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A viagem foi longa. O Ilford era completamente desprovido de confortos materiais, e os passageiros não apenas eram abrigados como bagagem como também excediam em pelo menos três vezes a capacidade de carregamento do navio, o que piorava muito o seu sofrimento. Eles haviam ouvido falar no nome do oceano que precisavam atravessar e vislumbravam a seu modo que seria um mar parecido com um lago vasto e tranquilo. Os chineses havia tempos tinham dado o nome de Taipingyang àquele oceano, combinando os caracteres de “grande” (), “pacífico” () e “oceano” (). Mas aquele oceano, contrariando os desejos de quem o havia batizado, era difícil e imprevisível. Sempre que uma onda gigantesca quebrava no casco do navio, os passageiros no compartimento de carga abaixo da linha do mar se embolavam juntos sem respeito ao decoro, etiqueta ou moralidade confuciana. Cenas constrangedoras ocorriam a todo momento, em que homens e mulheres, aristocratas e plebeus, eram atirados para algum canto com os corpos enrodilhados uns nos outros. Os penicos viravam ou se quebravam, e o vômito e os excrementos que havia dentro deles se espalhavam para todos os lados. Palavrões e suspiros, críticas e brigas de socos eram ocorrências cotidianas, e o fedor horrível não diminuía. Ninguém sonhava com conceitos extravagantes como lavar as roupas ou tomar banho. O único desejo dos passageiros era que o navio chegasse logo para que eles pudessem colocar os pés em terra firme.

Os marinheiros não desciam até a cabine, davam ordens de cima das escadas, e o intérprete Gwon Yongjun transmitia suas intenções. Ele era a única figura de autoridade entre os mil e trinta e três viajantes. Seu pai tinha sido membro da classe dos técnicos oficiais — mais alta que a dos plebeus, contudo inferior à dos aristocratas — e intérprete, tendo viajado entre a China da dinastia Qing e a Coreia. Os ricos e os poderosos compravam da China a maioria dos itens de luxo de que necessitavam para casar as filhas ou agradar as concubinas. Seda e joias, tabaco e bebidas alcoólicas chegavam por aquela rota, e os intérpretes tinham um bom lucro intermediando essas transações. Os acadêmicos cobiçavam os livros chineses, e não apenas os clássicos, mas também os livros que introduziam o pensamento ocidental. Tais obras, embora fossem proibidas na Coreia — ou melhor, justamente por serem proibidas na Coreia — eram extremamente populares entre os acadêmicos. Livros sobre o catolicismo, que afirmava que todos os homens eram iguais perante Deus; sobre a teoria heliocêntrica, que declarava que uma Terra redonda girava em torno do Sol; sobre as histórias do império britânico, da França, da Alemanha e dos Estados Unidos, eram atulhados em navios e vendidos assim que o navio atracava na Coreia.

O ginseng coreano, especialmente o ginseng vermelho, era bastante popular na China. O comércio de mulheres não era rentável; o motivo principal era que os chineses valorizavam mulheres que amarravam os pés, e não existia tal costume na Coreia. O pai de Gwon Yongjun tinha nascido em uma família de intérpretes e aprendido chinês em tenra idade. Passou no teste de interpretação com facilidade e conquistou grande fortuna, mas também sabia que a China estava entrando em franco declínio por causa das guerras do ópio. Em Pequim, viu com seus próprios olhos a chegada alarmante das potências ocidentais e a possibilidade de que logo elas engolissem a Ásia.

Teve três filhos. Ensinou chinês aos dois primeiros, mas contratou um professor de inglês para o mais novo. O mais novo tinha demorado a aprender a falar, o que preocupara os pais. Era particularmente deficiente no aprendizado dos caracteres chineses, e mesmo com o tempo suas habilidades não passaram do nível mais básico. Sendo assim, o pai sentiu que o melhor seria ensinar­-lhe uma língua completamente diferente. Os sons de uma língua que não eram ouvidos havia centenas de anos, mesmo na casa de um intérprete célebre, ressoaram. “Sou um garoto. Estudo inglês. Sou estudante. Moro em Londres.” As habilidades do filho mais novo no inglês não eram fora do comum, mas quase ninguém falava inglês na Coreia naquela época. Quando os Estados Unidos e a Inglaterra fundaram legações em Seul, a perspicácia de seu pai colheu frutos. Seu filho mais novo, Yongjun, se dirigiu à legação americana e disse que desejava trabalhar como intérprete. Os diplomatas, que tinham vivido durante vários meses semimudos em uma ilha linguística, contrataram­-no no ato. Gwon Yongjun não estava trabalhando havia muito tempo na legação americana quando seu pai e seus irmãos partiram de Tianjin, na China, a bordo de um navio carregado de seda. Ondas gentis e um sol cálido pareciam abençoar a viagem. Seu pai dizia que, quando fosse criada uma rota conectando a China, os Estados Unidos e a Grã­-Bretanha com a Coreia, a família deles ficaria em pé de igualdade com qualquer outra família do país.

— O sistema de classes está prestes a desaparecer. O tempo em que o status de uma pessoa é determinado pelo tamanho do seu chapéu acabou. Olhem seus cabelos. Agora chegou o dia em que ninguém saberá que vocês são filhos de um intérprete.

Seus dois filhos deram um tapinha nos seus cabelos ensebados com ambas as mãos, meio sem jeito. Ainda tinham a sensação de que havia alguma coisa faltando. Nada havia no lugar onde deveria existir um coque. Por ordem do pai, depois da Lei do Corte de Cabelo de Gojong, eles haviam tosado os cabelos que durante a vida inteira vinham deixando crescer.

— Isso é bom para nós. Nosso cabelo só ficaria infestado de piolhos, mesmo. — Com a determinação característica de um homem prático, ele havia obedecido à Lei do Corte de Cabelo antes de qualquer outro intérprete. A cabeça de seus dois filhos de fato lhes parecia meio nua, mas eles haviam feito a coisa certa ao obedecerem à decisão do pai. Depois disso, seus negócios floresceram e o grandioso piso de madeira de sua casa cintilava de óleo. — Quando voltarmos dessa viagem para a China, providenciarei seu casamento — prometeu o pai ao filho mais velho.

Talvez fosse por esse motivo que o filho mais velho não parava de olhar sorrindo na direção da península de Ongjin, e foi assim que avistou um navio que se aproximava velozmente. Sua ponte de comando era baixa, e o casco, largo, o que o tornava apropriado para navegar em águas rasas como as do mar Amarelo. Não era um pesqueiro, pois não exibia redes de pesca, nem tampouco um navio diplomata transportando oficiais.

O navio misterioso parou ao lado do deles e seus tripulantes atiraram cordas para unir os dois navios com amarras. Do lado do intérprete alguém berrou:

— O que estão fazendo? — Mas foi atingido por diversas balas e caiu no oceano. Uns dez homens parrudos atravessaram correndo as cordas até o navio do intérprete, aos gritos. Guardas armados receberam os invasores, mas já haviam perdido a vantagem. Os atacantes, homens que falavam cantonês, empunharam com destreza suas espadas e aos poucos foram ganhando o controle do navio. O intérprete calmamente avaliou a situação, mas tudo estava perdido. Em menos de cinco minutos os guardas feridos ou mortos já tinham virado comida para os peixes. Como peixeiros experientes, os piratas executaram seu trabalho com rostos impassíveis. O intérprete e seus dois filhos caíram de joelhos ao lado de um oficial coreano que estava voltando de Pequim e jazia em uma poça de sangue que fluía de sua cabeça. Os piratas sorriram e fizeram o intérprete marchar até a proa do navio, depois cutucaram suas costas com a ponta das espadas. Ele fechou os olhos e caiu no mar. Seus dois filhos foram levados ao navio pirata e atirados na masmorra. O oficial que tinha sido apunhalado com a espada sofreu o mesmo destino que o intérprete. Os dois navios mudaram de direção e fugiram para o sul.

Gwon Yongjun recebeu a notícia alguns dias depois, mas isso não lhe causou grande tristeza. Organizou um funeral magnífico com a ajuda dos mais velhos da família e recebeu em pessoa os convidados. Como filho mais novo, não havia esperado receber nenhuma herança, uma vez que o costume da primogenitura havia se estabelecido com firmeza, mas agora subitamente estava rico. Tinha apenas vinte anos de idade. Quando abriu as portas dos armazéns da família encontrou seda e arroz empilhados à altura de um homem. Os livros escritos em caracteres chineses, que ele tinha dificuldade em compreender, foram as primeiras coisas que ele vendeu. Depois colocou o restante dos bens valiosos no mercado. Mesmo não tendo sido sua intenção original, de algum modo os mercadores o descobriram e o procuraram e se ofereceram para negociar. Um dia um oficial militar trajado em fina seda e com um chapéu de crina esplêndido chegou à casa de Gwon Yongjun. O oficial disse que tinha três ou quatro das melhores gisaeng da cidade e solicitou a honra de oferecer ao jovem nobre uma bebida. Não havia motivo para Gwon Yongjun recusar. Ele se sentou arrogantemente no palanquim e foi levado até a casa de gisaeng, situada no sopé do monte Nam. Ali, desfrutou de luxos iguais aos do imperador da China: licor de cobra branca e tabaco chinês, danças das gisaeng de Pyongyang que recebiam treinamento desde os oito anos de idade, músicos de instrumentos de sopro e cordas que com uma única troca de olhares eram capazes de adivinhar com facilidade a canção seguinte, um velho cantor de Iksan, na província de Jeolla, que estava a turismo em Seul, e delícias da terra e do mar servidas em pratos de porcelana de Meissen. E quando se cansou de tudo isso, as gisaeng lhe ofereceram ópio de Xangai. Os dias se passaram em uma névoa. Depois de certo tempo, Gwon Yongjun nem se dava mais ao trabalho de ir para casa; ficava na casa de gisaeng. Aos poucos seus servos foram vendendo a seda e o arroz dos armazéns da família, enquanto o oficial esperto aumentava devagar o preço da comida e do alojamento de seu hóspede de longo prazo. Somente quando chegou a época de os fazendeiros colherem o que plantaram antes da primeira neve foi que o palanquim que havia trazido Gwon Yongjun o levou de volta para casa. Foi um último gesto de consideração da parte do oficial: quando Yongjun retornou mais tarde à casa de gisaeng, ele nem sequer abriu a porta. A casa de Gwon Yongjun estava gelada depois de sua longa ausência. O mercado e os contatos que seu pai havia estabelecido trataram com frieza o filho que havia liquidado de modo nababesco toda a sua herança em uma casa de gisaeng. O jovem perdulário lutou contra a abstinência do ópio, o frio e a incerteza em relação ao futuro, até que por fim não lhe restou alternativa senão admitir que estava falido. O único bem que as gisaeng e o oficial e seus empregados não lhe haviam tirado era sua fluência no inglês, mas ele não desejava voltar à legação americana, de onde havia pedido demissão de modo um tanto arrogante. Então viu o anúncio na Gazeta da Capital, procurou a Companhia de Colonização Continental e decidiu começar uma nova vida no México, a terra do ouro, onde ninguém o conhecia. Conheceu John Meyers na companhia, onde pessoas imundas aguardavam em fila.

— Seu inglês dá para o gasto, mas você vai precisar aprender espanhol — avisou Meyers.

Entregou a Gwon Yongjun o livro de ensino de espanhol que ele mesmo havia usado. Em um país onde não havia uma única pessoa que soubesse falar espanhol, Meyers não tinha nenhuma outra opção.