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Árbitro da Europa
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A nomeação de Dino Grandi ministro do Exterior e a saída de Mussolini dos três ministérios militares, em setembro de 1929, atendiam à preocupação do Duce em mostrar, ao menos por certo tempo, um comportamento internacional menos turbulento que o adotado desde sua chegada ao poder. O apoio ao revisionismo dos vencidos nas áreas do Danúbio e dos Bálcãs e as ações fascistas no Mediterrâneo Oriental e no Oriente Médio tiveram o efeito principal de aumentar a desconfiança dos velhos aliados, sem que a Itália conseguisse o menor retoque no status territorial dos tratados.
Mussolini não renunciara a seus objetivos revisionistas e expansionistas. Simplesmente se dera conta de que a agitação desordenada à que se entregara desde meados dos anos 1920 não lhe traria qualquer benefício enquanto franceses e ingleses conservassem posição hegemônica na Europa e além-mar. Depois de tentar em vão explorar-lhes as divergências no Mediterrâneo Oriental e no Oriente Próximo, só restava adotar um perfil discreto provisório e esperar que alguma mudança significativa do quadro permitisse reabrir a pasta de reivindicações italiana.
O crescimento do poder do nacional-socialismo, evidente depois das eleições de setembro de 1930, era precisamente um sinal de mudança radical, já que anunciava a chegada ao poder de uma força política que fazia da revisão dos tratados ponto essencial de seu programa e pretendia ter os meios de pôr fim à hegemonia franco-inglesa. No início dos anos 30, Mussolini certamente ainda não suspeita de uma aliança ítalo-alemã. Ele se congratula, é verdade, por ver uma das principais potências europeias na via traçada por ele em 1922, ainda mais lisonjeado pelo fato de Hitler não perder ocasião de afirmar que o considera seu “maestro.” Mas não esquece a lição mortal da guerra, nem que entre os territórios reivindicados em Mein Kampf pelo chefe názi está o Alto Adige, dado aos italianos pelo tratado de paz mas majoritariamente germanófono e parte da visão pangermanista do Führer. Esquecesse, e os fatos lá estariam para lembrá-lo de que a absorção da Áustria pelo Reich – iniciada em março de 1931 com o projeto de união aduaneira austro-alemã – podia constituir para a Itália uma ameaça contra a qual convinha se precaver.
A perspectiva da chegada dos názis ao poder, entretanto, faz entrever uma redistribuição de papéis e forças da qual Mussolini pretende tirar partido, se não ligando a sorte de seu país à da Alemanha, ao menos aproveitando o fim da hegemonia franco-inglesa e a ameaça que o revisionismo hitlerista faria pesar sobre a paz e o status territorial imposto pelos vencedores de 1918 para se apresentar como mediador e fazer valerem suas próprias reivindicações. Nessa perspectiva, os anos 1930-1935 constituem para a Itália um período de espera durante o qual Mussolini se empenha em manter dois ferros no fogo: preparar seu país para uma nova fase de ativismo internacional e polir sua imagem de árbitro da Europa.
Roma no centro do mundo
A permanente referência do fascismo à romanidade triunfante, assim como a ânsia de representação e prestígio, uma das chaves da política externa mussoliniana, incitaram o Duce a remodelar sua capital à imagem da cidade ideal e parcialmente fictícia da acadêmica cultura provinciana elaborada na época do iluminismo e que nutrira sua juventude romagnola.
Durante os anos 30, essa vontade de jogar, por razões a um tempo internas e internacionais, com o mito da romanidade determinaria também a política urbanística do regime e a verdadeira mise-en-scène preparada pelos grandes planejadores da liturgia fascista. Nesse domínio, contudo, como em muitos outros, a ruptura com o período liberal não é clara. Já na época de Crispi, e durante os quinze anos que precederam a guerra e foram dominados pela personalidade de Giolitti, a classe dirigente mostrara a preocupação de transformar a cidade provinciana dos papas em uma grande metrópole moderna, bordada de palazzi e enriquecida com edifícios monumentais destinados a afirmar a potência dos novos mestres da península: uns de vocação administrativa, como o Palácio da Justiça na praça Cavour, outros de vocação comemorativa, como o Vittoriano, erigido nos flancos do Capitólio para honrar o “pai da pátria,” Vittorio Emanuele II, e cuja simbologia nacional e imperial prefigura, com algumas décadas de antecedência, a da Roma fascista.
Mas o regime fascista empreende a transformação da cidade em escala completamente diferente, recuperando espaços tradicionais de reunião, como a Piazza Venezia, ou criando novos espaços, mais grandiosos e adequados por suas dimensões e pelas dos edifícios e ornamentos monumentais que os decoram aos ideais de um regime para o qual o indivíduo existe apenas como componente intercambiável de uma comunidade que o extrapola. Mais ainda, talvez, que as imagens das grandes paradas fascistas conservadas pelos cinegiornali Luce, um passeio pelo bairro que atualmente se estende entre a piscina olímpica e a Farnesina (ministério do Exterior) ou na cidade-satélite de Eur, construída a partir de 1937 para uma exposição universal que deveria ocorrer em Roma e jamais aconteceu, demonstra a natureza das relações que Mussolini procurou conscientemente estabelecer com seus súditos.
Muito mais que as outras cidades da península, Roma foi o teatro de predileção da “fabricação do consenso,” fundada aqui sobre a utilização seletiva da arqueologia e da história. Com efeito, evocar em Turim, Milão, Veneza ou Florença o mito já bastante velho da romanidade tinha poucas chances de encontrar eco entre populações cuja cultura se inscrevia em um continuum histórico no qual as sequências mais gloriosas não coincidiam com as horas de glória do Império pagão. Em Roma, no entanto, onde sobrevivera ao tempo o sentimento de uma capital de essência universal, a orquestração do mito não encontrava a mesma resistência e tinha audiência em todos os estratos da sociedade.
Ainda era necessário desembaraçar a cidade de tudo que, no curso dos séculos, presumivelmente “sufocara” o núcleo original, uni-lo às réplicas neoclássicas da urbe edificadas a grandes custos na periferia – Eur a oeste, fórum Mussolini (hoje Foro italico) a leste – e, para isso, fazer sumirem pedaços inteiros da cidade, vestígios e símbolos de tempos considerados de obscuridade e decadência pelo Duce e pelos inspiradores do plano de 1931 que aceitaram servir a seus propósitos e dar vida a suas fantasias. Assim, uma parte inteira da Roma medieval e renascentista foi entregue à picareta dos demolidores para, como escreveu Antonio Cederna, “embalsamar a cidade.”
Foi símbolo das opções ideológicas do ditador, portanto, a remodelagem da antiga capital dos papas, iniciada pelos piemonteses no fim do século XIX, objeto, depois dessa data, de numerosos e grandiosos projetos de ornamentação e à qual o poder fascista daria nova amplitude e, sobretudo, novo significado. Onde os urbanistas da Itália liberal se empenharam em edificar uma capital moderna segundo um modelo inspirado nas grandes transformações haussmannianas, os da “Terceira Roma” pretendiam uma erradicação forçada de tudo que lembrasse os “séculos da decadência.” Encontra-se aqui um dos maiores pontos de ancoragem da ideologia totalitária fascista, não na versão ainda muito impregnada de cultura clássica que constituía o pensamento de Giovanni Gentile, mas na versão radical que lhe daria, no fim dos anos 1930, o inspirador (muito involuntário) da política racial do regime: Julius Evola. Para ele, a decadência do Ocidente não era produto exclusivo da derivação liberal e “iluminista” dos dois últimos séculos da era cristã, ou melhor, essa derivação era ela mesma o ponto de culminância de uma longa história que compreendia o fim da Antiguidade, a Idade Média e os tempos modernos, com a “idade de ouro” se situando no período dos indo-europeus e da formidável construção política e cultural constituída pelo Império romano. Se este desapareceu no século V de nossa era, estimava o autor de Sintesi di dottrina della razza – uma das obras maiores de Julius Evola – não foi por ter sido varrido pelas hordas bárbaras, mas por ser minado de dentro pelos efeitos subversivos da “mestiçagem” judaico-cristã.
Daí a necessidade de voltar, ao menos de maneira simbólica, a uma romanidade que os mais lúcidos dos dirigentes fascistas sabiam ser apenas metafórica, tanto era forte na Itália a pregnância da cultura católica, mas que Mussolini e Starace queriam erigir em modelo concreto e compulsório de transformação do corpo social e edificação do novo homem. Daí a exumação e restauração apressada de uma Roma antiga cuja encenação e instrumentação política implicavam que fosse desembaraçada de todos os estratos de civilização que quinze séculos de história haviam adicionado à herança romana. Mussolini teria desejado ver “se erigirem no deserto” os monumentos da antiga capital imperial. Não podendo dar vida a essa utopia, contenta-se em arrasar metade do Centro storico, sem a menor consideração pelas riquezas arqueológicas de tudo que não era stricto sensu mundo romano e pelos milhares de habitantes que o furor destrutivo dos “restauradores” da Urbs expulsa de suas casas, quando não condena os mais pobres à deportação para longínquas cidades de urgência (as borgate), apressadamente construídas em zonas ainda particularmente insalubres do Agro romano: verdadeiros guetos desprovidos do mais elementar conforto (as casas não tinham água nem banheiros) e que serviriam de escoadouro e refúgio para todos os excluídos da capital. Não foi nessa perspectiva que o delegado de Assistência Social e futuro governador de Roma explicou, no fim dos anos 1930, que os grandes trabalhos do centro histórico afetaram apenas “as famílias às margens da lei, indisciplinadas”? “Seria bom transferir tais famílias de comportamento irregular, de má-conduta moral (...) para terrenos pertencentes ao governo, situados na área rural e invisíveis dos grandes eixos de comunicação.”
Não é, portanto, apenas para fazer ressurgir um passado romano idealizado e fabricado, mas igualmente em nome da salubridade pública e da “decência” que Mussolini entregou a “Sua Majestade, a picareta” a colina de Velia e as antigas construções que ladeavam a basílica de Magêncio, testemunhas urbanísticas de épocas que não foram todas “decadentes,” e isso para abrir, entre o Coliseu e a Piazza Venezia, a monumental via dell’Impero, destinada a se tornar a artéria sagrada do regime e acolher as grandes paradas militares fascistas, com essa “reabilitação” do coração da Roma republicana e imperial sendo apenas o aspecto mais espetacular da obra urbanística mussoliniana. Com efeito, não foram poupados pelo alvião dos demolidores o bairro Argentina, o Borgo, situado entre o Tevere e a praça São Pedro e destruído para dar lugar à simbólica e fria via da Conciliação, a área em torno do mausoléu de Augusto, a via Barberini, o corso Rinascimento nem o “bairro africano,” para citar apenas os lugares mais diretamente afetados.
Essa reforma do espaço urbano que buscava exaltar a romanidade e, através dela, a vocação universal da Roma fascista – aliada, mas ao mesmo tempo distinta da Roma dos papas – teve em Mussolini seu verdadeiro mestre de obras. É bem verdade que o Duce não foi o único a querer alterar a estrutura da capital para transformá-la em vasta vitrine das realizações do regime.
Os trabalhos da comissão encarregada da elaboração de um novo plano de ocupação do solo – que lhe foi apresentado em 1930 e adotado no ano seguinte – atestam a convergência de ideias e interesses entre os representantes do partido fascista, da aristocracia romana detentora de grande parte dos terrenos, dos industriais da construção e dos arquitetos conservadores: Brasani, Piacentini e Giovannoni. Essa grande unanimidade revela igualmente o servilismo das elites – antigas e novas – ao poder e àquele que controlava suas engrenagens essenciais. De fato, uma vez adotado o projeto, raros foram, entre aqueles que o conheceram – arquitetos, historiadores, arqueólogos, jornalistas, acadêmicos, representantes do partido e da administração – os que ergueram a voz para criticar um detalhe apenas do programa urbanístico ao qual o Duce dera seu aval. Foi antes Mussolini quem, às vezes irritado com esse excesso de zelo ou por simples reflexo de bom senso, opôs-se à realização de certos planos; por exemplo, o de Giovannoni, que queria destruir e depois reconstruir em estilo “romano-babilônico” toda a zona entre o Corso e o Tevere ou, mais delirante ainda, o de Brasani, que queria desembaraçar o Panteão das ruelas que o cercavam.
A “Internacional Fascista”
Instalada a decoração, a ideia da universalidade de Roma, como capital ao mesmo tempo do Cristianismo e da nova religião civil, não tardaria a ser usada por Mussolini em uma perspectiva ligada a sua política externa.
Por vários anos, o Duce repetira que o fascismo não era artigo de exportação. Isso não o impedira de encorajar a formação de Fasci no seio das populações emigradas, com o duplo objetivo de enfrentar a propaganda dos fuorusciti e veicular nos países de acolhida a imagem de uma Itália moderna, disciplinada e pacífica. Mas essa propaganda permanecia relativamente discreta. Pouco a pouco, no entanto, Mussolini começou a se interessar pelos movimentos que, inspirando-se mais ou menos nos ideais fascistas, nasceram não de iniciativas italianas, mas do desejo de imitar um modelo julgado mais eficaz e mobilizador que as clássicas formações de ultradireita nacionalista. Logo decidiu dar seu apoio a organizações que, não sendo propriamente fascistas, apresentavam semelhanças com seu movimento e podiam favorecer seus projetos diplomáticos. Foi o caso, como se viu, dos Heimwehren austríacos, mas esse exemplo foi uma ação isolada, não uma estratégia de conjunto.
Com a crise, essa atitude foi alterada. A proliferação na Europa e no resto do mundo de movimentos abertamente referidos ao fascismo não podia deixar Mussolini indiferente. Não era uma justificativa a posteriori de sua ação? Em todo caso, lisonjeava sua megalomania e não tardou a mudar seu comportamento em relação ao feito internacional do fascismo. Assinando para a Enciclopedia Italiana o artigo (redigido na maior parte por Gentile) sobre a doutrina fascista, escreveu: “Se cada século tem sua doutrina, parece, por mil indícios, que a do nosso é o fascismo” e, em outubro de 1932, falando em Milão nas cerimônias do Decennale, proclamou: “Em dez anos, pode-se dizer sem bancar o profeta, o mapa da Europa estará modificado. (...) Em dez anos, a Europa será fascista ou fascistizada.”
Muitos anos antes dessa espetacular conversão do Duce à ideia de um fascismo universal com a Terceira Roma de epicentro, pequenos grupos de fascistas tomaram essa via, procurando na ampliação do fascismo pela Europa uma espécie de nova fronteira ou, ao menos, um contrapeso ao aburguesamento do regime e à banalização de seus objetivos. Um deles criara, em 1928, a revista Antieuropa, cujo título fora escolhido para manifestar a hostilidade dos fundadores à “velha Europa” do liberalismo e do capitalismo. Seu diretor, Asveror Gravelli, era um esquadrista de primeira hora. Membro do primeiro Fascio milanês, participara da expedição de Fiume e de numerosas ações punitivas contra os socialistas, entre as quais o famoso saque da sede de Avanti!. Em seguida, tornara-se um dos dirigentes da Opera Nazionale Balilla e se dedicara, como jornalista, à mobilização dos moços, fundando duas revistas: Giovinezza e Giovane Italia. Gravelli estava à escuta da juventude fascista e pôde desde cedo medir o impacto sobre os jovens da ideia de uma revolução fascista que ultrapassasse as fronteiras da Itália e desse ao regime mais fôlego.
Um homem como Gravelli, portanto, não esperara o sinal verde do ditador para falar de Internacional fascista. No fim de 1930, ele publicara na revista um artigo intitulado precisamente “Verso l’Internazionale fascista,” no qual expunha as ideias do pequeno grupo que reunira em torno de si:
Antieuropa é a vanguarda do fascismo europeu. Seu objetivo é unir os melhores elementos da Europa, encarnar as experiências do fascismo, alimentar o espírito revolucionário fascista e estabelecer a devoção à causa da ditadura europeia. (...) A conquista do poder na Itália foi só o início de uma ação europeia.
Propostas pouco ortodoxas durante a normalização interna e num momento em que o regime procura apresentar a seus parceiros europeus uma imagem de respeitabilidade. Mas que encontram eco favorável entre os jovens e nas fileiras de antigos esquadristas decepcionados com a derivação conservadora do regime. Não esqueçamos que, na Itália, o primeiro fascismo não morreu com a fundação do PNF, a chegada ao poder de Mussolini ou a instalação definitiva da ditadura em 1926-1927. Permanece uma realidade subjacente, tolerado e periodicamente usado quando seu discurso ou sua ação podem ajudar o grupo dirigente a atingir seus objetivos. Foi o que se deu no fim de 1932, quando Mussolini percebeu que as ideias de Gravelli podiam servir para reforçar sua posição na Itália e fora dela.
O discurso do Duce em Milão em outubro de 1932 coincidiu com a publicação do primeiro número da revista Ottobre. O título fora escolhido para comemorar o aniversário da Marcha sobre Roma e o subtítulo, Rivista del fascismo universale, se refere ao projeto do fundador, outro senão Gravelli. Sucesso imediato e aparentemente ajudado por subsídios governamentais. Dezesseis meses após sua criação, Ottobre se torna jornal diário. No intervalo, a revista de Gravelli, assim como Antieuropa, acolheu em suas colunas numerosos representantes da ultradireita europeia (o inglês Mosley, o alemão Rosenberg, o francês Léon Daudet, o norueguês Quisling, o suíço Fonjallaz etc.), unânimes em considerar o modelo italiano a resposta mais bem-adaptada à crise que sacode o Ocidente. Também no fim de 1932, retomando o título de seu primeiro ensaio sobre o assunto, “Rumo à Internacional fascista,” o diretor de Ottobre publica uma coletânea de seus artigos dos dois anos precedentes. “Ou a Europa velha ou a nova Europa,” escreve. “Assinamos um novo pacto de fraternidade europeia e jogamos fora as velhas ideias. (...) O fascismo é o coveiro da velha Europa. Eis as forças da Internacional fascista.” Ou: “É nosso tempo o tempo do panfascismo. Nenhuma força humana deterá as multidões em marcha antes que cheguem ao objetivo.”
Eis, portanto, uma iniciativa ligeiramente marginal no início que o poder faz sua no momento em que ela lhe parece aumentar seu prestígio e validar suas escolhas na política externa. Em novembro de 1932, Mussolini reúne em Roma, sob os auspícios da Academia da Itália, um “congresso Volta” destinado a celebrar a posteridade científica do grande físico italiano. Göring, Schacht e Rosenberg ladeiam o romancista austríaco Stefan Zweig, os franceses Gaxotte e Daniel Halévy, o romeno Manoilesco e muitas outras figuras da direita intelectual europeia. Fala-se de política e de física, tanto da Europa ameaçada pelo comunismo russo e pelo materialismo inglês quanto das glórias científicas do passado sob a égide da Terceira Roma. Desse modo, o Duce pode medir a audiência de seu regime junto a uma fração importante da intelligentsia conservadora e reacionária do Velho Continente.
Entende-se que, nessas condições, o advento do nazismo seja saudado por Mussolini como sinal particularmente seguro do poder de contágio do fascismo. Não foi preciso muito tempo, no entanto, para que à euforia e ao sentimento de solidariedade exibidos pelo ditador latino se sucedesse certa inquietude. Incontestavelmente, em 1933 e 1934 houve numerosas manifestações de simpatia entre os dois ditadores: acolhida entusiástica de jovens fascistas por seus homólogos alemães, homenagens no congresso de Nuremberg de setembro de 1933 ao secretário-geral adjunto do PNF e ao ministro Bottai, recepção de Göring em Roma etc. Na realidade, essas manifestações cordiais mal dissimulavam a relativa frieza de Mussolini com o nacional-socialismo e seu chefe. Frieza em parte devida à doutrina racial do Reich hitlerista, pois a ideia de superioridade dos nórdicos irritava os italianos (foi severamente criticada por Ottobre), mas que se explica, sobretudo, pelo medo de uma expansão alemã na zona danubiana e pela preocupação de limitar o poder de atração do nazismo.
Em larga medida, foi essa a motivação de Mussolini para, no fim de 1934, lançar as bases de um organismo de coordenação entre os movimentos que se inspiravam no modelo italiano. Para isso, dispunha de vários instrumentos de grande eficácia. Na Itália, tinha o subsecretariado, depois Ministério, de Imprensa e Propaganda, que acabara de ser confiado a Ciano, o qual definia nestes termos os objetivos internacionais:
Logo nascerá aqui uma organização que será a primeira do gênero na Itália. Tudo passará pelas minhas mãos. Nós falaremos ao mundo. É como mestres que faremos a Itália ser conhecida em todos os outros países. Usaremos o rádio, o teatro, o cinema. Naturalmente, usaremos a imprensa. Mas usaremos, sobretudo, os homens.
A partir desse organismo (que será mais tarde o ministério da Cultura Popular, ou Minculpop) e também, em menor medida, do ministério do Exterior, os fundos destinados aos movimentos fascistas europeus, à imprensa filoitaliana e aos políticos favoráveis a Mussolini são distribuídos nos países designados pelo Duce. Nestes são instalados agentes inteiramente devotados ao regime e altos funcionários dedicados às técnicas de guerra psicológica: Dino Grandi, embaixador em Londres, o cônsul Landino na embaixada da Itália em Paris e outros.
Além desses serviços oficiais, existem na maior parte das grandes cidades do mundo os Comitati d’Azione per l’Universalità di Roma (CAUR), que dependem de um organismo central cuja sede fica na capital italiana, o Istituto per l’Universalità di Roma. Nessa rede de associações culturais, feita no modelo da Aliança Francesa, reina um personagem vivaz, o general Coselschi, veterano da Grande Guerra, amigo de d’Annunzio e antigo membro das legiões fiumianas. Em 1919, ele fundou a Associação Nacional dos Voluntários de Guerra e depois aderiu ao fascismo, que fez dele conselheiro nacional e tenente-general da Milícia. Em junho de 1933, quando Mussolini cria os CAURs, Coselschi assume a direção do órgão.
Oficialmente, Coselschi, que passa a maior parte de seu tempo se deslocando entre as capitais europeias, visita as seções de seu Instituto e encoraja as iniciativas de dirigentes locais. Na realidade, faz contato com numerosos políticos, jornalistas, homens de negócios e intelectuais cujas simpatias pelo regime mussoliniano são conhecidas e assegura uma ligação discreta entre os movimentos de obediência fascista. Em dezembro de 1934, é ele quem anima o congresso internacional dessas organizações realizado em Montreux, na Suíça. Durante dois dias, houve conversações entre os líderes do fascismo europeu: o franciste Bucard pela França, o falangista Jimenez Caballero, o general O’Duffy pelos camisas-azuis irlandeses, Arnold Meyer pelo Front Negro Holandês, Quisling pelo Nasjonal Samling norueguês, no total treze países, além da Itália, estavam representados. Coselschi os assegura quanto às intenções de Mussolini – ele não pretende exercer qualquer hegemonia sobre os movimentos nacionais – e especifica que os CAURs estão abertos a todos os “espiritualmente orientados em direção aos princípios de uma renovação política, econômica e social fundada sobre o conceito da hierarquia do estado e o princípio de colaboração das classes.” No fim dessa reunião discreta, os delegados decidem criar uma comissão permanente do fascismo universal ou, se se prefere, uma “Internacional Fascista.”
O projeto ganha corpo. No fim de janeiro de 1935, alguns dos congressistas de Montreux se encontram novamente com Coselschi, dessa vez em Paris. Ressurge a ideia da comissão permanente, mas não se cria propriamente uma organização internacional. Até o verão de 1935, trata-se da Internacional fascista em diversas ocasiões, sempre de maneira discreta. Então, bruscamente, cai silêncio sobre a organização fantasma. Não que a comissão tenha entrado na clandestinidade, simplesmente deixou de existir por duas razões. Primeiro, porque os motivos que levaram Mussolini a organizar em torno de si o fascismo internacional foram ultrapassados pela evolução do quadro: a ruptura do front de Stresa, a guerra da Etiópia e a intervenção na Espanha o inclinam a se reaproximar de Hitler e, nesse ambiente, ele não tem interesse em continuar uma empreitada que pode privá-lo das simpatias alemãs. Depois, porque Ciano julga a iniciativa de Coselschi pouco séria e não tarda a lhe cortar os meios. O genro de Mussolini foi levado a isso por um relatório muito crítico feito em 1935 pelo doutor Carlo Lozzi, seu ex-professor, sobre o congresso de Montreux. Para Lozzi, os delegados do fascismo europeu presentes ao colóquio do lago de Genebra não tinham, na maior parte, qualquer representatividade. “Nenhum interesse,” escreveu, “por uma obra de doutrinação fascista, só pelas liras italianas.”
Também pesou a atitude de Gravelli, verdadeiro iniciador da campanha do fascismo universal e que Coselschi eliminara da direção dos CAURs. O fundador de Ottobre denunciou em sua revista a inconsistência da organização iniciada em Montreux e Paris. Abandonada pelo poder, ela desapareceu em 1936.
Os laços entre os movimentos fascistas europeus e os serviços italianos foram pouco afetados por essas dissensões internas. Os relatórios que temos dos arquivos do Minculpop e dos ministérios do Interior francês e inglês não deixam dúvida. Roma financiava os discípulos estrangeiros do Duce. Em Londres, Grandi versa fundos regularmente para Oswald Mosley, fundador da British Union of Fascists. Em Paris, o cônsul Landini distribui subsídios aos neos-socialistas de Déat e Marquet, aos francistas de Marcel Bucard, mais tarde aos órgãos de imprensa do Partido Popular Francês de Doriot, La Liberté e L’Émancipation nationale. Na Áustria, a Heimwehr continua a fazer parte do orçamento dos serviços de propaganda italianos, e na Espanha José Antonio Primo de Rivera é igualmente retribuído.
O objetivo simplesmente mudou. Não se trata mais, para o chefe do governo italiano, de manter em sua vassalagem, por meio do comitê permanente, movimentos passíveis de atração para a órbita hitlerista. Por sua orientação antissemita, partidos como os do norueguês Quisling ou o do romeno Codreanu serão mais dia menos dia chamados a se alinhar com a Alemanha názi. Mussolini nada pode fazer, e sabe disso. Mas suas maiores preocupações estão alhures. O verão de 1935 coincide com a preparação do ataque à Etiópia. Mussolini multiplica as precauções diplomáticas, pois pressente sérias resistências das democracias e dos defensores da moral internacional. Acha útil manter nesses países um “partido italiano” que inclua, além dos pequenos núcleos de fascistas convictos, políticos e jornalistas dispostos a defender as posições italianas uma vez deflagrada a crise.
Além disso, é bem provável que a campanha pela universalidade do fascismo – mesmo se respondeu à expectativa de alguns intelectuais e da mocidade – tenha tido, por parte do poder, o objetivo principal de preparar terreno. Mussolini quer surgir aos olhos da opinião internacional como papa do fascismo mundial. Isso o lisonjeia incontestavelmente, mas, sobretudo, serve a seus desejos políticos ao ampliar sua audiência no exterior. Daí a fazer triunfar o fascismo em outros países, notadamente na Inglaterra e na França, vai uma distância que ele não tem nenhuma vontade de percorrer. O fascismo permanece um nacionalismo, a justificação ideológica de uma política agressiva e conquistadora. Como tal, não tem interesse em favorecer nos grandes vizinhos da Itália o advento de um regime forte, capaz de unir e estimular as energias nacionais e criar obstáculos a seus objetivos. No máximo, Mussolini pode desejar, em uma perspectiva diametralmente oposta, que pequenos grupos devotados a ele criem entre seus adversários uma agitação geradora de instabilidade e desordem.
Tal é para o deus ex machina da diplomacia romana o sentido da subvenção aos fascismos nacionais no exterior. A ação provocadora dos francistas de Marcel Bucard em 1934-1935 e, mais tarde, a do CSAR de Deloncle, que fará o trabalho sujo do fascismo (como assassinar, em 1937, os irmãos Rosselli para os serviços italianos), inscrevem-se nessa linha. O mesmo vale na Inglaterra para os Black Shirts de Mosley. Mas em certos países muito fracos para terem uma política externa completamente autônoma e passíveis de se tornarem satélites da Itália, a eventualidade de um putsch fascista pode ser seriamente considerada em Roma. O importante apoio dado à Falange e a ajuda militar a Franco respondem a esse projeto.
Mussolini perante a opinião internacional
Os esforços do serviço de propaganda do regime para exportar uma imagem positiva da Itália fascista e de seu guia foram ainda mais compensadores porque boa parcela da opinião internacional estava afeita à ideia de aproximação com um país cujo principal dirigente barrara o caminho do bolchevismo, restabelecera a “paz social” e abrira a via da conciliação com a Igreja. É verdade que, no pior momento da crise Matteotti, raros teriam apostado no futuro do fascismo. Não que muitas vozes tenham se elevado – exceto entre os fuorusciti e nas fileiras da esquerda socialista e da democracia-cristã europeias – para denunciar o crime de estado contra o dirigente reformista. Mas a reação dos partidos democráticos italianos e da ala moderada do fascismo convencera muitos observadores estrangeiros do afundamento iminente do regime instaurado por Mussolini.
Com o discurso de 3 de janeiro de 1925 e a adoção, no ano seguinte, das “leis fascistíssimas,” essas esperanças acabaram, e começou-se no exterior a olhar um pouco mais de perto a experiência italiana, seja para condenar seu caráter liberticida e repressivo, seja, ao contrário, para elogiar o dinamismo e a eficiência de um sistema que parecia responder às aspirações de parte das elites, havia muito em cata de uma “terceira via” entre liberalismo e comunismo.
Globalmente, a divisão de opiniões em relação ao fascismo coincide com a clássica polarização direita-esquerda. Não que na direita se seja majoritariamente favorável a um regime calcado no modelo italiano. Mas não objeta considerar a adoção ou adaptação de certos traços, como o sistema corporatista. E é bem-vindo o que no regime mussoliniano oferece uma solução para a crise e a “decadência” da democracia liberal. A esquerda, ainda que a maioria se situe no campo do antifascismo, não está ao abrigo de um contágio ideológico que afeta alguns de seus teóricos como o belga Henri de Man ou os franceses Déat, Bergery e Doriot.
Mais que o fascismo, é Mussolini quem fascina parte da elite europeia. O mito do homem da Providência ultrapassou as fronteiras italianas, veiculado e difundido pela imprensa e por uma literatura hagiográfica. Muitos jornalistas, escritores e celebridades de passagem por Roma ou vindos com o exclusivo objetivo de encontrar o ditador assediam seu secretariado por uma audiência. Nem todos têm acesso à Sala do Mappamonde. Os auxiliares do Duce fazem a triagem e ele escolhe com cuidado os convidados para um encontro de modalidade, data e duração calculadas de maneira a produzir o máximo efeito.
Algumas dessas entrevistas, por incluírem estrelas do jornalismo internacional, mereceram preparação particular. Foi o caso das que Mussolini concedeu em 1932 a Emil Ludwig, especialista em grandes personalidades políticas europeias e autor de um livro publicado às pressas e imediatamente traduzido em diversas línguas no qual desenha um retrato lisonjeiro do “mastro” da Itália fascista. Embora familiarizado com esse gênero de apresentação, Ludwig – judeu, pacifista que teve de se exilar na Suíça após o advento do nazismo – não soube perceber o quanto havia de conscientemente fabricado na atitude e nas posições de seu interlocutor. Ele nos descreve um Mussolini que o recebe quase sem preparação, improvisa sobre trechos de filosofia política encontrados em sua obra ou breves respostas a esta ou aquela observação sua, ao passo que tudo fora minuciosamente orquestrado por Mussolini, que lera a maior parte dos livros de Ludwig, especialmente as duas biografias de Napoleão e Bismarck. Durante as entrevistas, ele expõe sobre sua mesa, como se emprestasse desses autores um pouco de sua inspiração cotidiana, um Goethe e um Shakespeare, dos quais selecionara previamente algumas breves citações prontas para o uso. O charme funciona. A “simplicidade” de Mussolini e sua “cordialidade” inclinam Ludwig a tomar por verdade tudo o que o ditador lhe confia sobre si mesmo, sua juventude, sua política interna e externa, sua profunda ânsia de paz. Será preciso muito tempo para que a sedução deixe de cegar o hóspede do Palazzo Venezia. Quatro anos mais tarde, de fato, com a guerra da Etiópia recém-terminada, ele ainda evoca em termos lenientes sua ideia da política externa mussoliniana:
A consequência mais importante dessa vitória, para mim, é que Mussolini terá a possibilidade, na guerra mundial que se aproxima, de permanecer neutro, porque já terá dado ao fascismo sua vitória; seu prestígio cresceu e ele é sensato demais para não aceitar a grande possibilidade oferecida pela neutralidade. Agora ele tem paz interna por vários anos. Por outro lado, a Europa reconheceu que estupendo diplomata tem diante de si em Roma. Ele conseguiu transferir para um país longínquo a mentalidade guerreira que contribuíra para criar e desenvolver e obter uma vitória com poucos riscos e perdas. Como os italianos não são os alemães, sua vitória não os deixará mais ávidos, mas os convidará ao repouso sobre os louros.
Emil Ludwig não é o único a considerar Mussolini uma das mais fortes personalidades de seu século, talvez o maior homem de estado vivo. Se o escritor alemão vê nele um personagem de estatura equivalente à de Stalin – para precisar em seguida que este não possui “a imaginação do italiano,” sua “maleabilidade nem, sobretudo, suas qualidades magnéticas” – é ao principal artesão da revolução bolchevique que o compara, em 1932, um cronista da Tribune de Genève: “Ele é único na história contemporânea. Lênin deu, é verdade, exemplo semelhante de energia e tenacidade. Mas faltava a esse eslavo a vontade equilibrada e o senso de realidade que fazem a força do ditador latino.” E o Sunday Times proclama, mais ou menos na mesma época, que ele é “ao mesmo tempo Mazzini e Garibaldi, uma combinação sem precedentes.”
Os políticos não ficam devendo cumprimentos ou gestos simbólicos que demonstram sua simpatia pelo Duce. Entre os estadistas ingleses, vimos que Churchill foi um dos primeiros a manifestar sua boa disposição e falar, mais tarde, de relações pessoais “amigáveis e fáceis” com um homem cujo único pensamento, declarou em 1927, é “o bem-estar durável do povo italiano.” Duff Cooper não se mostra menos entusiástico, e Ramsay MacDonald, que criticara vivamente seu colega italiano quando estava à frente de um gabinete trabalhista (em 1923-1924, depois em 1930-1931), se diz conquistado pela cordialidade de Mussolini depois de sua viagem a Roma em 1933. Sinais de reconhecimento aos quais fazem eco os elogios de ilustres representantes do mundo intelectual, como Kipling e Bernard Shaw.
Isso não priva Mussolini da homenagem de adversários declarados da Inglaterra. O irlandês De Valera saúda um adversário do imperialismo inglês. No retorno da “mesa-redonda” em Londres em 1931 para discutir a sorte da Índia, Gandhi é recebido no Palazzo Venezia, depois em villa Torlonia, onde, fato extremamente raro, um concerto é organizado em sua homenagem e onde o apóstolo da não violência faz sua entrada precedido de sua inseparável cabra. “É um gênio e um santo,” dirá Mussolini depois do encontro, que Gandhi qualifica de evento histórico.
Em fevereiro de 1934, outro adversário do imperialismo inglês – o sionista Chaim Weizmann – é admitido, em companhia da esposa, na audiência do Duce. Nessa data, Mussolini ainda não optara pela aliança alemã e seu interlocutor pensa menos nas diferenças entre a comunidade judaica da Palestina e a Inglaterra mandatária que na ameaça da política racial dos názis. É por essa razão que estimula Mussolini a “criar uma barreira contra a barbárie,” aproximando-se de Londres e Paris. Curiosa troca de propostas durante a qual o Duce se declara favorável à criação de um estado judeu, reconhece que Jerusalém “não pode se tornar uma capital árabe” e, por fim, promete seu apoio ao dirigente sionista. É a última sequência do encontro que merece ser contada aqui, pelo que ensina da imagem internacional do ditador.
Weizmann: Eu poderia pôr à vossa disposição uma equipe de químicos do mais alto valor, homens competentes, fiéis e leais que terão apenas um desejo: ajudar a Itália e prejudicar a Alemanha. Se preciso, encontraremos também o capital necessário.
Mussolini: É realmente muito importante.
Weizmann: Eu e minha mulher ficaríamos muito honrados com vossa fotografia.
Mussolini: Vós a tereis amanhã durante o dia.
Weizmann: Cuide-se. O senhor está com um ar extremamente cansado. Nós ainda precisamos do senhor.
Mussolini: Muito obrigado. Como o senhor, ainda vou trabalhar por muito tempo.
Não é surpresa encontrar os admiradores mais ardentes de Mussolini nos países onde o regime era mais próximo da Itália fascista: o espanhol Primo de Rivera, o português Salazar, o húngaro Gömbös e o austríaco Dollfuss não perdiam ocasião de manifestar sua admiração pelo chefe do governo italiano, apoiados por bela parte de seus compatriotas. Em outubro de 1932, uma delegação húngara chefiada pelo ministro de Pekar foi recebida no Palazzo Venezia, portando 300 volumes com as assinaturas de dois milhões de cidadãos magiares que quiseram com esse gesto agradecer ao Duce “a amizade que tinha por seu país.” Mais surpreendente é a consideração de que gozou o ditador italiano nos Estados Unidos durante os quinze primeiros anos da era fascista, da parte tanto de políticos e homens de negócios quanto de largos setores da opinião pública.
O tom foi dado, na metade dos anos 1920, pela publicação em inglês da biografia do Duce por Margherita Sarfatti. Vendida a um preço dez vezes superior ao da edição italiana, a obra ainda assim teve sucesso considerável. A personalidade fora do comum do dirigente fascista, quase assimilado a um herói de western, não era estranha a esse scoop editorial, mas a difusão do livro e seu eco midiático teriam sido sem dúvida mais modestos sem o apoio das redes relacionais que a jornalista veneziana mantinha desde antes da guerra com o mundo intelectual e a imprensa do outro lado do Atlântico. Margherita tinha entrada livre em numerosos gabinetes editoriais de grandes jornais americanos, em particular do grupo Hearst. Conhecia e frequentava vários redatores e correspondentes desses jornais na Europa. Foi-lhe fácil, portanto, promover seu livro e, ao mesmo tempo, seu herói, ao qual o diretor do escritório romano da United Press, Thomas B. Morgan, não tardou a propor uma colaboração contínua e generosamente remunerada. Não era a primeira proposta financeira que Mussolini recebia dos americanos. Ele não recusara – é, em todo caso, o que diz sua biógrafa e amante – as quase 300 mil liras oferecidas por uma empresa de cigarros que queria utilizar sua imagem com fins publicitários? Mas aceitou a de Thomas Morgan, que consistia em fornecer à agência americana uma série de artigos relacionados a sua vida pessoal, ficando a cargo da agência a difusão nos Estados Unidos. Morgan teria desejado que o Duce contasse sua infância, juventude e o início de seu engajamento político ou que comentasse a ação do governo fascista, mas Mussolini recusou: “Minha vida, não. Todo mundo sabe que sou filho de um ferreiro. A política, não. Ela é publicada diariamente. Vou contar como passo meus dias.”
Assim, eles fecham acordo sobre um tema genérico, “Minhas vinte e quatro horas,” o número de artigos assinados pelo ditador e as modalidades de edição. Mussolini forneceu ao jornalista americano um texto de base do qual este retirou a substância de uma dezena de papers, em seguida submetidos ao Duce e parcialmente revisados por ele, ou antes por Margherita Sarfatti, cujo papel nessa montagem foi considerável. Foi ela quem de fato negociou com Morgan o lado financeiro da transação e reescreveu os textos em inglês, idioma do qual Mussolini tinha apenas vagos rudimentos. Os dez artigos foram publicados nos Estados Unidos em janeiro de 1927, pela United Press. Mussolini contava seu dia a dia, falava de suas atividades gigantescas, seu regime alimentar, sua paixão pelo esporte, sua aversão ao álcool (a América estava em pleno delírio da lei-seca) e pela obesidade, sua admiração por Theodore Roosevelt, o homem do “Big Stick” etc. O sucesso da série foi tal que logo teve um editor canadense para um livro de boa vendagem.
Esse primeiro sucesso aguçou o apetite do ditador romano e de sua “agente,” assim como o dos grandes chefes da imprensa do outro lado do Atlântico, a começar por William Randolph Hearst. Além de nutrir viva admiração pelo homem que a seus olhos encarnava a mais segura defesa do Ocidente contra a ameaça comunista, Hearst achava que um artigo ou uma série com a assinatura do Duce garantiriam resultado comercial aos jornais que o publicassem com exclusividade, portanto, não cabia economizar na remuneração. Margherita, por sua vez, empenhava-se em fazer subirem os lances, assegurando-se parte dos honorários recebidos pelo signatário e aproveitando sua posição de intermediária e co-autora para negociar a publicação de seus próprios artigos. Entre 1931 e 1934, dezenas de artigos, assinados uns por Mussolini e outros pela jornalista veneziana, mas essencialmente obra desta, foram publicados nos vinte e oito jornais da cadeia Hearst, atingindo milhões de americanos e difundindo uma imagem eminentemente favorável do Capo da nova Itália e de sua política.
Mussolini tinha certa fascinação pelos Estados Unidos, país onde viviam milhões de ítalo-americanos, para onde ele mesmo quase emigrara várias vezes e do qual admirava o dinamismo e a vitalidade. Ainda que condenasse o capitalismo selvagem sobre o qual a América fundara seu sucesso, achava que somente ela dispunha dos meios necessários para fazer o mundo sair da crise. E dos candidatos à presidência que disputavam em 1932 a sucessão de Hoover, o que lhe parecia mais bem-armado para atingir esse objetivo era Franklin Delano Roosevelt. Foi novamente por meio da rede de amigos e correspondentes americanos de Margherita Sarfatti que, durante o segundo semestre de 1932, momento em que a campanha presidencial estava no auge, ele pôde entrar em contato com o candidato democrata. Os dois trocaram mensagens das quais os arquivos não guardaram registro, mas que, de acordo com diversas testemunhas, são permeadas de grande cordialidade. A vitória de Roosevelt nas eleições de novembro foi saudada pelo Duce como “terceira via” entre as injustiças do capitalismo e a brutalidade do comunismo e, logo, como homenagem a sua própria política. De seu lado, o presidente americano se dizia muito interessado na experiência fascista, afirmando ao ministro italiano das finanças Guido Jung, em visita a Washington, que considerava Mussolini seu “único aliado potencial no trabalho para salvaguardar a paz mundial,” e a Itália, “a única verdadeira amiga dos EUA na Europa.” Aqui, como com Churchill e muitos outros políticos ocidentais, foi preciso tempo e que a Itália se comprometesse resolutamente com o campo hitlerista para que se apagasse a imagem de um Mussolini aceitável e, por que não, aliado das democracias nos confrontos internacionais, quer na luta contra Hitler, quer no enfrentamento de nova ofensiva revolucionária.
Na França, nem a classe política nem a intelligentsia – nessa data orientada à direita – nem a imprensa permaneceram insensíveis às sereias mussolinianas. A ação da grande colônia antifascista difundida pelas organizações políticas e sindicais de esquerda demonstrou para uma grande parte da opinião pública que o fascismo não se reduzia a trens no horário e escavações arqueológicas em Roma, que havia um preço a pagar pelo restabelecimento da ordem e de um sistema que aspirava a suprimir as lutas de classe, e o preço incluía a privação das liberdades, a eliminação de toda forma de oposição e objetivos que terminavam inelutavelmente em guerra.
Mas até a metade dos anos 1930 apenas uma minoria fortemente politizada à esquerda manifestou por Mussolini e seu regime hostilidade militante. A massa da opinião pública é indiferente ao que se passa do outro lado dos Alpes, considerando o fascismo um produto não exportável para um país como a França, achando que Mussolini tem seus méritos por erguer uma barreira contra o comunismo e que só merecem ser condenados os excessos de seus partidários. À direita, do lado das ligas mas também das fileiras conservadoras clássicas, o discurso é mais claramente apologético, centrado na personalidade do Duce e chegará ao ápice durante a viagem a Roma do ministro do Exterior, Pierre Laval, em janeiro de 1935.
É preciso dizer que os serviços de propaganda da Itália fascista não economizaram recursos para criar na França – país que abriga perto de um milhão de italianos no início dos anos 1930, do qual ao menos trinta mil são refugiados políticos – uma rede de organizações dependentes dos consulados ou diretamente do PNF, às quais Mussolini deu a tarefa de transmitir uma imagem positiva da nova Itália. Os principais instrumentos dessa política são os Fasci all’estero, fasci constituídos no exterior. Dotados de recursos e de efetivos longe de simbólicos, eles existem na maioria das cidades – grandes ou pequenas – com colônia de émigrés, mais de 250 em 1938, um quarto das organizações desse tipo em todo o mundo. Exercendo sua atividade de propaganda nas case d’Italia (casas da Itália), os Fasci e os organismos que gravitam em torno deles (Balilla, Dopolavoro, grupos esportivos, círculos culturais, trupes teatrais) ajudam a criar em parte da população de émigrés e na opinião de muitos franceses a imagem de um Mussolini árbitro da Europa e artesão da paz interna, mas também, sempre que se atendam suas “legítimas reivindicações,” um Mussolini garantidor da ordem internacional concebida pelos vencedores.
Não surpreende que o ditador fascista tenha conseguido fazer representar, na Paris do início dos anos 1930 – capital do antifascismo no exílio – uma peça de teatro assinada por ele sem que o evento suscitasse algo além de vagas recriminações da imprensa esquerdista. O evento é pouco conhecido e merece que nos detenhamos nele por um instante, pois revela um clima que, nessa data, está longe de ser desfavorável ao fundador dos Fasci. Foi em 1929, após ler Napoleão, de Emil Ludwig, que Mussolini teve a ideia de uma peça de teatro cujo tema seria a sequência final da era napoleônica. O Duce sempre tivera gosto acentuado pela arte dramática. Lembremos que ele tentara redigir esboços de tragédias e, durante a última fase de preparação da Marcha sobre Roma, passara todas as noites no teatro, em companhia às vezes de Rachele, às vezes de Margherita Sarfatti. Daí a produzir um texto completo respeitando as regras do gênero havia uma distância que não se sentia capaz de cobrir, por falta de tempo e competência. Para dar corpo ao projeto, teve a ideia de apelar para um profissional reconhecido, Gioacchino Forzano, dramaturgo e cineasta de renome (devemos a ele, entre outras, a célebre Camicia nera), que conhecera por intermédio de Gabriele d’Annunzio e ao qual enviou uma sinopse detalhada, pedindo-lhe para imaginar o móbil da peça e redigir os diálogos.
Indagado por Forzano sobre suas razões para centrar a proposta no fim da epopeia imperial, Mussolini teria respondido que desejava destacar o que Napoleão dissera em Santa Helena sobre os Estados Unidos e a Europa. Em alguns meses, a peça estava pronta. Forzano bordara sobre o cenário imaginado pelo Duce os quatro atos de um drama histórico intitulado Campo di maggio, que em sua versão francesa se chamou Les cent jours. Durante a redação da obra, os dois se encontraram várias vezes, trocando ideias, manifestando acordo ou desacordo sobre este ou aquele ponto, acrescentando ou retirando trechos da versão inicial. Mussolini fizera diversas correções a essa versão, mas se recusou a admitir sua co-paternidade da peça produzida por Forzano e representada na Itália sob sua assinatura. Teria temido que um fracasso prejudicasse seu prestígio ou que, ao contrário, o sucesso da peça fosse atribuído ao medo do público.
O êxito de Campo di maggio nos teatros da Itália suscitou traduções e adaptações no exterior. Em Budapeste, a peça triunfa. Em Praga, ao contrário, as representações dão lugar a violentas manifestações antifascistas. Rapidamente, as propostas de contrato afluem de todas as partes, especialmente dos Estados Unidos e da América Latina. É claro que o segredo da co-paternidade não fora guardado por muito tempo. Forzano sentia algum remorso, tendo compreendido que o interesse do público internacional se devia mais à personalidade do “co-autor” que a sua reputação. Multiplicando os pedidos ao Duce, terminou por convencê-lo a fazer figurar seu nome na peça para representações em teatros estrangeiros.
Traduzida para o francês, a peça foi encenada pela primeira vez em novembro de 1931, no Théâtre de l’Ambigu, com o nome de Mussolini no cartaz e sua fotografia no programa, ao lado dos atores e de Forzano. A tradução fora de André Mauprey e a produção de Firmin Gémier, que desempenhava o papel principal. A escolha pode surpreender, já que ambos eram conhecidos por suas simpatias pela esquerda. Especialmente Gémier, que não somente era um comediante de reputação internacional, mas também, na direção de seu Teatro Nacional Ambulante, fora militante do teatro popular. Foram a “potência da peça” e sua “emoção” que, acreditando-se em Mauprey, entrevistado para Candide por Pierre Lazareff, teriam causado a adesão do precursor do TNP. É mais provável que tenham sido as perspectivas financeiras da operação que o levaram a aceitar a proposta de Fernand Rivers, diretor do Ambigu, e se comprometer com a promoção de um espetáculo inicialmente concebido pelo fundador do fascismo: não por preocupação de ganho pessoal, mas porque pensava assim obter subsídios para a Sociedade Universal do Teatro, que criara em 1926 e na qual investira parte de sua fortuna.
A escolha do produtor e do ator principal não foi deixada ao acaso. Gémier era socialista. Para seus amigos políticos, estava fora de questão que ele pudesse ajudar uma operação de propaganda fascista e, de fato, mesmo se interrogando sobre os motivos do ator e o significado da peça, a imprensa de esquerda não fez nenhum ataque frontal. Nas ruas, Fernand Rivers se precavera pedindo ao chefe de polícia Jean Chiappe, cuja simpatia pelas ligas era conhecida, para cuidar que nenhuma manifestação hostil atrapalhasse as representações. Chiappe se apresentou como garantidor da manutenção da ordem e afirmou aos organizadores julgar muito favoravelmente uma obra que glorificava um gigante da história junto ao qual um de seus bisavôs desempenhara papel ativo. Imediatamente, procedeu-se a uma pequena maquiagem de última hora, introduzindo na versão francesa da peça um personagem que encarnava o ancestral do chefe. Deliciado com essa homenagem, ele assistiu à première de Cent Jours acompanhado por um serviço de manutenção da ordem “discreto.” Não houve incidentes.
Pode-se supor que o sucesso da peça se deveu mais à qualidade da produção e da distribuição de papéis – além de Gémier, que interpretava Napoleão I, dois dos papéis principais eram desempenhados por artistas célebres: Henri Beaulieu era Fouché e Suzanne Munte era Letizia Bonaparte – que à mensagem política dos autores. Além disso, o texto inicial fora bastante editado, suprimindo-se, com o acordo de Mussolini, os trechos mais verborrágicos. Ainda assim, a adaptação de Campo di maggio continha certo número de tiradas que exaltavam o chefe carismático, os Estados Unidos da Europa moldados se necessário pela guerra e conduzidos por uma personalidade fora do comum, a adesão do povo ao regime instaurado pela força. O parlamentarismo era copiosamente fustigado, para grande satisfação de um público risonho e adepto dos temas da contestação das ligas. Desse modo, ouvia-se Napoleão responder a Fouché, falando da representatividade das assembleias parlamentares:
Não, monsieur Fouché, o armeiro de Marselha que me envia cem fuzis, o pobre seleiro de Bolonha que dá oitenta selas para a cavalaria, os operários de Vesoul (...), esses negociantes que me deram 10 mil francos, os camponeses de Argonne que cavam trincheiras e não querem dinheiro (...), os soldados do 79º regimento que, para economizar cartuchos, querem atacar com baionetas, e essa mulher francesa que veio até mim estendendo o que eu achava ser uma súplica – eram suas economias que ela estendia, amarradas em uma fita vermelha da Legião de Honra. (Mostrando a lista.) Estes representam a pátria, monsieur Fouché. Não seus quinhentos advogados que quatro granadeiros poderiam fazer fugir a coronhadas.
A era Grandi
Confiando a direção da diplomacia italiana a Dino Grandi, em setembro de 1929, Mussolini – que exercera essa função por sete anos – quis passar a seus sócios europeus uma mensagem clara: a Itália, sem renunciar à revisão dos tratados e à redistribuição do butim colonial, aceitava se portar como potência responsável, respeitadora do direito internacional e desejosa do papel de árbitro na cena internacional. O homem que substituía o Duce no Palazzo Chigi não era diplomata de carreira, mas não lhe faltavam inteligência ou finesse e, sobretudo, ele tivera tempo, em quatro anos de subsecretário do Exterior, de aprender as regras do ofício e se familiarizar com os costumes do meio. Grandi, como se viu, antagonizava, por sua personalidade, a maior parte dos dirigentes fascistas. Como Ciano, frequentava os salões da moda e o mundo aristocrático. A imprensa inglesa o chamava de “hierarca no máximo da forma” e o establishment internacional o tinha por um dos seus. Em Genebra, onde representava a Itália na Liga das Nações, não teve problemas para se integrar à elite da diplomacia mundial.
Ao lhe ceder o lugar no Palazzo Chigi, Mussolini dissera: “Eis seu escritório. Eu me transfiro para o Palazzo Venezia. Mantenha-me a par dos principais acontecimentos. Você acumulará como delegado da Itália na Sociedade das Nações, mas não se deixe corromper pela pérfida atmosfera de Genebra.” Na verdade, Mussolini conhecia bem a predisposição de seu colaborador – detentor, aos trinta e quatro anos, do mais prestigioso dos cargos ministeriais – para sofrer a atração do meio genebrino. Mas no momento em que o entronizou em suas duplas funções de ministro e chefe da delegação italiana na Liga, essa suposta permeabilidade de Grandi à ideologia da Liga servia a seus propósitos. O fascismo precisava, ao menos por certo tempo, dar-se uma imagem de respeitabilidade, e o antigo Ras de Bolonha reunia todas as características necessárias para ser seu propagador.
Assim, durante quase três anos Grandi terá a responsabilidade pela política externa fascista. Suas ideias são simples: política de boa vizinhança com a França, amizade com a Inglaterra, prudência com a Alemanha e a União Soviética, aceitação ao menos formal dos princípios proclamados em Genebra. Elas definem uma política de bom senso, moderação, “recolhimento,” tempo para a Itália adquirir os meios para uma atuação internacional mais incisiva. No fundo, quando Grandi assume suas funções, elas nada contêm que possa irritar o chefe de governo, ele mesmo bem consciente da medíocre capacidade militar e financeira do país. Simplesmente, onde o inquilino do Palazzo Chigi vê uma política de longo prazo, o Duce concebe apenas movimentos táticos e enxerga mais uma vitrine atrás da qual a Itália se empenha em polir suas armas que uma adesão à nova ordem internacional.
O que Mussolini tenta é repetir, no campo internacional, a estratégia da cenoura e do porrete que empregara tão bem dez anos antes no plano interno: de um lado, o discurso leniente e pacífico de Grandi e destinado aos estados respeitadores dos tratados; do outro, as cintilações ameaçadoras do verbo mussoliniano, visando à mobilização das massas italianas e dos aliados potenciais do revisionismo fascista. “Pouco importa o que digo às minhas multidões!” – explicará um dia ao chefe de sua diplomacia. “Por que você acha que o fiz ministro do Exterior, senão para poder me exprimir aqui como bem quiser?”
Duplo discurso, portanto, mas que não recobre, ao menos não no início da era Grandi, duas políticas distintas. Durante mais de um ano, com efeito, embora suas propostas sejam diferentes, os dois atuam em consenso, num quadro internacional que é ainda o da era Briand-Stresemann e inclina as potências ao apaziguamento. Só com a explosão da crise, que, como se sabe, chega à Europa em 1931, e o crescimento do hitlerismo que pressagia grande mudança na Europa, Mussolini mudará de ombro seu fuzil e se oporá mais claramente a Grandi, cuja margem de autonomia – será preciso lembrar? – é extremamente reduzida.
Em janeiro de 1930, quando se abre a 58ª sessão do Conselho da Liga das Nações, é por sua voz que se exprime a diplomacia italiana, e pela primeira vez essa é a voz de um ministro fascista. Ora, as palavras de Grandi na tribuna de Genebra são de tom diferente daquelas de que faz uso o ditador. Grandi fala da vontade pacífica de seu país, de seu desejo de ver as nações europeias viverem em bons termos e da preocupação do governo de Roma em fazer vigorar uma política de desarmamento. Declarações calmantes, portanto, e que são retomadas pelo próprio Grandi quando se abre uma semana mais tarde, em Londres, a conferência sobre redução do armamento naval. O tratado assinado em Washington em 1922 pelas cinco principais potências navais do planeta fixara a proporção de encouraçados que os estados signatários podiam ter. O coeficiente 5 fora atribuído paritariamente aos Estados Unidos e à Inglaterra, contra 3 ao Japão e 1,75 à Itália e à França. Já em Londres, as discussões giram em torno das unidades ligeiras de superfície e dos submarinos e, embora os três maiores interessados tenham chegado finalmente a um acordo, a conferência termina em abril de 1930 sem que franceses e italianos consigam se entender.
O mesmo Aristide Briand que, em Washington, se mostrara conciliador com a Itália e assumira em 1925 a direção da política externa da França, em Londres se revela intransigente sobre a paridade naval com um país cuja vontade pacífica lhe parece duvidosa. Um verdadeiro diálogo de surdos entre a delegação francesa e a do governo de Roma. A primeira insiste que a França tem três frentes marítimas para defender e não pode aceitar paridade com sua vizinha do sudeste. A segunda destaca o caráter absolutamente vital para a Itália da segurança de suas rotas marítimas e rejeita o pedido francês de um diferencial de 240 mil toneladas. Nem uma nem outra se afastam da posição inicial.
Na primavera de 1930, enquanto em Genebra Grandi se empenha em dissipar a impressão desfavorável causada pelo fracasso parcial da conferência de Londres, Mussolini inicia uma campanha ameaçadora em relação às democracias, particularmente a França. Em 11 de maio, em Livorno, proclama diante da multidão agitada:
Não temos nenhum desejo de embarcar em aventuras temerárias. Mas aqueles que poderiam ameaçar nossa independência e nosso futuro não sabem a que grau de febre posso fazer subir o povo italiano. Não sabem a que altura posso erguer a nação italiana, no caso de a revolução dos camisas-negras ser interrompida. Toda a nação – moços e velhos, camponeses e operários, com ou sem armas – formará a massa compacta, o bólido humano que poderá ser lançado contra qualquer um.
Seis dias mais tarde, em Florença, diante de um “mar” de gente e depois de idênticas advertências pronunciadas em Lucca e em Pistoia:
Existem, para além das fronteiras, seitas, grupos, partidos, homens que, organizados em uma cooperativa de exploração dos imortais princípios, não se recusariam a desencadear uma guerra contra o povo italiano. Cá os esperamos. (...)
Quero afirmar, aqui e agora, que nosso programa será completado até a última tonelada e cada uma das trinta e nove unidades de batalha será lançada. A vontade do fascismo é uma vontade de ferro. É matemática. Nossa vontade não refuga obstáculos, ela os enfrenta. Tenho certeza de que o povo italiano, em lugar de permanecer prisioneiro do mar que em outros tempos pertencia a Roma, fará todos os sacrifícios possíveis. (...) Palavras são belas coisas, mas fuzis, canhões, navios, aviões são ainda mais belos. Na madrugada de amanhã, o espetáculo de nossas forças armadas revelará ao mundo a face calma e guerreira da Itália fascista.
Discurso de utilidade interna que parecia desmentir as palavras de Grandi diante do senado, logo em seguida à turnê incendiária do chefe do governo. Mas, repitamos, essa discordância aparente não traduz por enquanto divergência de fundo. Na partitura a duas vozes executada pelo Duce e seu ministro, nada é verdadeiramente improviso. Em Genebra, Grandi se dedica com certo sucesso a tranquilizar a comunidade internacional quanto às intenções reais da Itália. Em Roma, o Duce mobiliza a opinião pública sobre o tema da nação proletária que não tem medo dos ricos e está pronta a enfrentar o mundo inteiro se sua “independência” e seu “futuro” forem ameaçados. Com exceção da França e de seus clientes danubianos, com os quais existem reais objetos de confronto, ninguém na Europa atribui importância excessiva a suas ameaças.
Até o fim de 1931, Grandi terá alguma liberdade para levar adiante uma política que não contraria – ao menos não ainda – o patrão da Itália fascista. Pacífica e moderada em sua formulação, essencialmente “genebrina,” ela nem por isso deixa de se opor às empreitadas “hegemônicas” da França, com a delegação italiana resistindo, por exemplo, ao projeto Briand de União Europeia e apoiando na Liga as demandas alemãs de igualdade de direitos e revisão dos tratados. Mesmo em uma questão que envolve diretamente a segurança da Itália como o Anschluss (o projeto de união aduaneira austro-alemã assinado em março de 1931 pelo chanceler austríaco Schober e pelo ministro do Exterior do Reich Curtius), o inquilino do Palazzo Chigi se empenha em ter uma posição diferente da França.
Durante a conferência sobre o desarmamento em Genebra reunida em fevereiro de 1932, na qual estão representados mais de sessenta países, inclusive os Estados Unidos e a União Soviética, não afiliados à Liga das Nações, o chefe da delegação italiana sucessivamente manifestará a oposição de seu país ao plano Tardieu – que previa a arbitragem obrigatória da Liga e a criação de uma força internacional dotada de armamento pesado – apresentará seu próprio projeto de supressão total de artilharia pesada, tanques, encouraçados, porta-aviões, submarinos e aviões de bombardeio e apoiará a proposta do presidente americano Hoover. Interrompida em 21 de julho, a conferência retomará seus trabalhos somente no fim de agosto, quando a delegação alemã exige a abrogação pura e simples das cláusulas do Tratado de Versalhes que impõem à Alemanha o desarmamento unilateral. Grandi não terá ocasião de se manifestar sobre as exigências do Reich. Em 20 de julho, Mussolini lhe falara de seu desejo de retomar a direção da política externa – com Fulvio Suvich como subsecretário de estado – e enviá-lo a Londres como embaixador.
Um passo em direção à Alemanha
Após dirigir por vários anos o ministério do Exterior, Grandi foi substituído. Por quê? Desde que começara a frequentar Genebra assiduamente, ele se mimetizou consideravelmente naquele ambiente pérfido. Sua linha era agora “da Liga.” Ele sem dúvida adquiriu certo renome no mundo internacional. Visitou praticamente todas as capitais europeias, inclusive Ankara. É considerado homem de tendências democráticas, homem de direita na política externa do fascismo. Após o fracasso do Pacto dos Quatro, adotando uma política diferente da sua, um dia ele foi substituído, e o governo o mandou embaixador para Londres.
Assim se exprime Mussolini em sua Storia di un anno, publicada em 1944, na qual o Duce instrui o processo de seu antigo ministro, protagonista número um da conjura de 25 de julho. Que o requisitório tenha sido influenciado por esse evento, não há dúvida. Mussolini simplesmente se esquece de dizer que durante muito tempo Grandi foi apenas o executante fiel de uma política cujas grandes linhas eram fixadas por ele mesmo e que a imagem do inquilino do Palazzo Chigi – objeto de críticas reiteradas de certos hierarcas – era usada pelo ditador para compensar os excessos de um discurso de política externa de uso essencialmente interno. Os anos Grandi coincidem com o apogeu do regime e com o momento de melhor funcionamento dos compromissos sobre os quais ele repousava: compromisso entre uma população que aspirava à paz e uma elite partidária que fazia do discurso guerreiro e da mobilização das massas em torno da ideia imperial a base de seu projeto totalitário.
Por três anos, Mussolini se movimentou habilmente nos dois registros, deixando a Grandi uma autonomia de discurso e comportamento que lhe permitia assegurar a relativa benevolência das democracias – especialmente a Inglaterra – e brandindo uma argumentação enérgica, adequada às expectativas dos altos dirigentes fascistas, desejosos, como Balbo, de ver a Itália ajustar sua política externa a uma ideologia que repudiava o pacifismo e o “liguismo” em vigor à margem do lago Leman. Se finalmente decidiu terminar a missão de Grandi, foi não somente porque a pressão dos hierarcas se tornou mais forte no Gran Conselho (em particular na sessão de abril de 1932), mas também por sentir que, em função da crise, alguma coisa mudava na Europa, no sentido de uma ruptura do equilíbrio entre as potências, e que a Itália podia tirar proveito desse eventual embaralhar das cartas.
O crescimento hitlerista na Alemanha parece ter motivado essa mudança de direção da diplomacia mussoliniana. As eleições de setembro de 1930 foram marcadas por um forte impulso do partido názi, que obteve 6,5 milhões de votos e 107 cadeiras no Reichstag. Derrotado por Hindenburg para presidente em abril de 1932, Hitler mesmo assim teve 13,5 milhões de votos, e nas legislativas de julho 14 milhões de alemães deram seu voto ao NSDAP Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialista Alemão, o Partido Názi [nt: Nazi, abreviação usual que significa nacional-socialista, nationalsozialist, na-zi]. Diante do que parece ser uma irresistível maré que levará o principal dirigente názi a primeiro-ministro, Mussolini se sente confortado em suas visões revisionistas. Ainda está longe de pensar em aliança com uma Alemanha que, sob a autoridade hitlerista, torna-se novamente potência militar de primeiro plano. Mas a vitória do nazismo e o rearmamento do Reich, que não tardaria a se seguir ao estabelecimento da ditadura, parecem-lhe de natureza a revolucionar a relação de forças na Europa em benefício dos estados contestatórios da ordem internacional imposta pelas democracias vitoriosas. Desse modo, a Itália poderia jogar com o novo equilíbrio das potências e fazer subirem as apostas na queda de braço entre os estados “satisfeitos,” clientes ou aliados da França, e os países “revisionistas,” de agora em diante agrupados sob o duplo patrocínio de Roma e Berlim.
O Duce está ainda mais inclinado a retomar o revisionismo ativo e adotar uma atitude benevolente em relação à Alemanha porque, a seus olhos, o sucesso de Hitler confirma o poder de atração do fascismo. Pois o Führer do Partido Názi não proclama desde novembro de 1922 sua admiração por Mussolini e sua vontade de ter em seu país um governo nacional inspirado no modelo fascista? Não citou o ditador italiano quando foi processado depois do “Putsch da cervejaria” e, em muitas aparições públicas, exaltando os feitos do fascismo? Essas homenagens a ele e ao regime que instaurou lisonjeiam Mussolini, e se entende que a chegada do Führer à chancelaria tenha sido aplaudida por ele com um entusiasmo partilhado pela imprensa fascista.
Encorajado pelo que apresenta como sinal da vocação universal do fascismo – tema do discurso de outubro de 1932 em Milão (“Em dez anos, a Europa será fascista ou fascistizada!”) – Mussolini retomará a agitação revisionista à qual parecia ter renunciado dois anos antes, apoiando as reivindicações territoriais da Hungria, dando apoio financeiro e logístico aos nacionalistas croatas e macedônios e à Heimwehr austríaca e, sobretudo, apoiando as exigências da Alemanha de restabelecimento de sua soberania e de igualdade de direitos em matéria militar. Jogando dos dois lados, afirma tanto que a política de revisão dos tratados tem o único objetivo de fazer à Europa “a imensa economia de uma guerra” quanto que a Itália é “um campo imenso onde milhões de homens treinam para a grande batalha que terá lugar amanhã ou nunca!”
O Pacto dos Quatro
Reforçado pela expansão internacional do fascismo, Mussolini surge no início de 1933 – a despeito de suas declarações tonitruantes – como árbitro de uma situação europeia em mutação. Se a Itália adotar concreta e definitivamente o lado dos vencedores ou o dos vencidos de 1918, o equilíbrio do Velho Continente será radicalmente modificado. Hitler tem perfeita consciência disso. Assim, depois de sua chegada ao poder, falando aos representantes da imprensa italiana, afirma com vigor seu desejo de ver Itália e Alemanha em “estreita amizade.” Semanas mais tarde, abrindo em Berlim uma exposição de pintura italiana moderna, evoca a Göring – comissário do Reich para a aviação e ministro prussiano do Interior – as afinidades ideológicas entre fascismo e nazismo, enquanto prosseguem e se multiplicam os contatos pessoais entre os dois ditadores por intermédio do major Giuseppe Renzetti, oficialmente presidente da Câmara de Comércio Italiana de Berlim, mas de fato – e havia muito tempo – emissário particular do Duce junto à extrema direita alemã.
Em Paris, vê-se com certa inquietude esse início de idílio entre os dois ditadores. A Itália, que os estadistas franceses até então tiveram a tendência de considerar desprezível, passa a ser valorizada, inclusive nas fileiras da esquerda, de volta ao poder depois das eleições de 1932. Herriot e seus sucessores, Joseph Paul-Boncour e Édouard Daladier, tentarão retomar boas relações com a “irmã latina.” Nessa tentativa de reaproximação, o papel principal será desempenhado por Paul-Boncour, não como primeiro-ministro – seu gabinete não durará mais que um mês – mas como ministro do Exterior dos quatro governos seguintes. Nada, é verdade, predispõe esse antigo advogado defensor dos sindicalistas, “socialista independente” e discípulo incondicional de Briand, à menor simpatia por Mussolini e seu regime. Alguns anos antes, ele chamara o Duce “César de carnaval.” Mas os tempos mudaram e, lembra ele nas memórias publicadas depois da guerra, “em 1933 não havia escolha.” É o que pensam igualmente Herriot e vários políticos pertencentes à esquerda e à direita moderadas, como Joseph Caillaux ou Henry Bérenger, inamovível presidente da comissão de relações exteriores do senado.
Herriot mostrou o caminho em um discurso no congresso radical-socialista de Toulouse, em novembro de 1932. “Nada pode ser mais infeliz,” declarou o prefeito de Lyon, então na presidência do Conselho, “que a persistência de um mal-entendido nos opondo a um grande povo que entrou na guerra conosco e com o qual não fomos moralmente justos. Na origem desse mal-entendido, estiveram palavras imprudentes que não se tem o direito de dizer a um povo cujos monumentos aos mortos são tão numerosos quantos os que – ahimé! – fazem da França um calvário.”
Contatos com a delegação italiana foram feitos em Genebra por René Massigli e, em dezembro de 1932, Henry Bérenger fora a Roma, onde encontrara diversas personalidades fascistas. O terreno, portanto, estava preparado para uma aproximação direta de Mussolini, e foi nessa perspectiva que Paul-Boncour decidiu substituir o representante da França no Palazzo Farnese, Maurice de Beaumarchais, por seu “velho amigo” Henry de Jouvenel, senador de esquerda e partidário convicto de uma reaproximação com a Itália mussoliniana.
Jouvenel também fizera parte da delegação francesa na Liga das Nações e professava viva fé “liguense.” Mas considerava a Itália peça essencial na ordem europeia. Não, como se disse, por afinidade ideológica com o fascismo ou admiração pelo Duce. Como muitos políticos de sua geração, ele achava que, mesmo com Mussolini havendo dado muito a seu país, as soluções a que recorrera não eram aplicáveis a um país como a França.
A disciplina de produção – escreve no prefácio de um livro – a Itália estabeleceu. A crise de estado a Itália resolveu. O sindicalismo a Itália integrou a sua organização política. Se foi por vias diferentes das percorridas por nossos governos de ontem, hoje e amanhã, e ao preço de uma liberdade à qual nossa República está ligada, ainda assim as soluções do fascismo merecem a atenção respeitosa devida a toda obra positiva.
Desde o início, se acertara entre o ministro e seu embaixador que a missão deste não excederia a seis meses. A confiança de que Jouvenel gozava junto a Paul-Boncour e o fato de pertencer ao mundo político e não à carreira diplomática asseguravam ao novo embaixador relativa autonomia de movimentos, que ele se esforçaria para aproveitar iniciando um diálogo direto com Mussolini. Sua margem de manobra era reduzida. Paul-Boncour o encarregara de fixar com o governo de Roma “os princípios de um entendimento durável que associe por longo tempo os interesses dos dois países,” mas aparentemente não havia grande coisa a negociar, uma vez que a França pretendia manter seus laços privilegiados com a Petite Entente, fazer observar o respeito absoluto aos tratados, opor-se a toda forma de revisionismo, assegurar a salvaguarda da paz pela aplicação pura e simples do Covenant, o Pacto da Liga das Nações e, claro, não fazer qualquer concessão substancial de seu patrimônio colonial. Permaneciam a questão do desarmamento e os problemas econômicos, que, na opinião de Paul-Boncour, podiam revelar pontos de convergência entre os dois países. Afinal, pouca coisa que apresentar a Mussolini, enquanto se desenvolvia na imprensa italiana uma violenta campanha antifrancesa motivada por uma declaração intempestiva de Herriot na comissão de relações exteriores da Câmara referente a um pretenso tratado ítalo-germano-húngaro.
Jouvenel teve de esperar várias semanas antes de encontrar os responsáveis pela diplomacia italiana, primeiro Suvich, depois o próprio Mussolini, que finalmente o recebe em audiência no dia 3 de março. Chegando ao Palazzo Venezia, o embaixador teve a surpresa de encontrar um interlocutor relativamente sereno, seguro de si e decidido a “pôr as cartas na mesa.” “Não achei,” escreveu Jouvenel, “que seria tão fácil.” Em vez de abordar ponto por ponto as questões pendentes entre os dois países, o Duce convidava a diplomacia francesa para um acordo geral. Era preciso, disse, “distender nossas relações (...) reaproximar nossos pontos de vista sobre a organização da Europa.” Entre a aliança – “cuja natureza divide a Europa mais que a une” – e a “agradável vizinhança,” por que não escolher a via de um “entendimento político”? Um pouco aturdido, Jouvenel não opõe “qualquer contradição” à longa peroração do ditador, “primeiro para não interrompê-lo, depois para não dar, naquelas circunstâncias, o menor pretexto ao chefe do governo italiano para se lançar na direção de Hitler e da Alemanha.” Fala-se do Corredor, de Dantzig, das fronteiras da Hungria, da Áustria, da Albânia. Está-se de acordo em que “é preciso primeiro trabalhar o entendimento.” Mussolini conclui: “Evitemos antes de tudo que as pequenas nações façam com que disputem entre si as grandes, já demais sacrificadas por interesses que nem sempre as concernem diretamente.”
O véu sobre o que passava pela cabeça de Mussolini foi retirado apenas quinze dias mais tarde. Aparentemente, foi durante um fim de semana em Rocca delle Camminate, em 4 de março, que ele esboçou as grandes linhas de seu projeto de “Pacto dos Quatro,” apresentado no dia 9 aos membros do Gran Consiglio e adotado no mesmo dia. Tratava-se, grosso modo, de substituir o sistema de segurança coletiva, caro à organização genebrina, por um diretório das quatro principais potências europeias: Inglaterra, França, Itália e Alemanha. Era a restauração de “Concerto das Nações” que presidira, durante a maior parte do século XIX, os destinos do Velho Continente. Era, sobretudo, introduzir no regulamento das relações internacionais o princípio da revisão dos tratados, claramente evocado no artigo 2º do projeto mussoliniano, sob a cobertura da Liga das Nações (o artigo 19 do Covenant estipulava que, a convite da Assembleia, os membros da Sociedade poderiam proceder a “um novo exame dos tratados tornados inaplicáveis”). Era nesse ponto que as posições francesa e italiana mais divergiam, assim como na questão da igualdade em matéria de armamento introduzida no artigo 6º. O inglês MacDonald partilhava das reticências dos franceses, ao passo que Hitler, ao contrário, declarava-se favorável a um projeto que von Papen chamou de “genial.” Atribuiu-se frequentemente a Jouvenel a paternidade do Pacto dos Quatro. Ora, se é verdade que, ao conhecer as intenções do Duce, o embaixador multiplicou os pedidos para tentar tornar o tratado aceitável por seu governo, é a Mussolini que cabe a iniciativa do projeto. Além disso, o ditador italiano deixou bem claro o que estava em jogo no debate:
Ou nos alinhamos dois a dois – declarou Mussolini ao diplomata francês – com Inglaterra e França de um lado, Itália e Alemanha do outro, contrapostos bloco contra bloco numa situação grave, ou nos entendemos a quatro para uma colaboração, e a Europa e o mundo começarão a respirar.
O embaixador não precisou de ajuda para pôr os pingos nos is. Viu que do destino da proposta mussoliniana dependeria o destino da Europa e da paz e que a chance para a França não viria duas vezes. Por ora, Mussolini se dizia hostil à política de blocos. Reconhecera que uma das justificativas para o Pacto dos Quatro era “manter a Alemanha de rédea curta” e impedir Hitler de anexar a Áustria. Para preservar o essencial não valia atender algumas reivindicações revisionistas? Foi o que o embaixador francês tentou explicar a seu ministro em um telegrama de 25 de março:
Quando a França leva sozinha o peso de quatro nações das quais duas há muito desapareceram e duas triplicaram seu território e sua população, para que ela ponha a existência e o futuro dessas quatro nações sob a garantia das quatro grandes potências ocidentais facilitando os Estados Unidos da Europa, não será esse Pacto do interesse da França – garantidora única da paz entre Alemanha e Polônia, e entre Alemanha e Tchecoslováquia – e do interesse dessas quatro nações aliadas em perigo, mesmo ao preço de algumas concessões locais?
Na França não faltavam, à esquerda e à direita, políticos como Jouvenel, achando que um obstáculo à junção das duas ditaduras merecia algum desvio na intangibilidade das cláusulas territoriais dos tratados. Herriot era contra, mas Paul-Boncour, Caillaux e alguns do cartel das esquerdas eram favoráveis a um entendimento com a Itália. Em Roma, Jouvenel o tentava propondo a Mussolini retoques em seu projeto. A oposição viera inicialmente do Führer, que o Duce terminou por convencer e que aderiu ao pacto para agradá-lo, contra o conselho de Wilhelmstrasse. Mas houvera protesto geral dos poloneses e dos estados balcânicos aliados da França, ao qual a imprensa francesa fez eco. A Bélgica e a Turquia de Mustapha Kemal seguiram o exemplo do protesto, e o conselho da Petite Entente publicou uma declaração hostil ao projeto. O Quai d’Orsay, onde se ativava um lobby anti-italiano organizado por Alexis Léger e René Massigli, empenhou-se em frear as negociações, depois paralisá-las.
Finalmente, o ministério francês do Exterior elaborou um contraprojeto que esvaziava o plano mussoliniano de toda substância. Não se discutiam mais a igualdade de direitos para a Alemanha nem o “concerto europeu” para questões diplomáticas e coloniais. Apenas uma vaga declaração de intenções: os quatro signatários se comprometiam a uma colaboração para manter a paz, no âmbito da Liga das Nações. Não se podia dispor do território de nenhum estado sem seu consentimento e, em caso de revisão, a decisão seria tomada não pelos Quatro, mas pelo Conselho da Liga. Foi esse o texto rubricado em Roma em 7 de junho de 1933, com Mussolini fingindo considerar o pacto de sua iniciativa um instrumento de revisão gradual dos tratados. No mesmo dia, pronunciou no Palazzo Madama um vibrante elogio à França, acolhido, segundo Jouvenel, por ovações unânimes dos senadores.
Para Jouvenel, cuja missão terminara, a assinatura do Pacto dos Quatro teve ao menos o mérito de desanuviar as relações franco-italianas, o que motivara seu envio a Roma. De fato, ele iniciara entre os dois países uma détente que prosseguiria nos meses seguintes em negociações financeiras e coloniais, discussões sobre desarmamento e elaboração de um programa comum de política europeia. Aludiu-se à visita do primeiro-ministro Édouard Daladier a Roma, mas ele deixou o poder em outubro e foi substituído por Sarraut e depois por Camille Chautemps, antes de retomar o poder durante alguns dias, na véspera do levante de 6 de fevereiro de 1934. Desde o verão, o regime parlamentar francês entrara em uma instabilidade – a despeito da manutenção de Paul-Boncour no Quai d’Orsay – pouco propícia à busca de uma linha política contínua com um país com o qual a aproximação, desconfiavam muitos, favorecia o aumento de poder do “fascismo.”
Além disso, o governo francês não esperou para tirar toda a credibilidade da ideia de que poderia ter comprado um seguro contra as ditaduras anunciando, no dia 8 de junho, aos dirigentes da Petite Entente e da Polônia que uma revisão das fronteiras sem o acordo da Liga das Nações estava fora de questão. A saída da Alemanha da Conferência de desarmamento, em outubro de 1933, e depois da própria Liga das Nações, cinco dias mais tarde, terminou por inutilizar o instrumento diplomático concebido por Mussolini. Decepcionado pela não ratificação do Pacto pela Inglaterra e pela França, declarou em artigo de 31 de dezembro de 1933: “Na falta de revisão pelo Pacto dos Quatro, será Sua Majestade o Canhão quem falará.”
O encontro de Stra e a tensão ítalo-alemã
Nas negociações do Pacto dos Quatro, Mussolini indicara aos representantes da Alemanha e da França que não desejava se engajar ao lado de nenhuma delas; para ele, sua posição de árbitro lhe permitia obter o máximo de ganhos na revisão dos tratados a ser feita mais dia menos dia, e cuja execução o acordo assinado em Roma pelos quatro “Grandes” deveria permitir de forma gradual.
Mas essa vontade de equidistância seria contrariada pela ameaça que a agitação dos názis austríacos fazia pesar sobre o futuro da pequena república danubiana, cliente e protegida da Itália fascista, e sobre a região de língua alemã do Alto Adige, cuja absorção continuava a fazer parte, mais ou menos explicitamente, do programa pangermanista de Adolf Hitler. Foi para se contrapor às intenções conquistadoras do Führer nessa zona até então sob influência italiana que, em 1933, Mussolini se empenhou em sua “grande política danubiana,” declarando ao príncipe Starhemberg, chefe da Heimwehr e adversário resoluto do Anschluss: “A bacia do Danúbio deve ser a hinterland europeia da Itália, senão a Itália será forçada a desempenhar o papel insignificante de península na beira da Europa.” Pela primeira vez desde 1926, e dessa vez sob o risco de ver o expansionismo hitlerista conquistar o passo austríaco às suas custas, o revisionismo fascista fixava objetivos precisos. Em março de 1934, o chanceler austríaco Dollfuss e o primeiro-ministro húngaro Gömbös foram à capital italiana e assinaram com o Duce os protocolos do acordo de relações econômicas entre os três estados, prevendo uma ajuda recíproca para o respeito de seus direitos e de sua independência.
A Itália agia, portanto, para constituir na área danúbio-balcânica uma clientela com os vencidos da guerra. Como a Albânia se tornara uma espécie de protetorado italiano, e Roma tinha relações estreitas com a Bulgária também afeita às teses revisionistas, constata-se que nessa época Mussolini praticamente fechou seu cerco ao novo estado iugoslavo, peça-mestre da Petite Entente. Ora, no momento em que sua política de desestabilização do sistema de alianças entre adversários instaurado pela França parecia triunfar, foi-lhe necessário, em face do perigo representado pela ameaça do Anschluss, se não efetuar uma inversão diplomática de 180 graus, ao menos dar uns passos a mais na direção dos ocidentais.
A admiração do Führer por seu homólogo italiano e a propaganda feita pela imprensa das duas ditaduras em torno das visitas de Bottai a Berlim e de Göring a Roma não foram suficientes para vencer as reticências de Mussolini em relação ao chanceler alemão e ao caráter racista de sua doutrina. A exaltação de Hitler da pretensa superioridade dos “nórdicos” o irritara francamente. A ponto de, em um artigo não assinado mas de autoria facilmente identificável do Popolo d’Italia, ele ter se deixado levar pela ironia e afirmado que os lapões, encontrando-se mais ao norte que todos os outros povos, deviam constituir a mais pura das raças. No mesmo espírito, em abril de 1933, ele recebeu o grande rabino de Roma, que viera lhe comunicar as preocupações dos judeus da Itália diante da perseguição a seus correligionários da Alemanha. A imprensa deu larga publicidade a essa visita, bem como à feita no ano seguinte pelo principal representante do movimento sionista, Chaim Weizmann. Mas era sobretudo o projeto expansionista pangermânico dos dirigentes do Partido Nacional-Socialista que inquietava Mussolini. Desde o advento de Hitler, os názis austríacos, favoráveis ao Anschluss, estavam mais agressivos e lutavam abertamente contra o governo social-cristão de Dollfuss. Em agosto de 1933, Dollfuss encontrou o Duce em Riccione, na costa adriática, e recebeu dele promessa de ajuda para salvar a independência austríaca. Em outubro, quando o estadista austríaco foi ferido por um názi, Mussolini lhe enviou um telegrama de simpatia.
No início de 1934, ficou claro para o chefe do governo italiano que a Áustria – que ele considerava, como a Hungria, da esfera de influência italiana na Europa central – estava ameaçada de absorção pelo Reich. Em consequência, acolheu favoravelmente a radicalização autoritária do regime de Viena e as medidas adotadas por Dollfuss para lutar contra o terrorismo názi. Hitler, por seu lado, ficou furioso de ver seus partidários austríacos – incorporados administrativamente ao Partido Názi em 1926 – atingidos por interdições e perseguidos como vulgares criminosos comuns, com a bênção do Duce. Assim, encarregou von Papen, em visita a Roma no início de abril, de propor ao Duce um encontro em data de sua conveniência para tratar de desarmamento, das relações econômicas entre os dois países, da coordenação política da Europa Central e da “questão austríaca.”
Mussolini aceitou sem entusiasmo e fixou data e local do encontro. Em 13 de junho, dirigindo seu carro e acompanhado de importante comitiva que incluía Suvich, Ciano e Starace, ele chegou a Stra, entre Pádua e Veneza, onde devia se dar a primeira entrevista. Para a ocasião, o Duce fizera mobiliar e equipar às pressas uma antiga habitação, villa Pisani, onde decidira se alojar, uma vez que fora posta à disposição do Führer a suíte real do Grande Hotel de Veneza. Na manhã do dia 14, ele foi ao aeroporto veneziano para receber o chanceler do Reich.
Os dois nunca tinham se visto e a surpresa foi imensa para os dois lados. Mussolini vestira um uniforme rutilante, de botas, barrete e todas as suas condecorações. Hitler viera à “paisana” envergando um impermeável bege justo e, segundo uma testemunha do encontro, parecendo “um operário com a roupa boa de domingo.” Estava “muito pálido” e visivelmente emocionado quando apertou a mão do Duce, que mal disfarçava a pouca simpatia que lhe inspirava o hóspede. Durante o almoço em villa Stefani, os dois ditadores trocaram algumas poucas palavras antes da primeira entrevista. Mussolini não quisera intérpretes, para mostrar a seu interlocutor que dominava perfeitamente a língua de Goethe. Na realidade, e a despeito de seus reais esforços para se familiarizar com o alemão, ele não estava à altura de uma conversa cerrada de duas horas. Ele entendia ainda menos porque Hitler se lançou quase imediatamente em um louco improviso verbal, julgado “histérico” pelo anfitrião. No fim desse dilúvio logomáquico, Mussolini enviou seu hóspede a Veneza para uma visita comentada da cidade.
Expulsas da villa por hordas de mosquitos “grandes como codornas,” no dia seguinte, as duas delegações se encontraram nos canais de Veneza para um almoço e o segundo colóquio, que, como o primeiro, deu-se sem intérpretes e foi um diálogo de surdos. O monólogo hitlerista tratou essencialmente da Áustria. O Führer não tinha intenção “imediata” de anexar o país, mas queria fazê-lo ouvir sua voz. Ele exigia a demissão de Dollfuss e sua substituição por um político “independente” que realizaria novas eleições, prelúdio à constituição de um governo no qual os názis seriam representados. Casualmente, empolgado por seu próprio delírio verbal, Hitler mencionou desajeitadamente a superioridade das raças nórdicas e as origens parcialmente “negroides” dos povos mediterrâneos, o que enfureceu Mussolini. As distantes testemunhas da cena falaram mais tarde de gritos, ou melhor, “latidos,” dos dois ditadores.
Evidentemente, a comunicação oficial falou, como é usual, da “cordialidade” do encontro e da “franqueza” com a qual os dois estadistas abordaram os grandes problemas da hora. Mas é com imenso alívio que, no início da noite, Mussolini se vê livre do Führer, depois de pronunciar na praça São Marcos um discurso essencialmente destinado a exibir para o visitante a fascinação que exercia sobre seu auditório, e no dia seguinte se separa dele no aeroporto de San Nicolò di Lido.
Liberado das exigências da etiqueta, o Duce se abandona entre seus próximos a um verdadeiro festival de invectivas contra o chefe do III Reich e contra a pretensa “raça de senhores.” “Esse Hitler, que polichinelo!” – disse a Suvich no momento em que se afastava o avião do Führer. “É um louco, um obcecado sexual.” De volta à Romagna, alguns dias mais tarde, confidenciou a um grupo de fascistas de Forlì: “Em vez de falar dos problemas atuais, Hitler em Veneza recitou de cor seu Mein Kampf, esse tijolo que nunca consegui ler!” Ou ainda, falando dos alemães: “Continuam sendo os bárbaros de Tácito e da Reforma, em luta perpétua contra Roma. Não confio neles.”
Em Veneza, Hitler ficara em inferioridade ante seu colega latino, mas aparentemente sem rancor, considerando responsável por seu desconforto von Neurath, que o aconselhara a se apresentar ao Duce de casaca e calça listrada; jamais perdoará esse faux pas. Ao menos foi o que entendeu o major Renzetti em seguida às conversações de 14 e 15 de junho. O Führer teria dito ao emissário particular de Mussolini que estava “entusiasmado” com seu encontro com o Duce. “Homens como Mussolini,” teria acrescentado, “nascem uma vez a cada mil anos, e a Alemanha pode se considerar feliz que ele seja italiano, e não francês.” Relatadas ao Duce, essas palavras elogiosas só serviram para lisonjear sua inexaurível megalomania. O anúncio, dez dias mais tarde, da liquidação de Röhm, de von Schleicher e dos principais dirigentes da SA durante a “noite dos longos punhais” apenas confirmou a impressão de que a Alemanha era a presa da loucura sanguinária de um “degenerado mental” com o qual a Itália não tinha nenhum interesse em firmar contratos.
Foi nesse contexto tumultuado que se deu, em Viena, o golpe de 25 de julho de 1934. Názis austríacos tomaram a rádio e invadiram o palácio da chancelaria, ferindo mortalmente o chanceler Dollfuss e tentando instalar no poder o embaixador da Áustria em Roma, Rintelen, muito ligado aos meios de negócios alemães. Ainda que, no processo de Nuremberg, Göring e von Neurath tenham declarado que souberam do fato já consumado, há provas irrefutáveis de que Munique e Berlim estavam a par do Putsch, do qual o próprio Hitler certamente tinha conhecimento.
O pronunciamiento názi foi um fiasco. Os social-cristãos reagiram rapidamente e obtiveram do presidente da república a designação de Schuschnigg – monarquista muito malvisto pelos dirigentes do Reich – como primeiro-ministro. O putsch foi abafado na mesma noite, em grande parte graças ao adido de imprensa italiano Moreale, que fizera prevenir Starhemberg e ocupar a central telefônica da capital austríaca pelos Heimwehren. A notícia do assassinato de Dollfuss chegou a Mussolini quando visitava canteiros de obras públicas perto de Forlì. Ele partiu rapidamente para Riccione, onde estavam a esposa e os filhos de Dollfuss, vindos para a estação adriática a convite do Duce para esperar o chanceler austríaco, com o qual Mussolini teria conversas políticas. Considerando a tentativa de Putsch uma afronta pessoal à qual Hitler não era muito estranho, decidiu mobilizar quatro divisões na zona entre o Brenner e a Caríntia, mostrando sua determinação de se opor, se necessário pela força, a uma intervenção armada da Alemanha. Em agosto, encontrou Schuschnigg em Florença, confirmou o acordo com seu predecessor e reafirmou energicamente seu desejo de ver a Áustria independente.
Hitler, furioso com o fracasso, renegou os názis austríacos. Ainda mais descontente porque o falhado golpe de Viena teve como efeito desfraldar sobre a Itália uma poderosa vaga germanofóbica. Os jornais, que até então haviam se exprimido com moderação sobre o nazismo e receberam ordens de não comentar a “noite dos longos punhais,” tinham agora toda liberdade para falar da Alemanha hitlerista, e o fizeram com extrema violência. O próprio Mussolini declarou, em discurso pronunciado em Bari em 6 de setembro para a inauguração da “feira do Levante”:
Trinta séculos de história nos permitem olhar com piedade soberana certas doutrinas do lado de lá dos Alpes, sustentadas por um grupo que, por ignorar a escrita, era incapaz de transcrever os documentos de sua própria existência na época em que Roma tinha César, Virgílio e Augusto.
A reaproximação franco-italiana e
a constituição da “Frente de Stresa”
O basta do Duce no Passo de Brenner teve grande repercussão na Europa, tanto na Alemanha, onde Hitler se viu sem um apoio internacional que algumas semanas antes parecia certo (ao menos até o encontro de Veneza), quanto no campo das democracias. Neste campo, visivelmente se prenunciava uma détente com a Itália cujo principal beneficiário poderia ser a França.
Desde que Louis Barthou sucedera Paul-Boncour na diplomacia francesa, no gabinete de Doumergue após o 6 de fevereiro de 1934, a prioridade da França era isolar politicamente a Alemanha. Implicava que o ministro retomasse, com uma Realpolitik o mais livre possível de considerações ideológicas e sentimentais, as negociações de seu predecessor tanto com a URSS, com quem um pacto de não agressão fora concluído em novembro de 1932, quanto com a Itália fascista.
Barthou, portanto, retomou sob sua responsabilidade o dossiê de reaproximação com Roma, suspenso pelo Quai d’Orsay depois do fim da missão Jouvenel e ao qual a ameaça de Anschluss conferia subitamente grande interesse. Foi levado a isso pelo embaixador da França em Roma, Charles de Chambrun. Temendo que Itália e Alemanha entrassem numa política de aliança, no início do verão de 1934 ele achou chegado o momento de a França dar um passo na direção de sua vizinha de sudeste. Em 14 de junho, no mesmo momento em que os dois ditadores se entregavam, em villa Stefani, ao combate oral de que falamos, Chambrun exprimia nestes termos seu desejo de ver o ministro deferir o projeto de viagem a Roma que os italianos reclamavam havia tempo e que o subsecretário de estado Suvich lembrara novamente algumas semanas antes:
Por uma atitude dilatória prolongada, daríamos aos italianos a impressão de que nos desinteressamos por sua política e subestimamos sua influência, o que os levaria a estreitar com a Alemanha laços que se afrouxaram bastante no curso desses últimos meses. Dando à Itália prova de nosso desejo de entendimento e não lhe pedindo para praticar em matéria política uma abnegação que não é de seu temperamento, certamente ainda podemos, se não esperarmos mais, mantê-la numa direção que responde a nossas preferências.
Barthou, que não era filofascista mais do que não era filocomunista e separava totalmente as considerações da política interna das obrigações da diplomacia, concordava com a análise de seu embaixador. Também achava necessário “usar todos os meios para melhorar nossas relações com a Itália.” Mas ao mesmo tempo o advertia contra uma excessiva precipitação, subordinando a resposta positiva ao convite para encontrar Mussolini em Roma ao exame dos resultados do encontro entre o Duce e o Führer em Veneza. Tratava-se não de uma recusa, mas de postergação; durante várias semanas, a questão permanece em suspenso.
Foi o evento na Áustria, no fim de julho, que levou o ministro francês a abandonar suas reservas e planejar para o fim do outono uma viagem à capital italiana destinada a acertar diretamente com Mussolini as questões pendentes entre os dois países. Acertou-se uma agenda de cinco pontos: armamentos, retificação da fronteira da Líbia, status dos italianos na Tunísia, Europa central e “eventual tratado de amizade.” O exame desses pontos deu lugar a amargas discussões entre as chancelarias das quais os arquivos diplomáticos dos dois países conservaram vestígios, com a França pouco disposta a satisfazer as reivindicações coloniais da Itália e querendo ao mesmo tempo obter de Mussolini o compromisso de respeitar a independência da Áustria e aceitar “um modus vivendi durável entre a Itália e os estados vizinhos da Áustria, particularmente a Iugoslávia.” Dito de outro modo, renunciar sem contrapartida verdadeiramente tangível a toda forma de revisionismo.
Para tentar resolver essa versão da quadratura do círculo fazendo coexistirem no mesmo sistema diplomático a Itália revisionista e sua rival adriática, o governo Doumergue pediu ao rei Alexander da Iugoslávia que fizesse uma visita oficial à França. Ora, em outubro de 1934, pouco depois de sua chegada à Marselha, o rei foi assassinado por separatistas croatas, membros da Ustacha. Barthou, que acompanhava o soberano, também foi morto pelos terroristas, que fugiram e se refugiaram na Itália, onde dois deles – incluindo Ante Pavelic, futuro chefe do movimento – foram presos em Turim. Embora jamais tenha havido prova da participação do serviço secreto alemão e da Gestapo nesse atentado, pesam fortes suspeitas. O crime aproveitava a Alemanha, inquieta com o projeto de pacto oriental do ministro francês, com a reaproximação franco-soviética e as primícias de uma aliança militar entre Paris e Moscou.
Mas foi sobre a Itália, no entanto, que caíram as suspeitas do governo francês, pois Mussolini se recusava a extraditar os autores do atentado de Marselha sob o pretexto de que eram “refugiados políticos.” Nem a documentação sobre o assunto nem as investigações realizadas na Itália depois da guerra permitem concluir sobre qualquer cumplicidade do governo fascista nesse caso. De qualquer modo, ele resultou em um breve período de desacordo entre os dois países. A chegada ao Quai d’Orsay de Pierre Laval, que desejava um entendimento com Mussolini e não insistiu na eventual responsabilidade italiana quando a questão veio à tona em Genebra, permitiu retomar rapidamente o diálogo.
Em sua passagem pela direção do governo em 1931, Laval já manifestara desejo de ver a França em relações amigáveis com a “irmã latina.” Encarregado do Exterior depois da morte de Barthou, ele assumiu na totalidade a herança de seu predecessor. Não obstante, entre os dois dossiês preparados por esse último, aliança com a URSS e aproximação com a Itália fascista, ele privilegiaria o segundo, por motivos internos e razões de política externa. Nem nessa data nem mais tarde, Laval foi propriamente falando um “fascista.” Mas, como muitos políticos da direita europeia – liberais ou conservadores – admirava em Mussolini, antigo socialista como ele, o homem que restabelecera a ordem em um país ameaçado pela anarquia e pelo bolchevismo. Além disso, achava que o entendimento com a Itália fascista era condição necessária à tranquilidade na Europa, pois levaria Hitler a um pouco mais de moderação. Sem ser adepto do nacional-socialismo, Laval desejava um desarmamento durável das relações franco-alemãs.
Em 13 de outubro, durante a missa em São Luis dos Franceses, Roma, para Louis Barthou, Mussolini, presente à cerimônia, declarou a Chambrun esperar confiante o evoluir da política de détente entre França e Itália. Preocupado em estabelecer contato direto com o Duce, segundo o método que inaugurara em 1931 com o alemão Brüning e com o presidente dos Estados Unidos Hoover, o ministro francês decidiu responder favoravelmente ao convite feito a seu predecessor para ir a Roma a fim de encontrar Mussolini e resolver o contencioso franco-italiano. Impôs somente duas condições: que se esperassem algumas semanas, o tempo de se dissipar “a emoção causada pelos eventos de Marselha,” e que à “cooperação entre França e Itália pela paz” acompanhasse uma “aproximação entre Itália e Iugoslávia.”
Nesse ponto, Mussolini não tinha intenção de ceder. Estava fora de questão, explicou a Chambrun, cumprir a requisição feita pela França enquanto o governo e a imprensa iugoslavos continuassem a responsabilizá-lo pelos eventos de Marselha. A “opinião pública” não aceitaria. Era importante, primeiro, que a paz se fizesse nos espíritos, e o melhor modo para isso era dar caráter concreto à aproximação franco-italiana. Depois, mas só depois, seria possível negociar com Belgrado. Para tentar desbloquear a negociação, Laval tentou in extremis uma diligência junto ao governo iugoslavo, pedindo “um gesto” para desarmar as reticências italianas. Não podendo obtê-lo, em 20 de dezembro resignou-se finalmente a abandonar essa condição prévia, restringindo-se a “fazer valer junto ao Monsieur Mussolini a necessidade desse tratado, não mais como condição da viagem, mas como sua consequência indispensável.”
Ao receber em Roma o ministro do exterior francês, Mussolini estava consciente de que não obteria grande coisa em matéria de retificação das fronteiras da Líbia e da Somália Italiana e de que deveria fazer concessões a respeito do status dos italianos da Tunísia. Sobre a Áustria, ele não tinha mais interesse que seu futuro interlocutor em se comprometer numa ação conjunta em caso de agressão alemã, e, se o preço a pagar era que a Itália renunciasse a toda reivindicação revisionista nos Bálcãs e se tornasse, como desejava a França, “amiga da Iugoslávia e da Petite Entente,” era necessária uma compensação de vulto lá onde o Duce já decidira agir: na Etiópia. No fim de dezembro de 1934, com efeito, quando Laval se preparava para pegar o trem para Roma, um incidente mais ou menos provocado na fronteira entre a Somália e a Etiópia fizera cerca de trinta mortos do lado italiano e os preparativos de guerra estavam adiantados. O Duce ainda precisava fazer com que as potências coloniais aceitassem o princípio de uma ação militar contra o último território africano ainda não submetido à dominação europeia (com exceção da Libéria). Seria a visita do ministro francês, com muito a pedir e pouco a oferecer, uma ocasião para obter à força a adesão da França a seu projeto imperialista?
Na noite de 4 de janeiro de 1935, Laval foi recebido pelo ditador latino na estação Termini, em Roma. A multidão romana, controlada ou não pela propaganda fascista, deu-lhe uma acolhida calorosa e, sobretudo, entre os dois se estabeleceu visivelmente de imediato uma corrente de simpatia cujas razões foram evocadas em Le Populaire por Léon Blum, pouco suspeito de indulgência em relação a ambos:
Os dois estadistas se reconhecerão à primeira vista. Para assegurar ao contato um caráter de “comunhão íntima,” terão apenas de trocar memórias. Que estranho encontro, para dizer a verdade, e que jogo do destino! Eles são praticamente da mesma idade, têm mais ou menos a mesma origem, o mesmo passado, a mesma história. Os dois saíram de nossas fileiras. Os dois, para cavar mais rapidamente suas passagens, começaram pelo que se convencionou chamar extremismo, e o extremismo, em sua juventude, era o herveísmo, o sindicalismo revolucionário. Os dois apoiaram, contra os “reformistas” e os “parlamentares” de seus partidos, essas teorias de ação direta inspiradas em Proudhon, Bakunin, Georges Sorel, pinceladas ao mesmo tempo de terrorismo e anarquia. Mesmo ponto de partida, mesmos procedimentos para encurtar o caminho. Só que Mussolini, que tem mais audácia e um senso mais determinado de risco, destacou-se mais rápido, caminhou mais e chegou mais longe.
Eles foram feitos para se compreender, e suas confidências não carecerão de sabor. Mas a questão do dia é saber se a antiga educação e ação terá deixado num e noutro a mesma vontade pacífica.
Permeadas por festividades diversas – almoço com o Rei, jantar no Palazzo Venezia com troca de brindes, recepção no Capitólio, visita ao Fórum e à villa Medici – as conversações foram intensas. Embora rapidamente se tenha chegado a um acordo sobre a Áustria e a Petite Entente, com Laval se contentando em salientar “o quanto um gesto da Itália seria oportuno,” a discussão das questões coloniais foi muito tensa, em particular sobre dois pontos: as escolas italianas na Tunísia e as concessões na África Oriental. No fim das contas, e para resumir o conteúdo dos acordos, Paris obteve que fosse progressivamente encerrado o status privilegiado dos italianos da Tunísia. Os dois países concordaram em manter a independência da Áustria e a se consultar em caso de oficialização do rearmamento alemão. Em contrapartida, a França renunciava a seus interesses econômicos na Etiópia, abandonava parte das ações da estrada de ferro Djibouti–Addis-Abeba e cedia à Itália 114 mil km2 de territórios desérticos nos confins da Líbia, do sul tunisiano, do Chade e da Eriteia. A Mussolini que, debruçado sobre o mapa, reprovara a França por conceder a seus parceiros apenas “um pedaço de deserto no qual não há nem mesmo um carneiro,” Laval teria respondido, mostrando com o dedo alguns oásis, que, claro, não se tratava de Roma nem de Aubervilliers (cidade da qual era prefeito), mas, “mesmo assim, contava.”
Parece estabelecido, qualquer que seja a importância que se atribua a esse gesto, que foi a maneira pela qual Laval evocou o “desinteresse” francês na Etiópia que desbloqueou a situação na noite de 6 de janeiro. De fato, teria sido durante a recepção oferecida no Palazzo Farnese pelo embaixador da França que – a se acreditar em sua versão dos fatos – os dois homens se retiraram para uma conversa tête-à-tête, na qual teriam decidido assinar os acordos no dia seguinte. Ora, ainda hoje é total a incerteza sobre o conteúdo, e mesmo sobre a realidade, desse colóquio a dois. No início de 1936, em plena guerra da Etiópia, Mussolini declarou que, em Roma, Laval lhe dera carta branca para a conquista militar do império do Negus. Em carta enviada ao ditador romano, Laval respondeu que a expressão “mãos livres,” efetivamente empregada, aplicava-se apenas a uma eventual penetração econômica desse país pela Itália. Primeiro-ministro e dirigindo-se aos deputados durante o grande debate de política externa de 27 de dezembro, ele relembrou nestes termos a desistência francesa:
Nada, nos acordos assinados com Roma no último 7 de janeiro, nem nas conversações que lhes precederam ou seguiram, poderia ser interpretado como de natureza a, não digo justificar, mas encorajar o recurso da Itália à guerra para fazer valerem suas queixas e seus direitos em relação à Etiópia. Eu não teria dado minha aquiescência a uma empreitada guerreira, mesmo longínqua, sem medir as consequências dramáticas que poderiam resultar para a paz na Europa.
Ainda hoje, a documentação acessível nos dois países deixa o historiador perplexo quanto ao grau da aquiescência do ministro francês. Citemos, por exemplo, em prejuízo de Laval, uma nota – não datada, mas provavelmente do fim de 1935 ou das primeiras semanas de 1936 – de Joseph Avenol sobre “os acordos de Roma.” Secretário-geral da Liga das Nações, Avenol tinha pouca simpatia pelo homem do Quai d’Orsay. Então, é preciso considerar com prudência seu julgamento subjetivo desse último. O fato de que seu autor se encontrava no centro de uma rede de influências e informações, contudo, nos obriga a não recusá-lo sem exame, ainda mais porque coincide com testemunhos de personalidades pertencentes ao entourage do prefeito de Aubervilliers que eu mesmo recolhi no fim dos anos 1960.
Ninguém conhecerá – escreveu Avenol – (salvo se for encontrada a versão italiana) a conversa final entre Laval e Mussolini nas seteiras do Palazzo Farnese. De que Laval recebeu a confidência dos projetos de expedição na Etiópia, não resta dúvida. Ele não poderia ter sido surpreendido: diz-se que mesmo antes de deixar Paris já estava pronto a admiti-los na massa das negociações. Foi ele além da assinatura oficial da renúncia econômica? É provável, mas com astúcias de companheiro: seja prudente, não precipite nada, veja como a paciência nos fez ter sucesso no Marrocos.
É, diria eu, a tese da “piscadela” ou do dar de ombros com os quais o ministro francês teria acolhido as confidências do Duce. Embora esteja de acordo com o que sabemos sobre a personalidade de Laval, é completamente contradita pelo que escreveu Alexis Léger sobre os acordos de 7 de janeiro em uma nota de 30 de dezembro de 1935:
Procurar-se-á em vão – escreveu o secretário-geral do Quai d’Orsay – nesses documentos uma palavra na qual o governo italiano tenha podido encontrar o menor encorajamento para praticar uma política de guerra contra a Etiópia. (...) À margem da negociação oficial, o caso Etiópia foi abordado, com alguns detalhes, pelo ministro do Exterior e pelo chefe do governo italiano em somente uma entrevista, no Palazzo Farnese, após o jantar de 6 de janeiro. (...) O caráter amigável dessa conversa e a liberdade de tom que autorizava permitiram a M Laval exercer uma influência psicológica sobre M Mussolini e levá-lo a decidir malgrado as resistências dos funcionários do Palazzo Chigi.
Ora, essa conversa teve duas testemunhas: o subsecretário de estado do Exterior, M Suvich, e o secretário-geral do departamento, M Léger. Ambos poderiam atestar que a discussão sobre a questão da Etiópia jamais saiu do terreno e dos limites em que os negociadores franceses o mantiveram sempre: os dos interesses econômicos. Foi sobre esse plano somente que se fez alusão à liberdade de ação reconhecida pela França à Itália. (...)
A expressão “mãos livres” tendo ocorrido no curso dessa conversa, M Laval foi levado a brincar amigavelmente com seu interlocutor, nestes termos: “Olho para as suas mãos, elas são fortes. Espero que você não pretenda fazer mau uso delas.” M Mussolini teria respondido no mesmo tom, cujo humor não excluía a gravidade do assunto, dizendo ter apenas intenções pacíficas em relação à Etiópia.
Esse documento não encerra o assunto, uma vez que se pode perguntar se Alexis Léger não acoberta seu ministro – os dois tinham excelentes relações desde 1931 – em um texto aparentemente solicitado pelo mesmo pouco antes de sua partida do Quai d’Orsay. Mas ele constitui mesmo assim um testemunho precioso sobre as circunstâncias e o tom da entrevista de 6 de janeiro. No conjunto, os historiadores franceses, biógrafos de Laval ou especialistas em relações internacionais, inclinam-se hoje pela tese da simples desistência econômica ou, quando admitem que o ministro possa ter conduzido alguma negociata de última hora – recusando-se, como escreveu jocosamente Léon Noël, a “voltar da feira sem ter vendido sua vaca” – concedem-lhe ao menos o fato de não ter premeditado um gesto em contradição com a política do governo francês e com o que ele mesmo afirmara desde o início das negociações.
Essa não é a opinião de Renzo De Felice. Referindo-se a um documento encontrado nos arquivos do ministério italiano do Exterior – o texto foi redigido em 4 de janeiro de 1935, nas duas línguas, e trata da desistência francesa da Etiópia – o biógrafo de Mussolini observa que, em virtude do artigo 2º do projeto estabelecido pelos representantes dos dois países, o governo francês se comprometia com a Itália “a não procurar nenhuma vantagem na Etiópia fora as de ordem econômica indicadas abaixo (a exploração da estrada de ferro Djibouti–Addis-Abeba), mesmo em caso de modificação do statu quo na região em questão.” Para De Felice, está claro que, ao reconhecer a possibilidade de “modificação do statu quo,” os responsáveis pela diplomacia francesa admitiam tacitamente seu princípio. Dito de outro modo, sem ser explicitamente encorajado a intervir militarmente na Etiópia, Mussolini não foi tampouco dissuadido de fazê-lo. O que, aos olhos do ditador, equivalia a um cheque em branco.
Que ele tenha ou não interpretado de maneira abusiva o “desinteresse” francês em nada altera os fatos: Mussolini assinou os acordos com Laval em 7 de janeiro de 1935 na certeza de que a França não lhe causaria dificuldades maiores no conflito por vir. Daí a pressa com que se empenhou, nas semanas seguintes, em concretizar a reaproximação com a república vizinha, propondo-lhe uma cooperação militar que aparentemente poderia terminar em verdadeira aliança. Decidido a preservar a influência de seu país na zona danubiana e, portanto, a se opor por todos os meios ao Anschluss, mas ao mesmo tempo já comprometido em um processo beligerante que deveria terminar na conquista da Etiópia, era-lhe necessário estar pronto o mais rápido possível. Oferecendo sua “amizade” à França, ao preço de exibir falsas boas intenções em relação a Belgrado e renunciar eventualmente (ou temporariamente) a suas pretensões revisionistas, ele pensava poder ao mesmo tempo conter as ambições hitleristas sobre o Danúbio e ter tempo de conquistar um império.
Em todo caso, menos de uma semana depois da assinatura dos acordos, o adido militar francês em Roma, general Parisot, foi contatado pelo marechal Badoglio, ao qual Mussolini confiara a tarefa de sondar os responsáveis franceses sobre uma colaboração militar entre os dois países. A questão foi debatida várias vezes no alto comitê militar e houve contatos entre os estados-maiores. O objetivo era que, em caso de mobilização alemã, França e Itália pudessem retirar suas tropas da fronteira comum. Mas, até meados de março, os políticos franceses se empenharam pouco em concluir um verdadeiro acordo com a Itália fascista. Mesmo Laval, não embaraçado pelos escrúpulos ideológicos de alguns de seus colegas, mas temendo arruinar definitivamente toda possibilidade de entendimento com a Alemanha, declarou, durante uma sessão do alto comitê militar, que era conveniente “não responder muito rápido aos avanços de Roma.”
A decisão, tornada pública por Hitler em 16 de março, de restabelecer o alistamento e elevar a trinta e seis divisões os efetivos do exército alemão não modificou radicalmente a atitude do governo Flandin em relação à Itália. Ela teve, contudo, o efeito de suscitar uma reunião a três, realizada em Stresa, às margens do lago Maggiore, e que reuniu, de 11 a 14 de abril, Mussolini, seu chefe de gabinete, barão Aloisi, e o subsecretário de estado Suvich pela Itália; Flandin, Laval, Alexis Léger e Léon Noël pela França; Ramsay MacDonald, o ministro do Exterior, sir John Simon, e o secretário permanente do Foreign Office, sir Robert Vansittart, pela Inglaterra. As sessões tiveram lugar no palácio dos príncipes Borromeo, na Isola Bella, e ainda que oficialmente nenhum presidente tenha sido designado, Mussolini, na qualidade de dono da casa, foi encarregado de dirigir os debates. Das notas de Léon Noël desenha-se um retrato bastante vívido do Duce, mistura de surpresa, arrogância e admiração que trai, no fim das contas, certo fascínio pelo ditador:
O Duce me surpreendeu por sua baixa estatura, que me pareceu um pouco inferior à média, e também por sua vulgaridade. Uma grande lúpia atraía o olhar sobre seu crânio poderoso, quase inteiramente calvo e, quando não, completamente raspado. Mas ele me atingiu mais pela lucidez de seu espírito, a clareza de suas opiniões, o autodomínio.
Quando estava a sós com os delegados franceses, Mussolini se mostrava simples, natural e de bom humor: estávamos entre latinos, que se conhecem bem demais para empregar uns com os outros truques calculados e perfeitamente inúteis. Na presença dos ingleses, o Duce não abandonava uma atitude oficial forçada.
Chegamos adiantados para uma sessão, e Mussolini conversava conosco sem arrogância. Anunciaram-lhe os ingleses. Imediatamente, sua fisionomia se transformou. Ele de certo modo projetou seu queixo para a frente e saiu a seu encontro através de uma sucessão de suntuosos salões, os joelhos duros, o ar conquistador e dominador de um imperator.
Seu domínio sobre as massas me pareceu muito forte.
A conferência de Stresa entrou para a história como o encontro das ocasiões perdidas. Mussolini viera com um duplo objetivo: obter a garantia de que estaria coberto em seu flanco norte quando decidisse o destino da Etiópia e, sobretudo, fazer com que as democracias ratificassem seu projeto de conquista, ao preço de deixar de ser o campeão do revisionismo europeu. Para isso, contava com os representantes da França, que tentara com a promessa de uma cooperação militar e dos quais esperava que conseguissem convencer seus colegas ingleses. Ora, tudo se passou diferente do planejado. Flandin e Laval não recusam os avanços do Duce, com a condição de serem seguidos por Londres, parceiro privilegiado com o qual se desejava uma união mais estreita. MacDonald e John Simon, por sua vez, aceitam se associar a seus interlocutores “apenas do ponto de vista moral,” declarando terem “prometido à Câmara dos Comuns não assumirem nenhum compromisso.”
Como os representantes da França estavam alinhados a uma delegação inglesa que Noël descreveu sem complacência – um MacDonald “cheio de si e vaidoso” (do qual Churchill dirá em suas memórias que “sua saúde, sua visão e suas faculdades mentais haviam começado a declinar”), um John Simon batendo “o recorde da hipocrisia e da duplicidade,” um Vansittart “quase constantemente debruçado sobre seus papéis” – a conclusão da entrevista foi, se não um completo fracasso, ao menos a ausência de decisões concretas. Partiu-se com uma declaração das mais vagas e que muito decepcionou Mussolini. Da Etiópia não se falou nem nos debates oficiais nem nas raras conversas particulares entre os membros das três delegações. Simplesmente, durante a leitura da resolução final, no momento de mencionar a necessidade de “manutenção da paz,” o chefe do governo italiano parou um instante e propôs acrescentar “na Europa.” Não encontrou objeção e pôde acreditar que o silêncio de seus parceiros equivalia a uma aceitação de seus planos de conquista. Foi, aliás, o que disse a Grandi, depois de levar seus hóspedes ingleses à estação. Para Léon Noël, seguido por Duroselle, ingleses e franceses se abstiveram de refutar a adição desejada pelo Duce não para dar um sinal qualquer de aquiescência ao projeto imperialista que concebera, mas porque não o acreditavam capaz de levá-lo a termo. Nada é mais incerto. Os preparativos da guerra estavam avançados e eram suficientemente conhecidos dos diversos serviços de informação para que alguém pudesse se enganar sobre as reais intenções do Duce. Em sua preocupação de ficar em cima do muro, no entanto, os representantes das duas principais potências coloniais do mundo não tiveram a coragem nem de dissuadir Mussolini de declarar guerra a um estado membro da Liga das Nações nem de assegurar sua adesão ao respeito do statu quo europeu, jogando de forma transparente a carta da Realpolitik.
Dessa ambiguidade resultou o fracasso da “Frente de Stresa,” cuja única realidade foi mediática e que as sinuosidades da política inglesa conseguiram desmembrar alguns meses mais tarde, com a conclusão do acordo naval anglo-alemão que autorizava o Reich a construir uma esquadra igual a 35% da esquadra inglesa. Enquanto isso, Mussolini prosseguiu com sua pressão “amigável” sobre a França. Em junho, o general Gamelin – que em janeiro substituíra Weygand no comando do exército francês – foi a Roma, onde encontrou Badoglio. As conversas foram “cordiais e mesmo afetuosas.” Mussolini, cuja decisão de “marchar com a França” fora “irrevogavelmente tomada,” recebeu amigavelmente o chefe do estado-maior do exército francês, acompanhado de seu chefe de gabinete e do adido militar em Roma, general Parisot. Ele lhes confiou que chegara a hora de acertar suas contas com o Negus, mas que isso não impediria a Itália de “permanecer forte sobre o Brenner.” Não se assinou propriamente um acordo, mas os militares franceses e italianos se entenderam em um auto prevendo que, em caso de ataque alemão na Bélgica ou sobre o Reno, a Itália enviaria nove divisões e aviões, enquanto a França expediria um corpo de exército se o assalto se desse na fronteira austro-italiana. No início do verão de 1935, Mussolini parecia acariciar um projeto de aliança que nada deixava entrever depois da chegada de Hitler ao poder, e que o início da guerra da Etiópia reduziria a pó.