24
Alguns dias se passaram sem que ninguém nascesse ou morresse. Fora um homem que importunou a mulher de outro e por isso recebeu uma facada superficial, nada aconteceu. Alguém falou da linha do Equador, mas quase ninguém entendeu o que ele disse. Se o conceito de globo terrestre já era estranho, o que dirá o de Equador? A viagem era tediosa e parecia não acabar nunca. Então alguém apontou para o céu. Um enorme pássaro de asas abertas planava em círculos acima do Ilford. Logo outro também apareceu. Os dois tinham o pescoço vermelho e o corpo negro dos tesourões. As pessoas subiram até o convés para olhar aqueles seres esquisitos.
— Se estamos vendo pássaros — disseram os pescadores de Pohang —, é sinal de que a terra não está longe.
As pessoas protegeram os olhos com as mãos e olharam ao redor, mas não se via o litoral em parte alguma. Entretanto, os dois tesourões sopraram vida nova na gente enervada que estivera caída pelos cantos.
— A cauda deles parece a das gaivotas.
— Eles voam como falcões.
Todo mundo tinha alguma coisa a dizer. Depois um bando de pássaros de outro tipo voou do oeste na direção deles.
Um dia se passou. Mais pássaros foram avistados. Cormorões de pé azul passaram voando pelo navio e pousaram no mastro para descansar antes de bater asas novamente, e pelicanos castanhos com bico em forma de abóbora também voaram por ali. Todas aquelas coisas foram interpretadas como sinal de abundância. Águias-marinhas mergulharam no mar e apanharam peixes do tamanho do braço de um homem antes de voltarem a levantar voo, enquanto os cormorões ficavam por ali inflando o pescoço e engolindo peixinhos sem importância. Os passageiros que haviam passado tanto tempo comendo cada vez menos agora começaram a comer mais. Por terem recuperado o apetite, sentavam-se em grupinhos e previam o futuro.
Graças à sua conversa, lá embaixo, sob o nível do mar, Yi Yeonsu adivinhou o que estava acontecendo. Entretanto, o fogo que ardia no fundo de seu coração não queimava pela terra desconhecida que estava se aproximando, e sim por certo garoto. Depois de não avistá-lo por dois dias, a ansiedade de Yeonsu chegou ao ápice. Aonde ele teria ido? Será que passa o dia inteiro na cozinha? Todo tipo de perguntas atravessava depressa sua cabeça. Que tipo de pessoa ele é? Quanto estudou? Por não saber nada além do seu nome, Yeonsu estava ansiosa com aquele suspense. Não consigo mais aguentar. Yeonsu se levantou. Ao seu lado estava sentado seu irmão mais novo, Yi Jinu, que estivera deprimido e quieto havia dias. Mesmo quando sua irmã se levantou, ele não esboçou nenhuma reação, como se a vida o tivesse deixado.
— Ei, por que você não sai para respirar um pouco de ar fresco? — perguntou ela.
Yi Jinu sacudiu a cabeça.
— O sol machuca meus olhos. E eu fico tonto.
Como se ela estivesse esperando justamente por aquele momento, Yeonsu abriu caminho trançando pelo espaço estreito que existia entre as pernas das pessoas. Depois que ela passava, seu cheiro único se demorava no ar. Quem estava dormindo abriu os olhos, e quem estava acordado os fechou. Assim que ela entrou no corredor em frente à cabine, viu dois olhos brilhando na escuridão. Era ele. Yeonsu caminhou em sua direção, mas seus olhos recuaram como se estivessem provocando-a. Ele correu e Yeonsu foi atrás. Eles mudaram de direção algumas vezes e desceram dois lances de escada e lá estava ele novamente. Abriu a porta com uma chave. Yeonsu o seguiu até o interior como se estivesse enfeitiçada. Ele fechou a porta. Ela não sentia nem um pouco de medo. O ar cheirava a frutas e legumes apodrecidos. Lá de cima vinha o cheiro de alho.
— Você ficou ali me esperando? Até eu sair?
Ele fez que sim:
— Há dois dias que não saio dali, hã...
Os lábios deles se encontraram. Não demorou para que seus dois corpos imundos se tornassem um. Ploc, ploc. Alguns bulbos grossos de alho rolaram da prateleira e atingiram a parte de trás da cabeça de Ijeong. Yeonsu apenas ficou intrigada com o modo como aquilo tudo lhe parecia familiar, e como todos os seus sentidos pareciam vivos. Uma dor inundou as profundezas de seu ser, mas era uma dor doce também. No depósito escuro, Yeonsu agarrou o rosto dele e soltou um grito comprido e agudo.
Um líquido morno escorreu pela sua coxa. Ela ficou ali deitada pensando sobre o destino que havia acabado de passar de raspão por ela. Fechou as pernas abertas. Sua pelve estava rígida e sua carne formigava no lugar onde havia roçado a barra de suas roupas. Ijeong disse:
— Sou um mercador errante e órfão humilde. Mas no México, onde chegaremos logo, nada disso importará. Darei um jeito de ganhar dinheiro, depois vou encontrar você e vamos nos casar. Por favor, espere por mim.
Yeonsu soltou uma risada fraca, ali deitada. Não ria dele, mas mesmo assim riu.
— Você pode acabar sendo morto. Embora aqui estejamos vestidos com roupas imundas e comendo e vivendo como porcos, minha família é da nobreza e meu pai é parente de sangue de sua majestade. Ele não é um desses aristocratas falidos que não têm dinheiro nem para comprar um chapéu decente. Se não fosse pelos embustes de Yi Haeung, meu pai poderia ter chegado ao trono. Uma pessoa assim jamais aceitaria qualquer um como meu marido, principalmente você.
Foi a vez de Ijeong falar:
— Você realmente acha que a distinção entre classe alta e baixa, velhos e jovens, e homens e mulheres vai ser tão rígida quanto na Coreia? Olhe para este navio. Não importa se você é aristocrata ou plebeu, precisa entrar na fila para comer. — Ijeong apontou para cima. — Aos olhos desses ocidentais lá de cima, somos todos iguais: coreanos. Eles só contam cabeças, não dão a mínima para nossas certidões de nascimento. Além disso, de qualquer jeito não existe ninguém neste navio à sua altura.
Ijeong abraçou Yeonsu. O cheiro de sangue de corça o inundou. Ela não discutiu mais. Sua previsão não era muito diferente da dele: a vida ali seria muito diferente do que era na Coreia. Vou estudar e frequentar a igreja. Vou ganhar dinheiro com minhas próprias mãos. Serei uma mulher que não vai depender de ninguém. Quando chegar a hora, meu pai e minha mãe não terão mais nenhum poder sobre mim. Os dois jovens se uniram uma vez mais. Foi muito mais fácil do que a primeira vez, em todos os sentidos. Dessa vez eles tiraram toda a roupa e se abraçaram. Uma batata podre que rolava pelo chão foi esmagada sob seus corpos.