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O “Homem do Consenso”
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O período entre os acordos de Latrão e o início da guerra da Etiópia representa o apogeu da era fascista. Não é isento de dificuldades para o regime, é verdade. A crise econômica atinge a Itália a partir 1930, antes mesmo de Áustria e Alemanha sofrerem o contragolpe do crack de Wall Street. Ela causa uma queda de produção da ordem de 33% e um aumento do desemprego que, a partir de 1932, afeta mais de um milhão de assalariados. As relações com a Igreja e o Papado, que conheceram breve episódio de euforia em seguida à Concordata, deterioram-se bruscamente no início de 1931 em função de problemas com a mobilização da juventude. A estabilidade do regime, contudo, parece pouco afetada por esse acúmulo de nuvens. O partido, solidamente controlado por uma hierarquia devotada a seu Capo e cujos elementos contestadores foram eliminados ou marginalizados, prossegue sua tarefa de conformação e politização das massas.
Os grandes canteiros destinados a modernizar o país e ao mesmo tempo oferecer ao mundo uma imagem favorável do fascismo avançam rapidamente, trate-se da construção ou modernização ferroviária e rodoviária, do “melhoramento” das zonas mais ingratas ou do projeto urbanístico e arqueológico que se propunha a fazer da “Roma de Mussolini” a réplica moderna da antiga capital do Império. Os trens têm a reputação de “chegar na hora” e regridem as “taras sociais” ligadas à industrialização e à urbanização (delinquência, prostituição, suicídio, doenças contagiosas etc.), ao mesmo tempo que diminui o déficit migratório crônico que por meio século caracterizara a situação demográfica do país. É o momento de celebrar o decennale (primeiro decênio da era fascista), dos grandes cruzeiros aéreos de Balbo, do triunfo da squadra azzura na copa do mundo de futebol e do oficioso terceiro lugar nos jogos olímpicos de Berlim.
Embelezado ou não pela propaganda fascista, esse quadro produz efeitos no sentimento público. Renzo De Felice provocou um pequeno terremoto na Itália dos anos 1970 quando, ao arrepio da historiografia dominante intensamente marcada pela cultura do antifascismo, foi o primeiro a afirmar que, durante os cinco ou seis anos que se seguiram à concordata com o Papado, houve um consensus em torno do regime e de seu chefe. Ele não afirmou que a adesão fora unânime ou assumira a forma de uma comunhão fanática entre o povo italiano e o Duce. Explicou somente que, tudo bem-pesado, os italianos estavam mui convenientemente acomodados à ditadura mussoliniana e que, para explicar sua aceitação por um povo com a reputação de cético e crítico, não bastava citar a força de intimidação do aparelho repressivo instaurado pelo ex-capofila do socialismo revolucionário.
Expostas em uma Itália atormentada pelos efeitos da desindustrialização, pelo crescimento paralelo dos terrorismos vermelho e negro e pela ameaça real ou imaginária de um golpe de estado orquestrado no exterior, as teses de De Felice criaram viva polêmica. Acusou-se De Felice de ter fornecido uma espécie de carta de legitimidade ao fascismo, de ter esculpido um “monumento ao Duce” (Mack Smith) ao dizer que o regime tivera o apoio das massas e que isso se devia ao fato de o fenômeno fascista não ser estranho às tradições e à cultura de uma fração importante da sociedade italiana. Diante de tal oposição, foi preciso um dos chefes históricos do antifascismo, o comunista Giorgio Amendola, apoiar a tese do consenso e jogar todo o seu peso no debate para que ele deixasse de ser tão agressivo.
A vinte e cinco anos de distância, a batalha em torno do “consenso” parece surreal. Poucos historiadores do fascismo ainda o questionam, particularmente entre os especialistas italianos do ventennio nero. Se há discussão, ela se dá menos sobre a existência que sobre a natureza do fenômeno. Trata-se de aceitação “passiva” ou adesão entusiástica dos italianos ao projeto de Mussolini e seus tenentes mais próximos? Qual o peso respectivo do espontâneo e do fabricado, do desejado e do sofrido nas manifestações de massa de que se alimenta a religião fascista? A que figura, humana ou abstrata, se dirigem os sinais de devoção secular em um país tão fortemente cristão e ligado à Igreja e a seus padres quanto a Itália dos anos 1930? Qual o lugar, erigido em mito e personagem sagrado, ocupado pelo chefe carismático na religião patriótica instaurada pelo novo regime? De que meios, enfim, dispôs ele para se assegurar, ao menos nessa fase de sua história, do apoio maciço da população italiana? Essas são algumas das perguntas que eu gostaria de tentar responder no presente capítulo.
A solidão do poder
Para começar, voltemos para junto do nosso personagem após a longa exploração dos círculos do poder. Em março de 1934, no momento em que se dá o “segundo plebiscito” – a aprovação da lista de deputados designados pelo Gran Conselho por 10.526.504 “sí,” em pouco mais de 10,5 milhões de votantes, contra 15.201 “no” – Mussolini acaba de dobrar o cabo dos cinquenta anos. Conserva uma robustez, uma energia e uma capacidade de trabalho invejadas por vários de seus colaboradores mais jovens, ainda que, em função das necessidades da propaganda, a tendência seja ampliar ao infinito as qualidades físicas e morais do novo César. Se não passa todas as noites debruçado sobre a mesa de trabalho, como dá a entender ao passante tardio a luz sempre acesa na Sala do Mappamondo, pode trabalhar quatorze ou quinze horas seguidas, parando apenas o tempo de engolir o pouco de comida autorizado por seu regime, e se é verdade que boa parte desse tempo é ocupada no exame de questões secundárias, ele é sem dúvida um dos homens de estado de seu século que se consagrou com mais intensa e exclusiva paixão à condução dos negócios públicos. “Eu sou a mula nacional,” escrevera ele em 1925 a d’Annunzio, “ando carregado de muitos fardos.”
Toda essa ação, no entanto, começa a sentir os efeitos da idade, aos quais se junta a tensão que inevitavelmente acompanha o exercício prolongado do poder ditatorial. Para conservar esse poder, para impor sua vontade às diversas facções e clientelas que disputam os papéis principais no seio de seu círculo próximo e nas esferas dirigentes do partido, é necessário ainda batalhar com firmeza, fazer fracassarem eventuais conjuras, velar para que nenhum hierarca adquira peso suficiente para afetar sua própria autoridade e arbitrar o tempo todo as comissões de experts. Mussolini está nervosamente cansado desse jogo. Seu organismo, já abalado pelos excessos da juventude e portador dos estigmas da guerra, deve pagar o preço desse permanente combate físico e moral.
Com o tempo, efetivamente, o homem se tornou sombrio. A maioria de suas biografias remonta sua mudança de humor à morte de Arnaldo, em dezembro de 1931. Mais que o choque afetivo provocado pelo falecimento de seu irmão mais novo, essa morte privou o ditador da única pessoa na qual teve absoluta confiança, o único, além de Margherita Sarfatti, com quem podia se deixar levar e ter alguns momentos de autêntico relaxamento. A ruptura com a jornalista veneziana pouco tempo depois só fará aumentar a profunda solidão em que ele irá viver, inclusive durante sua longa ligação com Claretta Petacci. Certos antigos traços de caráter serão acentuados pelo recesso solitário do anfitrião do Palazzo Venezia: a desconfiança; o ceticismo; o desprezo pelos homens; a incapacidade de estabelecer com seus pares, e menos ainda com seus mais próximos tenentes, relações de amizade e confiança; um pessimismo profundo em relação ao mundo que o cerca. Então, ele resiste cada vez menos à sua paixão quase maníaca pelo detalhe. Quanto mais desconfia de seus auxiliares, mais tem necessidade de se envolver em tudo, controlar a estrita execução de suas ordens, examinar relatórios que tratam de pequenas questões provindos da polícia, da OVRA, dos carabinieri, dos prefeitos. As menores denúncias a respeito da vida privada ou da suposta corrupção de um hierarca, as mais anódinas escutas telefônicas são gravadas, classificadas, anotadas e cuidadosamente conservadas nos dossiês do secretariado particular – o que atualmente oferece à história uma mina de informações sobre suas relações com os pesos-pesados do partido.
Longe de alimentar uma desconfiança lúcida em relação a seu próprio julgamento, o pessimismo que impregna seus pensamentos e determina sua ideia da natureza humana conforta Mussolini em sua certeza de ser distinto do “rebanho,” portador de um destino fora de série e investido de uma missão que só ele é capaz de cumprir. A adulação de seus próximos e o culto que se avoluma em torno de sua pessoa agem na mesma direção. Com o tempo, forma-se um vazio em torno dele, e cada vez mais ele tende a confiar em seu “faro” e em sua “estrela,” e não em um exame racional das questões submetidas a sua decisão.
Resulta que Mussolini é ao mesmo tempo capaz de acumular uma infinidade de informações úteis sobre esta ou aquela questão e incapaz de decidir, salvo pelo feeling, em favor de uma ou outra das soluções propostas por seus colaboradores, sobretudo quando o dossiê comporta aspectos técnicos que requerem a opinião de experts: finanças, obras públicas, agronomia e, mais ainda, o caso dos armamentos ou da estratégia, com graves consequências em matéria de defesa e preparação da guerra. Persuadido de sua infalibilidade, governa por aproximação, como animal político habituado a todas as astúcias do ofício e especialmente bom em dominar os problemas internos. Para o resto, faltam-lhe saber separar entre essencial e acessório e dotar a célula governamental que ele dirige de uma equipe de especialistas (um estado-maior militar ligado a sua pessoa, por exemplo) em condições, diante das prolíferas comissões de experts da burocracia fascista, de assisti-lo em sua tarefa decisória.
O culto ao Duce
O que hoje sabemos sobre a personalidade profunda de Mussolini, sobre seu estado de saúde, sobre os efeitos de uma enfermidade psíquica que o afasta da realidade concreta, alimenta seu interesse por minúcias e o impede de se consagrar inteiramente às questões das quais depende a sorte do país, o povo italiano ignorava quase totalmente em 1932-1934, quando começa o que De Felice chamou de “parábola descendente” do regime. E continuará a ignorar até o dia em que a guerra revelará o declínio físico e psíquico do Duce. A imagem que se impõe a todos até essa data é a que a propaganda fascista se empenhou em difundir urbi et orbi durante anos, e que faz do antigo professor romagnol um imperador romano dos grandes tempos: ao mesmo tempo chefe guerreiro, árbitro de facções, dono de um poder absoluto a serviço da maioria e pai da pátria dotado de uma auctoritas, de uma “graça” que faz dele um indivíduo sobre-humano.
Murado em sua solidão megalômana, Mussolini nada fez para desencorajar os organizadores do culto de sua personalidade. Emilio Gentile mostrou, em um maravilhoso livro publicado em 1995 – Il culto del littorio – que um dos principais mecanismos utilizados pelo fascismo no poder para obter a adesão das massas a seu projeto político foi a criação de uma religião patriótica, cuja origem deve ser pesquisada no “estado de efervescência coletiva” produzido pela guerra e que, em seguida à grande matança, começara a se introduzir no antigo espírito combatente e em movimentos como o arditismo e o futurismo. Essa religião, caracterizada por uma retórica sacralizante e uma liturgia inspirada no ritual católico, tinha seus oficiantes – os representantes da hierarquia partidária – seus mártires e seus santos: heróis da “guerra patriótica” e combatentes em camisa negra caídos durante as batalhas enfrentadas pelo esquadrismo. Tinha seus lugares de culto (as case del fascio, a Exposição da Revolução Fascista, inaugurada em 28 de outubro de 1932 para o decennale), suas vastas assembleias de crentes, sua simbologia encarnando a violência destrutiva e purificadora (o manganello, o fogo), o desprezo pela morte, a unidade da nação e da autoridade do estado (o feixe do lictor), seus ritos de iniciação e comunhão (apelo aos mortos, cortejos fúnebres, juramento fascista etc.). E, claro, tinha seu deus, a pessoa de Benito Mussolini.
Esse não desaprovou, dissemos, o culto de sua personalidade. Mas tampouco o inventou: à diferença do que se passou na Alemanha e na União Soviética, o culto do chefe se criou na Itália depois da aparição do mito mussoliniano e da institucionalização da religião patriótica pelo regime. Além disso, esse mito evoluiu muito com o tempo. Já para os socialistas de Romagna, e depois para a maioria revolucionária que triunfa no congresso de Reggio Emilia, Mussolini é o Duce – o “guia” – segundo uma tradição semântica própria à extrema-esquerda italiana, a personificação de um socialismo intransigente portador das esperanças do proletariado. Após a “traição” de 1914, tornado cabeça de chave do intervencionismo de esquerda, ele simboliza para os representantes dessa corrente o “novo homem,” a geração de recusa da Italietta giolittiana, o porta-voz de todos aqueles para os quais a guerra representa a antecâmara da revolução.
Mas após o armistício não é sobre sua pessoa que se concentram as esperanças dos combatentes em busca de um herói nacional que personifique a “revolução italiana,” mas sobre Gabriele d’Annunzio, mítico promotor das mais temerárias ações dos tempos de guerra e defensor intransigente da causa fiumiana. No palmarès das ações gloriosas, Mussolini está longe de ser o mais titulado e, entre os dirigentes do primeiro fascismo, numerosos são os que, à imagem de um Balbo ou de um Starace, poderiam contestar sua liderança se a aptidão para dirigir o movimento se medisse em número de medalhas. Ele precisará esperar a constituição do Partido Nacional Fascista, em 1921, para ser reconhecido por seus pares como “duce do fascismo,” e nessa data sua proeminência ainda se funda sobre suas qualidades de guia político, e não sobre uma ascendência carismática comparável à do Comandante. Somente após a eliminação de toda oposição, em 1926, consecutiva à promulgação das leis de “defesa do estado” e à sujeição dos últimos rebeldes esquadristas, ele será oficialmente entronizado pelos chefes do partido como “guia supremo” do fascismo – base de um mito que, na preocupação em manter o equilíbrio entre as ambições individuais, os hierarcas do regime serão os primeiros a subscrever.
Assim, o mito e o culto de Mussolini se desenvolveram por consenso, primeiramente no seio do partido, apoiando-se sobre a definição de capo, de “chefe,” nas diversas versões da nomenclatura do regime; a última, que data de 1938, define-o como “o criador do fascismo, renovador da sociedade civil, Capo do povo italiano, fundador do Império.” Em 1922, seis meses antes da Marcha sobre Roma, Camillo Pellizzi, para quem “uma nação em marcha não se resume a um chefe,” já escrevia, falando em seu Diário sobre o elo entre a figura aparentemente ordinária do dirigente fascista e uma história nacional considerada a longuíssimo prazo:
Mussolini: velho legionário romano tornado camponês ou pequeno artesão da Romagna durante algumas dezenas de gerações; despertado por um frenesi inconsciente de poder; revolucionário das coisas e das massas; privado de interioridade; privado de emoções; (...) inimigo indiferente de tudo e de todos; indiferente a si mesmo; vontade irrefreável a serviço de um fim, de uma inspiração e uma necessidade espiritual que não são as suas, que não estão em sua alma. Sua alma não pode ser aquela de um vulgar camponês. Sua vontade é uma ordem que lhe é dada pela história da Itália.
Dez anos mais tarde, é um dos principais hierarcas do regime, Dino Grandi, prestes a deixar o ministério do Exterior, quem confia a seu Diário:
A vida de um homem e a vida de um povo, sem poesia, não é vida. Mas a vida não é feita apenas de poesia. (...) Ele é o País. Que Deus proteja e guie verdadeiramente seus esforços. Nós, os homens comuns, nós passamos. Ele permanece. E a alegria de servi-lo, tê-lo servido e poder servi-lo novamente, lá onde ele quiser, é ainda a melhor recompensa.
Como o precedente, esse texto não é destinado ao público e, pois, conserva certa moderação, à diferença de milhares e milhares de declarações oficiais, discursos pronunciados pelos “homens de Mussolini” – grandes e pequenos chefes do partido único – artigos de imprensa e libelos de todo gênero que são o infatigável florilégio da apologética fascista. O tom é dado por Augusto Turati, secretário-geral do PNF de 1926 a 1930 e verdadeiro fundador do culto mussoliniano: “Não somente Mussolini é um capo, o único Capo. Aquele de quem emana todo poder. O piloto, único piloto, que nenhum tripulante pode substituir,” mas, acrescenta em um texto datado de 1928, é “o mais belo, o mais forte, o melhor dos filhos” de nossa mãe Itália.
Não há um hierarca, grande ou pequeno, servidor incondicional ou crítico da política conduzida pelo ditador que, num momento ou outro, não tenha escrito sua estrofe hagiográfica. Os dossiês do secretariado particular são plenos dessas profissões de fé mussolinianas, mesmo quando se trata de personalidades tão pouco dóceis quanto Farinacci, Arpinati ou Balbo. Sem dúvida há nessa devoção ostensiva uma forte dose de espírito cortesão, de bajulação tática tendo por objetivo satisfazer ambições diversas. Mas isso explica apenas parcialmente o fenômeno. Mais decisiva é a natureza das relações quase clânicas que o “guia supremo” mantém com seus velhos lugar-tenentes.
Que Mussolini tenha conduzido sobre o terreno político, e não à frente de suas legiões, o combate vitorioso contra o regime defunto e contra as forças que o ameaçavam não o priva de sua aura de general vencedor. Passadas as incertezas e hesitações que caracterizaram sua conduta até o início de 1925, foram relações homem a homem fundadas sobre a fidelidade recíproca, a troca de serviços e a absoluta devoção do “vassalo” pelo “senhor” que se estabeleceram entre os antigos ras e o patrão da Itália fascista. Têm papel aqui, em indivíduos cuja experiência maior é aquela da guerra e do esquadrismo, todas as facetas de uma memória coletiva enraizada em dois milênios de história e na qual se misturam as imagens do imperator romano – general vitorioso levado ao poder por suas tropas – do cavaleiro medieval, do condottiero moderno e do chefe de bando das guerras do Risorgimento. A passagem pelas unidades de arditi, nas quais reinava esse espírito de clã e de devoção absoluta ao chefe, pesou fortemente nesse sentido, mesmo que, repitamos, o carisma mussoliniano tenha se alimentado mais de sucessos políticos que de virtudes e proezas bélicas.
Vimos o próprio Mussolini não deixar de plasmar sua imagem de “super-homem,” modelo aos italianos da era fascista – modelo inigualável, é claro, mas para o qual deveriam convergir os esforços. A outros, no entanto, deveria caber a tarefa de instrumentar essa imagem e transformar o mito em objeto de culto absolutamente central na religião patriótica concebida pelos grandes sacerdotes do regime. Primeiro a Starace, principal organizador do culto, inventor notadamente do cerimonial que deveria acompanhar as aparições públicas de Mussolini, como a “saudação ao Duce,” e de diversas instruções relativas à maneira de grafar, em todos os documentos públicos e em letras maiúsculas, a palavra Duce. Desde o início dos anos 1930, na linha do discurso pontifical sobre o “homem da Providência,” rapidamente recuperado e amplificado pela propaganda fascista, assiste-se a uma heroificação e logo a uma santificação crescente do personagem. Não é mais somente o “homem que tudo faz” da revolução fascista, ao mesmo tempo pensador, homem de estado, legislador, escritor, artista, construtor de impérios e também trabalhador da terra, artesão hábil no manejo do ferro e do fogo, atleta excelente em todas as disciplinas do corpo; em suma, o gênio universal reunindo em si as virtudes e o carisma dos maiores heróis do passado: César, Augusto, Napoleão ou Garibaldi. É também e sobretudo o profeta, o apóstolo, o redentor, o representante infalível de Deus sobre a terra e, por que não, o próprio Deus. Não foi Asvero Gravelli, um dos primeiros dirigentes das vanguardas estudantis dos Fasci de combate, quem escreveu: “Deus e a história se chamam hoje Mussolini”?
Quem diz religião e culto diz também teologia e vulgata ensinada ao bom povo e, para começar, às gerações de jovens crentes. À escola de “mística fascista,” fundada em 1930 por um grupo de universitários militantes, cabe o cuidado de teorizar a primeira, completamente orientada para a exegese do discurso mussoliniano e para a busca de uma síntese entre religião fascista e religião católica. Ao catecismo ensinado em todos os níveis da “melhoria cultural” oferecida às jovens gerações – escola elementar, ensino secundário e universitário, balillas, juventude fascista, GUF etc. – cabe o de formar espíritos e corações na crença da infalibilidade do Duce e do caráter sagrado de sua missão terrestre. “O Duce tem sempre razão,” proclama em seu artigo 8º o credo do jovem fascista, e em um texto de 1926, “A oração do pequeno italiano,” cujo autor, Olindo Giacobbe, publicou uma Vida de Benito Mussolini contada às crianças, pode-se ler:
Oh, Senhor, agradeço me teres feito nascer italiano, sobre a terra onde mais resplandece o sorriso de tua divina beleza! Tu, que fazes sair do coração de minha Pátria a luz de tua Igreja. (...) Aumenta, oh, Senhor, a potência de nosso Rei e enriquece sua coroa de novas joias. Guarda e protege a vida de nosso Duce e que tua graça o assista nas empreitadas mais audaciosas, para que possa bem conduzir a missão que Tu lhe confiaste no mundo. Amém!
Educação das massas e culto do Capo estão assim estreitamente ligados. Emilio Gentile mostrou que, para além de seus aspectos mais grotescos, esse culto tinha por função fazer com que cada indivíduo participasse da realização do projeto coletivo fascista, que se propunha a inventar uma nova civilização, moldar um “novo homem” de acordo com o modelo do mito vivo representado pelo “Capo fundador.” A este, investido de atributos divinos, cabia suscitar uma nova fé capaz de “transformar as massas em uma comunidade moral organizada de maneira totalitária.”
Como essa mensagem foi passada para uma população italiana fortemente ligada a sua fé católica e enquadrada por um clero atento a todo desvio espiritual? Primeiro, graças à aliança com a Igreja realizada em 1929. Se, para os dirigentes e intelectuais fascistas, Mussolini era o herói surgido da história nacional, para o homem das ruas ele era o “homem da Providência” assim chamado por Pio XI após a conclusão da Concordata. Evidentemente, essa expressão não tinha para o Papa o sentido de santificação do chefe do governo. Mesmo assim, ela lhe fornecia um tipo de unção religiosa que situava sua pessoa e sua ação na esfera do sobrenatural. É verdade que as relações entre o Papado e o estado fascista não foram sempre ensolaradas. Mas, desde que Mussolini não cruzasse as fronteiras do intolerável declarando-se chefe de uma religião pagã, a Igreja podia perfeitamente se acomodar ao status que lhe era implicitamente reconhecido pela fórmula pontifical: o de indivíduo excepcional enviado por Deus para afastar a Itália do espectro da descrença.
Para a massa dos italianos, nessa época ainda composta por uma forte proporção de habitantes rurais, o mito do homem providencial tinha um significado mais concreto: se enraizava em uma antiga prática de heroificação e santificação de guias populistas – pequenos nobres revoltados contra um barão tirânico, pandilheiros, justiceiros e outros “Robin Hoods” – cujo último representante fora Giuseppe Garibaldi. À exceção das grandes metrópoles industriais e dos campos “vermelhos” do norte e do centro-norte da Itália, onde a politização era bastante avançada durante a guerra e onde se sofrera particularmente o terror esquadrista, um fenômeno idêntico jogou a favor de Mussolini em seguida à Marcha sobre Roma. Para numerosos representantes das classes populares não afeitos às ideias socialistas, o vencedor dos “bolcheviques” surgira ao mesmo tempo como herói que soubera poupar a Itália dos sofrimentos da guerra civil, muralha protetora contra um levante revolucionário antinacional e antirreligioso e guia saído do povo, defensor dos “pequenos” contra os “grandes”: três antífonas da retórica populista, mas também três razões para que a maioria dos italianos considerasse Mussolini o “homem providencial.”
O culto do Duce tinha por objetivo zelar por esse mito de homem da Providência, guia infalível investido de uma missão patriótica e justiceira cujo instrumento era a “revolução fascista” – ao mesmo tempo homem excepcional elevado ao comando graças a seus méritos e “filho do povo” que amava voltar às origens no contato permanente com as multidões italianas. Daí o cuidado de Mussolini em manter seu carisma, primeiro – notadamente durante os anos iniciais do regime – cruzando o país, do Brenner à Sicília e dos Alpes ocidentais ao Adriático, depois multiplicando seus encontros com a multidão durante as grandes comemorações patrióticas e as festas do regime. Sabiamente preparadas e orquestradas, essas diversas manifestações obedeciam a um ritual destinado a excitar a assistência, a suscitar emoção coletiva e entusiasmo. O evento – visita a uma cidade, travessia de uma província em trem especial, simples reunião ou parada reunindo dezenas de milhares de pessoas – era precedido de um anúncio, na imprensa e no rádio, às vezes com vários meses de antecedência. O cerimonial implicava que o Duce era longamente aguardado pela multidão – em parte espontaneamente vinda a seu encontro, em parte engrossada por elementos “institucionais”: membros do partido e da Milícia, funcionários que receberam folga do expediente, crianças das escolas e dos liceus conduzidas por seus professores – sua aparição sendo antecedida por uma cena planejada pelos responsáveis locais do PNF e que comportava desfile, cantos, fanfarras e discursos. Durante os primeiros anos do regime, o contato com a multidão era obrigatório: ocasião para o ditador gozar a embriaguez da popularidade e para a assistência de se aproximar do chefe taumaturgo. Mais tarde, sem renunciar completamente a essa prática, Mussolini se empenha, durante as grandes reuniões fascistas, em manter certa distância entre si e a maré humana fanatizada por sua presença e seu verbo; não só porque os seguranças o pressionavam a limitar os contatos diretos com o público, mas também porque a deificação de que era objeto exigia sua aparição em postura majestosa, ao menos durante parte da cerimônia.
O caráter religioso das grandes celebrações patrióticas das quais Mussolini é o sacerdote maior não deve nos fazer negligenciar seu aspecto lúdico e festivo, outro recurso utilizado pelo poder para mobilizar as massas e fazer durar o consenso. Em um país no qual a arte lírica é rainha e onde a representação do sagrado se cerca de decorações resplandecentes, o que numerosos italianos apreciavam na liturgia fascista era seu caráter teatral, e o que os cativava no Duce era seu talento como tenor e ator. Eram os longos períodos declamados em voz possante do alto do balcão do Palazzo Venezia, os diálogos com a multidão herdados do ritual dannunziano, as fórmulas de impacto, as tiradas a mezzo voce, o gesto provocante que hoje faz sorrir, mas que é preciso saber situar em sua época e seu contexto. Era também a cenografia mais e mais sofisticada que cercava as imensas reuniões e paradas paramilitares: as doze orquestras em torno da piazza Venezia, os tambores e trompetes que anunciavam a chegada do ditador, os cantos fascistas entoados pelos camisas-negras, os intermináveis cortejos das organizações do partido seguindo a rua sagrada do regime, a via dell’Impero. É verdade que o sucesso do comício era garantido por uma claque profissional em posição. Quando o Duce se deslocava, vários trens de figurantes pagos o seguiam em sua viagem. Em cada etapa, eles se misturavam aos passantes e, se necessário, davam o tom às reações do público. Mas seria realmente necessário? No apogeu do regime, e praticamente até a guerra, a veneração pelo herói e a paixão pela festa eram suficientes para acender o entusiasmo.
A imagética mussoliniana
Os encontros do “guia supremo” com a multidão constituem, por conseguinte, um elemento central da liturgia fascista, o meio mais eficaz de difundir entre as massas o culto do Duce, dando a cada um a possibilidade de vê-lo em carne e osso ao menos uma vez, eventualmente tocá-lo, conversar com ele, confrontar o modelo com a imagem reproduzida milhões e milhões de vezes sob as mais diversas formas.
O fascismo praticou uma “política da imagem” – Laura Malvano examinou suas diversas facetas – que, na Itália dos anos 1930 e em se tratando da imagem do ditador, assumiu um caráter absolutamente obsessivo. As artes plásticas colaboraram desde os primeiros anos do regime, em uma perspectiva geralmente lisonjeira para o ilustre modelo, mas que não excluía certa espontaneidade dos produtores de imagem nem o pluralismo de gêneros e estilos, em um fenômeno que, no conjunto, caracteriza a cultura da Itália fascista.
Curiosamente, as primeiras representações pintadas ou esculpidas de Mussolini se devem a artistas estrangeiros: o húngaro P.A. de Laszlo, autor de um “retrato de S.E. Benito Mussolini” exposto na segunda Bienal de Roma em 1923; a inglesa Nancy Cox-McCormack e o austríaco Giustinus Ambrosi, a quem se devem dois bustos clássicos em bronze datados do ano I da era fascista. Nessa época, as duas principais manifestações de arte contemporânea, as bienais de Roma e Veneza, ainda não tinham se tornado espaços de consagração da cultura oficial. Isso será diferente em 1925-1926, após a proclamação da ditadura e o registro dos artistas nas estruturas controladas pelo poder. É verdade que, no início de 1923, Mussolini declarara que “a arte pertence à esfera do indivíduo. O estado tem somente um dever: não sabotá-la, assegurar condições aos artistas, encorajá-los do ponto de vista artístico e nacional.” Ele também criara, dois anos depois, um Instituto Nacional da Cultura Fascista, sob direção de Gentile e cujo objetivo fora fixado como “a fascistização íntima da cultura,” prelúdio ao agrupamento, no ano seguinte, de intelectuais e artistas em uma das treze confederações estabelecidas pela lei Rocco e sua integração ao sistema corporativo.
Em 1927, podia-se ler num editorial da revista de Bottai Critica fascista:
Por enquanto, o único grande artista do regime é seu fundador, Mussolini. Todos os discursos que pronunciou, todos os artigos e ensaios políticos que escreveu são suficientes para fazer dele nosso maior prosador contemporâneo. Em nossa opinião, a recente circular aos prefeitos constitui, do ponto de vista artístico, o mais notável trecho de prosa desses últimos anos, a obra-prima da literatura fascista.
Além da boa dose de espírito cortesão revelada pelo texto publicado em uma revista em princípio destinada aos intelectuais e cujo diretor posava como principal figura da corrente “liberal,” ele demonstra que, menos de cinco anos após a tomada do poder, a referência ao Duce se tornara o critério primeiro da cultura fascista.
Evidentemente, esse culto à personalidade nas artes e letras propiciava o desenvolvimento de um conformismo cultural cujo tom era dado pelo maestro do Palazzo Venezia, com o Duce criando e destruindo reputações ao sabor de seus caprichos, de seu gosto pessoal – longe de ser dos mais elevados – das pressões exercidas por “modernistas” e “tradicionalistas” e de seu desejo de promover um “estilo” adequado ao mesmo tempo à ideologia oficial do regime e à vontade de poder de seu chefe.
Nos mais de vinte anos da era fascista, a submissão dos artistas não produziu uma iconografia de mera reprodução serial comparável à suscitada pelas personalidades de Stalin, Mao, Kim II-sung e outros ditadores do século XX: ao mesmo tempo porque não é fácil submeter mais de dois milênios de cultura humanista à formatação ideológica e porque, mesmo durante sua fase de radicalização totalitária, o fascismo soube deixar aos artistas, por menos que gostassem dos motivos fixados pela propaganda, certa liberdade de escolha na maneira de tratar seus temas.
Logo, a iconografia mussoliniana se inscreve sob o duplo signo da proliferação de obras pintadas, esculpidas, modeladas e impressas nos mais diversos materiais, cujo objeto é a representação do Duce, e da pluralidade de gêneros e estilos. Com diferenças ligadas não somente à personalidade dos artistas, mas também à tendência dominante do momento, às vezes inclinada para a inovação e mesmo para a vanguarda, às vezes, ao contrário, tendendo para a direção desejada pelos grandes organizadores dos “costumes fascistas”: Starace, Farinacci e outros críticos da modernidade “decadente.”
É na estatuária que se devem pesquisar as obras que melhor respondem à função de celebração do culto mussoliniano. A via foi aberta em 1925 por Rodolfo Wildt, cujo célebre busto em mármore branco, além de dar lugar a inumeráveis cópias e imitações, será utilizado como ilustração de capa por diversos autores, como Margherita Sarfatti para sua biografia de Mussolini, Dux, publicada no ano seguinte. “A branca massa de largos ombros” – escreverá alguns anos mais tarde o crítico de arte Francesco Sapori – “é dominada pelo pescoço possante, o qual suporta a impetuosidade da cabeça, retesada por uma vontade imóvel, inspirada e inspiradora.” O próprio Mussolini, segundo Marinetti, teria saudado com júbilo infantil essa marmórea transposição de sua vontade de potência: “Sim! Eu gosto! Sou eu! Eu me sinto assim! Eu me vejo assim!”
Na esteira dessa representação de Mussolini se precipitarão dezenas de artistas utilizando todos os recursos da gramática de temas e signos oferecida pela romanística clássica. O mercado é imenso, estimulado pela demanda de organizações locais do partido, municipalidades, corporações, administrações provinciais e centrais, reclamando cabeças e bustos do Capo, à qual respondem os ateliês de Cappelletti, Giuseppe Graziosi, Francesco Parisi e Giovanni Romagnoli ou escultores como Sodini, Parisi e Drei, para citar os mais conhecidos. Raros são os que se afastam dos cânones da estatuária mais banalmente conforme aos modelos clássicos para se aventurar na via de um hiper-realismo que salienta de modo quase caricatural certos traços da fisionomia mussoliniana – é o caso, por exemplo, de Gera e Feruccio Vecchi – ou para religar a figura do imperator ao mito do cavaleiro dos tempos modernos (o Mussolini aviador de P.G. Vangeni).
Encontra-se mais variedade na estatuária propriamente dita, representando o ditador em pé e, sobretudo, a cavalo, assim como nas cenas dos relevos erigidos pelo fascismo, como “A Marcha sobre Roma,” de Ercole Drei, que ornamentava uma das paredes exteriores do monumento a Michele Bianchi em Belmonte Calabro. Entre as obras mais célebres, é preciso citar a estátua equestre do Duce, executada de maneira clássica por Giuseppe Graziosi por ocasião dos Littoriali de Bologna em 1940; em um estilo mais moderno e mais contrastante, o Mussolini a cavalo de Romanelli, localizado sobre a torre da Revolução de Piacentini em Brescia; a alegoria futurista do antigo ardito Ferruccio Vecchi intitulada L’Impero balza dalla testa del Duce (“O império jorra da cabeça do Duce”), apresentada na Bienal de Veneza em 1940; ou ainda, em dimensões mais reduzidas, “O forjador da nova Itália,” de Ludovico Schwarz (1939) e o curioso bronze de Giacomo Balla, datado de 1928 e intitulado “Eu vim dar um governo à Itália.”
A pintura se prestando melhor à declinação de estilos, é a uma maior diversidade de temas e feitios que nos conduzem retratistas e pintores do cotidiano que introduzem em suas obras a figura do ditador. Aqui, se a inspiração na Antiguidade conserva partidários, notadamente para a decoração de certos edifícios públicos, o classicismo faz referência principalmente a uma “arte italiana” definida pela “limpidez da forma,” pela “evidência da mensagem” entregue pelo artista, pela “simplicidade elementar” dos meios utilizados, e são os “grandes séculos” da Itália renascentista – Trecento e Quattrocento – que fornecem temas e modelos pictóricos. Mesmo quando há confusão voluntária de épocas, como no quadro de Primo Conti – La prima ondata, “A primeira onda” – no qual um Mussolini condottiero conduz em seu cavalo branco um exército de camisas-negras.
Outro traço de destaque da representação do Duce na estética pictórica fascista é a pregnância da corrente modernista, especialmente futurista, com predileção pela figuração do rosto, ou simplesmente do perfil, reduzido a seus traços mais significantes – a imensidão da testa, o olhar penetrante, o queixo voluntarioso – gênero no qual se destacam pintores como Cleto Capponi, Osvaldo Peruzzi, Tiziano Piccagliani, Romolo Fabjj, Cesare Andreoni e, claro, Prampolini, Sironi e Dottori, esse último autor de numerosos quadros e afrescos à glória de Mussolini, entre eles “O fundador do Império,” apresentado à Quadrienal de Roma em 1939.
Na oposição dessa “vanguarda,” de resto bastante presa a uma temática e uma estética já um pouco gastas no momento da Marcha sobre Roma, a corrente “realista,” conduzida pelos tenentes de um fascismo “ortodoxo” e encarnada notadamente por Farinacci, também contribuiu para a heroificação iconográfica do ditador. Inclusive sob a forma metafórica adotada pelo pintor romagnol Luciano Riccheti, primeiro laureado do “prêmio Cremona” por seu quadro in ascolto que representa uma família camponesa “escutando” um rádio que, indica-se claramente, transmite um discurso do Duce, esse último surgindo visualmente apenas em uma imagem pregada à parede, emblemático de uma adesão ao regime confirmada pela presença, ao lado do pai, de um meninote em uniforme de balilla e, em segundo plano, do filho mais velho (ou genro) fardado como miliciano.
Ao lado dessa produção “nobre,” destinada às elites ou à edificação das massas em contato com os monumentos públicos, a imagem do Duce é exposta em uma infinidade de canais a todos os membros do corpo social. As fotografias, cuidadosamente elaboradas, escolhidas e eventualmente retocadas pelo gabinete de imprensa do chefe do governo e depois pelo Minculpop, e finalmente difundidas aos milhões pela imprensa e em cartazes; a imagem animada dos cinegiornali; os “oito milhões de cartões-postais” recenseados por Enrico Sturani; os selos, moedas e medalhas de todo gênero; as gravuras, decorações, impressões e decalques ornamentando objetos de toda natureza e todas as dimensões (copos, xícaras, pratos, cinzeiros, tecidos, papéis de carta) mostram essa ocupação multiforme do espaço civil pela imagem do guia supremo, assim como os fumetti (quadrinhos) e grafismos que ilustram capas de trabalhos, revistas e magazines.
Um bom exemplo dessa última categoria de suporte da mitologia mussoliniana é fornecido pela primeira página do suplemento ilustrado do Corriere della Sera de 3 de março de 1935. O Duce, em uniforme de oficial da Milícia, brande uma picareta com a qual pretende demolir o edifício vetusto situado sobre os fóruns imperiais de Roma. Para incrementar, o desenhista representou em primeiro plano dois operários que ajudam Mussolini em sua atividade de aterramento. Tudo está dito: o pertencimento do ditador ao mundo dos trabalhadores, seu interesse pelas atividades manuais e pelas tarefas mais ingratas, sua vontade de ter contato com os humildes, sua preocupação permanente em “trabalhar para o povo” e, enfim, seu status de “construtor” e restaurador do romanismo imperial. Tudo sintetizado em uma mensagem iconográfica direta, impresso em centenas de milhares de exemplares e difundido no mesmo número de residências modestas.
Muitos dos produtos culturais que testemunham a pregnância do mito mussoliniano desapareceram e são conhecidos apenas por relatos de segundo grau. Vários foram repertoriados em publicações especializadas, como o “Almanaque dos artistas,” ou em inventários e catálogos das diversas exposições organizadas pelo regime: Bienais de Roma e Veneza, Quadrienal de Roma, Mostra del Novecento Italiano e, sobretudo, Exposição da Revolução Fascista, inaugurada em Roma, como se viu, em outubro de 1932 e que constituiu, primeiro no Palácio de Exposições da via Nazionale e depois na Galeria de Arte Moderna, o mais alto local de celebração do mito mussoliniano, ao mesmo tempo pela quantidade de obras e objetos que evocam a figura do ditador e pela cenografia centrada em sua pessoa, notadamente com a reconstituição dos dois primeiros escritórios do Popolo d’Italia: o da via da Cannobbio e o da via Lovani, em Milão.
A montagem do consenso
Mesmo no apogeu do fascismo, nem todos os italianos são adeptos fanáticos da religião nacional e seu sumo sacerdote. Mas existe, na maior parte do corpo social, uma adesão ao regime que varia de intensidade em função do status de cada categoria social e da evolução dos problemas internos e internacionais. Adesão oportunista, se se quer, que Mussolini se esforçará para transformar em consenso ativo pela via das instituições totalitárias e que deve sua extensão essencialmente à passividade de um povo ainda não familiarizado com a cultura da democracia liberal e ao qual o fascismo soube dar, ao menos até 1936-1937, satisfações ao mesmo tempo materiais e da necessidade de prestígio.
Daí a fraca representatividade dos opositores à ditadura – trate-se do antifascismo no exílio ou dos alguns milhares de militantes italianos engajados em uma resistência que só encontrará audiência interna depois do 25 de julho de 1943 – e a generalização de comportamentos conformistas que não eram exclusivos de desacordos pontuais com a política do regime. Como escreverá mais tarde Italo Calvino: “Entre o fato de julgar negativamente o fascismo e um engajamento antifascista ativo havia uma distância que atualmente não conseguimos mais avaliar.”
Seria essa relativa debilidade da oposição ativa ao fascismo o resultado de um sistema terrorista imposto aos italianos durante mais de vinte anos? De muitos pontos de vista, o processo de De Felice há um quarto de século comprovava esse postulado, parte da bagagem ideológica da esquerda marxista ou de tendência marxista, dominante nessa época na paisagem historiográfica italiana e incapaz de admitir que, diante de um regime “pilotado pelo capital,” pode ter havido consenso ao menos passivo das massas, e de modos outros que por meio de um aparelho repressivo exercendo sua missão de maneira feroz.
Sejamos claros. O regime fascista foi severo com seus inimigos. Sua história começa e termina em episódios de extrema violência, e a chapa de chumbo que se abateu sobre o país a partir de 1926, uma vez promulgadas as leis de “defesa do estado,” é bem real. No começo dos anos 1930, um momento no qual os relatórios endereçados a Mussolini pelo chefe da polícia Arturo Bocchini falam de agitação esporádica em certas cidades (especialmente Turim) provocada pela carestia de vida e pelo aumento do desemprego, e que rapidamente se torna ação clandestina conduzida pelos comunistas, avaliam-se as intervenções policiais em cerca de 20 mil por semana, para o conjunto do território, incluindo visitas a edifícios públicos e privados, perquirições e apreensão de armas e de material destinado à propaganda antifascista. De meados de 1930 ao fim de 1934, período que coincide, na Itália, com a fase aguda da grande depressão, a OVRA realizou cerca de 6 mil prisões, na maioria militantes do Partido Comunista Italiano e de Giustizia e Libertà, às quais se juntam as interpelações sobre via pública efetuadas pela polícia ou pelos carabinieri durante diversas agitações.
Essas prisões não davam lugar a um processo diante de tribunal especial, menos ainda a uma condenação, ainda que, até o início dos anos 1930, o número de citados condenados à pena de prisão (com duração média de pouco mais de cinco anos) tenha permanecido relativamente elevado: 219 em 1927, 636 em 1928, 159 em 1929, 519 em 1931. Ele cai em seguida para algumas dezenas por ano, antes de atingir um novo pico na véspera da guerra (310 em 1938, 365 em 1939), devido a um despertar do antifascismo ligado mais à Guerra Civil Espanhola que a um agravamento da repressão. As raríssimas sentenças de morte pronunciadas e executadas o foram em seguida a uma tentativa ou um projeto de atentado contra Mussolini (Michele Schirru, Angelo Sbardellotto) ou de ação terrorista de envergadura (Domenico Bovone). Quanto aos confinati nas ilhas ou regiões isoladas do Mezzogiorno, seu efetivo global se elevará, segundo uma estatística de dezembro de 1940 – 2.504 ainda privados de liberdade, dos quais 719 condenados “apolíticos” por delito de direito comum, máfia ou homossexualidade.
Assim, a manutenção oficial do estado de direito, uma das características do regime fascista, não protege seus supostos adversários contra eventuais represálias executadas por membros do partido ou da Milícia e geralmente acobertadas pelo poder. Mas essas ações punitivas jamais atingirão o grau de extensão e violência dos primeiros anos do fascismo. Trata-se mais frequentemente de espancamentos ou da administração de óleo de rícino a um indivíduo isolado que manifestou, por comportamento ou propostas, sua hostilidade ao regime ou a seu chefe. Testemunhos e relatórios da polícia demonstram, contudo, que esses acertos de conta podem chegar a linchamentos e, consequentemente, à morte. De todo modo, são suficientes para manter no país uma ameaça latente de recurso à violência generalizada.
Mussolini também adota a prática de usar taticamente a lembrança do terror esquadrista para desencorajar eventuais opositores. No fim de 1929, tendo acabado de se instalar no Palazzo Venezia, ele lastima não ter “encostado seus inimigos no muro” depois da Marcha sobre Roma e acrescenta que ainda é tempo de retomar um velho instrumento: “Uma ferramenta,” precisa, “pela qual vocês tinham muita simpatia, e talvez já tenham compreendido do que estou falando.” A multidão escande: “Il manganello! Il manganello!,” o que provoca esta saída: “Isso mesmo! Está um pouco empoeirado, mas basta tirar a poeira!”
Mas estamos longe do terror de massa e dos procedimentos de eliminação não somente dos adversários políticos mais determinados, mas também de fatias inteiras do corpo social, que caracterizam na mesma época os regimes hitlerista e stalinista. Totalitário por seu projeto de criação do “novo homem” e fascistização da sociedade civil, em um ponto essencial o fascismo italiano não responderá jamais à definição de totalitarismo de Hannah Arendt e colegas: não tentará desmantelar o que subsiste de estado de direito e não criará um verdadeiro estado policial.
Quanto a Mussolini, mesmo que se mostre inexorável ao executar os adversários que quiseram atentar contra sua vida, ele nada tem de tirano sanguinário. Mais o tempo passa, mais o regime tende a se radicalizar, mais o fosso que separa nesse ponto o Duce de Hitler, de Stalin ou até de Franco tende a se aprofundar e as intervenções do chefe do governo no domínio judiciário, com o intuito de remir penas ou conceder indultos, tornam-se mais numerosas. Apenas em 1938, mais de 500 condenados à reclusão ou ao confinamento foram assim libertados.
Na falta de um sistema de terror generalizado e exterminador, a ditadura mussoliniana conta, para moldar os espíritos e obter uma adesão ao menos formal das populações, com um aparelho de controle e propaganda que outros regimes imitarão e aperfeiçoarão, mas que foi a primeira a utilizar de maneira massiva e com relativa eficácia. Não é meu propósito descrever suas engrenagens. Gostaria somente de relembrar seus traços principais e, especialmente, na perspectiva biográfica que é o objeto deste livro, examinar o papel do Duce na instauração e utilização dessa ferramenta, entendendo que entra na problemática dessa questão tudo que foi dito a respeito do culto do herói e da política da imagem orientada sobre ele.
Foi no coração do dispositivo governamental que se organizou, em torno da secretaria de imprensa (Ufficio Stampa) do primeiro-ministro – portanto, sob domínio direto do Duce – o controle da informação. Atrás do homem político e de estado, restará sempre em Mussolini alguma coisa do jornalista de talento que foi durante mais de dez anos antes de ascender ao poder. Feito chefe do governo, ele passará boa parte de seu tempo a folhear e ler a imprensa nacional (até mesmo os boletins paroquiais) e internacional, a redigir artigos, demonstrar suas reações aos diretores dos jornais e ter com eles reuniões frequentes. Ele manteve o comando de seu caro Popolo d’Italia, ao qual é ligado por uma linha telefônica direta para comunicar suas diretivas. Logo, é como homem de imprensa perfeitamente treinado em todas as práticas do ofício que aborda, depois de sua instalação no Palazzo Chigi, o problema do status da informação no regime fascista, e é a seu gabinete de imprensa, constituído alguns meses após a Marcha sobre Roma, que é confiada a tarefa de observar e trabalhar a opinião pública.
A nomeação de Ciano, em 1939, para a direção do Ufficio Stampa e a transformação desse organismo em subsecretariado (1934) e depois em ministério da Imprensa e Propaganda indicam ao mesmo tempo a importância crescente que o controle da informação adquire junto ao poder e a preocupação de Mussolini em ver o lugar ocupado por alguém próximo durante a criação dos instrumentos que pretendem arregimentar os espíritos.
A partir de 1925-1926, as medidas adotadas contra a imprensa livre levaram à supressão de todos os órgãos de oposição e à sujeição de todos os grandes quotidianos nacionais – La Stampa, Corriere della Sera, Giornale d’Italia etc. – agora com direções e redações fascistas. Os jornalistas foram organizados num sindicato nacional fascista cujo secretário é Ermanno Amicucci. Ninguém é admitido nesse organismo sem ser titular da tessera, a carteira do PNF, e sem se mostrar partidário zeloso da ortodoxia fascista. Todos os diretores e redatores-chefes dos diários políticos são escolhidos nas fileiras do sindicato. Assiste-se, portanto, a uma verdadeira fascistização do pessoal de imprensa, considerado mobilizado a serviço do estado fascista e de seu projeto político, de acordo com os preceitos enunciados por Mussolini no discurso de 10 de outubro de 1928 diante de uma assembleia de editores de jornais:
O jornalismo, mais que uma profissão, torna-se uma missão ao mesmo tempo importante e delicada, uma vez que, na época contemporânea, após a escola, que instrui as gerações vindouras, é o jornalismo que circula entre as massas e aí desenvolve sua obra de informação e formação.
Para dotar a imprensa italiana de profissionais preparados para essa missão, o regime cria numerosas escolas e cadeiras universitárias de jornalismo nas quais eram ensinadas – como em Perugia, onde doutrinavam Paolo Orano e Silvio Longhi – técnicas de comunicação e os fundamentos ideológicos do discurso de imprensa tal como os concebiam os dirigentes fascistas e o “guia supremo” da nação.
Assim, a imprensa se torna rapidamente um instrumento privilegiado de moldagem das consciências a serviço da empreitada fascista de integração das massas à vida nacional e de difusão do mito mussoliniano. Para tanto, o Ufficio Stampa, depois o ministério de Imprensa e Propaganda – que em 1937 se torna, sob a direção de Dino Alfieri, ministério da Cultura Popular – forneciam diariamente à imprensa as diretivas de ordem geral destinadas a filtrar as informações, selecionar as que glorificavam o regime e evitar a publicação de notícias “alarmantes,” suscetíveis de prejudicar o moral da população. Isso ia da interdição de evocar o problema da cobertura metálica da moeda, em julho de 1935, à de publicar a fotografia do campeão do mundo de pesos-pesados Primo Carnera, nocauteado por um boxeador americano. Tudo que se relacionava à vida pública ou privada do Duce – relatórios de viagens e visitas, alusões à família e à saúde, relações com o soberano e com os hierarcas – era objeto de instruções estritas, o mesmo valendo para as fotografias nas quais figurava “o homem da Providência.”
A dominação do regime sobre a imprensa não pretendia somente impedir toda forma de contestação, educar as massas apresentando-lhes uma visão magnificada das realizações do fascismo e contribuir para a moldagem do mito mussoliniano. Tratava-se igualmente de “distrair” os italianos de sua sorte cotidiana, convencê-los da aptidão de seus dirigentes em lhes dar ao mesmo tempo “pão e circo.” Essa função lúdica era classicamente assumida por uma gama de jornais e revistas destinados a todos os públicos – mulheres, jovens, tifosi do esporte-espetáculo – e pelos dois grandes meios culturais de massa dos quais a Itália fascista foi a primeira a testar o poder de mobilização: o rádio e o cinema.
Transformado em monopólio estatal por uma lei de 1927, mas gerido por uma sociedade de estatuto privado, EIAR – Ente Italiano Audizioni Radiofoniche – o rádio ilustra bem essa dupla preocupação do poder, uma vez que foi ao mesmo tempo o veículo de uma subcultura de vocação essencialmente recreativa – o esquete e as cançonetas ocupavam lugar considerável – e de uma propaganda global orquestrada com palavras de ordem circunstanciais: “batalha do grão,” campanha natalícia, “luta contra o desperdício,” justificação da política colonial e estrangeira do fascismo etc. Deve-se notar, todavia, que essa “melhoria” dos espíritos por intermédio das ondas radiofônicas foi durante muito tempo confiada a especialistas do jornalismo falado. Os pesos-pesados do partido demoraram para se aclimatar ao novo instrumento de comunicação. O secretário-geral do Partido Nacional Fascista, Augusto Turati, e o grande inválido de guerra Carlo Delcroix estiveram entre os primeiros a arriscar, e Mussolini se aventura muito prudentemente em uma experiência que, para ele, começou mal. Em seu primeiro discurso radiotransmitido com a ajuda do procedimento instaurado por Marconi em novembro de 1925, dificuldades técnicas tornaram suas palavras quase ininteligíveis e foi necessário interromper a emissão por medo do ridículo. Depois, os portentosos discursos pronunciados na piazza Venezia ou alhures foram regularmente retransmitidos e difundidos por alto-falantes em todas as cidades da península.
Até a guerra da Etiópia, o número de domicílios com receptores permanece relativamente modesto. Contavam-se apenas 500 mil assinantes da EIAR em 1935, 800 mil em 1938 e 1,2 milhão no fim de 1939. Nessas condições, a organização da escuta coletiva era uma necessidade ainda maior porque permitia, em cada lugar de recepção, uma mobilização das massas que reproduzia a atmosfera excitante das grandes missas do regime. Em contrapartida, se soube rapidamente aproveitar a possibilidade de expandir a audiência de suas arengas, Mussolini se arriscou apenas duas ou três vezes a pronunciar alocuções especificamente destinadas ao rádio. De fato, ele não tardou a compreender que o bate-papo familiar, sem contato direto com a multidão – gênero no qual Roosevelt era excelente – não era seu forte.
O cinema
Em relação ao outro grande vetor de uma cultura de massa que ainda não dispunha da telinha, a história reteve a fórmula atribuída ao Duce: la cinematografia è l’arma più forte (“o cinema é a arma mais forte”), que resume a importância dada pelo regime à sétima arte como instrumento de propaganda e condicionamento dos espíritos. Em relação ao interesse pessoal de Mussolini pelo cinema, as opiniões divergem amplamente. Para Quinto Navarra, seu administrador do palácio, o Duce se interessaria por todos os aspectos da produção cinematográfica, e não apenas pelos cinegiornali Luce, que vigiava – assim como fazia com as fotografias publicadas pela imprensa – para que sua imagem fosse conforme ao modelo desejado.
O cinema era a arte da qual Mussolini se ocupava com mais vontade. (...) Em villa Torlonia havia duas salas de projeção: uma na casa do Duce e uma nos locais que abrigavam os escritórios do Instituto do Cinema Internacional Educativo. Era nessa última que Mussolini tinha o hábito de ver vários filmes, que eram em seguida projetados nas salas públicas. (...) Por meio dessas projeções, e através dos frequentes contatos com Freddi, Forzano e outros diretores, o interesse de Mussolini pelo cinema aumentou mais e mais. Ele se interessava frequentemente pela vida da Cinecittà, recebeu atores de cinema, desejava ter informações sobre a atividade do Centro Experimental de Cinematografia, do qual quis inaugurar os novos endereços. (...)
Esse constante interesse pelo cinema encontrou seu ponto culminante em sua ideia de “lançar” como estrela a irmã de Claretta Petacci. Como se sabe, foi ele quem encontrou seu nome artístico: Miria di San Servolo.
Essa imagem de um Duce cinéfilo não é confirmada por seu filho mais velho, ele mesmo desde a adolescência autêntico apaixonado pela tela e futuro profissional da sétima arte (como produtor, cenarista e crítico de cinema). Indagado por Jean Gili em 1979 sobre a finalidade da sala de projeção de villa Torlonia, Vittorio Mussolini explicou que seu objetivo era essencialmente a diversão. Mas, acrescenta,
se meu pai via quinze minutos do filme, era muito, depois ia deitar. (...) O cinema era uma coisa que ele não alcançava. Evidentemente, era um homem que não tinha nascido com o cinema, tinha outros interesses, os livros, o teatro, o jornalismo, sua formação era outra. (...) No início dos anos 1940, meu pai não tinha mudado seus hábitos: via um pedaço do filme e parava. Acho que ele nunca viu um filme inteiro. Contrariamente ao que dizem, ele não era muito interessado por cinema, acho que não gostava muito.
Em quem acreditar? Que Mussolini deixasse frequentemente a sala de projeção de villa Torlonia ou que tenha, como afirmam outros testemunhos, dormido durante a sessão não demonstra necessariamente pouco interesse pela arte cinematográfica, mas sim o estado de esgotamento no qual se encontrava ao fim de longas jornadas de trabalho. Menos categórico quanto às motivações do Duce, o livro de memórias que Luigi Freddi escreveu após sua experiência como diretor-geral do cinema italiano de 1932 a 1939 mostra mais um Mussolini “bom público” que, duas vezes por semana, tomava seu lugar em uma das duas salas de projeção de sua residência romana para ver trechos de cinejornais e longas-metragens. A terça-feira de noite era consagrada aos documentários e aos cinegiornali Luce; as sextas à projeção de filmes de ficção que ele encomendara ou que Freddi lhe pedira para assistir, fosse para mantê-lo a par da evolução do cinema italiano, fosse para obter um último visto antes da exibição pública.
O julgamento soberano e inapelável do Duce constituía apenas o último estágio de um complicado sistema de censura organizado desde o início do regime pelo decreto-lei de 23 de setembro de 1923 e complementado ulteriormente por diversos textos que reforçavam o controle e limitavam o recrutamento de censores aos funcionários dos ministérios interessados (Interior, Corporações, Educação Nacional, Colônias, Imprensa e Propaganda) e aos representantes de organizações estreitamente ligadas ao regime (PNF e GUF). Tudo isso para chegar a uma cerrada vigilância exercida por comissões que, até 1934, dependiam do ministério do Interior e, mais tarde, do Minculpop. Mas elas tiveram poucas ocasiões de exercer sua ação repressiva – no máximo alguns cortes e diálogos modificados – pois o controle essencial se efetuava no nível dos cenários e mais ainda no da autocensura, com os cineastas italianos se abstendo, quando mais não fosse por razões financeiras, de filmar longas-metragens que contrariassem minimamente as diretivas gerais do regime.
É bastante significativo que, de 1923, data de instauração do sistema censório, a 1939, um único filme italiano tenha sido interditado, e tratava-se de um filme cuja intenção era exaltar as virtudes redentoras do fascismo. Ragazzo, dirigido por Ivo Perilli – com cenário do chefe da Federação Fascista Romana Nino d’Aroma – contava, um pouco à maneira como Nicholas Ekk evocava em Os caminhos da vida o itinerário de jovens delinquentes reenviados ao bom caminho pelas organizações bolcheviques, a história edificante de um filho de operário, órfão de pai, recuperado pela juventude fascista após flertar durante algum tempo com a delinquência menor. O assunto não ensombrecia a glória do regime, muito ao contrário, mas, para realizar seu filme, Perilli tivera de filmar cenas “realistas” nos bairros populares de Roma onde proliferavam ainda a pobreza, o desemprego e a mala vita. Donde, em 1933, a hesitação da comissão de censura em dar seu visto e o recurso à arbitragem do Duce. Sua reação foi imediata: “Essas coisas,” declara ele no segundo ano da era fascista, “não existem mais!” E Ragazzo foi vetado.
Não eram sempre considerações políticas que determinavam o veredicto do ditador. A maior parte dos testemunhos está de acordo em mostrar que as preferências do Duce em matéria de ficção cinematográfica eram as comédias. Os cinejornais da Luce o entediavam, como faziam com a imensa maioria do público italiano (saía-se frequentemente da sala, no meio da projeção, para fumar), o mesmo se passando com as obras de ficção cuja mensagem política era exposta com um peso que ele julgava contraproducente. Em contrapartida, a acreditar-se em Freddi, “ele se abandonava completamente a certos filmes cômicos, diante dos quais se tornava uma fração do grande público.” É sem dúvida a razão que o leva a autorizar a projeção de Tempos modernos, de Chaplin, ao qual a comissão de censura hesitara longamente em dar seu aval.
Scarface, de Howard Hawks, não teve a mesma sorte. A censura reprovava o fato de o diretor ter representado na tela gângsteres de origem italiana, e Mussolini confirma seu julgamento proibindo a difusão do filme. Além disso, ele detestava o gênero, assim como filmes que tinham “cenas muito íntimas” ou, a partir de 1935, os que poderiam difundir no corpo social a ideia de uma possível “confusão de raças.”
Seu comportamento de espectador-censor difere pouco, portanto, daquele do público pequeno-burguês, com quem partilha os preconceitos morais e raciais e o gosto pelo cinema de evasão. É esse tipo de filme que constitui o essencial da produção cinematográfica italiana no curso dos dez anos que precedem a guerra, e isso a despeito da forte dominação do estado sobre o meio, que começou a se manifestar sobre o cinema de ficção em 1934, com a criação, no seio do novo subsecretariado de Imprensa e Propaganda, de uma direção-geral para o cinema confiada a Luigi Freddi, ex-futurista feito redator do Popolo d’Italia e depois diretor do serviço de propaganda do partido. Sob o impulso de Freddi foi criado um setor estatal que está longe de abarcar a totalidade da indústria do filme, mas permite ao governo fascista intervir nos diversos níveis do processo de produção e distribuição e exercer sobre ele uma influência não desprezível que se manifesta especialmente na fundação do Centro Experimental de Cinematografia, na instauração do Departamento Nacional para as Indústrias Cinematográficas (Enic) – filial do IRI – e na construção, financiada pelo poder público, dos estúdios de Cinecittà.
Essa progressiva captação da indústria cinematográfica pelo estado fascista – reforçada pelo dispositivo de ajudas e adiantamentos de receita que, em princípio, beneficiava as obras condizentes com os objetivos do regime – deveria ter facilitado a dominação ideológica do fascismo sobre o cinema de ficção. Ora, não foi assim. Sob a pressão da poderosa Federação das Indústrias do Espetáculo, viu-se, ao contrário, o ministro da Cultura Popular, Dino Alfieri, tomar o contrapé dos projetos ultradirigistas de Luigi Freddi e orientar o debate em um sentido que desemboca na lei de 16 de junho de 1938, a qual põe fim ao sistema de adiantamentos seletivos e estabelece um dispositivo de cotas calculado exclusivamente sobre as receitas do filme. Essa evolução consagra o triunfo dos industriais do cinema sobre o pequeno clã de tecnocratas partidários de uma cinematografia de estado.
Nesse debate, a posição de Mussolini caminhou na direção desejada pelos profissionais. A princípio porque se tratava da sobrevivência de uma indústria duramente abalada pela crise e que sofria diretamente os efeitos da concorrência estrangeira. No início dos anos 1930, a produção nacional representava a minoria dos filmes distribuídos na Península, o resto sendo quase que inteiramente constituído por produções americanas. Querendo impor ao público italiano – que adorava as comédias hollywoodianas e as superproduções de aventura – um cinema “fascista,” essencialmente político e didático, arriscava-se ver minguar a produção nacional em benefício de uma produção estrangeira de sete a dez vezes mais abundante. O Duce julgava mais hábil, na expectativa de eliminação da concorrência estrangeira (ocorrida em 1939), deixar rédeas soltas aos interesses privados, tendo como contrapartida a certeza de uma produção asséptica que fornecia aos espectadores italianos uma imagem asseguradora e idealizada de seu país, sem deixar de satisfazer seu gosto pelos “telefones brancos” inspirados nos modelos americanos.
O conteúdo ideológico do cinema de ficção reflete exatamente essa escolha estratégica de Mussolini, cujo objetivo era oferecer aos italianos satisfações lúdicas, ao mesmo tempo em que lhes endereçava uma mensagem política suficientemente discreta para que o produto não fosse percebido pelo público como puro e simples instrumento de propaganda. Em uma produção nacional que não para de crescer a partir de 1937 (ela praticamente triplicará em três anos), a parte do cinema explicitamente política não ultrapassa 4% e concerne apenas cerca de trinta filmes durante todo o período fascista. Além disso, certos filmes repertoriados nessa categoria (O esquadrão branco de Genina, L’Uomo della legione de Marcellini etc.) se ligam mais à ideologia nacionalista ou colonialista “clássica” que aos ideais específicos do regime. Este, excluídos os afrescos históricos destinados a exaltar as grandes horas do passado nacional – como Cipião, o Africano ou Giuseppe Verdi, de Carmine Gallone – surgia somente em dez ou quinze filmes, entre os quais é preciso citar Camicia nera de Giovacchino Forzano, Vecchia guardia de Alessandro Blasetti, Condottieri do filonazi Luis Trenker ou O cerco de Alcazar de Augusto Genina.
Deve-se concluir que, no momento em que Mussolini e Starace se dedicam a promover o que De Felice chamou de “revolução cultural do fascismo,” a qual se traduz por um reforço da adequação e do doutrinamento do povo italiano, a mensagem ideológica difundida pelo cinema de ficção é, em 95% dos casos ou mais, uma mensagem “apolítica”? Certamente não. O regime, que tem muitas outras armas a sua disposição, inclusive no campo cinematográfico, com os cinegiornali e as montagens de propaganda do Instituto Luce, mostra-se muito satisfeito com uma produção que responde amplamente às aspirações da clientela pequeno-burguesa e concorre, como consequência, para a construção do consenso. Encontra-se, é certo, pouco heroísmo no cinema italiano dos anos 1930; poucas referências ao “novo homem” com o qual sonha Mussolini, a não ser em algumas produções fora de série, caras e nem sempre rentáveis. Mas tampouco se encontra crítica direta ou disfarçada ao regime. Quando isso acontece, é quase sempre fortuitamente (cf. o Ragazzo de Perilli) e, nesse caso, os organismos de vigilância estão lá para proibir o filme ou realizar os cortes necessários. O fato é raríssimo. Muitos interesses financeiros estão em jogo para que a autocensura não baste para apagar tudo que poderia desagradar aos funcionários do Minculpop e ao censor supremo de villa Torlonia.
Dessas diversas pressões, e da vontade claramente expressa por Mussolini, saiu um cinema conformista, representativo das ideias e dos comportamentos sociais de uma pequena burguesia que permanece muito ligada aos valores tradicionais. A família, o trabalho, o respeito às hierarquias sociais (com um eventual toque crítico à alta sociedade), uma moral sexual rigorosa e a recusa da desordem em todas as suas formas são seus ingredientes principais. Tudo isso se inscrevendo em um universo irreal, sem problemas, de onde são banidas todas as “taras” das sociedades “decadentes” e no qual reinam o otimismo e a harmonia entre as classes. Mais próximo do modelo hollywoodiano que do cinema názi, esse é o cinema que agrada ao mestre da Itália fascista – primeiro porque responde as suas próprias expectativas, depois porque Mussolini vê nele um instrumento capaz de concorrer ativamente para a manutenção da ordem e da coesão social.
A adesão dos intelectuais
A adesão do mundo cultural ao regime era uma questão particularmente importante para Mussolini. Viu-se que, com esse objetivo, o Duce e sua equipe multiplicaram as estruturas que se dispunham a controlar intelectuais e artistas: um Instituto Nacional Fascista da Cultura, uma confederação agrupando os representantes do mundo das artes e das letras, um Conselho Nacional de Pesquisa presidido por Marconi e depois pelo marechal Badoglio e, enfim, para coroar a obra, a Academia Italiana.
Em 1929 foi finalizado o projeto, concebido três anos antes, de constituir, sob a direção do estado, um organismo prestigioso consagrado à coordenação das atividades científicas e artísticas do país e à “preservação da cultura nacional.” Em seu discurso de inauguração, Mussolini declarou que, “para fazer academias, e principalmente uma digna de Roma, da Itália e do fascismo, era preciso tempo: um longo período de preparação espiritual, política, administrativa.” Na realidade, a instauração da Academia Italiana fora retardada por diversas circunstâncias, em particular pela recusa de Benedetto Croce em se associar à empreitada. A nova instituição abre suas portas a sessenta personalidades do mundo científico, artístico e literário: trinta que Mussolini escolhera entre os intelectuais favoráveis ao regime e trinta designados por cooptação. O objetivo era facilmente perceptível: tratava-se não somente de recompensar os altos méritos culturais, mas também, e essencialmente, de neutralizar certo número de personalidades até então mornas em relação ao regime. A Academia Italiana conta entre seus membros com o dramaturgo Pirandello, o pai do futurismo F.T. Marinetti, os físicos Marconi e Fermi, o músico Mascagni (autor da ópera Cavalleria Rusticana), os arquitetos Brasini e Piacentini, o filósofo Giovanni Gentile, os escritores Antonio Beltramelli e Alfredo Panzini etc. Tinha por secretário-geral Gioacchino Volpe, o melhor dos historiadores fascistas, e por presidentes sucessivos Tittoni, Marconi, d’Annunzio e Federzoni. Muito mais que o das academias “clássicas” (a mais prestigiosa sendo a Accademia dei Lincei), o areópago de intelectuais devotados ao regime e amplamente remunerados por ele – em dinheiro (o provento de um acadêmico se elevava a 3 mil liras por mês), em honrarias e vantagens de todos os tipos – que constituía a Academia Italiana podia apenas reforçar sua ação – distribuição de prêmios; títulos e condecorações; depuração da língua, que Mussolini e Starace julgavam contaminada pelo vírus dos vocábulos estrangeiros; participação em todas as cerimônias e paradas do regime – o conformismo da intelligentsia fascista e a esclerose da cultura oficial. Em função do prestígio de seus membros, contudo, fascistas convictos como Pirandello ou simples fiancheggiatori (companheiros de jornada), tão prontos quanto os primeiros a manobrar a hipérbole, esse areópago contribuía para a difusão, entre o público cultivado, da imagem de um Duce “renovador da cultura nacional.”
Uma das primeiras manifestações da adesão de uma parte da intelligentsia à causa fascista e à pessoa de Mussolini foi, em seguida a um colóquio ocorrido em Bologna em 1925 por iniciativa de Giovanni Gentile, a publicação do Manifesto endereçado “aos intelectuais de todas as nações,” destinado a justificar, aos olhos da opinião internacional, as medidas de exceção de Mussolini depois do discurso de 3 de janeiro. Entre os signatários encontravam-se os nomes de Luigi Barzini, Francesco Coppola, Antonio Beltramelli, Enrico Corradini, Carlo Foà, Enrico Prampolini, Ugo Spirito, F.T. Marinetti, Curzio Malaparte, Mario Carli, Sergio Panunzio, Paolo Orano, Ugo Ojetti e muitos outros, entre os quais Luigi Pirandello, que, ausente da reunião de Bologna, pedira para ser associado ao documento.
Dias depois, saiu em Il Mondo a “resposta de escritores, professores e publicitários italianos ao Manifesto dos Intelectuais Fascistas,” redigida por Benedetto Croce e assinada por homens como Giovanni Amendola, Luigi Albertini, Gaetano Salvemini, Luigi Salvarotelli, Arturo Carlo Jemolo, Gaetano Mosca, Luigi Einaudi e Arturo Labriola, para citar apenas os mais ilustres. Mais moral que político, esse contramanifesto se indignava principalmente de ver literatos e sábios se afastarem de sua missão, “elevar todos os homens e todos os partidos ao mais alto nível espiritual,” e convidava os intelectuais a agirem como árbitros morais, defenderem a liberdade de expressão, condenarem todas as formas de violência e permanecerem em seus lugares, em suas mesas de trabalho, e não na arena do combate político.
Ainda que conservadora e mais preocupada com o status do intelectual na sociedade que com questões doutrinárias, a resposta de Croce traduzia um corte profundo na atitude da classe dirigente ante o fascismo e seu chefe; ou antes estabelecia uma clivagem provisória entre partidários e adversários da ditadura, já que, entre os signatários do contramanifesto, alguns se uniriam em seguida ao campo de incensadores do Duce. Paralelamente, marcava uma ruptura inapelável entre as duas mais eminentes figuras da filosofia política italiana, Croce e Gentile: o primeiro relançado em direção à oposição legal e em breve submetido a todo tipo de incômodo (seu apartamento foi pilhado pelos esquadristas em 1926), o segundo elevado às nuvens pelo Duce e associado à redação do texto fundador da ideologia fascista.
A adesão de Giovanni Gentile ao fascismo fora para Mussolini um acréscimo considerável, do qual pretendia se servir para integrar a sua causa uma larga fração da intelligentsia. Efetivamente, o autor da Teoria generale dello spirito come atto puro não era um qualquer no mundo do pensamento. Nascido em 1875, ex-aluno da prestigiosa Escola Normal de Pisa, desde 1903 ensinara filosofia nas universidades de Nápoles, Palermo e Roma. Pelo viés da obra de Spaventa e de seu mestre Croce, sofrera intensamente a influência do idealismo hegeliano, opondo-se às doutrinas positivistas que reinavam no fim do século XIX em toda uma parte da intelligentsia europeia e colaborando em Critica, revista fundada no início do século pelo filósofo de Abruzzo. Em 1910-1911, Gentile começara a elaborar sua doutrina do atualismo, orientada sobre a ideia de que o “estado ético” devia permitir que o indivíduo se desparticularizasse e acedesse ao universal.
Engajado na ação militante após a guerra, partidário da instauração de um estado forte, capaz de superar a crise, prosseguir a obra de renovação nacional começada pelos combatentes e promover uma reforma fundamental do sistema educacional, Gentile não tardara a se aproximar do fascismo. Preocupado em aproveitar a influência da filosofia entre os intelectuais liberais e no conjunto do mundo universitário, Mussolini decidiu, logo em seguida à conquista do poder, fazer dele seu primeiro ministro da Instrução Pública, com a missão de realizar uma reforma total da instituição escolar, que sofrera apenas retoques depois da lei Casati, de 1859.
A reforma que Gentile fez adotar em 1923 se inspirava nos projetos que Croce não tivera tempo de concluir quando ocupara as mesmas funções no gabinete Giolitti, e o filósofo liberal aprovou as disposições daquele que, nessa data, ainda podia se dizer seu discípulo e amigo. A reforma conduzida por Gentile – que durante a elaboração do projeto se cercara de colaboradores não pertencentes ao PNF, como Giuseppe Lombardo Radice e Alessandro Casati, respectivamente diretor-geral da Instrução Primária e vice-presidente do Conselho Superior de Instrução Pública – era, em seu espírito, fundamentalmente conservadora. Reforçava as disciplinas tradicionais e as tendências seletivas e elitistas da escola italiana e anunciava uma sociedade hierarquizada e espiritualista, já distante das palavras de ordem contestatórias do primeiro fascismo. Isso não impediu Mussolini – que, no entanto, sofrera na juventude a verdadeira segregação existente entre os diplomados passados pela peneira do liceu ou da universidade e aqueles que, como ele, tiveram de se contentar com um curso “primário superior” – de proclamar que Gentile dera nascimento à “mais fascista das reformas” e defender seu ministro contra as críticas que não tardaram a se manifestar no seio do partido fascista.
O caso Matteotti poderia ter encerrado a carreira político-intelectual de Gentile definitivamente. Na verdade, foi o assassinato do dirigente socialista que, em 14 de junho de 1924, fez o filósofo e três ministros moderados porem seus cargos à disposição do Duce, na esperança de que um remanejamento do gabinete permitisse favorecer a “conciliação nacional.” Substituído primeiro por Alessandro Casati, próximo do ministro demissionário, depois por Pietro Fedele, ao contrário resolutamente hostil a sua reforma, Gentile não pôde impedir que ela fosse, a golpes de decretos e “retoques,” esvaziada pouco a pouco de sua substância. Ele não obstante efetuaria um restabelecimento espetacular após o discurso de 5 de janeiro de 1925, tomando abertamente partido do chefe do governo, denunciando a “estúpida lenda de uma pretensa incompatibilidade entre inteligência e fascismo” e levando em seu rastro alguns batalhões de intelectuais que tinham até então se mantido em prudente reserva.
O congresso de Bologna e o Manifesto dos Intelectuais Fascistas publicado em 21 de abril de 1925 se inscrevem nessa perspectiva. Se tiveram por efeito imediato separar Gentile e Croce, eles marcaram principalmente o início da fulgurante ascensão do primeiro, em breve coberto de honrarias e rendas e considerado o pensador oficial do regime. Mas foi principalmente como organizador e animador de instituições culturais estreitamente ligadas ao regime que Gentile desempenhou papel importante, de meados dos anos 1920 ao início do decênio seguinte. Sobre o plano estritamente doutrinário, ele não tardou a sofrer a influência, ou melhor, a concorrência, de outros teóricos do regime, menos prestigiosos, menos adulados por Mussolini, mas sem dúvida mais representativos do que se tornaria o fascismo, uma contrarrevolução conservadora: homens como Federzoni e Rocco, antigos nacionalistas ligados ao fascismo, com os quais se esforçaria para rivalizar em ardor vitalista, o que o conduziria a justificar os piores excessos do esquadrismo e, mais tarde, escrever páginas grotescas sobre a sobriedade do “estilo fascista.” Até lá, contenta-se em afirmar que, desde que “o fascismo é ação,” ele não tem necessidade de “definir sua doutrina e fixar seu sílabo.”
Ainda assim, foi Gentile o escolhido por Mussolini quando julgou necessário dar ao fascismo uma definição teórica digna de ser transmitida à posteridade. Em 1925, foi criado o Instituto Giovanni Treccani, com o objetivo de publicar uma monumental enciclopédia na qual todos os notáveis italianos dos mundos da ciência e da cultura foram convidados a participar. Gentile foi encarregado de coordenar os trabalhos e reunir as colaborações, o que fez sem se preocupar demais com a ortodoxia fascista dos autores convidados. Entre estes, raros foram os que, como Croce e Lombardo Radice, declinaram a oferta do diretor do Instituto Nacional Fascista da Cultura. A maior parte aderiu à empreitada com um entusiasmo afetado que pode ser visto, por exemplo, na carta que Giulio Natali enviou a Gentile em abril de 1925: “É com orgulho,” escreveu ele ao redator-chefe da Enciclopedia Italiana, “que colaborarei com a grande obra que, dirigida por você, mostrará dignamente ao mundo civilizado a solidez e a seriedade da cultura italiana.”
Em 1932, a Enciclopedia Treccani publicou em seu tomo XIV, sob a assinatura de Mussolini, o artigo “Fascismo.” O texto compreendia duas partes: uma parte filosófica redigida por Gentile na qual o Duce fizera algumas correções e uma parte política e social da qual o Duce era o autor. O texto foi publicado um pouco mais tarde, sob a forma de um livro intitulado La dottrina del fascismo, acompanhado de notas e de uma breve História do movimento fascista de Gioacchino Volpe. O essencial da religião laica fascista estava exposto em umas trinta páginas que, durante muito tempo, foram consideradas exemplo da retórica mais vazia, mas que, como mostrou Renzo De Felice, justamente, a meu ver, constituem de fato “a chave mais autêntica e certa para compreender o totalitarismo fascista e suas especificidades.”
O fato de que o Duce tenha escolhido Giovanni Gentile para dar forma a sua concepção do estado e da sociedade – um estado “considerado vontade ética universal” no qual o indivíduo é chamado a se fundir, um estado “criador da nação” e “criador do direito,” cujo princípio, “inspiração diretriz da personalidade humana reunida em sociedade, penetrou na alma e habita no coração do homem de ação, assim como no do artista, do pensador ou do sábio”; uma sociedade estranha à luta de classes, fundada sobre “a desigualdade indelével, fecunda, benfazeja dos homens” – testemunha sua própria evolução ideológica, e também a do movimento criado por ele, no sentido do abandono das posições esquerdistas do primeiro fascismo e da adoção das teses da revolução conservadora.
No momento em que é publicada La dottrina del fascismo, Gentile já deixou de ocupar uma posição hegemônica na paisagem cultural fascista. Não se pode ainda falar de desgraça – esta virá um pouco mais tarde – mas o redator-chefe da Enciclopedia Treccani, em desacordo com Mussolini a respeito da política religiosa do regime, vê decrescer consideravelmente sua influência sobre o poder e a intelligentsia italiana. A última manifestação dessa influência foi sem dúvida a sugestão, feita a Mussolini e aceita por ele em 1931, de exigir dos professores universitários que prestassem juramento de fidelidade ao Rei e ao regime fascista. Dos 1.200 professores afetados, somente 13 recusaram e foram imediatamente aposentados ou suspensos com indenização. Essa capitulação quase geral constituía para o regime um imenso sucesso. Evidentemente, faltava muito para que todos os que juraram exercer sua profissão e cumprir seus deveres acadêmicos “tendo por objetivo formar cidadãos eficazes, probos, devotados à pátria e ao regime” fossem fascistas de coração e convicção. Uns o fizeram por indiferença política, outros por achar que a natureza de seu ensino tornava o juramento vazio de sentido, outros ainda por razões puramente materiais. Pouco importa. Mussolini não tinha ilusões quanto à sinceridade da conversão do mundo universitário ao fascismo. Mas vindo de um meio composto de cultura liberal, a amplitude do consenso, ainda que puramente formal, servia consideravelmente a seu projeto de homogeneização das elites.
Por trás dessa aparente uniformização da intelligentsia, era de fato uma grande diversidade que reinava no mundo da cultura no apogeu da era fascista. Ainda uma vez, não se nivela facilmente um povo que deu à Europa e ao mundo uma parte imensa de seu patrimônio intelectual e artístico. Mussolini tem consciência disso e não procura aplicar ao pé da letra a “melhoria integral” dos espíritos louvada por Starace ou Farinacci. É verdade que, em matéria de política cultural, suas escolhas são submetidas a ventos contrários que, ao sabor da conjuntura, podem levá-lo a vias muito diferentes. De um lado, a influência de Bottai e, sobretudo, de Margherita Sarfatti – que muito fez para polir suas facetas mais ásperas e pô-lo em contato com intelectuais e artistas não completamente alinhados ao modelo dominante – o leva na direção do pluralismo e da modernidade; do outro, os tenentes da intransigência doutrinária insistem, ao contrário, em promover uma cultura “autenticamente fascista.”
O alinhamento ideológico do qual o antigo Ras de Cremona fez seu cavalo de batalha antes da guerra era ainda mais difícil de implementar porque, entre os intelectuais que gravitavam em torno do poder ou pretendiam inspirar suas escolhas políticas e culturais, o denominador comum do radicalismo verbal recobria opiniões e comportamentos diversos aos quais Mussolini se acomodava, desde que não questionassem as bases sobre as quais repousava o consenso, seja levando longe demais a errância ideológica, seja sacudindo o conformismo moral e as convicções religiosas da maioria dos italianos.
De todos os caciques da intelligentsia fascista, Marinetti era sem dúvida o menos afastado das opções anarquizantes do primeiro fascismo. Isso não impediu o papa do futurismo, “sansepolcrista,” co-fundador do Fasci milanês em março de 1919 e durante algum tempo hostil a Mussolini (que em 1920 o chamara de “palhaço extravagante”), de entrar, em 1929, para a nova Academia Italiana e portar, como seus confrades, a veste clássica e o chapéu de plumas dos altos dignitários da cultura oficial, nem de, em seguida, dar seu apoio à obra de “melhoria cultural” empreendida por Starace e comparsas. Mas verbo e gesto se mantinham na tradição do Manifesto de 1909. Marinetti, que em outra época exigira que o pontificado fosse banido e enviado para Avignon, suportou bastante mal a aproximação com o Papado e, mais globalmente, o aburguesamento do regime e seu alinhamento com as posições do conservadorismo. Se Mussolini continuou a suportar suas exuberâncias, foi porque apreciava a fidelidade de Marinetti e também porque o comportamento do escritor futurista estava de acordo com o que esperava dos italianos, trate-se de seu engajamento voluntário para a campanha da Etiópia em 1936 (aos sessenta anos!) ou de suas diatribes contra a pastaciunatta, acusada de ser nociva aos habitantes da península por desenvolver “esse ceticismo tipicamente irônico e sentimental que, mui frequentemente, apaga seu entusiasmo” (La cucina futurista, 1932).
Entre os intelectuais italianos que se aproximaram do fascismo por admirar seu niilismo purificador e antiburguês figuram o futurista Ardengo Soffici e Curzio Malaparte. O primeiro permaneceu até o fim fiel ao espírito do primeiro fascismo, aceitando, à diferença de Marinetti e por raiva do establishment, a aliança com a Alemanha hitlerista, a política racista do regime e, finalmente, o retorno às bases do esquadrismo proclamado pelos dirigentes da República Social. Atitude de repugnância e desespero que faz pensar naquela de um Drieu La Rochelle. O segundo teve um percurso mais sinuoso. Em 1921, voltando da Polônia, onde era adido da legação militar italiana, ele hesitou muito entre duas vias: a do fascismo ativista, ao qual se juntará somente no ano seguinte, e a do internacionalismo e comunismo. Se escolheu seguir Mussolini, foi porque sua sede de heroísmo, seu niilismo revolucionário e sua vontade de viver um destino “nietzschiano,” ao modo do d’Annunzio da empreitada fiumiana, inclinavam-no muito naturalmente a se aproximar do esquadrismo. Desde essa época, contudo, a revolução pregada por Malaparte não tinha muita coisa a ver com a desejada por socialistas, sindicalistas revolucionários e “fascistas de esquerda.” Antiburguês, esse filho de imigrante alemão, engajado voluntário aos dezesseis anos para combater na França com os voluntários garibaldinos, depois promovido ao posto de oficial nas tropas alpinas, queria-se igualmente antiproletário.
Eu estava certo – escreverá ele de Caporetto – de uma revolução nacional iminente na Itália, pelas vias guerreiras, ou seja, pela infantaria; em outros termos, uma revolução de camponeses. (...) Uma revolução antiproletária, antiburguesa (...) uma reconciliação entre o espírito rural e o heroísmo do sangue nobre, um retorno antipolítico da Vendeia, um novo espírito natural e terrestre da Contrarreforma.
Revolução contra a ordem burguesa, portanto, mas com o objetivo bem preciso de restaurar a ordem tradicional, sacudida pelo capitalismo e pelo industrialismo, e com um pensamento eminentemente reacionário que se unia ao de dois outros escritores fascistas: Ardengo Soffici e Giovanni Papini, o antigo redator-chefe nacionalista da Voce, tornado devoto, depois convertido ao fascismo no início dos anos 1930 após sua eleição para a Academia Italiana. Os três colaboraram ativamente na revista que Mino Maccari começara a publicar em 1924 e cujo título, Il Selvaggio, mostrava bem sua recusa da sociedade industrial e de todos os modernismos ideológicos e culturais. O “selvagismo,” definido por Maccari como a resistência da tradição, “essa grande amiga e protetora dos povos,” aos malefícios da modernidade, “uma farsa manipulada pelos banqueiros judeus, pederastas, aproveitadores da guerra, gerentes de bordéis,” representava para a revista apenas um ramo da cultura fascista, aquele que se unia à tradição popular, provinciana e fundamentalmente contrarrevolucionária do “antirisorgimento.” Ele traduzia no campo cultural algumas das aspirações do esquadrismo rural e se opunha a outra grande tendência, o modernismo fascista, encarnado no movimento do novecentismo, representado notadamente pelo escritor Massimo Bontempelli e por numerosos pintores, entre os quais de Chirico, Sironi, Morandi e o ex-futurista Carrà.
Entre o retorno à ordem tradicional reclamado pelos “selvagens” e a aspiração a uma nova ordem anunciada pelo novecentismo, Mussolini hesitava a se pronunciar, desejoso de ao mesmo tempo preservar as virtudes morais do mundo rural (cf. o “discurso da Ascensão,” de 1927, no qual fizera a apologia das populações prolíficas da Basilicata) e fazer de seu país uma grande potência industrial. Durante os anos em que Margherita Sarfatti exerceu plenamente seu magistério sobre a cultura italiana, ele se inclinou mais para o novecentismo. Nessa época (segunda metade dos anos 1920), frequentava assiduamente o salão da jornalista veneziana, onde eram recebidos os representantes das vanguardas artísticas e literárias. Aí podiam ser encontrados tanto Maccari e Malaparte quanto Bontempelli, mas o espírito do lugar pendia claramente em favor dos modernos. Convidado por sua companheira a inaugurar, em fevereiro de 1926, a primeira Mostra del Novecento (Exposição do Século XX), o Duce pronunciou uma longa alocução, sem dúvida redigida por Margherita, na qual manifestava destacado interesse pela nova escola:
Perguntei-me se os eventos que cada um de vocês viveu – guerra e fascismo – deixaram traços nas obras aqui expostas. O vulgar diria que não, porque, salvo o quadro A noi!, de estilo futurista, não há nada que lembre ou – infelizmente! – fotografe os eventos passados ou reproduza as cenas das quais fomos, em graus diversos, espectadores ou protagonistas. Mas a marca dos acontecimentos está aqui. Basta saber encontrá-la. Essa pintura, essa escultura, é diferente daquela que a precedeu imediatamente na Itália. Tem sua marca, comparável a nenhuma outra. Vê-se que resulta de uma rigorosa disciplina interior. Vê-se que é produto não de um métier fácil ou mercenário, mas sim de um esforço assíduo, às vezes angustiado. (...) De fato, o que atinge nas obras aqui expostas são esses elementos característicos comuns: a decisão e a precisão do desenho, a pureza e a riqueza da cor, a solidez plástica das coisas e das figuras. (...) Creio que serão numerosos aqueles entre vocês que, percorrendo as salas, compreenderão meu julgamento e acharão que essa primeira exposição testemunha com certeza, e da melhor maneira, o futuro da arte italiana.
Talvez essa benevolência (de resto provisória) manifestada pelo Duce em relação à corrente “vintista” tenha levado Malaparte, decepcionado com a evolução do regime, a se afastar do fascismo. Permanece o fato de que, em seguida a um conflito com Balbo, ele teve de deixar a direção de La Stampa e se exilar na França, onde publicou, golpe após golpe, A técnica do golpe de estado – que lhe valeu os elogios do chefe de polícia Jean Chiappe – e O homem Lênin, proibidos um e outro na Itália e na Alemanha. De volta à Península, Malaparte foi condenado a cinco anos de confino nas ilhas Lipari por “atividade antifascista no exterior,” mas, tornando-se protegido de Ciano, purgou apenas parte de sua pena. Desde 1937, encontra-se à frente de uma revista literária, Prospettive, na qual manifesta pelo regime os sentimentos mais conformistas.
Conformista ou contestatório, ao sabor de suas mudanças de humor, Malaparte não era muito apreciado por Mussolini. Já em 1923, convocado ao Palazzo Chigi, ele tivera de esperar um longo momento até que o Duce se dignasse a levantar os olhos em direção a seu convidado – tremendo de impaciência e certo de ser promovido a um cargo importante – antes de criticá-lo violentamente por ter ousado dizer publicamente que o mestre da nova Itália usava gravatas horrorosas. Mais tarde, como o escritor adquirira estatura internacional, suas relações se estreitaram um pouco, sem contudo se tornarem calorosas. Em 1935, o senador Agnelli pediu a Mussolini que “acabasse com o escândalo” que desonrava seu nome e sua família. Sua nora Virginia, viúva do herdeiro do império Fiat, ao qual dera sete filhos, conhecera Malaparte em Forte dei Marmi e se tornara sua amante. Privada de seus direitos parentais, a jovem também apelara ao Duce, o qual terminara por lhe dar ganho de causa, com a condição de que parasse de ver seu amante. Promessa não mantida, é claro, mas que revela a forte pregnância de um conformismo moralista do qual o ditador pretendia assegurar a perenidade ao menos formal. Aproveitando-se dessa atividade de censor, Mussolini encontrara a oportunidade de manifestar sua pouca simpatia tanto pelo industrial de Turim quanto pelo ex-diretor de La Stampa.
Tratando-se de intelectuais saídos da corrente nacionalista, seu alinhamento ao fascismo se efetuou desde os primeiros anos do regime, quando lhes pareceu evidente que “o fascismo se tornara estado e o estado se tornara nacionalista.” Deve-se notar, contudo, que a adesão dos antigos mestres pensadores do nacionalismo de antes da guerra não foi tão imediata, tão entusiástica nem tão completa quanto a dos “políticos” do movimento, Federzoni, Rocco etc. Salvo talvez da parte de Corradini, que, na radicalização do regime em janeiro de 1925, publicou em Gerarchia um artigo que saudava no fascismo “a revolução evoluindo no interior da ordem estabelecida.” Para Prezzolini, as razões de apoiar Mussolini eram fundadas menos sobre o parentesco ideológico com o fascismo e mais sobre o fato de que ele soubera impor sua lei a seus adversários, que eram também os dos nacionalistas. Papini, longamente indiferente ao fascismo, absorto que estava em sua conversão ao cristianismo militante, mostrou-se o mais ardente defensor do regime ao compreender que a fraseologia socializante dos primeiros tempos fora apenas um meio utilizado por Mussolini para promover o estado aristocrático com o qual sonhava. “O fascismo,” escreveu em 1941, “rasgou as roupas que nos caíam tão mal, queimou as máscaras que dissimulavam nossa verdadeira face, encontrou e restaurou os princípios sobre os quais estavam fundadas nossas antigas repúblicas aristocráticas e nossos principados: a autoridade do estado e a unidade de comando.”
O caso de Gabriele d’Annunzio é completamente diferente. Incapaz de esquecer que durante vários meses exercera em Fiume os poderes de soberano absoluto, mortificado por ter sido relegado por Mussolini a um papel político de segundo plano, o comandante aderiu ao regime apenas da boca para fora e se fechou, até sua morte em 1938, em um mutismo altaneiro, saindo de sua reserva apenas para condenar os assassinos de Matteotti ou aprovar as empreitadas africanas de Mussolini. No resto do tempo, a estátua do Comandante se animava apenas para os gestos rituais de um cotidiano desencantado: a escritura de uma obra que já dera o melhor de si, algumas viagens, a recepção de visitantes vindos entreter o mestre em sua propriedade barroca do Vittoriale, perto do lago de Garda – um presente real do regime no qual d’Annunzio esperava seus hóspedes na proa de um navio de guerra, definitivamente encalhado sobre a grama do parque, e os saudava com tiros de canhão. Quando Fiume foi anexada à Itália, em 1924, o Rei, a pedido do Duce, fez do condottiero-poeta príncipe de Montenevoso.
Mussolini nutria pelo antigo ditador de Fiume sentimentos variados. Admirava tanto quanto invejava o herói e o escritor coroado de louros, mas sobretudo desconfiava dele. Todos os feitos e gestos do Comandante lhe eram escrupulosamente relatados pelo vice-questor Rizzo, um funcionário de polícia “em missão em Gardone Riviera” que conseguira ganhar a confiança de d’Annunzio e ao qual nada escapava do que se passava no Vittoriale. Nem uma saída do escritor fora dos limites da propriedade, nem uma diligência inabitual efetuada por ele ou por um de seus próximos, nem um visitante que não fosse logo assinalado ao secretariado particular do Duce. A intensa correspondência que os dois trocaram durante quase vinte anos mostra, porém, a grande familiaridade de suas relações. Eles se tratam de “tu.” Eles se chamam de “querido companheiro.” Suas cartas – que podem ser muito longas – terminam inalteravelmente com um fraterno “Ti abbraccio.” Aquelas que o Duce envia ao poeta-combatente são impregnadas de certa deferência e às vezes obedecem a um curioso mimetismo, com Mussolini abandonando o estilo lapidar que usa a maior parte do tempo em suas relações epistolares com os membros de seu entourage para se lançar em vibrantes efusões líricas, não esperadas de sua pena.
Seguro de seu “direito de ascendência” e do imenso prestígio conferido por sua glória literária e militar, d’Annunzio não usa precauções de estilo em sua correspondência com o Duce. Suas cartas podem ser amigáveis, afetuosas mesmo, cheias de uma admiração aparentemente sincera pela obra realizada por ele. Mas também podem exprimir sem subterfúgios recriminações diversas, com d’Annunzio se queixando de ser submetido a uma vigilância desagradável quando viaja pela península, de não ter sido escutado nessa ou naquela recomendação ou ser considerado sem importância por certos hierarcas. “Na Itália de hoje,” escreveu em agosto de 1926, “é possível que o ministro Belluzzo fale de corporações em Fiume sem fazer alusão, mesmo longínqua, à minha admirável experiência!” O escritor não se interdita nenhum assunto em sua relação epistolar com o número um do regime. Em março de 1926, por exemplo, ele se inquietou com os projetos de renovação dos bairros de San Giovanni e San Lorenzo, em Florença, e anunciou que se oporia com todas as suas forças à “ignóbil afronta” de que estava ameaçada a capital da Toscana. Mussolini suportou serenamente a tempestade, o que não era de sua natureza, e depois enviou ao escritor um telegrama assegurador: “Fique tranquilo. A Florença do belo San Giovanni, que também adoro, não corre nenhum risco. Entre dizer e fazer, está minha vontade.”
Ele se mete pouco nos assuntos do estado, e menos ainda na política externa fascista. Isso dá ainda mais peso a sua intervenção quando escolhe romper sua reserva habitual. Foi assim que, no outono de 1933, quando o Duce parecia hesitar entre duas políticas – uma voltada para os democratas, outra para a Alemanha hitlerista – d’Annunzio enviou a seu “caro companheiro” este apelo solene em favor da irmã latina:
Esse belo nome que sempre te dou é fatal. Ele é necessário. Em outros termos, ele não pode ser abolido, nem mesmo por ti. Tu conheces as origens do sentimento sincero que nos une. Não poderia ignorá-las. Lembra-te das palavras que escrevi antes de partir para Fiume, breves como a morte, em face da morte. Foi nesse instante, como diziam os romanos, que nosso pacto foi atingido. Esse é um pacto de mútua liberdade. A noite passada, por um desses presentes súbitos que nos são dados às vezes pela amizade, mas jamais pelo amor – Eros e Anteros – parece-me que o pacto assinado há quatorze anos foi novamente atingido. (...)
Em tua última visita, eu me permiti fazer alusão a tua atitude em relação à França. Respondeste de maneira fugidia e ambígua. Como deves ser em tua mesa do Palazzo Chigi. Eu amo, com um amor intelectual, a França das canções épicas, de François Villon, de François Rabelais, do Marne, do Marrocos... Para testemunhar esse amor, escrevi quatro livros no melhor francês da França. No último, declaro que os dois maiores escritores franceses, pela arte, pela técnica, pelo vocabulário e pelo estilo, são Brunetto Latini e Gabriele d’Annunzio. Nesse livro, não hesitei em olhar de frente nossas discordâncias tradicionais. (...)
Não sei se tu sabes o que respondi ao convite para participar de uma cerimônia comemorativa em honra de Gallieni, que foi meu amigo, no teatro da Ópera, em presença de autoridades civis e militares. Escrevi que a França insolente e rabugenta começara a nos conhecer e estimar apenas após a fraternidade da guerra e nossa assinatura da paz em Paris na qualidade de vencedores. Eis, meu caro companheiro, documentos que dão a medida de minha “lealdade” e minha grande alma. Ao diabo a modéstia, exclamaria um toscano, fosse pagão, devoto ou um grosseirão. Depois dessa noite, sei que as hesitações e incertezas desse dia de amizade dão lugar agora a tua clarividência, e que afastarás firmemente esse camponês Adolf Hitler, com sua abominável cara manchada de uma cal indelével e da cola onde ele mergulhava seu pincel, com aquela vara comprida tornada hoje o cetro desse esfregão feroz e cheio de tufos, na raiz de seu nariz “názi.” Sinto muito que tu estejas sempre longe de mim e que eu deva escrever em minhas páginas de “escritor público” essas palavras veementes que escrevo como irmão. Enfim, tu me compreendes e eu te compreendo. Eis o que quero dizer, formulado com brevidade cesariana: “a França não deve se desarmar; foi por ela que aprendi de cor algumas linhas da Canção de Roland.” A Itália não deve se desarmar, mas sim multiplicar seu arsenal, custe o que custar. Leva em consideração o estado real de nossa aviação e te precipita ao resgate com teu vigor habitual.
Muitos intelectuais, enfim, aderiram ao fascismo apenas por oportunismo. Foi o caso de Luigi Pirandello, malgrado todo o esforço posterior feito pelo autor de Vestir os que estão nus para justificar ideológica ou esteticamente seu engajamento. Até a Marcha sobre Roma, o dramaturgo siciliano se preocupou muito pouco com política, manifestando apenas alguma simpatia pelas tendências anarquistas dos Fasci de trabalhadores sicilianos, no início dos anos 1890, como mais tarde pelos intervencionistas militares do “maio radioso” (à exceção de d’Annunzio, que detestava). Isso nada tinha de contraditório com o fascismo. Daí a escrever, como fez Pirandello em L’Idea nazionale para o primeiro aniversário da Marcha sobre Roma: “Sempre tive a maior admiração por Mussolini e acredito ser uma das raras pessoas capazes de compreender a beleza de sua criação contínua da realidade” e procurar correspondências entre sua própria criação e a do Duce havia uma distância que o dramaturgo não teve nenhum problema em percorrer. Como recompensa, pôde gozar da consideração amigável do Duce, tão lisonjeado quanto ele mesmo por seu prêmio Nobel de 1934 e pelo sucesso internacional de sua obra dramática, mais bem-acolhida, é verdade, no exterior que na Itália.
O compromisso com os católicos
Depois dos acordos de Latrão, as relações com o Papado e com a Igreja italiana conheceram uma breve calmaria, como se pode perceber na leitura da correspondência entre o número um do regime e o padre Pietro Tacchi Venturi, secretário-geral da Companhia de Jesus. Desde 1924, este, que tinha com o chefe do governo relações bastante cordiais, servira de intermediário entre Mussolini e a alta hierarquia do Vaticano. Desempenhara papel importante na negociação dos acordos de 1929 e foi quem continuou a manter o contato direto entre Mussolini e Pio XI.
Uma leitura rápida das relações entre a Igreja e o fascismo no início dos anos 1930 – a que geralmente é feita – pode levar a ver na crise que opõe os dois poderes o resultado exclusivo da intransigência e do totalitarismo mussolinianos, em relação especialmente ao enquadramento da juventude. Mas as coisas não são tão simples. À preocupação do regime com um controle sem falhas sobre o espaço público e de dirigir o rumo de cada um responde, da parte da Igreja, a de voltar a ocupar posições abandonadas depois da ocupação de Roma pelos piemonteses e disputar o magistério das consciências com o estado totalitário. Desde que se trate só de exibir o caráter de religião de estado do catolicismo italiano ou de exigir do poder que faça respeitar os princípios de uma ordem moral adequada aos ensinamentos da Igreja, o compromisso funcionará de maneira quase correta. Em contrapartida, as coisas se estragarão quando as exigências dos dois protagonistas começam a tratar de questões concernentes à política ou à formatação ideológica dos indivíduos.
Em janeiro de 1929, portanto em um momento no qual a Concordata ainda não fora assinada, Tacchi Venturi fala a Mussolini do “vivo desejo” do cardeal Gasparri “de oferecer à Nação o crucifixo que será instalado na Câmara dos deputados.” Ao Duce, ou a seus colaboradores, cabe o cuidado de estabelecer as dimensões, “a fim de que estejam em harmonia com as proporções da sala de sessões parlamentares.” O cardeal secretário de estado se encarregará de fazer executar o trabalho por “um valoroso escultor de madeira, apto a efetuar uma obra extremamente cuidadosa.” Atrás desse gesto, apresentado de modo benevolente pelo dignitário da Companhia de Jesus, está de fato a Igreja católica, que opera seu retorno simbólico ao seio do estado italiano. Mussolini aparentemente não se pronuncia, e tampouco reage às observações do Papado algumas semanas mais tarde, relacionadas à aplicação, na capital, da circular endereçada aos prefeitos que tinha por objetivo a “luta contra a imoralidade.” Escreve Tacchi Venturi:
Vossa Excelência, sem dúvida já sabe da plena satisfação do Vaticano quanto à última circular aos prefeitos a respeito da luta contra a imoralidade e pela defesa dos bons costumes, pelo artigo publicado no dia 2 deste mês em L’Osservatore romano. É meu dever esta manhã desempenhar a honorável tarefa que me foi confiada ontem à noite por Sua Eminência o secretário de estado, o qual me pediu para fazer conhecer à Vossa Excelência a alta aprovação e a profunda gratidão que um documento assim sábio e necessário suscitou em Sua Santidade e em seu primeiro-ministro. (...) Nessa ocasião, Sua Eminência me pediu para assinalar à Vossa Excelência uma gravíssima desordem que faz obstáculo à realização dos objetivos sagrados perseguidos pelo governo.
Os autointitulados tabarins, que Vossa Excelência sabiamente suprimiu, passou-se que, expulsos pela porta, voltaram pela janela, como se diz comumente. Explico-me. Queixas ouvidas frequentemente por Sua Eminência (...) contam que, em numerosos cinemas de Roma, entre as duas partes da projeção, surgem sobre a cena jovens dançarinas tendo por única vestimenta aquela da mãe Eva antes do pecado, à exceção de estreita faixa sobre as partes, em uma incitação mais que completa às impuras solicitações da concupiscência. Ora, como disse Sua Eminência, se o escândalo dos tabarins merecia, como o fez justamente o Duce, ser eliminado, com mais razão ainda deve-se impedir sua sobrevivência nos cinemas. Os tabarins, de fato, eram frequentados apenas por pessoas já corruptas, ao passo que, quando a produção é séria, são as boas famílias cristãs, preocupadas com a moralidade de seus filhos e filhas – aos quais se pode bem conceder uma honesta evasão – que vão ao cinema.
Como se vê, Mussolini não esperou as representações do cardeal secretário de estado para realizar, na perspectiva da “Concordata” com a Santa Sé, uma “melhoria moral” da qual os cinemas romanos serão os últimos a pagar o preço. Além disso, as exigências pontificais não o chocam tanto justamente porque coincidem com suas próprias inclinações, as errâncias de sua vida pessoal não sendo exclusivas de certa afetação de recato que – viu-se a respeito de seus gostos cinematográficos – é apenas o reflexo de seu meio e de seu tempo.
Sem tempestades, portanto, a respeito das strip-teasers romanas, nem, mais geralmente, de qualquer coisa que se relacione a uma ordem moral da qual a Igreja posa agora como guardiã vigilante. Eis um domínio no qual César não reivindica controle exclusivo porque o compromisso com a outra Roma serve a seu próprio desenho de homogeneização do corpo social. Em contrapartida, Mussolini reage com vigor assim que constata a menor usurpação de suas prerrogativas governamentais ou pressente qualquer ameaça a seu projeto totalitário.
Ora, as demandas que Pio XI e o cardeal Gasparri endereçam ao Duce por intermédio de Tacchi Venturi não se relacionam somente à questão dos bons costumes. Menos de duas semanas depois do caso dos cinemas romanos, o padre jesuíta é encarregado de conversar com o dirigente fascista sobre um problema completamente diferente. A hora é de preparação das eleições para a Câmara, segundo o novo procedimento eleitoral (400 nomes escolhidos pelo Gran Conselho em uma lista de mil apresentada pelas corporações e por diversos outros organismos públicos). O Santo Padre, explica Tacchi Venturi, “exprime o vivo desejo de que as próximas eleições políticas tenham um significado, poder-se-ia dizer, plebiscitário, significando ao mesmo tempo a aprovação e a adesão ao Duce e ao regime instaurado por ele e do qual é o pivô.” Mas a satisfação de Pio XI é muito diminuída pela composição da lista que deve ser submetida ao Gran Conselho:
Resulta – precisa o dignitário da Companhia de Jesus – de fontes completamente seguras, que, dos mil nomes que devem ser apresentados ao Gran Conselho para a escolha dos 400 deputados, mais ou menos três quartos são indivíduos que, por seu passado público ou privado, por sua conduta moral atual ou por ambas as razões, não podem, em toda confiança, ser julgados dignos de representar uma nação católica, a qual, em virtude da nova Concordata, assume (mais do que fazia no passado, com apenas o Estatuto Constitucional) o caráter de um estado confessional.
Daí surgiu uma delicada questão de consciência. Os eleitores católicos poderão aportar seus sufrágios a uma lista de deputados, isto é, legisladores, composta em sua maioria de candidatos incapazes de realizar a alta função que lhes é confiada e de fazer respeitar os princípios recentemente estabelecidos nas relações entre a Igreja e o Estado? Certamente não; porque não é permitido a um católico cooperar no que quer que seja com o mal. Existe, ao contrário, o dever de tender para o bem usando todos os meios legítimos honestamente a seu alcance. Mais, portanto, que contribuir com seu voto para a ascensão ao poder legislativo de uma maioria de homens que, sem a menor preocupação com a conversão sincera, mas por pura e simples mudança de rótulo, provêm de antigos partidos resolutamente hostis à Igreja, o eleitorado católico preferirá, como lhe ordena sua consciência, abster-se, mudo e silencioso, de tomar parte no voto. (...)
Todos esses perigos, ainda é tempo de remediá-los: isso depende apenas do querer do Duce. Ele tem pleno poder para estabelecer uma lista de 400 nomes formando uma maioria sólida de homens livres de toda ligação com a maçonaria, com o judaísmo e, em uma palavra, com todos os grupos anticlericais.
A esse preço – é a conclusão da carta endereçada a Mussolini por Tacchi Venturi – o Duce mostrará mais uma vez que é de fato, como afirmou enfaticamente Pio XI, “o homem da providência de Deus.”
Segue-se uma lista de “alguns candidatos de princípios saudáveis e conduta moral rigorosa a inserir, se já não está feito, na lista do colégio único” – 27 nomes no total, que o Papado teve a habilidade de escolher entre os militantes fascistas, na maior parte ex-combatentes condecorados (alguns são mutilados de guerra), mas de sentimentos católicos ostensivos. Cada nome é seguido de um breve currículo e uma menção justificando a demanda pontifical. Citemos, a título de exemplo, Pietro Agosti, candidato em San Remo, do qual é dito que “seu concorrente é um valdense pelo qual os católicos se recusam a ser representados,” ou Domenico Antonelli, candidato em Frosinone, para o qual a memória apresentada por Tacchi Venturi precisa que “os católicos da Ciociaria ficariam aflitos” se, em seu lugar, o Gran Conselho designasse “o israelita Achille Colombo.”
Diante dessa ofensiva malmascarada pelo discurso lenitivo do emissário do Papado, Mussolini não podia ficar sem reação. Uma coisa era deixar tomar as medidas do crucifixo destinado à sala parlamentar ou poupar a juventude do espetáculo da nudez feminina, outra era autorizar a Igreja a interferir no processo de designação dos representantes da nação. O Duce não teria desejado se engajar imediatamente em uma polêmica com o Vaticano que a ala intransigente do PNF, constituída, à imagem de Farinacci, Marinetti e Rossoni, de antigos sindicalistas revolucionários, republicanos ou futuristas de convicção anticlerical, o teria incitado vivamente a criar. Durante o debate sobre a ratificação dos acordos de Latrão pela Câmara, no entanto, ele pronunciou, em 13 de maio de 1929, um discurso que estava longe das propostas conciliadoras apresentadas após a assinatura do tratado.
Definindo a maneira como via o papel da Igreja no estado fascista, Mussolini afirmou primeiro que a religião cristã, saída de uma seita semelhante a todas as que abundavam no Oriente na época de Cristo, devia sua expansão pelo mundo, para dar nascimento à igreja católica, à existência do Império romano. Ele fazia assim da universalidade católica uma simples consequência da conquista romana e subordinava sem ambiguidades a coisa religiosa à coisa política. Sobre essas bases, fez um histórico do poder temporal dos pontífices, mostrando que, se este existira, era porque os estados o haviam tolerado. “Nós não ressuscitamos o poder temporal dos papas, nós o enterramos.” Ele retomou igualmente diversos pontos da Concordata com o intuito de limitar seu alcance. Enfatizou, por exemplo, que o estado se recusara a introduzir o ensino religioso na Universidade em nome do direito do estado fascista de fixar as regras morais: “O estado,” explicou mais uma vez, “é católico, mas é fascista antes de tudo, exclusivamente, essencialmente fascista.”
Outro sinal dado à hierarquia da Igreja foi sua recusa formal em retirar de Campo dei Fiori o monumento comemorando o suplício do “herege Giordano Bruno.” Uma requisição idêntica, relacionada à estátua de Garibaldi erigida pela municipalidade romana no cume do Janicule, em face ao domo de São Pedro – verdadeiro desafio endereçado pelo estado liberal à Roma dos vicários de Cristo – recebe da parte de Mussolini, que pensava em edificar na proximidade dessa estátua um monumento a Anita Garibaldi, uma rejeição tão enérgica quanto a anterior. Gestos que foram saudados favoravelmente pelos laicos e pelos fascistas intransigentes, mas que tiveram por efeito suscitar a cólera de Pio XI.
Efetivamente, menos de vinte e quatro horas depois do discurso pronunciado na Câmara pelo chefe do governo, o soberano pontífice reagia com vigor. Recebendo no Vaticano os alunos do colégio de Mondragone, dirigido por padres jesuítas, declarou que a missão educadora pertencia essencialmente à Igreja e à família, não hesitando em reprovar o regime por querer moldar uma juventude de futuros conquistadores, o que não era compatível nem com o ensinamento da Igreja nem com a salvaguarda da paz. Quinze dias mais tarde, em carta ao cardeal Gasparri, respondeu ponto por ponto ao discurso do Duce, denunciando o caráter quase herético das frases relativas às origens do cristianismo, afirmando a liberdade da Igreja e lembrando que, o catolicismo sendo a religião do estado, este não podia deixar espaço no domínio religioso para a plena liberdade de discussão ou consciência.
A troca de ratificações do tratado, que teve lugar em 7 de junho e foi saudada como evento histórico tanto pela imprensa fascista quanto pelos órgãos católicos, não deu trégua aos dois protagonistas na luta aberta que começara a opô-los e cuja questão principal era o enquadramento da juventude. Durante todo o ano de 1930, há enfrentamentos em discursos, proclamações, artigos e libelos de todo gênero, como aquele que o PNF publicara no ano precedente sob o título Ignotus e no qual eram denunciadas as pretensões da Igreja de monopolizar a educação dos jovens. Do lado do Papado e da hierarquia, acusava-se o regime de querer fazer desaparecerem todas as organizações sob direção da Ação Católica e suscetíveis, como o escotismo, de concorrer com as organizações fascistas.
Em 1931, a crise chegaria a seu ponto culminante. Depois dos ataques lançados contra a Igreja pelo secretário-geral do PNF, Giuriati, e da réplica de Pio XI sob a forma de carta endereçada ao cardeal Schuster, arcebispo de Milão, na qual reafirmava o direito da Igreja sobre a educação da juventude, Mussolini deixa se desenvolver uma campanha de violência contra os círculos da Ação Católica. Edifícios foram tomados de assalto e incendiados. Militantes da AC foram agredidos e molestados. Grupos de jovens esquadristas atacaram até mesmo as igrejas, profanando crucifixos e imagens pias. A redação do jornal Civiltà cattolica foi invadida aos gritos de “Abaixo o papa!,” assim como a sede da chancelaria pontifical, que gozava contudo do privilégio de exterritorialidade. O Duce, retomando a política de dupla linguagem e dupla estratégia que adotara até 1926, não encorajou nem desencorajou publicamente esse retorno à força do terror esquadrista, mas não tomou nenhuma atitude para fazê-lo parar, aproveitando o clima de violência que seus discursos tonitruantes contribuíram para criar para tentar encerrar definitivamente o magistério exercido sobre os jovens pela Ação Católica. Em 30 de maio, ordenou, malgrado os protestos do Papado, a dissolução dos movimentos juvenis não afiliados às organizações fascistas.
O soberano pontífice respondeu com a publicação da encíclica Non abbiamo bisogno. Nesse documento, acusava o regime de querer monopolizar a educação da juventude para inculcá-la de uma ideologia pagã fundada sobre a sacralização do estado, violando assim os direitos naturais da família e os direitos sobrenaturais da Igreja. Denunciava, além disso, o teor do juramento solene que os jovens deviam fazer no momento de sua inscrição no PNF: “Juro executar sem hesitação as ordens do Duce e servir com todas as minhas forças, e se necessário com meu sangue, a causa da Revolução fascista.” A referência ao sangue era um elemento essencial da liturgia fascista, e Mussolini não podia aceitar que ela estivesse ausente do engajamento dos jovens. Pio XI, por sua vez, achava que ela introduzia no juramento uma ressonância guerreira que contradizia a mensagem da Igreja. Consciente, todavia, das dificuldades da hora e da necessidade de pertencer ao PNF para assegurar o ganha-pão, autorizava os jovens a prestarem o juramento, com a condição de que fosse complementado por uma reserva mental assim formulada: “salvo as leis de Deus e da Igreja.”
Nem o Duce nem o Papa desejavam pôr em causa o laborioso acordo estabelecido em 1929. Caminha-se, portanto, na direção de um meio-termo que, no conjunto, favorecia as exigências de Mussolini. Reorganizada pelo Papado e desembaraçada dos elementos julgados hostis ao regime, a Ação Católica readquire seus direitos, com a obrigação de operar exclusivamente no quadro diocesano, fora de toda atividade política ou sindical. Os círculos juvenis podiam subsistir com a condição de não terem outra bandeira que aquela da nação e de renunciarem a suas atividades esportivas. Assim, o pior fora evitado. A crise de 1931 demonstrara a incompatibilidade fundamental entre a ideologia fascista e a doutrina da Igreja, mas também deixara claro que nenhum dos protagonistas desejava pôr fim a uma “Conciliação” que se revelava proveitosa para as duas instituições. Para concretizar uma aliança tática que, bem ou mal, duraria até a guerra, o Papa convidou o Duce para uma cerimônia no curso da qual recebeu a ordem da Espora de Ouro: em troca do que Mussolini ordenou que fosse erigida em sua cidade natal, Predappio, uma nova igreja paroquial dedicada a Santo Antônio.
Crise econômica e consenso social
Paradoxalmente, foi num momento em que a Itália era violentamente atingida pelos efeitos da crise econômica mundial que a adesão ao regime foi mais forte. Testemunha disso é o ardor com que os poupadores italianos, grandes ou pequenos, subscreveram, muito além do que lhes era demandado, os empréstimos do estado, todas as emissões devendo ser liquidadas ao fim de somente dois ou três dias, uma vez que o montante inicial do empréstimo fora amplamente ultrapassado. Sem dúvida havia nesse gosto pelos títulos públicos razões estritamente econômicas: a política monetária do governo punha os credores ao abrigo da desvalorização e reforçava o caráter seguro dos títulos do estado. Mas isso não é suficiente para explicar a amplitude do fenômeno, bastante motivado por um reflexo patriótico que se manifestaria com ainda mais vigor durante a guerra da Etiópia.
Estabilizando a lira, em 1927, em um nível elevado demais, o governo fascista estabelecera entre os preços italianos e os do mercado internacional uma disparidade que se agravaria bruscamente em 1929, com a queda das taxas mundiais. Os resultados quase imediatos foram queda das exportações, diminuição da produção e forte crescimento do desemprego. Tocadas ao mesmo tempo pela perda de seus mercados internacionais e pela contração do mercado interno, numerosas empresas faliram, pondo em dificuldade os bancos que, como o Banco di Roma ou o Banco Comercial, tinham investido pesadamente na indústria e nos serviços.
Mussolini, assim como a maior parte dos estadistas no resto do mundo, não tomou consciência imediata da gravidade da crise. É verdade que a Itália foi atingida mais lentamente e menos profundamente que outros estados. No início dos anos 1930, com efeito, ela continuava um país de pequenas empresas, com um setor agrícola pletórico e numerosas atividades artesanais. Certas regiões, principalmente no sul, viviam ainda em um quadro de produção para subsistência ou consumo em circuito restrito, no nível dos vilarejos, por exemplo. Esse caráter arcaico da economia italiana, as relações menos estreitas com o mercado mundial e o menor risco de contágio que disso resultava tiveram como consequência frear durante algum tempo os efeitos da crise. Foi por isso que o Duce teve a tendência inicial de minimizar os perigos, considerando, em discurso pronunciado em 1º de outubro de 1930, que ela poderia ter um papel benéfico de saneamento ao eliminar os “acrobatas da indústria e das finanças.”
Cedo, contudo, foi necessário se render às evidências. Não eram somente os galhos mortos, os “doentes” e os “náufragos” da economia que estavam ameaçados de serem levados pela tormenta, mas também toda uma parte do tecido produtivo da nação no que tinha de mais saudável, e com ele categorias sociais que até então tinham dado seu apoio ao regime. Daí a escolha de uma política resolutamente intervencionista, para assegurar a salvação das empresas em dificuldades, mas ainda em um quadro de economia capitalista e respeitando os princípios monetários que permitiram, desde meados dos anos 1920, manter a lira em um nível elevado.
Para salvar do naufrágio as empresas mais ameaçadas, o estado fascista tinha necessidade de uma grande liquidez: isso no momento em que as finanças públicas deviam fazer face à diminuição das entradas fiscais e ao inchaço das despesas assistenciais e de luta contra o desemprego (durante o inverno de 1933-1934, foi necessário distribuir rações alimentares gratuitas para impedir que parte da população morresse de fome). O orçamento, equilibrado desde 1927, entrou novamente em déficit, de três e depois quatro bilhões de liras, a despeito do aumento dos impostos e da forte contenção de despesas. Para reduzir o “custo do estado,” Mussolini decidiu diminuir em 12% o salário dos funcionários, impondo uma punção da mesma natureza aos emolumentos de ministros e subsecretários. Os salários privados foram igualmente revistos e rebaixados, o Duce justificando essa perda do poder de compra em um discurso na Câmara em maio de 1934: “Façam esse sacrifício,” pediu ele ao mundo do trabalho, “porque ele permitirá prosseguir na batalha nos mercados internacionais. Ele fará florescerem nossas exportações. Ele continuará a assegurar seu trabalho e dará trabalho àqueles que não o têm.”
Para travar a crise financeira, Mussolini podia apenas escolher entre duas soluções clássicas: deflação ou desvalorização. Em 1936, resolveria adotar a segunda – desvalorizando a lira em 41% em outubro – mas muito tarde para que essa medida, aliás insuficiente, pudesse sozinha reabilitar a economia italiana. Enquanto isso, perseguiu e reforçou as medidas deflacionárias adotadas em 1926 durante a “batalha da lira,” medidas que, pesando sobretudo sobre as categorias sociais mais desfavorecidas, tinham popularidade entre os meios de negócios, mas comprimiam o consumo interno e, como consequência, agravavam a crise.
Em outubro de 1932, falando a uma grande multidão romana do balcão do Palazzo Venezia, como prólogo à comemoração do décimo aniversário da Marcha sobre Roma, Mussolini abordou pela primeira vez a natureza da crise. “Ou esta,” declarou, “é uma crise cíclica no sistema, e ela se resolverá, ou é uma crise do sistema, e então assistimos à passagem de uma época da civilização para outra.” Ele adotará a segunda hipótese no ano seguinte, em diversos artigos consagrados ao tema publicados nos Estados Unidos pela editora Hearst, graças à intervenção de Margherita Sarfatti. Comentando o livro de Roosevelt Looking Forward, Mussolini observou que, para o presidente americano, a crise era realmente uma “crise do sistema,” uma crise da civilização que devia ser combatida como tal, ou seja, com meios inteiramente novos, e se congratulava com o fato de o pai do New Deal ter adotado uma aproximação que julgava – não sem forçar a mão – bastante próxima da sua.
Na realidade, a política econômica do fascismo não tinha grande coisa a ver com os princípios keynesianos que inspiravam a experiência americana. Ela localizava a intervenção do estado no centro do dispositivo chamado a favorecer a retomada, é verdade, mas levando muito mais longe que Roosevelt a lógica dirigista e autárquica. As medidas da ortodoxia não tendo bastado para reerguer a moeda, e Mussolini querendo a todo preço manter a lira no nível fixado em 1927, é na via da autarquia que o Duce engajará seu país a partir de 1933.
Vê-se frequentemente na busca da autossuficiência uma escolha política destinada a preparar um país para a guerra, quando esta é julgada inevitável. Mas é preciso não tomar os efeitos pelas causas. Na Itália, como na Alemanha, a autarquia não buscava, ao menos não no início, a mobilização econômica “preventiva” da nação. Ela foi ditada aos dirigentes pelas circunstâncias, no III Reich pela penúria de capitais e pela impossibilidade de recorrer a uma inflação declarada, na Itália pela vontade de prosseguir a qualquer preço a política de prestígio monetário. Foi só depois que a lógica do sistema nutriu uma política exterior expansionista e agressiva.
Para começar, a Itália se fechou progressivamente ao mundo exterior. Direitos aduaneiros proibitivos atingiram todos os produtos julgados não vitais para a economia e a segurança do país. Foi instituído um rigoroso controle do câmbio, os italianos foram interditados de comprar títulos no exterior e estritos acordos de clearing foram negociados com países como a Romênia, a Bulgária e a Alemanha para permitir a manutenção de um mínimo de atividade comercial sem evasão de divisas. Com a Itália assim isolada do mercado mundial, o governo fascista se empenhou, em um segundo tempo, em reforçar seu domínio sobre a economia. Mas é preciso não se enganar sobre o significado desse fenômeno. Mussolini não se converteu de um dia para o outro às virtudes da estatização. Mais uma vez, foi a pressão das circunstâncias que ditou sua política, e foi por requisição do mundo dos negócios que seu governo decidiu finalmente criar institutos financiados pelo estado, destinados seja a substituir os bancos na distribuição de crédito (Istituto Mobiliare Italiano), seja a lhes fornecer a liquidez necessária à retomada de suas atividades (Istituto per la Ricostruzione Industriale, IRI). Pouco a pouco, contudo, para salvar as empresas em dificuldades, esse último foi levado a comprar parte importante de suas ações, tornando-se assim o que não era de modo algum destinado a ser: o organismo pelo qual o estado exercia, direta ou indiretamente, seu controle sobre as sociedades envolvidas. Para gerir esse enorme portfólio de ações, ele teve de criar toda uma série de holdings estatais: Finsider para o aço, Finmare para as sociedades de navegação, Fincantieri para os estaleiros etc.
Constata-se que, longe de ser rompida pela passagem de grande parte da indústria para as mãos do estado, a aliança entre o fascismo e os grandes interesses privados é reforçada pela crise. Ora, não se está vendo o estado aproveitar as dificuldades das pequenas empresas para favorecer um movimento de concentração que termina por dar à empresa mais poderosa a direção de todo o setor? Desse modo são constituídos, por exemplo, para benefício dos grandes grupos siderúrgicos, o Consórcio de Laminadores e o Consórcio Siderúrgico, cuja adesão é obrigatória. A solidariedade entre estado e capital é igualmente consolidada pela presença de representantes do governo designados pelo IRI nos conselhos de administração das grandes empresas, ao lado dos representantes dos grandes negócios. Assim, em vez de prelúdio a uma socialização qualquer, o IRI é, pela vontade do fascismo e de seu chefe, o traço de união entre o regime e os grandes interesses privados. Ele constitui um instrumento de controle da vida econômica pelo estado, mas também o canal pelo qual se exerce a influência dos grandes grupos industriais e financeiros sobre a política do governo. Nele, estão em situação de controle recíproco e interesses solidários o regime fascista, a grande indústria e a alta finança.
Como, nessas condições, as classes populares e médias que pagaram o preço dessa política, em razão do desemprego, da compressão dos salários, do aumento do custo de vida e dos impostos, continuaram a apoiar o regime e confiar em seu principal dirigente? Nem a onipresença de uma propaganda que utiliza todos os recursos da comunicação moderna nem as rigorosas operações de controle mantidas pelo partido e pela polícia bastam para explicar um consenso que, ao menos até 1937, existiu incontestavelmente. Para a moldagem desse consenso contribuíram ativamente, como se viu, o culto ao Duce e à religião da pátria, os encontros “oceânicos” entre Mussolini e seu povo, assim como as satisfações do amor-próprio e da necessidade de prestígio trazidas pelos sucessos internos e externos. Mas é igualmente necessário levar em conta dados menos simbólicos que, no auge da crise, compensaram ao menos parcialmente seus efeitos desestabilizadores.
Primeira constatação: a Itália dos anos 1930 permanece um país rural. Em termos materiais, a população rural não se beneficiou muito da chegada dos fascistas ao poder. Retomando a política tradicional do estado liberal, o regime mussoliniano obrigou o campo a suportar o fardo da industrialização, esmagando as pequenas explorações sob o peso de leis fiscais excessivas e favorecendo sistematicamente os grandes proprietários, que se beneficiavam de subsídios do estado, importantes exonerações fiscais e uma política aduaneira adequada a seus interesses. Há certas medidas parciais, como a lei Serpieri, que, em 1934, presidiu a divisão de certos latifúndios, assim como a “melhoria” dos pântanos Pontis, seguida da distribuição de 60 mil hectares a 3 mil famílias de agricultores pertencentes, aliás, ao médio campesinato. Mas, no conjunto, a tendência foi de contração de rendas e salários.
De vários pontos de vista, portanto, o mundo rural foi dado como exemplo para os italianos, pois era detentor, aos olhos dos dirigentes fascistas, das virtudes essenciais da “raça”: coragem física e moral, probidade, amor ao trabalho, disciplina, sobriedade etc. Foi ele que, durante a guerra, forneceu ao exército italiano seus combatentes mais valorosos. Mussolini, que cresceu no seio de uma sociedade fundamentalmente rural, concebe a sua imagem o “novo homem” fascista: uma espécie de Cincinato moderno, sempre capaz de trocar o arado pelo uniforme de legionário e depois retornar a suas ocupações rústicas. O populismo do Duce encontra aí seu terreno natural e os contatos que mantém com o campo surtem efeitos na adesão do mundo rural à religião fascista. O ditador se presta – e não apenas por necessidades de propaganda – a participar dos trabalhos e lazeres da gente da terra. Colhe e bate o grão. Canta e dança com os agricultores de Predappio. Exalta em seu discurso “o arado e a espada, ambos de aço temperado como a fé de nossos corações,” celebra, em 1929, o ano de Virgílio, “poeta do Império e dos campos,” e se entrega, saudado por seus corifeus com o título de “mais puro dos gênios latinos,” a bucólicas efusões sobre o tema do pão: “Amem o pão, Coração da casa, Perfume da mesa, Alegria dos lares. Respeitem o pão, Honrem o pão, Não desperdicem o pão.”
Se não percebem as intenções por trás desse discurso ruralista, o pequeno mundo do campo aprecia que o personagem quase divinizado que preside os destinos da nação se interesse por ele e não se repugna de dividir suas penas e alegrias. É por isso que, nas massas rurais, e particularmente na região rural meridional, o culto ao Duce encontra seus praticantes mais zelosos, os mais prontos, igualmente, a aceitar a miragem da colonização.
Também o mundo dos operários é objeto de grande solicitude do ditador. Mussolini conservou de suas atividades anteriores certa simpatia pelos trabalhadores da indústria. Quando se dirige a eles, durante a visita a uma usina ou um discurso em Turim ou Milão, ele os chama de “camaradas operários.” Os trabalhadores italianos no exterior se beneficiam igualmente da consideração do Duce e dos dignitários do regime. Quando Balbo chega a Nova York em 1933, depois do famoso voo transoceânico, exclama, em meio às aclamações de seus compatriotas: “É para vocês, operários, que se dirigem o orgulho e o amor do Duce. Sintam orgulho de serem italianos (...), sobretudo vocês, operários de braços incansáveis e corações simples. (...) Mussolini encerrou a era das humilhações. Ser italiano é um título honorífico.” Essas palavras encontram certo eco em uma população que sofreu, e nessa data ainda sofre, várias humilhações (o caso Sacco-Vanzetti e a vaga de italofobia que o acompanhou ainda estão presentes em todas as memórias).
A esses testemunhos de reconhecimento e às satisfações do amor-próprio nacional do povo italiano em seu conjunto – trate-se da proclamação do Império ou das vitórias da squadra azzura no campeonato mundial de futebol – juntam-se concessões mais tangíveis. A despeito da crise, que se fez acompanhar, como vimos, por várias baixas autoritárias dos salários nominais, o poder de compra dos assalariados da indústria e do setor de serviços permaneceu mais ou menos estável. Grosso modo, ele se manteve no mesmo nível durante a maior parte da era fascista.
Por outro lado, embora o regime prive a classe operária dos meios de ação representados pelo direito à greve e pelos sindicatos livres para sufocar suas reivindicações em um sistema corporativista favorável ao patronato, ele simultaneamente desenvolve uma política e uma legislação social muito mais audaciosas que as do estado liberal. Além das que se endereçam à família, de vocação propriamente natalista, em 1928-1930 foram estabelecidas disposições para aumentar as pensões operárias, modificar as taxas de seguro-velhice e seguro-invalidez e garantir os assalariados contra acidentes de trabalho. Outros decretos criaram seguros contra a tuberculose e as doenças profissionais, todos obrigatórios, financiados pelas cotizações dos trabalhadores aos sindicatos fascistas, por sua vez reagrupados e federados por um Fundo Nacional de Seguro Social.
Mas, acima de tudo, o fascismo inovou com a criação do Dopolavoro. A primeira iniciativa visando a organizar os lazeres operários fora lançada em 1923 em Ponte all’Olmo, na província de Piacenza, pelo conde Bernardo Barbiellini Amidei, chefe dos fascistas locais. Após pilhar, em 1921, as sedes dos grupos socialistas locais, Amidei obtivera dos proprietários de terras da região os fundos necessários para constituir sindicatos fascistas nos quais foram empregados todos os “antigos subversivos” que aceitaram a lei do mais forte e aos quais foi confiada a tarefa de organizar “a assistência e a elevação social” dos trabalhadores. O movimento se expandiu rapidamente e, em 1926, foi criada a Opera Nazionale Dopolavoro, controlada pelos sindicatos oficiais e encarregada da assistência social e sanitária, da educação física, da formação cultural e artística e, mais geralmente, da organização dos lazeres populares. Todos, fascistas ou não, podiam se inscrever no Dopolavoro e até 1942 o número de “sem-partido” ultrapassa o de membros do PNF.
A inscrição dava direito a preços baratos em cinema e teatro, concertos, manifestações esportivas, assinaturas de jornais etc. Em 1935, estavam afiliados ao Dopolavoro 771 cinemas, 1.227 teatros, 2.066 companhias teatrais, 2.130 orquestras, 3.787 fanfarras, 6.427 bibliotecas, mais de 10 mil associações culturais e profissionais e cerca de 15 mil seções esportivas, reunindo 1.650.000 inscritos. Nessa data, ele constituía, de longe, a principal organização de lazeres populares do planeta, incluindo a União Soviética.
Foi nesse mesmo espírito de integração das massas pela organização do “tempo livre” que se instituiu em 1935, no âmbito da redução da semana de trabalho para 40 horas, o sabato fascista. Em princípio, a tarde deveria ser consagrada às reuniões, aos encontros esportivos, à educação política e ao treinamento paramilitar organizados pelo partido. A participação e o uso da camisa negra eram obrigatórios, mas ninguém se preocupava muito em fazer aplicar as regras. Os pais frequentemente se contentavam em enviar seus filhos aos locais de reunião de balillas, “pequenos italianos” e outros “vanguardistas” para gozar durante algumas horas dos raros momentos de intimidade permitidos por sua vida profissional e familiar. A partir de 1932, numerosas famílias lotavam as estações de trem desde a alvorada de domingo para aproveitar a oportunidade de deixar o universo urbano, beneficiando-se, graças aos “trens populares,” de uma redução de 70% sobre as tarifas da estrada de ferro. Voltava-se para casa no último trem (os bilhetes eram válidos durante vinte e quatro horas, da meia-noite de sábado à meia-noite de domingo), depois de passar o dia no campo ou à beira-mar.
Globalmente, e é o que explica que a adesão das massas ao regime não tenha se desmentido durante a crise, não se vivia muito mal na Itália de Mussolini. A vida não era fácil para as classes populares, é verdade, mas nunca fora, e se seu nível de vida ainda era inferior ao de categorias similares em estados longamente industrializados, como França, Inglaterra ou Alemanha, a política social do regime permitia compensar em parte a estagnação do poder de compra. Além disso, o proletário italiano não pensava em reclamar porque o estado liberal não o habituara nem à abundância nem ao emprego comedido da força quando ele se revoltava para pedir pão. Na Itália dos anos 1930, como vinte ou trinta anos antes, a frugalidade era regra – o diarista ganhava entre 8 e 9 liras por dia, o operário de fábrica entre 300 e 400 liras por mês, enquanto o quilo da farinha e o da carne de segunda custavam respectivamente 3 e 7 liras. “Felizmente,” declarou Mussolini ao evocar os primeiros efeitos da crise, “o povo italiano ainda não está acostumado a comer várias vezes ao dia e, tendo um nível de vida modesto, sente menos a penúria e o sofrimento.” A reação dos italianos às sanções votadas pela Liga das Nações depois da agressão fascista à Etiópia ao mesmo tempo confirmaria esse julgamento e reforçaria o consenso em torno do ditador.