A sedução de Teresa

FREI BETTO

Teresa entrou em minha vida como boia de salvação em meio à turbulência de uma crise de fé, em 1965. Naquele ano, abandonei a militância estudantil, decidido a ingressar no noviciado da Ordem Dominicana, em Belo Horizonte. O contraste entre o movimento estudantil; a prisão sofrida em junho de 1964, à raiz do golpe militar; o ingresso no curso de Jornalismo da Universidade do Brasil; a intensa vida cultural no Rio, onde morava desde 1962; as constantes viagens pelo Brasil… e o “tempo de deserto” do noviciado dominicano, recluso num convento, entregue à vida de oração, deram um nó cego em minha fé cristã.

Entrei em processo de descrença. Minha fé perdeu, aos poucos, a nitidez de seus contornos, como uma paisagem progressivamente ensombrada pelo cair da noite… a “noite escura”, descrita por são João da Cruz, discípulo de Teresa.

Disposto a abandonar a vida religiosa, consultei meu diretor espiritual, frei Martinho Penido Burnier. Sábio, indagou-me: “Se estivesse caminhando à noite numa floresta e a pilha de sua lanterna acabasse, o que faria? Seguiria adiante ou esperaria amanhecer?”. Respondi o óbvio. Frente à minha expectativa de alvorada, sugeriu-me a leitura das obras de Teresa d’Ávila.

Dispensado de participar das orações comunitárias, dediquei-me à leitura meditativa (pois Teresa não merece apenas ser lida, precisa ser sorvida) de sua obra completa: Livro da vida, Caminho da perfeição, Moradas do castelo interior e o Livro das fundações, sem deixar de apreciar seus poemas e cartas. Como toda leitura é uma experiência dialogal, aos poucos percebi que, através de Teresa, Deus me seduzia, revelava-se como o Amor apaixonado do Cântico dos Cânticos. Como fizera com Gomer, mulher do profeta Oseas, Ele me “falava ao coração”.

Graças a ela, compreendi que, ao mudar de lugar social, ocorrera em mim uma mudança de atitude teologal: a fé sociológica, forjada por influência familiar e escolar, cedia espaço a uma fé personalizada, centrada na relação amorosa. Em suma, Teresa me ensinou que Deus não se exilou no Céu; ao contrário, habita o coração humano.

CONTEXTO DE TERESA

Teresa de Ávila (1515-82) povoa o inconsciente coletivo da cultura ocidental. Há inúmeras obras de arte inspiradas nela — da escultura de Bernini na igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma — na qual aparece em êxtase, flechada por um anjo —, ao filme Teresa de Jesús, do diretor espanhol Ray Loriga. Em torno de sua figura multiplicam-se os ensaios e as teses acadêmicas, sobretudo na área da psicanálise, como é o caso do Seminário de Lacan sobre o tema “Deus e a jouissance de A mulher”.

Feminista avant la lettre, esta monja carmelita do século XVI, ao revolucionar a espiritualidade cristã, incomodou as autoridades eclesiásticas de seu tempo, a ponto de o núncio papal na Espanha, dom Felipe Sega, denunciá-la, em 1578, como “mulher inquieta, errante, desobediente e contumaz”. Se escapou de ser queimada como “bruxa” na fogueira da Inquisição, foi graças aos teólogos que ousaram confirmar a ortodoxia de seus escritos. Há que atinar para o contexto da época, quando eram frequentes acusações contra mulheres tidas como visionárias e iluminadas. Foi o caso de Madalena da Cruz, processada em 1546 pela Inquisição de Córdoba.

Numa Espanha ainda submetida ao medievalismo tardio, onde a mulher devia se calar, Teresa ousou se manifestar; fez teologia a partir de sua vivência, desafiando uma Igreja que só admitia a elaboração teológica de homens formados por rígidos critérios acadêmicos sob severa vigilância das autoridades eclesiásticas (leia-se: Inquisição).

Teresa vivia sob suspeição: por ser mulher; judia-conversa ou cristã-nova; e visionária… Seus detratores identificavam em suas obras vestígios do “perigo luterano” e da voga de alumbramento. Em socorro a ela, o teólogo dominicano Domingo Báñez escreve, em julho de 1575, a respeito do Livro da vida: “Só uma coisa há a observar neste livro, e com razão; basta analisar bem: ele contém muitas revelações e visões, das quais se deve recear, sobretudo em mulheres […]. Mas nem por isso haveremos de tornar regra geral que todas as revelações e visões provêm do demônio”.

Apesar disso, Alonso de la Fuente, inquisidor, em 1591 qualificou de “heréticos” os escritos de Teresa: “A autora deste livro (Livro da vida) descreve a história de sua vida em conversações e virtudes, alegando que assim lhe ordenaram seus confessores. Ora, entre muitas palavras de significado humilde, diz um milhão de vaidades, a saber: que por suas orações muitos se converteram; que falando com ela muitas pessoas receberam graças do Senhor; que tal e tal pessoa douta beberam de sua ciência; que todos a estimavam muito; que convertia muitos pregadores […] e outras leviandades que nos fazem suspeitar do espírito de vaidade que a envolveu. E disso todo o livro está repleto”.

REVOLUÇÃO COPERNICANA

Toda a atividade de Teresa, como fundadora de conventos de mulheres consagradas à contemplação dos mistérios divinos, passa-se na Espanha abalada pelos estertores da sociedade medieval teocêntrica, frente ao advento da modernidade antropocêntrica. A velha teologia escolástica-especulativa cedia lugar a uma teologia mais experimental. Também em Teresa desponta o “sujeito moderno”, na conquista de um si mesmo pessoal, aberto ao infinito e à transcendência. Na espiritualidade cristã, ela equivale ao que significam Copérnico na astronomia e Leonardo da Vinci nas artes plásticas.

Esta é a revolução copernicana operada pela monja nascida em Ávila: arrancou Deus dos píncaros celestiais e O situou no cerne da alma. Deus deixou de ser um conceito (teológico), forjado à luz de categorias (pagãs) gregas, para se tornar uma experiência (teologal) vivida como intensa paixão amorosa.

Em Teresa, o Deus-juiz, atento aos nossos pecados, cede lugar ao Deus-Pai misericordioso; as portas do Inferno se fecham diante da força abrasadora do amor; o enigma da morte se transforma na expectativa de mergulho na plenitude.

Teresa, nesse sentido, imitou Jesus. Imerso numa cultura judaica que se recusava a pronunciar o nome de Deus, Jesus a Ele se referia na linguagem da intimidade familiar — abba (um dos raros vocábulos aramaicos que figuram nos evangelhos) e que significa “meu pai querido” (Marcos 14,36).

Esse amor ao Absoluto, essa intimidade com o Transcendente, é o que transparece nesta autobiografia espiritual da monja carmelita. Autodidata, Teresa escrevia como sentia, mais com a pele que com a cabeça, ou melhor, descrevia suas experiências sem se preocupar em dar-lhes fundamentação teológica, assim como a amante luta com as palavras para balbuciar o indizível, a relação inefável com o Amado.

O leitor tem em mãos, diante dos olhos e do coração, uma obra-prima que retrata o itinerário espiritual de uma mulher de 47 anos. A linguagem barroca e a sintaxe elíptica — aqui em esmerada tradução de Marcelo Musa — exigem atenção para que se possa desfrutar a riqueza e a beleza dessa alma que se desnuda sem pudor e nos convida à plenitude da felicidade que, na poesia de João da Cruz, consiste em vencer a “noite” que une “Amado com amada, amada já no Amado transformada”.

O papa Paulo VI concedeu a Teresa d’Ávila, em 1970, o título de “doutora da Igreja”. Foi a primeira mulher a receber tal honraria. Merecidamente.