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As histórias sobre o que aconteceu depois na Guatemala variam muito, especialmente aquelas sobre a nação que lá foi fundada. A maioria dos homens morreu na selva, mas mesmo aqueles que voltaram vivos não compreenderam totalmente as origens daquela estranha nação. Há muitos casos em que o início de um país é enevoado em comparação com seu declínio. O que se segue é a versão mais aceita do que aconteceu naqueles poucos anos em Tikal.

Um dia, um homem liderou uma multidão até a filial da Associação Nacional Coreana em Mérida. Era maia, e disse que se chamava Mario. Suas feições eram incomuns. Seus olhos eram ferozes e penetrantes, mas sua expressão era gentil. Mario contou a Jo Jangyun e Kim Seokcheol uma história interessante.

A região sul da península de Yucatán pertencia à Guatemala, e sua fronteira ficava de frente para o estado mexicano de Campeche. Se você cruzasse a fronteira e entrasse na Guatemala, veria ali uma imensa selva. A civilização maia florescera havia muito tempo na floresta primitiva, mas agora o local não era mais nada além de uma floresta tropical. Antes de os imperialistas traçarem linhas no mapa, os maias haviam construído pequenas nações por toda a península, e essas nações repetidamente se ergueram e caíram. Alguns achavam que as características físicas do Yucatán tornavam impossível o nascimento de um país centralizado. Isso porque havia água em abundância e produtos naturais por toda a região, e não havia grandes rios ali como os da China, então não existia a necessidade urgente de um estado unificado.

Mario disse que seu povo estava lutando contra as forças do presidente Manuel Estrada Cabrera na região sul do Yucatán e na região norte da selva da Guatemala. Ditador que subira ao poder em 1898, o presidente Cabrera era tão brutal, que Porfirio Díaz não podia nem sequer ser comparado a ele em termos de atrocidades. Díaz ao menos havia contribuído para a modernização do México, mas Cabrera fez coisas tão absurdas quanto transformar o seu aniversário e o aniversário da sua mãe em feriados nacionais enquanto levava a Guatemala inteira até a lama, até um estado de pobreza miserável, tudo pelo bem das grandes companhias agrícolas americanas. Ele era, sem dúvida nenhuma, o inimigo em comum de toda a população guatemalteca. Não era só isso. A Guatemala de Cabrera, ao contrário do México, que possuía muitos mestiços, dependia de um sistema de governo centrado nos brancos. Isso significava um tratamento cruel para os mestiços e maias. Os maias, que constituíam a maior parte da população, tiveram de encarar a opressão e a discriminação severas durante o regime de Cabrera, o que naturalmente levou os maias de toda a nação a se rebelarem.

A área de Tikal, no norte do país, ficava especialmente mais distante da capital, a Cidade da Guatemala, e não possuía um sistema de transporte que permitisse acesso — fosse por terra, por água, ou por ar —, por isso era o lugar ideal para executar uma guerrilha. O problema, no entanto, era a falta de milícia.

— Eu ouvi dizer que há muitos ex­-soldados entre os coreanos do Yucatán. Nós precisamos de homens saudáveis que tenham grande experiência em combate e saibam mexer com armas — declarou Mario para o grupo de homens ao seu redor. — Em troca, eu pagarei a vocês três milhões de dólares americanos. Cabrera tem um estoque de dinheiro imenso escondido, então se a revolução for bem­-sucedida, uma grande quantidade de dinheiro cairá nas mãos dos revolucionários. Hoje, as pessoas estão indignadas com o governo de Cabrera e a opinião pública se voltou contra ele. Ele certamente não durará muito.

A boca deles se abriu ao saber da grande quantia de dinheiro. Três milhões de dólares. Não eram três milhões de pesos, mas três milhões de dólares. Era suficiente para que todos que participassem da guerra conseguissem refazer sua vida e ainda sobraria algo. Eles poderiam contribuir não apenas com os fundos operacionais da Escola Sungmu e da Escola Coreana, mas também enviar dinheiro para o movimento de independência internacional. Considerando que a quantidade total usada para planejar as mudanças para o Havaí era de cinco mil dólares, três milhões era uma quantidade quase incompreensível para eles. Jo Jangyun perguntou se poderiam primeiro enviar algumas dezenas de homens e depois recrutar mais. Mario respondeu que tudo bem.

Jo Jangyun convocou uma reunião de emergência na filial de Mérida. Todos os jovens coreanos que haviam perdido seus empregos quando as fazendas de sisal foram queimadas se interessaram. A chama da revolução já passara pelo Yucatán também, então os jovens estavam fascinados pela violência sem limites, e os rumores sobre Ijeong, que havia servido como membro do exército de Villa, também os estimulava. As histórias sobre Ijeong haviam ultrapassado o nível de realidade; ele começava a se tornar uma espécie de lenda entre os coreanos. Ijeong, porém, estava vivendo uma vida bastante calma e tranquila desde seu retorno, e as palavras de Mario não mudaram isso. Ele não se sentiu especialmente interessado na Guatemala. Jo Jangyun tentou persuadi­-lo.

— Você precisa ir. Tem muita experiência de combate e fala bem espanhol.

— Dessa vez eu não quero ir. Afinal, essa é a revolução de outras pessoas, não é?

— Sim, é verdade. Mas, com três milhões de dólares, podemos usar esse dinheiro não apenas para nossas próprias finanças, mas também como capital para o movimento de independência internacional, então você não pode ver isso apenas como um problema dos outros.

— Sinto muito, mas não tenho nenhum interesse nisso também.

Ijeong obstinadamente rejeitou as propostas de Jo Jangyun e de Kim Seokcheol. Por fim, Jo Jangyun explodiu, com raiva:

— Como você pode viver sua vida pensando apenas em si mesmo? Está planejando desperdiçar seu tempo sem fazer nada, apenas comendo a comida da associação?

Ele era como um pai para Ijeong; era ele quem havia escolhido seu nome. No final, Ijeong aceitou. Não desejava mais se envolver nas guerras revolucionárias de outros países, mas não tinha escolha. Não tinha como ganhar a vida naquela época. Foi até Mérida e coletou informações sobre a situação na Guatemala. A Guatemala estava praticamente em um estado de anarquia. Tanto o México quanto os Estados Unidos se perguntavam quando o regime de Cabrera, que não tinha autoridade nem validade legal, cairia. A única coisa sobre a qual pairavam dúvidas era a quantia de três milhões de dólares.

Mesmo assim, a filial de Mérida resolveu ir para a guerra. Quarenta e dois homens, a maioria estudantes da Escola Sungmu, ofereceram­-se como voluntários para a primeira leva de mercenários. Entre eles, claro, estavam os combatentes veteranos Jo Jangyun, Kim Seokcheol e Kim Ijeong, mas um grande número dos soldados estava no final da adolescência e eram crianças quando deixaram a Coreia. A pessoa que Ijeong ficou mais contente em ver foi Dolseok. Ele ficou espantado ao ver Ijeong depois de sete anos e deu tapinhas em seu rosto.

— Você se tornou uma pessoa totalmente diferente!

Dolseok havia se casado com uma mulher maia na fazenda, mas não pudera levar sua mulher e os filhos quando foi embora. Então voltou para a fazenda, criou um tumulto e foi mandado para a prisão. Só foi solto quando Hwang Sayong e Bang Hwajung apareceram, mas passou o ano seguinte entrando e saindo da prisão.

— Por quê? — perguntou Ijeong.

Dolseok levantou as mãos e disse:

— Mão leve.

Seo Gijung, que se juntara aos militares na mesma época que Jo Jangyun e cujo desejo era voltar à Coreia e comprar um pedaço de terra, também foi a Mérida. Perambulou pelo estado de Campeche vendendo itens de ferro, mas acabou não tendo muito sucesso. A última pessoa a chegar foi o eunuco palaciano, Kim Okseon. Agora com quase cinquenta anos, era o mais velho dos voluntários. Implorou para ser aceito entre eles, dizendo que era sua última chance na vida e que ninguém poderia fazê­-lo mudar de ideia. Seu sonho era abrir uma pousada e restaurante em Mérida ao retornar da Guatemala. Em seu restaurante ele tocaria violão, que havia recentemente aprendido a tocar, para seus clientes. Só foi colocar a mão naquele instrumento no Yucatán, mas, como um verdadeiro músico palaciano, rapidamente aprendeu a tocar e se gabava de ter um estilo musical único. Ele afinava seu violão para que ficasse um pouco fora de tom, e a curiosa dissonância evocava sentimentos tristes. Não era uma escala menor do Ocidente, nem uma escala menor da Coreia, mas sim a escala única de Kim Okseon, e quando as músicas folclóricas do Yucatán e da Coreia eram cantadas ao som da sua música, ficavam realmente belas.

Ijeong tentou impedi­-lo de ir.

— Lá, é uma selva, cheia de insetos e animais selvagens. A guerra não é para pessoas de mão macia como você. Além do mais, você nunca pegou em uma arma antes.

Mas Kim Okseon estava determinado.

— Todos tentaram me impedir quando eu disse que iria para o México. Mas veja agora. Sobrevivi facilmente àqueles campos brutais de sisal e consegui fazer dinheiro mesmo durante o tumulto da revolução. Por favor, levem­-me com vocês. Se eu não for agora, não terei outra chance de conseguir uma quantidade tão alta de dinheiro. O comércio de sisal morreu.

Alguns dias depois, chegaram homens mandados pelos revolucionários da Guatemala e prepararam um contrato. Nele dizia que os coreanos deveriam sempre obedecer às ordens de seus oficiais de comando e servir fielmente até o dia em que o governo de Cabrera caísse, e que receberiam três milhões de dólares como pagamento assim que o exército revolucionário tomasse a Cidade da Guatemala e expulsasse o ditador de lá. Os quarenta e três coreanos assinaram cada um o seu contrato. Além disso, um contrato separado, a ser assinado pelo comandante do exército revolucionário e pelo presidente da Associação Nacional Coreana de Mérida, foi preparado e assinado por Mario e Jo Jangyun. Quando estava tudo assinado e eles estavam prestes a embarcar neste grande desafio, mais uma pessoa chegou. Era Bak Gwangsu. Estava ganhando a vida consertando fundos de panelas e às vezes visitava Mérida para ler a sorte das pessoas e, em ocasiões especiais, realizar um ritual xamânico. Estava magro como um varapau, mas seu rosto tinha um ar saudável. Alguém lhe contou que o fazendeiro Ignacio fora crucificado e morto na catedral, e Bak Gwangsu respondeu que sabia.

— Ouvi dizer que o xamã morreu também — comentou alguém.

Em julho de 1916, quarenta e quatro mercenários coreanos, entre eles ex­-soldados, um eunuco palaciano, um ladrão, um guerrilheiro, trabalhadores, órfãos e um padre apóstata, seguiram os guias da Guatemala pela fronteira do Yucatán e por Campeche, e depois atravessaram a fronteira do México com a Guatemala. Sem marcas que indicassem a fronteira na região da selva, não souberam dizer por um bom tempo se já estavam na Guatemala. De Mérida até o destino final na região de Tikal havia apenas um caminho reto de quatrocentos quilômetros, mas era árduo.

O primeiro acampamento na selva indicou o quanto a jornada à frente deles seria difícil. Tudo era diferente do Yucatán. A umidade era intensa e os insetos que os atacavam eram muito mais cruéis do que os das fazendas. Sanguessugas lhes chupavam o sangue, e pernilongos os picavam através das roupas. Havia também insetos que se afundavam na pele, então mesmo que você os puxasse para fora, a cabeça deles permanecia lá dentro. Os guias maias com destreza desceram os facões para montar o acampamento. Ali, também, os coreanos teriam de aprender tudo novamente.

Os guias apontaram para uma árvore alta.

— Nós nos comunicamos com os deuses por meio desta árvore.

Era uma ceiba. Seu tronco era branco e seus galhos, que subiam alto o suficiente para competir com as nuvens, eram de um vermelho surreal, como a morada dos deuses. Eles rezaram rapidamente em frente à árvore ceiba, depois quebraram algumas videiras ao redor e as usaram como corda para amarrar as redes. Na selva havia um jeito singular de viver. Cobras imensas dormiam calmamente acima de suas cabeças; macacos tentavam roubar suas coisas.

Os coreanos finalmente chegaram à base de operações dos revolucionários em Tikal, na província de El Petén. Tikal continha as maiores ruínas da civilização maia na Guatemala, mas tudo, até mesmo as pirâmides enormes, estava coberto por árvores exuberantes e por terra e pareciam pequenas colinas saindo das planícies. Nenhum dos coreanos que ali chegou depois daquela difícil jornada sabia que aquela era uma ruína histórica. Alguns deles se indagaram sobre os estranhos trabalhos de pedra ou estátuas de pedra sem cabeça espalhadas pela selva, mas não pensaram mais nisso. Kim Ijeong e Jo Jangyun imediatamente perceberam que pelas suas configurações o terreno poderia ser defendido com facilidade. As pirâmides, que haviam sido construídas centenas de anos atrás, eram fortalezas naturais e torres de observação que permitiam uma visão de toda a região por dezenas de quilômetros em todas as direções. No topo das pirâmides ficavam os templos onde os sacerdotes viviam e executavam seus sacrifícios, e esses eram resistentes o suficiente para serem usados como casamatas.

Árvores centenárias surgiam como se quisessem perfurar o sol, e papagaios vermelhos gritavam barulhentamente enquanto esvoaçavam entre elas. A selva era tão escura, que era preciso acender fogueira no meio do dia. A selva não era quieta. Sapos coaxavam de todas as direções, mantendo os homens acordados. Em noites assim, cobras engoliam cobras e sapos comiam sapos.

No dia em que chegaram a Tikal, Jo Jangyun chamou todos os homens e conversou com eles em uma voz animada:

— Uma vez que não encontramos resistência na nossa vinda para cá, este local, sem dúvida, deve ser uma terra sem dono. Há algo em que eu venho pensando por muitos anos: fundar uma nação aqui. Quando tivermos nosso dinheiro, quem quiser voltar, volte, mas deixe o resto de nós ficar aqui e construir uma nação. Nós a chamaremos de Nova Coreia e escolheremos um presidente como eles fazem nos Estados Unidos. Depois, deixem­-nos contar ao Japão, aos Estados Unidos e à Coreia a respeito, proclamando a todas as pessoas do mundo que a nossa nação continua viva. Vocês viram no caminho até aqui que existem muitos insetos e animais neste local, e há abundância de árvores e frutas, e de terra fértil e água também, então é o melhor lugar para pessoas trabalhadoras como nós viverem — a memória do êxodo falido ainda estava viva na mente dele. — Este local é tão bom quanto o Havaí. Se tivéssemos ido para o Havaí, teríamos de trabalhar para os outros nas plantações de cana­-de­-açúcar, mas aqui somos livres. Podemos nos manter corajosamente como uma nação independente. Nós chamaremos nosso povo espalhado pelos Estados Unidos e pelo México para viver aqui, plantando e fazendo comércio. Onde mais está o que resta do antigo reinado de Balhae? Balhae está exatamente aqui.

Porém, aquela ideia não conseguiu despertar qualquer simpatia verdadeira. Todos concordaram por educação, mas já haviam decidido voltar para o Yucatán depois de serem pagos. Mesmo assim, o grande esquema de Jo Jangyun continuou:

— Na nova nação, todos serão iguais, e ela será uma república. Os maias que quiserem se juntar a nós poderão viver conosco, mas serão governados por nós.

— Por que isso? — perguntou Kim Ijeong.

Jo Jangyun respondeu em um tom de incredulidade:

— Está dizendo que deveríamos ser governados por eles?

— Por que você acha que um lado deve necessariamente controlar o outro?

Bak Gwangsu, que até então estivera em silêncio, disse:

— Por que você ainda pergunta? Ele tem medo de que a gente se extinga. Estamos em minoria e os maias são mais numerosos. Ele tem medo de que, se nos misturarmos com eles, no fim acabemos desaparecendo. Mas todos nós vamos acabar morrendo de todo jeito.

Alguém cuspiu e interrompeu Bak Gwangsu.

— Esse xamã fica aí soltando maldições, droga!

Jo Jangyun trabalhou diligentemente para criar um modelo para a nova nação. Construiu uma cabana um pouco maior para servir de sede, escreveu o nome de todos em um papel e o amarrou. Kim Ijeong foi encarregado dos assuntos militares. Inspecionava armas e explorava o terreno com o comandante maia, Mario. Ensinou tiro e formação militar aos soldados inexperientes.

Pouco tempo depois, batalhas esporádicas começaram a irromper. Os guerrilheiros maias atacaram a base do governo no lago Petén Itzá. Em contra­-ataque, as tropas do governo rodearam o lago e atacaram diretamente o acampamento da guerrilha nos arredores de Tikal. A maioria dos coreanos os acompanhou no campo de batalha, porém as forças governistas eram muito mais inteligentes do que eles esperavam. Kim Ijeong atacou a retaguarda das tropas guatemaltecas usando táticas de guerrilha que aprendera sob o comando de Pancho Villa. As tropas voltaram ao lago Petén Itzá com medo de que sua retirada pudesse ser interrompida. No meio do caos, parte das tropas governistas passou pela pirâmide onde Jo Jangyun e os outros estavam posicionados e os receberam com uma saraivada de balas.

Jo Jangyn se abaixou quando as balas guatemaltecas entraram voando e furaram a parte superior da pirâmide, deixando­-a cheia de orifícios como um favo de mel. Felizmente aquelas tropas recuaram, mas Jo Jangyun percebeu que aquela guerrilha não terminaria tão fácil quanto Mario dissera. Com exceção de Kim Ijeong e de alguns poucos outros, os guerrilheiros não passavam de crianças sem experiência em combate, e Kim Seokcheol e Seo Gijung eram soldados aposentados que não pegavam em uma arma havia mais de uma década. Além disso, o exército do império coreano não tinha sido treinado para guerrilhas no meio da selva. Depois de mais algumas batalhas, Jo Jangyun viu­-se obrigado a admitir que os mercenários coreanos ao lado de quem ele lutaria não passavam de um bando de esfarrapados. E também se deu conta de que os três milhões de dólares que supostamente receberiam dos maias não passavam de fantasia.

Na manhã seguinte, Ijeong levantou­-se e percebeu que estava tudo quieto demais. Algo faltava no acampamento. Saiu e silenciosamente contou os coreanos, um por um. Chamou Dolseok, que estava passando por ali, e perguntou­-lhe se ele sabia o paradeiro de Jo Jangyun e Kim Seokcheol. Dolseok tampouco sabia onde eles estavam. Ijeong tocou o sino e reuniu os coreanos. Como suspeitava, ninguém sabia onde estavam os dois. Após algumas buscas, descobriram que os pertences dos dois homens também haviam sumido. Mais tarde, nos limites pantanosos do acampamento, Ijeong encontrou dois pares de pegadas que sumiam pelo interior da selva.

Na noite anterior, Jo Jangyun levantara­-se e saíra. Ainda tinha muito que fazer. Continuar vivo era sua prioridade número um. Não podia morrer ali. Precisava se preparar para atacar a Coreia e levar adiante o movimento de independência no estrangeiro. Por mais que quisesse negar, o governo provincial no meio da selva não passava de um sonho maluco. Confessou suas agruras a Kim Seokcheol.

— Ainda que a gente fundasse uma nação aqui, quem iria nos reconhecer?

Kim Seokcheol concordou:

— Foi uma ideia infantil. Essa selva matará até os saudáveis e, quando as tropas do governo nos cercarem, acabaremos sendo mortos como cachorros.

Jo Jangyun bateu no peito ao falar:

— Acha melhor então convencer os outros a voltarem?

Kim Seokcheol fez que não e retrucou:

— E o dinheiro que já recebemos? Os revolucionários irão até Mérida nos matar. Vamos voltar nós dois e relatar o que aconteceu à Associação Nacional Coreana, depois voltaremos com as novas instruções. Para todos nós, morrer aqui seria morrer em vão.

Partiram do acampamento antes do amanhecer. Seus passos foram ainda mais cuidadosos ao pensarem que os maias poderiam executá­-los caso fossem pegos, de acordo com o contrato. E assim os dois líderes que haviam arrastado todo mundo até o meio da selva rumaram para o norte naquela noite para salvar a própria vida.

Era como se o destino estivesse lentamente se aproximando de Ijeong com um sorriso largo. Venha, venha. Ijeong tragou um cigarro com força. A raiva dos que ficaram para trás era tremenda.

— Pensamos que eles eram nossos líderes, mas olhem só no que nos meteram! — gritou alguém.

— Vamos atrás deles e matar os dois! — disse outro.

Mas ninguém ficou mais chocado e amargurado do que Ijeong. Depois de Villa ser aniquilado, o único motivo pelo qual ele voltara a Mérida, o motivo pelo qual havia se envolvido em tudo aquilo, era Jo Jangyun.

Apesar disso, Ijeong os tranquilizou com calma.

— Eu assumo a responsabilidade pelo contrato com os maias. A fuga deles pode ser frustrante, mas talvez seja melhor assim. Agora, se conseguirmos mesmo os três milhões de dólares, serão só nossos. Esqueçam os jogos políticos dos homens de bem do escritório local de Mérida ou da Associação Nacional Coreana. Esse dinheiro pertence somente aos quarenta de nós que foram abandonados aqui. Quem sobreviver vai ficar com tudo — todos assentiram. Ijeong continuou: — Se concordarem, vamos assinar com nossas impressões digitais. E, a partir desse dia, os traidores serão punidos. Só assim existirá alguma chance de voltarmos vivos.

Eles correram a assinar seus nomes em um papel em branco e a deixarem ali suas digitais. Depois Ijeong fez um corte no dedo e escreveu no pé da página: “Os desertores morrerão”.

Apesar daquela declaração fervorosa, naquela noite mais homens tentaram fugir. Ijeong ouviu o grito da sentinela, apanhou a arma e correu para o meio da selva. Eram dois desertores; era difícil atravessar a selva sozinho. Após a perseguição, os dois foram pegos e arrastados de volta ao acampamento. Um deles era Seo Gijung, companheiro de Jo Jangyun. O outro era Bak Beomseok, de dezoito anos. Seo Gijung olhou para Ijeong e riu com subserviência:

— Não estávamos fugindo. A gente ia voltar.

Já Bak Beomseok tremia como vara verde. Lágrimas e muco escorriam misturados quando ele se ajoelhou e segurou a cabeça contra o chão.

Ijeong tirou do bolso o documento coberto de impressões digitais vermelhas e mostrou­-o aos dois. Então fez com que marchassem até um reservatório perto das pirâmides. Havia muitos pântanos na frente daquele reservatório. Até então, muitos coreanos achavam que ele só estava blefando, para aumentar o moral de todos. Porém, Ijeong mirou diretamente a cabeça de Seo Gijung e atirou com a pistola. Seo Gijung, que tinha pressentido a morte e lutado no último instante, caiu com um único tiro. O rapaz de dezoito anos, Bak Beomseok, encontrou o mesmo destino, mas com mais compostura do que Seo Gijung. Não havendo nenhum templo budista nas proximidades, ele deixou somente as seguintes palavras e fechou os olhos:

— Rezo apenas para que meu carma termine aqui.

Também dessa vez Ijeong puxou o gatilho sem piedade.

Daquele dia em diante, não houve mais desertores. A única saída seria matar Ijeong primeiro. As batalhas eram esporádicas. As tropas governistas recuaram até as montanhas do sul antes de um ataque em pinça das guerrilhas. Sob o comando dos oficiais maias, os homens de Ijeong emboscaram as tropas que batiam em retirada e tiveram uma pequena vitória.

Três meses se passaram. Dias tranquilos se passaram sem mortes, com exceção de um jovem de vinte anos que morreu de febre. Ijeong sentou­-se no topo de uma das duas pequenas pirâmides gêmeas absorto em pensamentos. Talvez o plano de Jo Jangyun não tivesse sido tão absurdo, no fim das contas. Será que Pancho Villa era assim tão especial? Ele surrara um feitor até a morte e depois se tornara um bandido, depois se aproveitara de um período de revolução para virar general e no fim invadiu triunfalmente a Cidade do México. Sim, claro, Obregón o expulsara dali, mas mesmo Obregón de início fora um típico novato. E, contudo, não estava a Guatemala em um estado ainda pior de anarquia do que o México? Naquelas condições, fundar um país não seria tão difícil. Os maias podiam ter o seu próprio país e nós a nossa pequena, mas poderosa, nação centrada aqui em Tikal, onde poderíamos ser autossufucientes. Somos estrangeiros mesmo. Não há possibilidade de jamais chegarmos a ser como Obregón.

Na batalha seguinte, Ijeong apresentou seus planos indiretamente a um comandante revolucionário maia:

— Se Cabrera for deposto, vocês irão expulsar os brancos e formar seu próprio país, não é? — o comandante disse que sim. — E depois irão até Antígua ou a Cidade da Guatemala, aquelas montanhas hospitaleiras, a terra da primavera eterna? — continuou Ijeong. — Novamente o homem disse que sim. — Então tudo bem se a gente fundasse um pequeno país ao redor de Tikal?

O comandante riu com vontade e disse que os coreanos poderiam até fundar um país um pouco maior se quisessem. Mencionou Belize, ao norte, e disse que tinha sido um país construído com negros escravos da África:

— Parece a situação de vocês, não?

Ijeong disse:

— Isso é muito importante para nós, pois nosso país do outro lado do oceano Pacífico desapareceu.

O comandante revolucionário assentiu como se aquilo não tivesse importância nenhuma. Ijeong viu no seu rosto que ele se perguntava o que umas poucas dezenas de pessoas poderiam fazer.

Então o comandante colocou uma condição, cheio de gravidade:

— Só que não em Tikal. Vocês podem ficar aqui por algum tempo para nos ajudar, mas isso é terra santa. Perto do lago Petén Itzá, mais ao sul, ou nas regiões de selva no extremo norte, tudo bem, mas em Tikal não.

Quando voltou, Ijeong reuniu os soldados remanescentes e lhes contou seu plano. Houve quem se opôs. Claro, houve também quem riu. Ninguém concordou de imediato com a ideia de Ijeong:

— Não passamos de mercenários. Se a revolução deles der certo, vamos simplesmente pegar nosso dinheiro e voltar.

— Voltar? Para onde? E a gente tem para onde voltar?

— Seja lá como for, não podemos morar nesta selva.

— Por que não? Aqui não tem fazendeiros nem governadores, só a gente e os maias.

— Os maias podem precisar de nós agora, mas se a revolução der certo, vão nos expulsar. Esta terra é sagrada para eles.

— Não precisa ser aqui. Existem muitos lugares bons ao norte da Guatemala.

— Tudo bem, digamos que existam mesmo. E daí? Que importa termos ou não uma nação?

Ijeong pareceu pensar um instante. Depois sorriu.

— Se não importa termos ou não uma nação, isso quer dizer que podemos ter uma, não podemos? Se é assim, então podemos fundar um país, não é? — caiu um breve silêncio. — Amanhã pode ser que todos nós estejamos mortos. Existe alguém aqui que deseja morrer como um maldito japonês ou chinês? Eu não — disse Ijeong.

— Então não seria melhor não ter nacionalidade nenhuma? — perguntou Dolseok.

Ijeong balançou a cabeça e respondeu:

— Os mortos não podem escolher não ter nação. Todos morreremos como cidadãos de algum país. Precisamos ter o nosso próprio país. Ainda que a gente não possa morrer como cidadãos do país que criarmos, pelo menos poderemos evitar morrer como japoneses ou chineses. Precisamos de uma nação para não ter nacionalidade nenhuma.

A lógica de Ijeong era difícil de acompanhar. Seja como for, não foi a lógica dele que os convenceu; foi sua paixão. E aquela paixão era algo curioso. Não era uma paixão de se tornar algo, mas uma paixão de não se tornar algo.

E um mês mais tarde, eles fundaram a menor nação da história, na praça do templo em Tikal. O nome do país era Nova Coreia. Os únicos nomes de países que conheciam era Coreia e Joseon, portanto não tiveram muita escolha. O comandante maia revolucionário enviou­-lhes um touro de presente. Ijeong mandou agradecer e garantiu­-lhe novamente que, embora eles tivessem começado ali, planejavam seguir para o sul do lago Petén Itzá em breve. Como xamã, Bak Gwangsu silenciosa e humildemente executou o sacrifício de celebrar o nascimento da nova nação, e Kim Okseon subiu até o ponto mais alto e tocou sua flauta. Quando o ritual terminou, Ijeong fez um discurso:

— Este é um novo país, sem divisões entre nobres e comuns, classes altas e baixas. Em troca, somos responsáveis pelo seu destino. Vamos declarar ao México e à Coreia o que somos, deixar que se juntem na fundação deste novo país.

Mas quase ninguém levou a sério aquela declaração da fundação da Nova Coreia.

Seu país sobreviveu por pouco mais de um ano na selva de Tikal. Para começar, a Nova Coreia proibiu a deserção e o roubo. Um mês depois, alguns dos soldados se casaram com jovens maias. Seu país então proibiu o casamento entre menores de dezoito anos e a posse de concubinas. Com o tempo, o casamento inter­-racial com os maias aumentou ainda mais. Os guerrilheiros maias não lhes davam importância. As cerimônias de casamento eram um meio­-termo entre o estilo maia e o estilo coreano. Dois dias antes do casamento, o noivo ia a cavalo até a vila maia e se realizava uma cerimônia de casamento à moda maia. Os maias lambuzavam a cabeça do noivo com lama e cantavam músicas. Às vezes fingiam seriamente ameaçar matar o noivo, e outras vezes lhe davam uma poção estranha que o fazia alucinar. Porém, quando chegava o dia do casamento, parabenizavam a noiva e o noivo e os mandavam a Tikal ao som dos tambores. Quando a noiva chegava a Tikal, realizava­-se uma cerimônia de casamento simples à moda coreana. Não havia toucado nupcial esplêndido nem galo amarrado pelos pés, mas o casal fazia reverências um ao outro, compartilhava um copo de bebida alcoólica e rumava para a nova paja preparada para eles, onde passavam sua primeira noite juntos.

Dolseok encontrou uma companheira. Era uma garota de dezesseis anos que tinha perdido pai e mãe nas mãos das tropas governistas. O casal não conseguia se comunicar entre si, mas pareciam felizes. Depois que foram para a cama, o som de gemidos extasiados se ouviu lá de fora até de manhã. Não havia segredos nas pajas.

Ijeong não buscou parceira. Havia quem dissesse que ele estava tentando dar o exemplo, mas ele em geral passava o tempo patrulhando a região e pensando em locais onde poderiam atacar e recuar. Junto com um guia maia que sabia falar espanhol, Ijeong percorreu os arredores de Tikal e deu­-se conta pela primeira vez de que ali não era um lugar como os outros. O guia disse:

— Isto é terra sagrada. Olhe.

Túmulos de pedra podiam ser vistos em todos os lugares que ele apontou. Ele segurou uma trepadeira e puxou­-a. Com isso, uma pilha de terra desmoronou e revelou uma edificação de pedra. Segundo o guia, mais ou menos em 700 d.C. surgiu um novo rei, Ah Cacau. Esse poderoso governante, cujo nome significava Senhor Cacau, começou a construir grandes estruturas de pedra ali. Foi enterrado no que era chamado de Templo I. Até o ano 900, quando o império maia da região começou a entrar em declínio por motivos desconhecidos, Tikal desfrutou de uma era de prosperidade. Mas muito antes disso, inúmeros recém­-chegados fundaram reinos em Tikal. Aquilo aconteceu repetidas vezes desde 700 a.C., e dizia­-se que no século VI a população do local era de cem mil pessoas. Os que estavam no poder logo reconheceram o valor estratégico de Tikal, embora a cidade estivesse coberta pela selva.

Como as corcovas de um camelo, os elevados Templo I e Templo II situavam­-se frente a frente; se um exército conseguisse ocupá­-los primeiro, o inimigo se veria forçado a passar entre eles. E ao redor havia muitos morros, ruínas enterradas que eram úteis para emboscadas e retiradas. Para além dos templos I e II havia um pequeno reservatório à esquerda, e, mais adiante, o Templo III formava mais uma encosta íngreme, agindo como linha de defesa. Se os guerrilheiros não conseguissem repelir o inimigo ali, poderiam recuar até o Templo IV, a cerca de seiscentos metros, fazer sua última resistência e em seguida fugir por uma trilha estreita que levava para o nordeste.

O reinado da mininação de Nova Coreia foi inesperadamente longo. O presidente Cabrera já tinha muito com o que se ocupar com os problemas perto da capital e não tinha tempo para prestar atenção à selva ao nordeste do país. Ijeong selecionou pessoas para cuidar do suprimento de mercadorias e para executar a lei. Ele mesmo lideraria as batalhas e, portanto, não nomeou ninguém para isso. Os dias tranquilos se sucederam. O Ano­-Novo chegou. Os maias e os novos coreanos fizeram um cabo de guerra na praça da vila com uma corda de fibras de sisal retorcidas. De início Ijeong e seu povo venceram, mas no fim os vitoriosos foram os maias. Organizaram um festival que durou dias. Até encenaram uma batalha de cavalaria. Três homens formavam o cavalo, um o cavalgava e duas equipes disputavam uma com a outra. Ijeong e sua gente ganhou naquela competição. As mulheres se dividiram em dois lados e torciam pelos homens. Além disso, também jogaram o jogo coreano de tabuleiro yut usando pessoas como peças e disputaram lutas corporais ao estilo maia.

Mario disse que o exército revolucionário formado por maias e mestiços da região central do país agora ameaçava a capital. Estava feliz, dizendo que o momento da decisão do destino de Cabrera estava chegando. As tropas do governo que haviam assumido suas posições ao redor do lago Petén Itzá estavam agora construindo altas barricadas de madeira, dedicando toda a sua energia à defesa. Por enquanto, pareciam pequenas as chances de haver uma batalha muito acirrada. Ijeong perguntou a Mario:

— Por que não avançamos para o sul? Não foi para isso que você nos contratou?

Mario respondeu:

— Esta é nossa última base de operações, portanto não podemos deixar Tikal sozinha. E, por ser este um local sagrado, se não o defendermos os maias serão derrotados.

Certa noite, depois de muito pensar, Ijeong escreveu uma carta para Bak Jeonghun em Veracruz. “Eu e algumas dezenas de outros da nossa gente estamos agora em Tikal, na Guatemala. Fundamos um pequeno país aqui, chamado Nova Coreia. Aqui na selva, há abundância de alimentos locais e nada nos falta. É mais quente do que no Yucatán, mas chove bastante. Aqui ninguém explora ninguém. Dormimos com armas nos braços, mas nossos corações estão em paz. Por favor, transmita essa mensagem à sua esposa. Diga que estou bem. Diga que estou com saúde. E que desejo de todo o coração que ela sempre viva feliz ao seu lado. Por favor, diga isso a ela.”

Ele endereçou o envelope, mas não o enviou. Entretanto, quando saiu da sua cabana no dia seguinte para encontrar Mario, o encarregado de coletar e postar as correspondências sem querer apanhou a carta e a enviou junto com um trem de mulas maias que estava de partida para Campeche. Ao voltar, Ijeong descobriu que a carta fora enviada, mas não ficou muito chateado. Mesmo que Yeonsu a lesse, não iria até ali, nem abandonaria Bak Jeonghun e seu filho.

Também escreveu uma carta para Yoshida, na embaixada japonesa. “Por favor, transmita esta mensagem ao embaixador. O povo coreano não tem nação desde que o Japão ocupou à força o império coreano, mas, em setembro de 1916, em Tikal, na Guatemala, do outro lado do mundo, finalmente fundamos uma nova nação. Por favor, informe seu país a respeito. Esperamos que vocês reconheçam nosso pequeno país, assim como reconheceram o governo revolucionário do México.”

Ijeong mostrou a carta para todos que sabiam ler. Em seguida, leu­-a em voz alta. Duas cartas, uma em coreano e a outra em chinês, foram enviadas ao México com as mulas. Porém, Ijeong estava derrotado. Não enviara a carta porque realmente desejasse o reconhecimento internacional, e sim porque sabia muito bem que seria difícil aquele país durar muito tempo. Assim como dissera Bak Gwangsu, aquela selva quente e úmida, tal como uma fornalha, derreteria tudo no fim. Pessoas, contratos, raças, nações, até mesmo a tristeza e a ira. Desse modo, Ijeong acreditava que era necessário haver um registro oficial do que eles haviam criado na selva, ainda que por pouco tempo. O ministro de relações exteriores do Japão era a pessoa mais adequada para a tarefa. Não havia como não manifestarem interesse no fantasma do país que eles haviam anexado.

Mais seis meses se passaram. O presidente Estrada Cabrera, que havia defendido seu governo com facilidade dos ataques dos manifestantes e dos revolucionários, agora estava decidido a extinguir as guerrilhas maias que continuavam em atividade na selva das terras baixas do norte do país. Os Estados Unidos apoiaram sua decisão e forneceram o capital e as armas necessários. Dezenas de milhares de tropas punitivas se reuniram ao sul do lago Petén Itzá. As tropas do governo se dividiram em três brigadas e deram início à operação de apagar as guerrilhas da selva, do mesmo modo como alguém pescaria um peixe em um poço.

Obviamente os revolucionários maias sabiam de cada movimento das tropas de Cabrera; tinham informantes espalhados por toda a selva. Porém, embora tivessem informações detalhadas, não havia nada que pudessem fazer contra um exército poderoso. Umas poucas unidades revolucionárias lançaram ataques­-surpresa esporádicos sobre os acampamentos do exército governista, mas foram recebidos com metralhadoras. Alguns dias mais tarde, assim que o sol nasceu, começou o ataque do governo. Os guerrilheiros resistiram aqui e ali, mas não puderam suportar a investida e recuaram diante das tropas de Cabrera, que conquistaram uma região atrás da outra como dominós caindo em série. Os homens de Ijeong viram­-se divididos entre abandonar Tikal ou lutar contra o governo ali. No último momento, entretanto, Ijeong decidiu bater em reirada.

— Vamos para o norte.

As tropas maias de Mario também estavam batendo em retirada naquela direção. O esquadrão de Ijeong, porém, havia hesitado e agora era tarde demais; até mesmo seu guia maia recuara com sua tribo. Ijeong incendiou o acampamento e fugiu para o norte, mas as tropas do governo já haviam tomado o norte.

Leste, então. Um batalhão governista seguiu de perto as tropas de Ijeong quando estas mudaram de direção. Ijeong ordenou que alguns de seus homens preparassem uma emboscada e continuou batendo em retirada, mas os homens da emboscada não esperaram até o inimigo se aproximar e se juntaram novamente às fileiras com precipitação. Mais uma vez ficou evidente que não passavam de um bando de esfarrapados. Só havia cerca de uma dúzia de soldados confiáveis. Depois de sua fuga ser interrompida diversas vezes e de eles perderem três homens, Ijeong retornou ao Templo I de Tikal, onde tudo havia começado. Após deixar alguns homens em um local inesperado para armar uma emboscada e distrair as tropas do governo, ele continuou no Templo I com vinte de seus homens e posicionou o restante no Templo II, planejando tomar o exército inimigo em emboscada quando eles passassem entre os templos. No processo, Ijeong perdeu mais dois homens.

Quando as forças guatemaltecas ouviram o som de tiros vindo das pequenas pirâmides gêmeas perto da praça central, suspeitaram de uma emboscada e rumaram para o Templo I. Rapidamente escalaram tanto o Templo I quanto o II, pretendendo tomar posições favoráveis antes dos guerrilheiros. Porém, os coreanos já estavam entrincheirados ali. Ijeong aguardou até o último momento, quando o inimigo estava quase no topo, e então todos abriram fogo de uma só vez. Os templos, que haviam sido erigidos em um ângulo agudo para exaltar a glória dos deuses, estavam escorregadios agora que se viam cobertos de terra. A maioria dos membros das tropas do governo caiu com as balas despejadas pelos céus, e o restante procurou rapidamente abrigo das saraivadas descendo aos tropeções, ferindo­-se. Os guerrilheiros conquistaram uma vitória semelhante no Templo II. As tropas do governo recuaram até a área ao redor da praça do templo e realinharam­-se. Ijeong levou oito homens até ali para persegui­-las, demonstrando que eles ainda estavam dispostos a lutar. Diante disso, as tropas amedrontadas deixaram cair munições e suprimentos e bateram em retirada para os arredores de Tikal.

Alguns dias depois as forças de Cabrera tentaram realizar um ataque mais ousado. Dispuseram metralhadoras no topo das construções que eram mais ou menos da mesma altura que os templos I e II e despejaram uma saraivada de balas na posição coreana. Usando cordas, a infantaria escalou­-os sob a proteção das metralhadoras. Os homens de Ijeong cortaram as cordas e dispararam seus rifles, mas não foi o suficiente. Ijeong decidiu recuar para o Templo IV, ao redor do qual não havia edifícios. Suas tropas deslizaram pela face oeste dos templos I e II, e trinta e poucos homens que permaneciam na força de combate da Nova Coreia fugiram na direção do Templo IV, a duzentos metros de sua localização atual. Alguns poucos continuaram atrás das árvores para retardar os perseguidores e cobrir a fuga dos guerrilheiros. O suor escorria para dentro de seus olhos e encharcava suas roupas. Alguns sangravam com ferimentos nos braços ou pernas. Todos cumpriram as ordens de Ijeong e escalaram a face íngreme do Templo IV, mas Bak Gwangsu e Kim Okseon, mais velhos, ficaram para trás. Seus camaradas amarraram cordas ao redor da cintura deles e içaram os dois para cima. Bak Gwangsu abaixou sua arma e sentou­-se na frente da pequena capela do alto. Olhou para o céu e disse:

— Ei, sr. Eunuco Palaciano. Por que não toca flauta para nós?

O suor caía sobre os canos quentes de seus rifles, que sibilavam quando a fumaça se levantava. Kim Okseon riu e retrucou:

— Espere só mais um pouco. Não disseram que Cabrera seria derrotado? — em seguida, apanhou a flauta. Ijeong ouviu o som claro da flauta no alto do Templo IV, a mais ou menos duzentos metros de altura do chão da floresta, enquanto puxava para cima uma metralhadora alemã que eles haviam roubado do exército de Cabrera alguns dias antes. Ao ouvirem a música, os soldados foram tomados de nostalgia.

Quando os homens olharam ao redor, do alto da pirâmide a selva parecia um vasto cobertor verde. De lado, aquela pirâmide, que diziam ter sido construída em 741, parecia um gigantesco cupinzeiro, e os quatro lados de sua encosta eram traiçoeiramente íngremes. Ao contrário das outras pirâmides maias, que tinham sido erigidas em grandes planícies isoladas, as pirâmides de Tikal, assomando da selva emaranhada, pareciam um mundo à parte. Quem havia suado aos borbotões para subir até ali rezou desesperadamente para que as tropas guatemaltecas passassem direto e seguissem a força principal dos revolucionários maias, que recuara para o norte. Ijeong ordenou que quatro soldados disparassem para o alto enquanto eles fugiam para o norte, a fim de enganar o exército governista em direção às ruínas nortistas.

Entretanto, o exército de Cabrera não caiu naquela armadilha. Também perceberam que o Templo IV era de importância estratégica. Sua força principal aproximou­-se e rodeou o templo, e deu­-se início a uma batalha feroz. Em conformidade com o costume de não lutar à noite, assim que o sol se pôs eles recuaram, porém sem deixar o perímetro. De manhã, porém, atacaram de novo e retomaram a batalha. Os mercenários estavam ficando sem munição. As tropas do governo mudaram de estratégia e formaram um cerco. Quando a noite caiu, Ijeong decidiu que seria melhor aproveitarem o tempo nublado para atravessar o perímetro. Munição era uma coisa, mas não havia água no Templo IV. O esquadrão de Dolseok voltou do norte e atacou a retaguarda inimiga, enquanto os homens de Ijeong desciam pela face norte do templo como se fosse um escorregador. Imediatamente as tropas do governo abriram fogo na escuridão. Ijeong correu como um louco. O som das balas zumbindo ecoava, zing zing, em seus ouvidos.

Finalmente Ijeong chegou ao destino deles, o reservatório. Cinco homens já estavam ali. Dolseok e quatro outros, que os haviam ajudado na fuga, ofegavam. Balas voavam em todas as direções. Naquele momento, algo frio escorreu pelo peito de Ijeong, e o clamor dos tiros se aproximou.

— É o inimigo! — Eles entraram na água até os joelhos e se espalharam em todas as direções. Ao correr, Ijeong passou a mão no pescoço e descobriu que o sangue escorria do ponto onde ele recebera um tiro de raspão. Não parecia ser nenhum ferimento grave. O exército governista se espalhou e foi atrás deles. Dolseok, que já partira na frente, gritou para os demais:

— Por aqui! — ele apontou para um pequeno morro, mais ou menos da altura de três homens. No sopé havia um pequeno buraco, a entrada de outra construção maia de tempos idos; talvez tenha sido o túmulo de alguma personalidade importante. Os onze sobreviventes entraram ali um por um, e o último camuflou a entrada com trepadeiras. O fedor de sangue e suor se misturou poderosamente ao cheiro de mofo. Eles contiveram a respiração enquanto apontavam os canos dos rifles na direção da entrada e esperavam as tropas passarem.

Pouco tempo depois, Kim Okseon, que tinha se atrasado na fuga, apareceu na frente deles, tentando recuperar o fôlego e arrastando sua arma atrás de si. Dolseok se levantou para correr até ele, mas Ijeong o impediu. Naquele instante, a bala de um soldado de Cabrera atravessou o coração de Kim Okseon. O soldado chegou mais perto, mirou na cabeça de Kim Okseon e calmamente disparou mais alguns tiros. Assim terminava a vida do último músico palaciano eunuco do império coreano. Os guatemaltecos abandonaram o cadáver e continuaram em formação, prosseguindo em frente. Assim que as tropas se afastaram, três abutres desceram sobre o corpo de Kim Okseon em um ruflar de asas ruidoso. Um deles bicou o peito do eunuco. O sangue espirrou e encharcou seu bico.

Ijeong deixou uma pessoa de guarda e comandou o restante na direção dos porões das ruínas. Talvez houvesse alguma saída ali. Ao descerem, descobriram um salão inesperadamente amplo, mas era um beco sem saída. Todos relaxaram um pouco e descansaram ali, com expressão sombria.

— Vamos morrer, não é? — disse um jovem mercenário. Ijeong estava incomodado com o sangue que escorria de seu pescoço. Dolseok rasgou um pano de algodão que trazia consigo e o enrolou ao redor do pescoço de Ijeong, como uma bandagem. O sangramento parou, mas ainda doía terrivelmente. Ijeong encontrou uma cadeira esculpida em forma de onça­-pintada. As costas da onça formavam o encosto da cadeira, e sua cabeça eram as pernas. Por toda a parte havia intrincadas esculturas de pedra e hieróglifos gravados, que para eles não passavam de fragmentos de pedra sem sentido. Ijeong lembrou­-se dos numerosos reinos que foram fundados em Tikal e ficou melancólico. Todos haviam caído.

O dia raiou e o sol ergueu­-se acima das árvores. Ijeong e seus homens esperaram ali até o cair da noite. Quando veio a escuridão, ele saiu e olhou ao redor. Sua garganta estava muito seca. Ele não notou nenhum sinal das tropas inimigas, apenas a espessa vegetação rasteira da selva. Emboscadas não eram a especialidade do inimigo, portanto ele eliminou aquela possibilidade. Primeiro eles seguiram para o leste, avançando em silêncio passo a passo. Depois de percorrerem mais ou menos oitocentos metros, aos poucos começaram a relaxar. Chegaram à conclusão de que o exército havia se retirado até sua base. Ijeong avisou diversas vezes para que eles ficassem alerta, mas não conseguiu represar completamente a empolgação dos jovens que haviam escapado da morte. De repente, um bando de macacos guinchou e começou a se balançar de árvore em árvore. Havia algo ali. Os macacos fugiram da direita para a esquerda de Ijeong. Seus homens, que estavam tão acostumados quanto qualquer um à vida na selva, fugiram na direção dos macacos. Pou, pou. As balas voaram mais depressa do que o som e abateram os soldados. O som dos tiros parecia pipoca estourando. Ijeong culpou a si mesmo por ter abandonado o esconderijo após somente um dia. As trepadeiras arranharam cruelmente seu rosto enquanto ele fugia. Ele tirou a bandagem que cobrira seu pescoço. O som das balas zunindo em seus ouvidos não tinha fim. Quando alcançou as duas pirâmides baixas e gêmeas, havia apenas três homens ao seu lado. Ijeong recuperou o fôlego e recarregou o rifle. Porém, antes mesmo de conseguirem se reorganizar, eles foram completamente rodeados por soldados que haviam descido das pirâmides gêmeas.

Ijeong atirou a arma para o lado e levantou as mãos. Um oficial do exército ordenou que os soldados amarrassem os quatro, depois foi andando na frente dos coreanos. Quando chegaram ao pântano, ordenou que parassem. Os soldados do governo dispararam suas armas um depois do outro, por trás, divertindo­-se. Ijeong foi o último a cair. Seus joelhos, rosto e barriga afundaram no pântano.

Bak Gwangsu não conseguiu escapar do Templo IV. Sempre gostara daquele lugar. Observou o sol se pôr lá do alto. Depois que o som dos tiros pipocando da face norte sobre o reservatório parou e as tropas do governo confirmaram o resultado da batalha, alguns soldados usaram cordas para escalar até o topo do Templo IV. Ficaram espantados ao verem Bak Gwangsu sentado ali, intocado. Estava tão quieto quanto um cadáver. Quando perceberam que ele não tinha intenção de atacá­-los, cutucaram seu corpo com os coturnos. Bak Gwangsu estendeu as duas mãos para cima e levantou­-se como um boneco trôpego na tentativa de não cair, depois deu um sorriso amplo. Os soldados sorriram também, depois miraram sua cabeça e apertaram o gatilho. Seu corpo caiu na capela. Os soldados vasculharam as roupas do morto. No bolso do peito descobriram um certificado antigo e desbotado que parecia prestes a se esmigalhar ao menor toque. No documento, em caracteres chineses, lia­-se “Nascido na ilha de Wi, província de Jeolla, 28 anos de idade, Bak Gwangsu”, e o selo oficial do império coreano brilhou fracamente. Porém, ali não havia ninguém capaz de decifrar aqueles caracteres.