69

Ignacio Velásquez teve um sonho. Um cavalo branco alado desceu do céu através das nuvens. O cavalo divino era tão desconcertantemente belo, que parecia pertencer a Deus. Em seu lombo estava um homem que devia ser um anjo, e ele sorriu para Ignacio. O anjo perguntou a Ignacio, que tinha a cabeça baixa e rezava:

— Você é capaz de conceder sua vida ao Senhor?

Ignacio sentiu a emoção tomar conta de si e fez uma reverência até o chão.

— Com toda certeza. Se o Senhor desejar, como poderia eu me apegar a esta vida insignificante? Dê a ordem. O exército do Senhor marchará.

Quando Ignacio acordou de seu sonho, o lençol estava molhado com suor. Não era um sonho qualquer. Ele subiu até o seu quarto de orações e se ajoelhou.

— Senhor, basta me dar a ordem. Eu Lhe ofereço este corpo.

Ele cuidou de alguns negócios da fazenda e leu o jornal que tinha sido trazido por um feitor. O México estava em estado crítico. As coisas estavam mudando tão rapidamente desde a saída de Porfirio Díaz, que ninguém sabia mais o que aconteceria.

— Ateus deploráveis! — Ignacio rangeu os dentes. Eles não haviam se contentado com a deposição do governo, agora começaram também a atacar a classe dos latifundiários, a Igreja e o clero. Ignacio reuniu os soldados da fazenda. Entre eles marchava Choe Seongil, metido em botas de couro de qualidade. Ignacio disse a seus homens que o momento da batalha decisiva estava chegando. Nem todos os capatazes e feitores simpatizavam com Ignacio. O que havia de tão errado assim em destruir a classe latifundiária e a Igreja? Mas Ignacio acreditava piamente na lealdade deles. Pelo menos um daqueles homens honraria essas expectativas: Choe Seongil, o ladrão de Jemulpo, que havia se transformado no capacho mais fanático de Ignacio. Sempre que ele aparecia na fazenda, os trabalhadores ficavam nervosos. Seu apelido era O Carrasco. Ele destruía os altares montados para os ancestrais e chicoteava aqueles que frequentavam os cultos da Igreja Batista.

Quase não restavam mais coreanos na fazenda Buena Vista. Muitos dos que haviam ido embora quando seus contratos expiraram não conseguiram encontrar emprego em outros lugares e retornaram para as fazendas, mas não para Buena Vista. Porque Ignacio e Choe Seongil ainda estavam ali, os trabalhadores libertos evitavam o local. Alguns foram trabalhar nas plantações de cana­-de­-açúcar em Cuba, outros foram para grandes cidades como a Cidade do México, Veracruz e Coatzacoalcos. Choe Chuntaek e os baleeiros de Pohang se estabeleceram em uma vila de pescadores próxima a Coatzacoalcos. Tomavam emprestados redes e barcos para pescar, e as mulheres levavam os peixes para vendê­-los no mercado.

Entre aqueles que foram para Veracruz estava o Buda de Pedra, Bak Jeonghun. Depois de conquistar sua liberdade, permaneceu na hacienda por três anos para juntar dinheiro, então foi para Mérida. Jo Jangyun pedira que ele ficasse ali para ajudá­-lo no escritório da filial, mas Bak Jeonghun decidiu tentar a vida sozinho:

— Acho que não sou o tipo que convive bem com muitas pessoas.

Assim que chegou a Veracruz, foi até uma barbearia ao lado do cais para pedir emprego. Um idoso barbeiro negro inclinou a cabeça:

— De onde você veio?

— De Mérida.

— Já cortou cabelo antes?

— Não. Mas tenho jeito com facas e tesouras.

O barbeiro pegou as mãos de Bak Jeonghun e as observou cuidadosamente.

— Você trabalhou duro nas fazendas, isso posso ver. Mas por que quer se tornar barbeiro?

Bak Jeonghun tinha suas razões. Cortar cabelo era algo que se podia fazer sem conversar. A vida com que ele sonhava era uma em que ele quietamente cortava com as tesouras, retornava para casa, jantava e dormia. Ele respondeu que não precisava de muita remuneração, que apenas queria aprender o serviço. O negro idoso, que era de Cuba, o aceitou de bom grado. Então a vida de Bak Jeonghun como barbeiro começou. Em apenas três meses ele aprendeu tudo que o barbeiro podia ensinar. Era particularmente talentoso em fazer a barba e logo começou a ter seus próprios clientes fiéis. As pessoas do porto o chamavam de “o chinês mudo”. Ele comia e dormia nos fundos da barbearia, e cuidava da limpeza e de outros pequenos afazeres.

Recebeu seu primeiro pagamento no primeiro dia de seu quinto mês de trabalho. Assim que o dia de trabalho terminou, saiu da barbearia e caminhou rua abaixo. Estava de olho em um restaurante chinês que ficava por ali. Puxou a cortina para o lado, entrou no restaurante e se sentou.

Uma mulher veio atendê­-lo. Ela falava um chinês desajeitado, mas o seu perfume o alcançou primeiro. Bak Jeonghun ergueu a cabeça e a observou. O rosto dela era familiar. A mulher não o reconheceu, mas percebeu algo em seu olhar. Ele se lembrou de quem ela era por causa de seu perfil aristocrático. Era a moça que havia sentado silenciosamente em um canto do Ilford, havia muito tempo.

Yeonsu foi a primeira a falar:

— Você veio de Mérida? — perguntou ela, em coreano.

Bak Jeonghun concordou. Yeonsu olhou para trás, para o dono do restaurante, antes de falar novamente:

— Onde você mora?

Bak Jeonghun contou a ela sobre a barbearia. Ela abaixou o tom de voz e perguntou:

— Tem notícias do que está acontecendo em Mérida?

— Eu trabalhei na fazenda até 1913. Há alguns meses vim para cá. É só isso que sei. Houve uma conversa de que todos iriam para o Havaí, mas não resultou em nada, e depois disso cada um foi para um canto.

O rosto de Yeonsu ficou vermelho e ela limpou a mesa com um pano. Ao fazê­-lo, continuou olhando de lado para o dono. Bak Jeonghun se deu conta de que ela não poderia falar com liberdade. Yeonsu abaixou a voz e perguntou:

— Você conhece um homem chamado Kim Ijeong? Ele trabalhava na cozinha do Ilford e esteve por pouco tempo na fazenda Yazche...

Claro que Bak Jeonghun se lembrava do menino que recebera seu nome de Jo Jangyun.

— Ele foi vendido para a fazenda Chenché, onde eu estava, e fez parte da greve conosco. No último dia da greve, tomou emprestado dinheiro do meu amigo Jo Jangyun e fugiu para o norte. Imaginávamos de tempos em tempos onde ele andaria. Ah, pensando melhor agora, os dois representantes dos Estados Unidos, Bang Hwajung e Hwan Sayong, disseram, eu acho, que o viram no estado de Chihuahua. Estava prestes a cruzar a fronteira, então provavelmente deve estar nos Estados Unidos agora.

O rosto de Yeonsu se escureceu.

— Eu fico envergonhada em perguntar, mas meu pai, aquele com nome de Jongdo...

Bak Jeonghun balançou a cabeça.

— Eu não sei. Ah, você tinha um irmão mais novo, não é? Ouvi dizer que ele está bem. Fiquei sabendo que ele trabalhou como intérprete e atualmente está trabalhando com supervisão, trazendo trabalhadores para as fazendas e ganhando comissão por isso. Provavelmente continua no Yucatán.

Bak Jeonghun pediu sua comida e ofereceu­-lhe um pouco. Ela olhou para o dono do restaurante. O gordo proprietário balançou a cabeça. Bak Jeonghun havia pedido comida suficiente para duas pessoas para que ela pudesse ficar ali sentada o máximo possível. Yeonsu percebeu que aquele homem era quieto e prudente, e sentiu­-se atraída por ele. Não, não é isso, pensou. Estou apenas feliz por ver um coreano depois de tanto tempo. Levantou­-se e foi até a cozinha. Bak Jeonghun ficou sentado sozinho e comeu apenas uns pedaços de pato enquanto esvaziava uma garrafa de licor de painço chinês. E, pela primeira vez na vida, decidiu se pronunciar. Fingiu ir até o banheiro e interrompeu Yeonsu no caminho quando ela saiu da cozinha. Era um corredor estreito.

— Você está sendo confinada aqui?

Yeonsu concordou. Ainda não tendo se esquecido do que havia passado na fazenda de sisal, Bak Jeonghun entendeu a situação toda em um instante. Falou:

— Desde que minha mulher ficou doente, nunca mais pensei em nenhuma outra mulher. Mas ao ver você penso que minha decisão foi para nada. Quero morar com você. Eu me tornei um barbeiro talentoso, então posso ganhar o suficiente para alimentar você.

Ela ficou dividida entre o jovem rapaz que tanto amava, mas para quem não havia quase chance de voltar e o soldado aposentado que estava à sua frente. Antes que ela pudesse se dar conta, o dono chinês já estava ao seu lado. Não entendia coreano, mas com a intuição de um comerciante imediatamente entendeu o que estava acontecendo. Ele puxou o braço de Yeonsu e a levou de volta para a cozinha.