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Choe Seongil e Ignacio Velásquez se ajoelharam na entrada da catedral de Mérida, molharam os dedos na água­-benta e fizeram o sinal da cruz. Dentro da catedral estavam padres jesuítas, estudantes e gente que pensava como Ignacio. Com as armas em punho, suas expressões faciais eram tão carrancudas, que chegavam a ser cômicas. O bispo de Mérida os abençoou, chamando­-os de cruzados que lutavam contra os ateus. A missa foi rezada rapidamente, como se o tempo fosse pouco. “Amém, amém, amém.” Uma tensão nervosa pairava na catedral. Assim que o bispo que ministrara a missa disse “vão e espalhem o Evangelho”, retornou para a sacristia e fugiu pela porta dos fundos.

Alguns dos que estavam no santuário mantiveram vigia pelas brechas na parede, observando o que acontecia do lado de fora, e, quando começaram a se cansar devido à tensão e bocejaram, começaram a aparecer tochas ao longe, uma a uma. Ao passarem em frente à prefeitura e ao parque, elas repentinamente aumentaram em número e velocidade.

— Eles estão vindo!

O som de gritos na catedral ecoou como os hinos de um coro. A catedral ficou tão barulhenta quanto uma feira, com o som de armas sendo carregadas e de bancos sendo empilhados para servir de barricadas. Choe Seongil subiu no campanário e olhou para baixo. A praça em frente à catedral era um mar de tochas. O som de tiros já podia ser ouvido.

— Punam os latifundiários! Tomem as propriedades da Igreja!

As tochas inundaram o local ao som dos bordões. A arma de Ignacio Velásquez cuspiu fogo. A catedral com jeito de fortaleza, construída sobre o antigo santuário maia, não caiu facilmente.

Foi então que Choe Seongil percebeu que gente como Ignacio era a minoria. Ele só havia vivido na fazenda Buena Vista, então pensava que a maioria dos mexicanos eram secretamente fanáticos como o fazendeiro. Mas não era o caso. Eles foram obrigados a se colocar na defensiva.

Choe Seongil desceu do campanário e viu a cruz acima do altar. Jesus mal conseguia suportar o peso de seu corpo pendurado ali, o rosto retorcido de agonia. Ignacio estava esfriando o cano de seu longo rifle com uma toalha molhada. Depois de enfrentar todos os tipos de dificuldade, Choe Seongil teve uma premonição de que nem armas nem qualquer outra coisa conseguiria impedir aquelas tochas que vinham na direção deles. Ele desceu até a cripta. Luz e ar entravam por um buraco inclinado onde o teto se encontrava com a parede. Ele empurrou seu corpo contra a passagem de ventilação, que mal era grande o suficiente para comportar uma pessoa. Após se contorcer pela passagem inteira como uma larva, ficou cara a cara com uma grade de aço. Balançou­-a, mas ela não se abriu. O som de tiros ainda ressoava na catedral. Ele conseguiu engatinhar com esforço de volta pelo mesmo caminho por onde havia vindo.

Os gritos fora da catedral gradualmente aumentaram. Ele retornou ao santuário. Ignacio estava rezando atrás de uma fortificação feita com sacos de areia. Choe Seongil se sentou ao seu lado. Seus pensamentos estavam descontrolados. Quando entraram na igreja, ele não tinha imaginado que a situação ficaria tão grave. Eles estavam completamente cercados pela multidão. Não havia para onde correr. O ladrão de Jemulpo agarrou uma arma. Então olhou para Ignacio. Ele nunca conseguira entender o seu Deus, mas fora aquele Deus que havia afugentado o velho que estava sentado sobre os seus ombros. Embora Choe Seongil não acreditasse em Deus, acreditava em milagres, como o que fez seus ataques de epilepsia desaparecerem ao conhecer Ignacio. Aquele maldito velho, que havia aparecido de repente, estrangulava­-o, murmurava palavras sem sentido e o levava a lugares estranhos, tinha colocado o rabo entre as pernas com algumas gotinhas de água santa do gordo Ignacio e daquele padre miserável.

Choe Seongil olhou novamente para o mar de tochas que irrompia fora da catedral. Não havia saída. Segurou a coronha do seu rifle. Apontou a arma para aqueles que se aglomeravam para tentar destruir a época mais feliz da sua vida e puxou o gatilho. Naquele momento ele era um capataz com colete de couro, soldado do Senhor e filho adotivo de um fazendeiro fanático. Foram Ignacio e Jesus, e não a multidão, que haviam lhe dado seu chicote, suas botas e seu sombrero. Ignacio terminou de rezar, aproximou­-se de Choe Seongil e deu a ele uma cartucheira.

— Quando esses covardes levarem alguns tiros, sairão correndo e gritando pela Virgem Maria e por Jesus. Não se preocupe. Se conseguirem arrombar as portas da catedral, continue atirando.

Choe Seongil rezou com sinceridade pela primeira vez.

— Jesus, na realidade eu não o conheço. Mas tudo isso aconteceu por sua causa, então, por favor, me ajude.

Bum!

— Ráááá!

Um tronco que fez as vezes de aríete destruiu a porta principal da catedral e centenas de pessoas começaram a entrar como água jorrando por entre a ruptura de uma represa. Os cruzados latifundiários puxaram seus gatilhos em uníssono, mas quem estava no fundo não sabia da carnificina que estava acontecendo na frente e continuou avançando. Não importava em quantos eles atirassem, não parecia fazer diferença. Como no quadro de David, A intervenção das sabinas, a multidão pulava os corpos caídos e corria para dentro da igreja com estrondo. A única diferença é que não havia mulheres com os seios de fora. Os cruzados de pele morena recuaram para o nível mais alto do altar e do coro e atiraram, mas a multidão que atacava era muito mais rápida.

A pilhagem começou assim que as barricadas caíram. As pessoas carregavam relíquias e tesouros sagrados, castiçais e vestimentas. Os atiradores que haviam defendido a catedral começaram a ser arrastados para fora. A multidão acertou­-os com pauladas na cabeça. A arma de Choe Seongil matou mais três deles, mas de nada adiantava. Ele jogou sua arma para longe e correu para o campanário, mas a multidão já havia subido as escadas e estava entrando no campanário pelo telhado. Acertaram Choe Seongil no peito enquanto ele subia correndo pelas escadas em espiral e ele rolou escada abaixo. Imediatamente perdeu a consciência.

O tempo passou. A dor aguda e a ilusão de que ele havia se esquecido fazia muito tempo retornaram. A escuridão sem forma disse:

— Eu sou aquele que morreu em seu lugar.

Choe Seongil agitou os braços e gritou:

— Não! Quem morre no lugar de outra pessoa? Quem é você, afinal? Quem é você?

A forma estrangulou Choe Seongil.

— Eu sou o Jesus daqueles que você matou.

Choe Seongil se debateu.

— Qual é o meu pecado? Eu os matei porque eles mereciam morrer. E você me estrangulou no Ilford antes de eu os matar. Ah, por favor, tire sua mão daí! Eu não consigo respirar!

A silhueta disse:

— Meu tempo e o seu tempo são diferentes. Não existe antes ou depois para o pecado. O seu pecado é não reconhecer que pecou.

Ele abriu os olhos e se viu na praça. As articulações do seu ombro doíam tanto, que ele sentia como se seus braços estivessem sendo arrancados. O topo dos seus pés queimava como se alguém os estivesse marcando com um ferro em brasa. Ele olhou ao redor. Era incrível. Ele estava flutuando no ar. Será que já estou morto? Mas não estava. As pessoas os observavam lá de baixo. Ele olhou para o lado e viu Ignacio Velásquez deitado no chão, amarrado a uma cruz. Um homem careca sorriu e fincou um prego na palma da mão de Ignacio. Foi somente então que Choe Seongil percebeu por que as articulações do seu ombro doíam tanto. Ele estava preso em uma cruz de braços abertos. A gravidade puxava seu corpo para baixo. O sangue que escorria das suas mãos se acumulava em suas axilas. Seus pés, que também estavam perfurados por um grande prego, doíam tanto, que parecia que centopeias estavam comendo sua pele para entrar ali. Choe Soengil gritou desesperadamente:

— Escutem aqui! Eu não acredito em Jesus e nem mesmo sou mexicano! Eu sou coreano! Sou um espectador! Por favor, me salvem!

Um homem se aproximou, apontou para ele e disse:

— Você nos espancou e estuprou e matou. Você tem de morrer.

O suor escorria em seus olhos. Choe Seongil o reconheceu: era um trabalhador maia da fazenda Buena Vista.

O martelar terminou com um clamor, e dezenas de pessoas puxaram as cordas para erguer a cruz de Ignacio. Eles tentaram várias vezes, mas perderam o equilíbrio, e Ignacio bateu com força contra o chão. Gritou como um animal e chorou. Desesperadamente rezou a Ave Maria, mas ninguém conseguiu entender.

Vendo Ignacio daquele jeito, Choe Seongil agradeceu a Deus por ter perdido a consciência. O som de tiros soou ao longe. Os reforços do governador Alvarado entravam na praça,vindos do norte. A multidão, depois de terminar a pilhagem e as execuções, correu pelos becos estreitos do mercado em direção ao sul. Alguém se aproximou de Choe Soengil e mirou uma pistola na sua cabeça. Choe Soengil fechou os olhos.

— Rápido, rápido! — implorou ele.

Com um estouro, tudo terminou. Choe Soengil desfrutou de uma sensação de paz que nunca tinha experimentado antes. Não havia dor ou raiva. Havia apenas a sensação de uma longa e tediosa jornada que finalmente chegava ao fim. De repente seu espírito, flutuando alto no céu, observou de cima o caos que acontecia na praça em frente à catedral. Como um close em um filme, ele presenciou o fim de Ignacio Velásquez também. Alguém brandiu uma espada na direção dele, ali deitado no chão e ainda preso à cruz. Ele estava sendo cortado aos pedaços como um peixe em uma tábua.

Com isso, a segunda profecia do xamã se tornou realidade. “Quando as chamas correrem e rugir o som do trovão, a morte virá depressa. Morte!”