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O menino ocupou um lugar na cabine nos fundos do barco; havia espaço para ele em um canto. Enrodilhou o corpo o máximo que pôde e se cobriu com as roupas que trouxera. Então, olhou ao redor da cabine, sombria como uma caverna. Os que haviam embarcado como famílias estavam reunidos em círculos. Os homens com filhas rechonchudas estavam com os nervos à flor da pele, os olhos injetados de sangue. Parecia haver cinco vezes mais homens que mulheres. Sempre que as mulheres iam para qualquer parte, os olhos dos homens as seguiam secreta e persistentemente. Quatro anos. Era o tempo que passariam juntos, essa gente. “Se uma garota atingir idade para se casar, por acaso poderá ser minha esposa?”, era o que conjecturavam os homens solteiros. O pensamento do menino não ia assim tão longe, mas ele estava em uma idade em que o sangue era quente e sensível a tudo. Durante vários dias seus sonhos foram atormentados. Garotas apareciam e faziam sua cabeça girar. Não havia problema nos sonhos em que uma garota acariciava os lóbulos de suas orelhas e despenteava seus cabelos com mãos delicadas, mas às vezes alguma garota corria nua para ele e o acordava de seu repouso. Depois de noites como essa, seu peito teimava em bater com força mesmo depois que ele acordava, e o garoto era obrigado a abrir caminho entre as pessoas adormecidas para rumar até o convés em busca do frio ar marítimo da manhã. O SS Ilford estava preso ao porto como uma ilha. Quanto tempo seria preciso navegar até chegar àquele país quente? Ninguém sabia ao certo. Havia os que diziam, com certa surpresa, que levaria meio ano, e outros que diziam que eles chegariam em dez dias no máximo. Ninguém a bordo já fizera aquela jornada antes, portanto a confusão era natural. Todos oscilavam para frente e para trás, como pêndulos, entre a vaga esperança e a inquietação.

Apoiado na lateral do navio, o menino esculpiu os três caracteres de “Kim I Jeong” na amurada de madeira com um canivete que levava no bolso. Havia ganhado aqueles caracteres em Jemulpo, bem aqui, nesse embarcadouro. Um homem robusto com uma longa cicatriz no pulso perguntou:

— Qual o nome da sua família?

O menino hesitou. O homem assentiu como se entendesse.

— Seu nome?

— As pessoas costumavam me chamar apenas de Jangsoe — disse o menino. O homem perguntou onde estavam seus pais. O garoto não sabia exatamente. Não sabia se tinha sido no Motim Militar de 1882 ou na Rebelião de Donghak, mas seu pai fora preso em um dos dois eventos e morto, e sua mãe fugiu para algum lugar assim que seu pai morreu. Ele fora acolhido e criado por um vendedor ambulante. A única coisa que esse ambulante lhe deu foi o nome Jangsoe. Quando pararam perto de Seul, o garoto fugiu enquanto o ambulante dormia.

— Que tipo de país é o México? — Isso foi na Associação Cristã de Jovens de Seul. Um missionário americano discursava, a barba negra cobria seu pescoço.

— O México é longe. Muito longe.

O menino estreitou os olhos.

— Então é perto de onde?

O missionário riu.

— Fica logo abaixo dos Estados Unidos. E é muito quente. Mas por que está querendo saber do México?

O menino lhe entregou o anúncio do jornal Hwangseong Sinmun (Gazeta da Capital). Mas o missionário, que não sabia os caracteres chineses, não pôde lê­-lo. Então outro jovem coreano traduziu o conteúdo do anúncio para o inglês. Só então o missionário assentiu. O menino lhe perguntou:

— Se eu fosse seu filho, você me diria para ir?

O missionário não entendeu de início, portanto o garoto tornou a fazer a mesma pergunta. O rosto do missionário ficou grave e, devagar, ele balançou a cabeça.

— Bem, então se você fosse eu, você iria? — insistiu Ijeong.

O missionário se viu perdido em reflexão profunda. Não fazia muito tempo que o menino estava na escola, mas era inteligente e com uma rapidez incomum de compreensão. Tinha sido criado como órfão, mas não se tornara tímido, e se destacava dos outros alunos que possuíam uma história semelhante.

O missionário barbudo lhe ofereceu café e um bolinho. A boca do menino começou a se encher de água. O ambulante que o levara a todos os cantos do país havia lhe ensinado: “Se alguém lhe oferecer alguma coisa para comer, conte até cem antes de aceitar. E se alguém quiser comprar alguma coisa sua, dobre o preço que lhe vier à cabeça. Assim ninguém vai desvalorizar você”. Raras vezes o menino teve a chance de seguir essas instruções. Ninguém lhe oferecia nada para comer, e ninguém queria comprar nada dele. O missionário arregalou os olhos.

— Não está com fome?

Os lábios do menino se moveram de leve. Oitenta e dois, oitenta e três, oitenta e quatro. Não conseguiu mais aguentar. Apanhou o bolinho de passas de cheiro tão doce e começou a enfiá­-lo na boca. Quando terminou o bolinho e o café, o missionário levou­-o até uma sala com um monte de livros e mostrou­-lhe um mapa­-múndi. Nele estava um país que parecia uma barriga afundada e vazia. México. O missionário perguntou:

— Tem certeza de que quer mesmo ir? Só faz três meses que você está frequentando a escola... Que tal estudar mais um pouco antes de partir?

O menino balançou a cabeça.

— Dizem que chances como essa não aparecem sempre. Ouvi dizer que os meninos sem pais são bem­-vindos.

O missionário viu que ele já havia tomado sua decisão. Deu ao menino uma Bíblia em inglês.

— Um dia você vai ser capaz de lê­-la. O Senhor o guiará.

Então abraçou o garoto. O menino abraçou o missionário com força. Sua barba roçou a nuca do garoto.

O menino foi para Jemulpo e para o fim de uma longa fila. Naquela fila conheceu o homem forte que bagunçou seu cabelo. “Um homem precisa de um nome. Esqueça nomes infantis como Jangsoe. Adote Kim como sobrenome e Ijeong como nome. É fácil de escrever — só o caractere i (), que significa dois, e o caractere jeong (), que significa ereto.” Enquanto a fila ia diminuindo, ele escreveu o nome do menino em caracteres chineses. Eram sete traços no total. O nome do homem era Jo Jangyun. Engenheiro e sargento do estado­-maior do exército reformulado do império coreano, abandonou a farda quando explodiu a Guerra Russo­-Japonesa. Havia diversos outros na mesma situação. Duzentos desses homens, que haviam sido nomeados juntos e treinado usando os longos rifles modernos junto com oficiais de treinamento do exército russo, se reuniram em Jemulpo. A quantidade era suficiente para formar um batalhão inteiro. Não tinham terra nem parentes. Não havia nação que precisasse de um exército com maior urgência do que o frágil império, mas não havia arroz nos depósitos imperiais para alimentá­-lo. Além disso, os japoneses começaram a exigir um corte das despesas militares coreanas e a redução das forças armadas. Os soldados nas fronteiras então abandonaram os quartéis e saíram a esmo, e, quando viram o anúncio da Companhia de Colonização Continental, acorreram para Jemulpo. Foram os primeiros a querer partir para o México, onde se dizia que os aguardavam trabalho, dinheiro e comida quente. Jo Jangyun foi um deles. Seu pai, um caçador da província de Hwanghae, migrara para a China; alguém o vira morando com uma chinesa em Xangai. Mas Jo Jangyun não foi para Xangai. Escolheu em vez disso o México, onde diziam que o sol ardia o ano inteiro. E não diziam também que os salários seriam dezenas de vezes mais altos do que o de um soldado? Que importava então aonde ele iria? Não havia necessidade de hesitar. A vida no México não podia ser mais dura do que tinha sido no exército.

O menino lançou mais uma vez o olhar para o oceano. Três gaivotas de capa preta rodopiaram acima de sua cabeça. Alguém havia falado que havia ouro no México. Disseram que o ouro amarelo brotava do chão, fazendo muita gente ficar rica de repente. “Não. Isso é nos Estados Unidos”, insistiu outro, mas também não parecia ter muita certeza. O menino repetiu seu nome. “Kim Ijeong. Meu nome é Kim Ijeong. Vou para uma terra distante. E vou voltar como um Kim Ijeong adulto. Vou voltar com meu nome e dinheiro e vou comprar terras, e nelas vou plantar arroz.” Quem tinha terras era respeitado. Essa era uma simples verdade que o menino aprendeu na estrada. Terra mexicana não servia. Tinha de ser terra coreana, e plantações de arroz. Mas outro pensamento ergueu­-se no coração do menino, o pensamento de outra terra estranha, chamada Estados Unidos.

As gaivotas flutuaram acima da superfície da água como se dançassem. As mais velozes voaram para longe com peixes de bom tamanho nos bicos. As asas das gaivotas estavam tingidas de vermelho. O sol estava se pondo. O menino desceu até a cabine e mais uma vez se acomodou no seu canto. As vozes roucas e baixas dos homens podiam ser ouvidas em meio aos gritos das crianças. Não havia força na voz desses homens; eles não conheciam seu futuro. Suas palavras se dissipavam como a espuma que quebrava na proa do navio. O menino fechou os olhos. Torceu para só acordar na hora do café da manhã.