial, Volpi tem quarenta e cinco anos. Homem de negócios conhecido e rico, encarna o establishment giolittiano, liberal mas preocupado com a preservação da ordem social, afeito à ideia de uma expansão pacífica do capitalismo italiano no Mediterrâneo Oriental, perfeitamente à vontade em um sistema que une estreitamente o mundo dos negócios ao da política. Sua idade e seu status (os chefes de empresas que trabalhavam para o exército ou a marinha estavam temporariamente isentos do serviço ativo) o dispensam de vestir uniforme, mas ele decide se engajar assim mesmo, por cálculo e por patriotismo sincero, e é designado, como subtenente da milícia territorial, para Florença e para o ministério da Guerra (direção-geral da artilharia e da engenharia), com a autorização de residir onde sua “ação será mais eficaz.” Permanecerá apenas sete meses no serviço ativo, o tempo de ser reconhecido como voluntário e merecer, uma vez terminada a guerra, a medalha comemorativa da campanha de 1915.
Giuseppe Volpi não tem, portanto, muita coisa em comum com o fascismo original. Grande burguês, muito ligado a Giolitti, ele não precisa reivindicar um “lugar ao sol” como os representantes das camadas sociais que formam o grosso dos batalhões do primeiro fascismo. Suas qualidades de negociador e expert nas questões balcânicas o fazem acompanhar a delegação italiana a Versalhes, depois a Rapallo, em 1920, onde se joga a sorte do novo estado iugoslavo. Em Veneza, ainda que de início tenha participado com outros industriais do financiamento dos Fasci, suas relações com o chefe do esquadrismo local, Pietro Marsich, são execráveis e assim permanecerão durante todo o seu protoconsulado na Líbia.
Volpi, que o soberano em breve elevará à dignidade de senador do reino e conde (di Misurata) “por seus grandes serviços ao país,” em 1921 se vê indicado por Giolitti ao cargo de governador da Tripolitana, função que deixará em 1925 para assumir, junto a Mussolini, a de ministro das Finanças. No intervalo, o Duce conquistou o poder e venceu as etapas decisivas na implantação da ditadura. Giuseppe Volpi, que se encontrava na capital no momento da Marcha sobre Roma (para uma entrevista com seu ministro das Operações Militares em Tripolitana), foi aparentemente surpreendido pela vitória do fascismo, mas não desfavorável à virada dos eventos. Nem a persistência do terror esquadrista nas províncias ou o assassinato de Matteotti parecem tê-lo chocado particularmente, preocupado que estava com a pacificação da Líbia, a construção do porto Marghera, perto de Veneza, na qual suas empresas estavam intimamente envolvidas, e a gestão a distância das vinte sociedades das quais era presidente ou vice-presidente. Homem da ordem ele fora sob Giolitti e consortes, homem da ordem permanece sob a ditadura dos Fasci.
Ministro das Finanças por três anos, Volpi teve, como vimos, uma difícil batalha para manter a balança relativamente equilibrada entre os desideratos do mundo dos negócios – do qual, para todos os efeitos, era o representante – e o voluntarismo monetarista do chefe do governo. Quando deixou o cargo, em 1928, a virada intervencionista do regime já estava bem-estabelecida, e ele mesmo, a despeito de suas profissões de fé liberais, não teve papel pequeno nessa evolução.
Após um intervalo de seis anos, durante os quais se consagra quase inteiramente a seus negócios nacionais e internacionais, encontramos o “doge de Veneza” à frente da Confindustria, a poderosa central patronal que se tornou “fascista” em 1925 e em breve será transformada em verdadeiro organismo de estado. Volpi, como boa parte de seus “camaradas industriais” próximos ao regime, como Conti, Olivetti e Donegani, comporta-se como Janus, consciente da relação de força entre o poder político e o mundo dos negócios. De um lado, explica-nos seu biógrafo, não hesita em adotar o estilo e os ritos marciais do regime, incluindo “os tiques do discurso mussoliniano: as mãos nos quadris, o queixo projetado à frente;” do outro, mantém um diálogo cotidiano com os representantes do governo, quer para impedir o Duce e sua equipe de estender os poderes do estado empreendedor e limitar a autonomia das empresas, quer para cortejar o regime e se antecipar às variações de humor de seu Capo.
Seria possível citar outros exemplos de carreiras reveladoras da osmose permanente entre o centro político do poder e os círculos periféricos nos quais evoluem industriais, financistas, representantes da alta hierarquia administrativa ou militar e dignitários do partido: a de um Guido Jung, por exemplo, banqueiro e ministro das Finanças de 1932 a 1935, a de um Beneduce, administrador da poderosa sociedade financeira Bastogi, chamado à presidência do IRI. Todos esses senhores desempenharam, a partir de 1933-1934, o papel de mediadores entre o estado fascista e os grandes interesses privados, por vezes obrigando Mussolini se não a dividir seu poder, ao menos a levar em conta, na condução de sua política, as opiniões e por vezes as resistências da tecnocracia.