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Choe Seongil estava de bom humor enquanto cavalgava na direção dos campos de sisal. Usava um sombrero largo e estiloso e levava um chicote de couro enfiado na rédea. A cruz que roubara do padre Paul cintilava ao sol sobre seu peito exposto. Visto de longe, ele parecia exatamente igual a um capataz mexicano. Quando chegou aos campos de sisal, os coreanos o cumprimentaram. Ele rodeou devagar os campos, sem mal prestar atenção aos cumprimentos. As folhas de sisal cortadas pelos facões caíam desamparadas no chão. As mulheres e as crianças as prendiam em feixes. Tudo parecia tranquilo.

Ao longe, Choe Seongil avistou o xamã caminhando com dificuldade. Enfiou as esporas de leve nos flancos do cavalo e trotou até ele.

— Ei!

Ao ouvir o chamado de Choe Seongil, o xamã tirou o chapéu e olhou para cima. Seus olhos estavam ofuscados pela luz do sol e seu rosto se enrugou, enquanto ele piscava para tentar enxergar.

— Como você está? Está dando conta do trabalho? — perguntou. O xamã fez que sim. — Bem, é melhor trabalhar direito, senão você vai acabar terminando como Bak Gwangsu.

Depois que Choe Seongil saiu, o xamã deu uma cusparada violenta no chão. O sr. Lee, que estivera trabalhando ao seu lado, aproximou­-se e se solidarizou:

— Aquele ladrão canalha. Puta do fazendeiro.

O xamã olhou cheio de rancor para o céu, esvaziado até mesmo do menor sinal de nuvem.

— Será que o sr. Bak morreu? — perguntou o sr. Lee a ninguém em particular, como se estivesse falando consigo mesmo. — Bem, deve estar morto a essa hora, de doença ou de fome. — O sr. Lee cortou uma folha de sisal com força, irado. — Eles ficam dizendo, acreditem, acreditem, mas aquele fazendeiro e aquele ladrão canalha o prenderam naquela cabana só porque ele está doente, então quem dá a mínima para o que eles acreditam? Nem mesmo a bruxa velha da nossa antiga vizinhança faria uma coisa dessas.

Quando o dia de trabalho terminou e caiu a noite, o xamã embrulhou algumas panquecas de milho e kimchi de repolho e pulou sorrateiramente o muro da fazenda. Caminhou trinta minutos até chegar a uma cabana caindo aos pedaços onde se deixavam os doentes de quarentena. A brisa trouxe o fedor da cabana, que mal conseguiria aguentar um vento mais forte.

— Olá, sr. Bak — ele entrou e encontrou Bak Gwangsu Paul deitado em uma esteira, de olhos encovados. O xamã o levantou devagar, ofereceu­-lhe a comida e disse: — Você está pretendendo morrer em uma terra estrangeira?

Bak Gwangsu sacudiu a cabeça como se quisesse dizer que não tinha fome, mas depois comeu um pouco do kimchi de repolho.

— O que é aquilo? — o xamã apontou para um montinho de terra no meio do campo, e Bak Gwangsu riu, dizendo:

— Sabe o que eu fiz pela primeira vez desde que cheguei aqui?

O xamã estreitou os olhos:

— Certo, então você enterrou um cadáver. Mas com o quê?

Bak Gwangsu ergueu as mãos e soltou uma risada fraca.

— Você não teve escolha — disse o xamã. — Não podia dormir no meio de cadáveres apodrecendo. — Ele olhou sem expressão para Bak Gwangsu. — Continua na mesma?

— Sim. Não consigo fazer nada porque minhas mãos não têm força, e não há um só ponto do meu corpo que não doa, mas não é nenhuma doença fatal. Não consigo dormir à noite. Vejo coisas demais. Quando fecho os olhos, tudo fica branco. Parece que tem alguém mordendo os meus ossos.

O xamã fez uma careta e fechou os olhos.

— É por isso que você precisa me escutar. Não existe outra escolha. Não estou fazendo isso porque quero, tampouco. Mas não tem jeito.

Bak Gwangsu sacudiu a cabeça.

— Não posso fazer isso.

O xamã, porém, pressionou­-o:

— Por que raios não pode?

Após um longo silêncio, Bak Gwangsu abriu a boca.

— Fui um padre católico.

Houve pouca mudança na expressão do rosto do xamã; ele não entendeu que diferença aquilo fazia. Isso tranquilizou Bak Gwangsu. O xamã disse:

— Ninguém sabe. O espírito simplesmente vem. Não se pode resistir a ele. Você vai morrer. Não tem outra escolha a não ser recebê­-lo. O espírito está dizendo que quer entrar, então você não tem escolha, tem?

O xamã saiu e o sofrimento de Bak Gwangsu continuou. Quando caiu a noite, chegou uma mulher. Não era da fazenda Buena Vista.

— Quem é você?

A mulher preparou uma mesa para ele sem dizer palavra. Fritou corvina amarela e serviu­-a sobre arroz branco. Ao lado, pôs kimchi de repolho crocante, pasta de pimenta vermelha, pimentas vermelhas, ostras em conserva, mexilhões em conserva e caranguejo aferventado. Bak Gwangsu olhou para a mulher enquanto devorava a comida. Era uma mesa com a qual ele apenas poderia sonhar. Caiu de boca na corvina amarela e apanhou um pedaço grande e vaporoso com seus fachis. A mulher saiu para ferver água na panela de arroz. Ele a chamou:

— Mãe?

A mulher riu e balançou a cabeça.

— Não está me reconhecendo? — perguntou.

Bak Gwangsu, agora de barriga cheia, examinou lentamente o rosto da mulher. Ela pousou a bandeja com a água de arroz fervida e sentou­-se em silêncio ao lado dele. Bak Gwangsu segurou o pulso dela; era cálido e receptivo, uma sensação de prazer indescritível. Fechou os olhos. A distância, viu uma árvore solitária.

— Vamos nos encontrar ali.

Ele correu com todas as suas forças. Na grande árvore espiritual, que ia ficando cada vez mais distinta em meio à névoa do início da aurora, algo grande estava pendurado e oscilava de um lado para o outro, como um galho que tivesse sido atingido e partido ao meio por um raio. Ele percebeu o que era. De repente uma dor inundou­-o, como se alguém estivesse esmagando seus membros. Ali estava a mulher que havia se enforcado, a mulher que se tornara uma jovem viúva aos vinte anos de idade e que rodopiava ao redor dele todas as noites. Ele não compreendia. Certa manhã bem cedo, ela o convidara até a entrada de uma vila enevoada e mostrara­-lhe seu cadáver, embora ele não tivesse feito nada de errado. Teria ela esperado, tecendo sua teia, apenas para mostrar­-lhe aquilo? O absurdo da situação deixou­-o sem fôlego. Era como uma armadilha que Deus houvesse armado para testá­-lo e puni­-lo. O veredito já fora decidido antes mesmo de ele sucumbir à tentação. Talvez tudo o que havia acontecido depois tivesse sido apenas o processo tedioso de cumprir um veredito já decidido.

O tempo passou novamente em um clarão, e doze espíritos galoparam para dentro da cabana dele, agitando espadas e flâmulas. Noutro dia, um velho apareceu e o alimentou, mas, quando ele aceitou a comida, subiu para o céu e dividiu­-a com os pássaros e os animais. Finalmente, a xamã terrível de Gomso surgiu, esbravejando: “Não adianta fugir. Eu o escolhi não porque gostasse de você, mas porque precisava de seu corpo. Agora eu vim buscá­-lo!”. A religião que o salvou quando ele fugiu de Gomso não tinha nenhuma resposta satisfatória para uma situação como aquela. Por fim, seus olhos encontraram os da mulher que havia pendido da árvore como uma fruta. Ele encolheu o corpo de medo e abriu os olhos. Não havia nada na cabana abafada e sombria. Nem corvina amarela, nem bela mulher.

Alguns dias depois, o xamã, junto com algumas dezenas de pessoas, veio ver Bak Gwangsu. Para não serem vistos, chegaram depois da meia­-noite. Arriscaram­-se muito para ver a cena curiosa de um xamã presidindo a iniciação de outro xamã. Haviam subornado os guardas maias e se assegurado de que Choe Seongil estava dormindo. Também sabiam de antemão que Ignacio Velásquez tinha ido a Mérida e não voltaria naquela noite. Muitas pessoas das fazendas próximas, incluindo diversos músicos, ouviram falar do ritual e acorreram em bando até a cabana. Entre eles estava o eunuco Kim Okseon, que nos últimos três anos emagrecera demais. Ele disse que tocaria flauta. Feita com uma grama mexicana desconhecida, sua flauta produzia um som semelhante ao de uma flauta coreana. Se alguém escutasse com atenção, as notas agudas lembravam uma trompa coreana. Alguém trouxe um tambor duplo mexicano feito com couro de vaca, portanto o ritual estava até certo ponto dentro dos conformes.

A iniciação ocorreu em frente à cabana, no meio de uma terra abandonada onde não crescia nem sisal. A terra se espalhava para todas as direções, sem montanhas nem rios, e o ritual durou quase cinco horas. Os músicos e o xamã nunca haviam estado juntos, mas parecia que sempre tinham sido um grupo. O eunuco do palácio, o xamã de Icheon possuído por um espírito e o líder do grupo de percussão folclórica de um vilarejo nas montanhas tocaram flauta, dançaram e bateram os tambores para o ex­-padre. As mulheres, exaustas por causa do trabalho duro, renderam­-se à melodia familiar que corria por suas veias e ao ritmo que estava gravado em seus ossos. Em um instante o local viu­-se tomado por um frenesi carnavalesco que transcendia as nacionalidades. Rindo e chorando como loucas, as mulheres dançaram e os homens beberam durante as cinco horas inteiras. Bak Gwangsu perdeu os sentidos. Como em um transe, fez tudo o que o xamã ordenou, despiu­-se quando ele mandou se despir, levantou­-se quando mandou se levantar e sentou quando mandou sentar. No fim, a visão que veio até Bak Gwangsu foi, por mais estranha que pareça, um cavalo branco. O cavalo branco veio galopando do horizonte distante até ele e o engoliu. Bak Gwangsu imediatamente saiu do corpo do cavalo branco e o cavalgou, levando consigo uma bandeira vermelha e outra branca. E gritou: “Sou o general do cavalo branco!”.

Aquele era o espírito que a xamã de Gomso havia servido. De repente, entre uma visão e outra, a certeza inabalável de que a xamã de Gomso havia finalmente morrido cruzou a mente de Bak Gwangsu e em seguida desapareceu.