Introdução
J.M. COHEN
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A autobiografia de Santa Teresa é a história da entrada de uma mulher notável na vida religiosa e ao mesmo tempo uma obra-prima literária que, depois de Dom Quixote, é o clássico em prosa mais lido da Espanha. É um trecho de autorrevelação sincera, escrito na mais vívida e natural prosa coloquial. A própria santa afirma que a obra foi redigida, primeiramente, a pedido de seus confessores, que solicitaram um relato de suas experiências raras para circular entre religiosos de vocação semelhante. Também precisavam dele, numa época em que acusações de heresia eram frequentes, como prova positiva da completa ortodoxia e obediência incondicional aos ensinamentos de Santa Teresa e aos mandamentos da Igreja. Apesar de ela mesma se queixar de não ter tempo nem prazer em realizar tal tarefa, e que seria melhor ocupar-se fiando ou fazendo tarefas domésticas em seu convento pobre, era, sem dúvida alguma, uma escritora nata, para quem as palavras vinham rápida e livremente, e que sentia nelas o prazer de um artesão.
O livro que temos hoje fornece um relato da vida de Teresa até os seus cinquenta anos, em 1565, mas é certo que começou a ser escrito sete ou oito anos antes da data em que foi pedido por seus confessores, e foi de início dirigido para aqueles quatro amigos espirituais próximos, a quem ela se refere no capítulo 16 como seus companheiros membros “dos Cinco”. A maior parte do livro foi, na verdade, escrita em Toledo, durante o tempo em que Teresa esteve lá como convidada da rica doña Luisa de La Cerda, sobre quem nos conta no capítulo 34. Em sua forma completa, porém, a obra começou a passar de mão em mão no começo de 1565, e logo o padre Báñez, confessor da santa na época e seu amigo e aliado constante, repreendeu-a por ter colocado a obra em circulação livremente demais. Ele percebeu, porém, que a culpa não era dela. A Espanha da época estava extremamente interessada nessa reformadora de conventos ativa e franca.
Muito do sucesso imediato do livro foi resultado de sua boa escrita. Os pensamentos de Teresa pareciam se vestir naturalmente em linguagem simples, direta e expressiva. Mesmo quando descreve um estado de consciência difícil ou um evento sobrenatural muito raro, ela nunca falha em achar as palavras usuais acertadas, as metáforas simples de todo dia que deixarão o texto claro para os leitores cujas vidas nunca se elevaram a tais níveis. Sua linguagem flui, assim como a de Cervantes, qual uma boa conversa; e ela também compartilha com Cervantes o gosto por provérbios e ditados populares expressivos. Teresa foi uma mulher que não leu muito. A imitação de Cristo e As confissões de Santo Agostinho eram dois dos poucos livros que conhecia bem. Em sua juventude, como nos conta, também gostava dos romances de cavalaria e talvez lesse baladas e poesia popular. Quase não entendia latim; qualquer citação em latim que ocorre na Vida é escrita tão foneticamente que é quase irreconhecível. Seu vocabulário, portanto, é o de uma pessoa simples; todas as palavras solenes são suspeitas para ela. Até muitos dos termos religiosos estão indiscriminadamente juntos em sua mente sob o título de “teologia mística”, uma ciência teórica sobre a qual se confessava ignorante.
Se o latim escrito por Teresa segue suas próprias regras fonéticas, o mesmo acontece com sua escrita em espanhol. Sua pontuação era fraca, a ponto de até não existir, e esse defeito foi apenas imperfeitamente corrigido por seus editores. Raramente não entendemos o que está dizendo, mas somos com frequência confundidos pela sintaxe de suas frases, que tem orações não relacionadas em abundância. Não parece que ela tenha relido o que escreveu. Diversas vezes no decurso de A vida observa que pode já ter mencionado alguma coisa antes. Não lhe ocorreu que poderia ter voltado para conferir. Nunca verificava as datas e frequentemente perdia o fio da sua narrativa quando seguia uma digressão importante que atraía seu interesse exaustivo.
Apesar de ser uma escritora nata e mestre da metáfora, do provérbio e da imagem falada, Teresa ainda não era, nesta que é a primeira de suas obras, uma especialista em construção literária. Quando se pôs a descrever os eventos tanto interiores quanto exteriores de sua vida, estava preocupada sobretudo em contar sobre sua conversão para a vida contemplativa, aos quarenta anos, e seu subsequente progresso nela. Não se contentou, portanto, em seguir uma linha puramente autobiográfica por muito tempo. Ela faz isso nos dez primeiros capítulos, embora não se detenha em grandes detalhes sobre qualquer evento do mundo, ou dê mais do que uma breve descrição das pessoas que conheceu. Há escassos nomes próprios, ela se refere à maioria de seus amigos meramente como “um primo meu” ou “um certo jesuíta letrado que era meu confessor”, ou meramente “uma irmã no convento em que eu estava”. No entanto, esses personagens praticamente anônimos com frequência ganham vida em uma única linha.
Teresa não era uma intelectual fria e se envolvia rapidamente na vida e nos problemas de qualquer pessoa com quem entrava em contato. Nós a vemos convencer um padre que estava vivendo no pecado a jogar fora o amuleto com o qual sua amante o havia “enfeitiçado” e a corrigir seus hábitos. Também descobrimos, mais à frente, a apreensão com a qual vários outros sacerdotes a viam quando começavam a ouvir suas confissões. Eles tinham muito medo de que ela se apegasse a eles no sentido mundano: uma suspeita que ela achava bastante absurda. Ainda assim, muitas passagens em suas obras e cartas atestam o calor de suas afeições e, bem no fim da vida, não se envergonhou de confessar sua profunda decepção quando um velho amigo não a acompanhou em uma viagem. “Devo confessar ao senhor, padre”, escreveu a ele, “que a carne é fraca, e sentiu isso mais do que eu deveria desejar — de fato bastante.”
Quando Teresa atingiu aquele ponto de sua autobiografia em que a vida contemplativa se tornou sua verdadeira vocação — o momento que ela considera ser sua segunda conversão —, quebra sua narrativa e, por uma dúzia de capítulos, estende-se sobre as diferenças entre os estágios sucessivos das orações mentais. Essa seção do livro é construída a partir de seu famoso símile das “Águas”, e somente após terminar de explorá-lo retorna à história de sua vida, para contar sobre seu encontro com alguns jesuítas que foram capazes de confirmar a validade de suas experiências espirituais, que todos os seus confessores anteriores tinham colocado em questão. Mas logo volta a divagar a respeito das “locuções” (palavras sobrenaturais que caem sobre os ouvidos com a autenticidade de uma fala real); e por mais cinco capítulos lida exclusivamente com sua vida interior, não passando até o capítulo 29 para a história de sua primeira fundação, a do Convento de São José, em Ávila, e para as reformas que inaugurou na constituição do seu próprio ramo da Ordem das Carmelitas, as Descalças.
Nos últimos oito capítulos de Teresa, o equilíbrio entre eventos interiores e exteriores é finalmente alcançado, e a deixamos, no final do livro, aparentemente determinada a ter uma vida de afastamento austero do mundo. Na verdade, A vida de Teresa termina assim que ela cruza o momento decisivo entre os anos de empenho espiritual e aqueles em que combinou a vida religiosa com uma de grande atividade pública. Nesses anos finais, escreveu dois livros tão bons quanto este: o Livro das fundações, em que conta a história de suas viagens e das dezesseis casas que fundou depois de São José, e Castelo interior, também chamado Moradas, uma análise de orações interiores e estágios espirituais que é, provavelmente, sua obra-prima. Mas para leitores que não aceitam inquestionavelmente o dogma católico romano ou as crenças sobre a vida religiosa que ela seguia, a autobiografia é o livro mais interessante e acessível. Nele, vemos como uma mulher de vontade própria e histericamente desequilibrada, que parecia estar a caminho de se tornar uma freira mundana do tipo convencional, foi completamente transformada por experiências profundas. Em um primeiro momento, parece ter visto seus votos como não mais do que um seguro contra a perda total de sua alma. Tinha medo disso assim como tinha, quando mais nova, de perder sua reputação. Mas, em todo o resto, o impulso que a havia levado ainda menina a se dedicar à vida religiosa tinha quase desaparecido. O modo como ganhou força para combater sua própria instabilidade, e cresceu gradualmente, quase sem a ajuda de seus confessores ignorantes, para entender e avaliar as experiências espirituais que aconteceram com ela, é o tema central do livro. Nós a vemos impelida por forças que não podia nem fingir controlar; conforme ela as vai descrevendo, é possível descobrir algo sobre a natureza dessas forças. Pois Teresa nunca deixou de lembrar, enquanto escrevia, aqueles que eram apenas principiantes no caminho espiritual ao longo do qual ela progrediu de modo tão vertiginoso.
Teresa é, portanto, a melhor dentre os escritores místicos para aqueles que não aceitam ou não entendem a relação entre Deus e o homem em que místicos de todas as épocas e países acreditam. Ela procura explicar tudo o que pode, e discorre mais sobre os primeiros estágios do que sobre os últimos. Alguns de seus escritos são dirigidos às noviças de seus conventos, mas, aqui, o público que tem em mente é composto por aqueles vários padres e leigos que ela conhecia e cujas dignidades superficiais haviam há muito deixado para trás seu desenvolvimento espiritual. É por essa razão que A vida deu tão certo. Seu pupilo, São João da Cruz, é um escritor mais poético e brilhante, e possivelmente também uma pessoa de experiências religiosas mais profundas, mas que tem pouco a dizer aos principiantes, está sempre nas alturas.
Teresa começa com um retrato dela mesma como sendo alguém que não tinha uma vocação verdadeira. Quando jovem, tentou avançar na oração de meras petições e da recitação do ofício para o estágio de contemplação interior. Ela havia tentado acalmar sua mente agitada e entrar em contato com uma realidade mais profunda. Mas sem a ajuda de alguém que já tivesse trilhado esse caminho, lamentavelmente havia fracassado. Atacada por vômitos, espasmos cardíacos, cólicas, paralisia parcial e abatida por dores que eram provavelmente funcionais, e não orgânicas, foi obrigada a desistir de seus exercícios espirituais, parar de rezar e deixar temporariamente seu convento em busca de cura. Podemos suspeitar que em suas práticas ascéticas não guiadas, ela tenha se sujeitado a esforços excessivos, e que sua atitude em relação à oração em geral era esperar resultados em forma de visões, discursos e outras “doçuras”, em vez de trabalhar, como aprendeu depois, sem pensar nas recompensas. Sua doença parece, de qualquer forma, mais explicável redigida nessas linhas do que em quaisquer termos médicos.
Teresa parece ter se sentido a vida inteira dominada pelo sentimento de sua própria maldade, o que pode ter contribuído para seu estado lamentável. Esse hábito de autorreprovação, que nosso século aprendeu a considerar patológico, atua como um refrão constante em seus escritos. Em todos os capítulos ela reprisa seu desmerecimento. Quando confessa, no começo do livro, frivolidades infantis, tais como o gosto por perfumes e roupas bonitas, gostar de mexericos e o hábito de procurar companhias tagarelas, chega perto de afastar a simpatia do leitor moderno. Se uma importância tão desproporcional deve ser atribuída a essas falhas insignificantes e comuns, quão desumanamente desoladores devem ser os primeiros passos no caminho de Deus! Então, quando a santa manifesta sua surpresa por ainda ter um apego mundano à irmã, o leitor contemporâneo provavelmente vai ficar ainda mais surpreso. Para ele, pode parecer que a vida espiritual não pode, pelo menos atualmente, ser vivida em isolamento do mundo, das suas obrigações e emoções, e que o que ela demanda não é uma mudança de circunstâncias, mas uma mudança de coração ou atitude.
Teresa, como foi observado, era uma mulher de fortes emoções. Sua família teve papel importante em sua existência, desde seu pai, a quem, nos últimos anos da vida dele, não ousou confessar sua deserção das orações, até sua sobrinha, a pequena Teresa, que se tornou uma de suas freiras aos dezesseis anos, acompanhou-a em algumas de suas viagens mais difíceis e, finalmente, atuou como sua secretária. A luta de Teresa para se livrar dos laços mundanos foi difícil, e longe de ser bem-sucedida.
Também suas referências aos heréticos, aos malvados luteranos que eram, o modo como ela via as coisas, aliados próximos do diabo, nos deixam espantados. O estreitamento de seu ponto de vista não era de nenhuma forma menor do que aquele dos inquisidores que, naquele tempo, condenavam judeus à fogueira por preferirem sua própria fé, que também havia produzido seus místicos, ao cristianismo ao qual seus pais haviam sido convertidos à força. Contra tal intolerância, nem Teresa nem João da Cruz levantaram o menor protesto; nem sequer suspeitavam que, nas mesmas cidades em que andavam, místicos maometanos, menos rígidos e exclusivistas em suas crenças do que eles, haviam florescido nos dias dos emirados mouros.
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É necessário descontar as facetas do pensamento de Teresa que a separam do mundo moderno e também dos místicos menos dogmáticos do Oriente, de Platão e Plotino, dos padres da Igreja grega. Se tivesse visto as coisas como eles viam, Teresa teria atraído sobre si acusações de heresia, como as que foram recebidas pelo grande místico do século XIV, mestre Eckhart. Seguiu seu caminho sob a sombra do dogma da sua Igreja, e por insistir nele acabou formando inconscientemente as imagens de suas visões e locuções para servir ao seu ensino. Com frequência declarava que se sua experiência ensinasse a ela uma coisa e a Igreja outra, ela estava do lado da autoridade.
Evidentemente, a mente visionária deve moldar as formas inefáveis que chegam ao interior dos olhos e ouvidos; sem uma tradução para a linguagem da mente discursiva e das emoções comuns, elas não poderiam ser expressas. Teresa usa as convenções mais naturais a ela, as da Contrarreforma. Quando Cristo aparece para ela, ele toma a forma de uma figura que ela conhece; e os pequenos diabos que ela manda voar com espirros de água benta são os pequenos negros feios que viu esculpidos em bancos de igreja ou capitéis de colunas. Seu entendimento psicológico, por outro lado, é completamente autêntico. Em sua análise dos pensamentos e imaginações cuja perpétua agitação era um empecilho para as visões, e em sua explicação simbólica em termos das diferentes Águas da união emocional que pode ficar entre uma profundidade interna e uma externa — o que, para ela, é a união da alma com Deus —, é absolutamente fiel à sua experiência. Seus confessores a levaram a acreditar em visões que apareciam diante do olho físico e palavras que soavam no verdadeiro ouvido. Mas o que encontrou não foi nada disso, e ela disse isso. De novo, foi avisada sobre as atividades da imaginação, e muitas de suas experiências foram tomadas como imaginárias, ou mesmo como tentações de origens diabólicas. Mas em seus momentos de êxtase ela era capaz de ver os verdadeiros trabalhos de sua imaginação e de seu intelecto habitual, ficando primeiro tranquilizada pelo impacto desse novo estado, mas depois voltando e tentando interrompê-lo. Teresa era uma analista bastante arguta de estados exaltados, com quem se pode aprender muito sobre essas características da mente, hoje indiscriminadamente unidos sob o nome genérico de inconsciente. Ela sabia o que era verdadeiro e o que não era, e isso ela também disse.
O inconsciente, em sua conotação mais limitada, faz incursões ocasionais nos pensamentos de Teresa. Há uma visão do inferno como uma passagem estreita barrenta que levava a um armário em uma parede que é puro Kafka. Teresa foi assombrada por essas visões horríveis, e também atormentada, durante toda sua vida, por sintomas persistentes da doença que quase a matou quando jovem. Mas, muito mais constantemente, foi transportada para estados longe daqueles que o homem comum vivencia. Nesses casos ela sabia, como se tivesse sido dito pela própria voz de Deus, o que deveria fazer e dizer em qualquer situação. A fundação de São José foi levada a cabo por essa inspiração divina, assim como a escrita de grande parte da Vida e de seus outros trabalhos. Ela mesma não sabia como explicar suas experiências mais elevadas, mas deixou para Deus explicá-las por meio dela. Existem várias descrições de suas colegas freiras de momentos em que a viram com feições radiantes, escrevendo como se estivesse recebendo um ditado celestial. Mas nem todos os estados sobrenaturais que possuíram Teresa eram igualmente bem recebidos por ela. Ela mesma diz como, em suas orações, era levantada no ar, para sua própria consternação e para susto das irmãs que rezavam a seu lado no coro.
Essas levitações misteriosas foram acompanhadas, depois de sua morte, por uma igualmente misteriosa incorruptibilidade do seu corpo. Ambos são fenômenos bem conhecidos que acontecem nas histórias de muitos santos e somente podem ser atribuídos a alguma mudança real na estrutura física que acontece ao mesmo tempo que uma transformação espiritual. No caso de Teresa, o cheiro que cercou seu corpo incorrupto levou a resultados desastrosos. Na investida selvagem para adquirir relíquias sagradas, vários de seus membros foram arrancados de seu cadáver. Seu velho amigo, o padre Gracián, que pouco antes a tinha desapontado deixando de acompanhá-la em uma viagem, inaugurou seu desmembramento cortando uma de suas mãos.
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Os eventos da vida de Teresa até seu quinquagésimo ano estão contados, embora não com perfeita exatidão, na autobiografia. Alguns fatos e datas, no entanto, são necessários para tornar claros muitos pontos que ela deixou imprecisos. Ela nasceu nas proximidades da pequena cidade castelhana fortificada de Ávila, que havia sido uma fortaleza cristã durante as guerras dos mouros, em 28 de março de 1515, e recebeu o nome de Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada. Era uma mistura de sangue judeu e cristão, sendo seu avô Juan Sánchez de Toledo um judeu convertido relapso. Veio de uma família grande, filha da segunda mulher do pai. A morte precoce da mãe, o casamento da irmã, a entrada como interna, aos dezesseis anos, no colégio administrado pelas irmãs agostinianas locais, nos são contados na autobiografia. Provavelmente, tinha 21 anos quando recebeu o hábito carmelita, e por cerca de 25 depois disso se empenhou em uma contínua “luta e discórdia entre conversar com Deus e com a sociedade do mundo”. O consequente colapso de sua saúde é descrito detalhadamente por ela mesma. Aos 25 anos, parece ter sido uma completa inválida, e foi somente aos quarenta anos que os principais sintomas de sua doença desapareceram. Em algum momento durante esse intervalo de tempo ela descobriu, como nos conta, o trabalho de Francisca de Osuna, uma franciscana espanhola que foi sua contemporânea, apesar de vinte anos mais velha, sobre a prática do primeiro estágio da vida contemplativa, a oração do silêncio. Mas, na época da morte do pai, em 1543, parece que, pelo menos temporariamente, ela abandonou seus esforços para alcançá-la. Foi apenas em 1555, quando já tinha quarenta anos, que algumas novas tentativas esporádicas deram fruto. Foi então que ela leu pela primeira vez as Confissões, de Santo Agostinho, o que jogou uma luz sobre suas próprias experiências, e foi nessa época que começou a se encontrar com os jesuítas que tinham acabado de fundar uma faculdade em Ávila.
As discussões de Teresa com seus antigos confessores, essa aquisição de novos amigos, seu avanço ao estágio de “visão intelectual” e o começo de seu movimento de reforma, que preenchem os anos entre 1557 e 1562, estão inteiramente descritos na autobiografia, o que também nos diz algo sobre os processos de sua composição. Ela foi, como já se disse, completada, em sua forma final, no fim de 1565, e nas últimas páginas fala sobre sua vida como se tivesse se passado em um sonho. Suas experiências sobrenaturais eram a realidade, os eventos externos não a comoviam nada. Sua preocupação dileta parece ter sido a instrução de suas treze freiras de São José, para quem escreveu seu segundo livro, Caminho de perfeição. Ao mesmo tempo, começou também a escrever mais integralmente sobre seu desenvolvimento espiritual precoce em uma série de “Relações”, destinadas, como Livro da vida, a serem lidas por seus confessores.
No ano de 1567, Teresa foi impelida a continuar com seu trabalho de reforma e começar uma série de novas fundações, das quais a última seria feita nos últimos meses de sua vida. Longe de se aposentar em uma existência contemplativa, foi violentamente lançada a uma vida de grande atividade. Mas assim que soube com certeza que a vontade de Deus era de que São José fosse fundado e prosperasse apesar de qualquer obstáculo, também foi tomada pela certeza de que o crescimento da Ordem das Carmelitas Descalças e por fim a separação da ordem não reformada era uma tarefa divinamente determinada. As dificuldades que encontrou eram ainda maiores do que aquelas de sua primeira fundação; e sua vontade em combatê-las, ainda mais resoluta. A história desse trabalho, das incontáveis dificuldades encontradas e das repetidas jornadas envolvidas é contada em seu Livro das fundações, e ilustrada complementarmente pelas muitas cartas que foram preservadas dessa fase de sua vida. Do período coberto pela autobiografia quase nada sobreviveu, mas, de 1573 em diante, ela correspondeu-se constantemente com uns tantos eclesiásticos, com freiras de sua ordem, e com alguns homens e mulheres importantes a quem pediu ajuda na forma de doações e assistência no combate aos ataques que ela e sua ordem sofriam. A maioria desses ataques estava nas mãos de religiosos conservadores, mas, em certa ocasião, encontrou um inimigo mais difícil, sob a forma de um famoso benfeitor. A princesa de Eboli, uma mulher rica de moral duvidosa que tinha a reputação de ser amante do rei, destruiu uma das casas de Teresa quando resolveu fixar residência lá num ataque histérico de luto pela morte do marido. Teresa e suas freiras foram obrigadas a se retirar.
A escrita de Fundações foi seguida pela de Castelo interior, uma amplificação dos capítulos de A vida que descreve o progresso da alma nos termos de várias “Águas”. Esse livro, que desenvolve outra metáfora, a das sete “Moradas” da alma, é mais maduro em sua experiência do que A vida, e mais uniforme em sua composição. Foi escrito com grande pressa em 1577, como resultado de uma visão que veio a Teresa na véspera da festa da Santíssima Trindade daquele ano.
De 1568 em diante, Teresa ganhou muita força com a formação da companhia dos frades descalços que aceitaram sua reforma, cujo chefe era seu amigo e pupilo Juan de Yepes (1542-91), conhecido por nós como São João da Cruz. Ele se tornou diretor espiritual de São José em 1572, mas foi perseguido e jogado na prisão por seus irmãos não reformados um ano depois. Foi submetido a grandes sofrimentos e permaneceu em cativeiro por quase um ano. A própria Teresa foi, em algumas ocasiões, forçada a recorrer à mais alta autoridade na região, o próprio Filipe II, para salvá-la de tratamento similar. Carmelitas não reformadas lutaram muito, com apoio eclesiástico, para reprimir os descalços, mas Roma e o Tribunal, assim como muitas pessoas da nobreza, estavam do lado de Teresa.
Teresa lidou, durante toda vida, principalmente com os grandes, diante de quem ela se colocava como igual. Apesar de sua relutância inicial de assumir cargos ou responsabilidades, uma vez que o fez sentiu-se orgulhosa de sua reputação como organizadora respeitável e boa mulher de negócios. Quando negociava um terreno para uma de suas novas fundações, tinha o cuidado de se prevenir contra qualquer possível interferência do senhorio que poderia, um dia, pôr em perigo a liberdade de ação da prioresa; e ao atrair e selecionar noviças com dotes suficientes para colocar seus conventos em uma posição sólida, tomava cuidado para não incluir algum passageiro no sentido espiritual. Cada uma de suas freiras, dizia, deve ser apta a ser prioresa.
Teresa não era só uma mulher de negócios firme, era também uma conspiradora nata; pode-se ver o deleite com o qual, durante a perseguição de suas casas reformadas, cunhava nomes fictícios para seus amigos, para o caso de suas cartas caírem nas mãos da facção não reformada — a quem ela chama de “gafanhotos”, em contraste com a sua própria ordem, as “borboletas”. Mas em nenhum momento, nem no ápice de seus problemas, mostra, em suas cartas ou nas Fundações, qualquer sinal de maldade ou ódio real de seus rivais. É verdade que, quando expunha alguma história de manha espiritual por parte de uma freira, ou alguma tentativa de receber mais atenção de seu superior do que deveria, ela fala sobre sua própria natureza maldosa. Mas, mesmo quando era impiedosa na crítica a suas “filhas”, ou opunha-se a algum eclesiástico hostil, nunca se perdia nas ofensas pessoais e difamações que são a moeda corrente das rivalidades mundanas.
“Uma das coisas que me faz feliz aqui”, escreveu de sua fundação em Sevilha, “é que não há nenhuma insinuação daquele absurdo sobre a minha suposta santidade. Isso permite que eu viva e saia por aí sem medo de que a torre ridícula da imaginação deles caia sobre mim.” Um ou dois anos depois, está se cumprimentando por estar apenas começando a ser uma verdadeira freira.
Mesmo assim, o mundo continuou acreditando que Teresa era santa e, em 1622, apenas 45 anos após sua morte, ela foi canonizada. Em 1814, quando a Espanha, com a ajuda de seus aliados ingleses, expulsava seus conquistadores franceses, ela foi proclamada a santa nacional do país.
maio de 1956