Desfazer mitos não é uma coisa fácil . Remar contra a corrente exige determinação, sério compromisso com a verdade e evidências sólidas. É isso o que Mariana Mazzucato mostra neste livro, que consegue desafiar a ideia amplamente disseminada de que o Estado não é capaz de escolher vencedores, que é desajeitado, burocrático e inábil para assumir riscos empreendedores.
Sua análise não é apenas keynesiana; é também schumpeteriana. O papel do Estado não se limita à intervenção na macroeconomia, “corrigindo o mercado” ou financiando passivamente o setor de pesquisa e desenvolvimento (P&D) público. O Estado também é visto como empreendedor, que assume riscos e cria mercados. A argumentação de Mazzucato vai muito além do papel desempenhado pelo governo em países que avançaram recentemente (Japão na década de 1980 ou Coreia do Sul na década de 1990); ela se concentra no papel das agências do setor público nos Estados Unidos — o país mais rico do mundo e promotor ativo dos “mercados livres” — em investimentos arriscados por trás da internet e no financiamento de elementos cruciais por trás das “estrelas” da revolução da informação, empresas como Google e Apple. Na verdade, um capítulo bastante esclarecedor sobre os computadores Apple mostra como cada uma das tecnologias que fizeram o iPhone tão “esperto” tem sua origem em investimentos do Estado, desde a própria internet até a tela sensível ao toque e o novo aplicativo ativado por voz, o SIRI . Mazzucato analisa também o papel crucial dos governos alemão, dinamarquês e outros (incluindo o chinês, é claro) nos esforços recentes que visam desenvolver e difundir tecnologias de energia limpa.
A questão fundamental de sua análise é que as tecnologias mais radicais em diferentes setores — da internet à indústria farmacêutica — têm origem no financiamento de um Estado corajoso, disposto a assumir riscos. Seu relato sobre os investimentos do governo americano na internet oferece evidências do complexo conjunto de ações que tornaram possível essa gama tão ampla de inovações. Ela destaca a importância do financiamento orientado e dos contratos públicos; da reunião de várias agências; e também da criação de incentivos para vários setores e dos inúmeros instrumentos de financiamento implantados para que isso aconteça.
Os esforços bem-sucedidos não se limitam à pesquisa básica e aplicada, mas realizam o trabalho de alcançar a comercialização. Empresas como a Apple, Compaq, Intel e muitas outras receberam concessões em seus estágios iniciais através de programas de financiamento como o SBIR (Small Business Innovation Research). A infraestrutura da revolução das tecnologias de informação e comunicação (TIC ), por exemplo, que lançou as bases da internet, foi prodigamente financiada pelo Estado desde os estágios iniciais até a instalação e o pleno funcionamento, e a possibilidade de uso comercial. Como afirma Mazzucato, nenhum investidor privado ou força do mercado poderia ter feito esse trabalho por sua própria conta.
Os exemplos mais recentes, que envolvem investimentos nas chamadas tecnologias “verdes”, mostram a importância do financiamento “paciente” e comprometido, de longo prazo. No mundo avançado, esse financiamento tem vindo de agências estatais como a ARPA-E nos Estados Unidos (versão energética da DARPA , Defense Advanced Research Projects Agency, que desenvolveu a internet) ou por bancos de investimento estatais como o KfW, na Alemanha. Entre os países emergentes, o financiamento é fornecido pelo BNDES , Banco de Desenvolvimento do Brasil, ou pelo Banco de Desenvolvimento Chinês. Em todos os casos e em todos os contextos — como Mazzucato demonstra convincentemente —, grandes inovações exigem tempo e paciência. O financiamento privado ficou muito imediatista e cada vez mais dependente dos laboratórios governamentais que se envolvem com as parcelas de alto risco da cadeia de inovação antes de comprometer seus próprios recursos.
Um outro mito que este livro derruba é o célebre papel do capital de risco (CR ). Mazzucato mostra como o CR tem se mostrado dependente do governo para a realização de pesquisas mais dispendiosas e incertas, para só se envolver depois de a incerteza do investimento em inovação ter sido reduzida significativamente. Ela revela inclusive que o tão apregoado fracasso da administração Obama no financiamento da Solyndra deveu-se igualmente, se não mais, à retirada do financiamento do CR em um momento crítico do desenvolvimento da empresa.
Ao longo de sua análise, Mazzucato consegue estabelecer uma forte ligação com a literatura da “dinâmica da indústria”. Esta é uma contribuição muito importante. A maioria dos argumentos a favor da intervenção do Estado para o crescimento e o desenvolvimento esquece de mencionar a inovação, como se ela fosse a companheira natural do crescimento, uma espécie de maná do céu. O que Mazzucato faz é estabelecer uma ligação direta entre governo e tecnologia, inovação e empreendedorismo, ao mesmo tempo em que analisa questões centrais da economia da inovação como P&D e crescimento, o papel das patentes, e das pequenas e grandes empresas que atuam como inovadoras e outros aspectos pertinentes a essa discussão.
Portanto, este livro surge no momento certo. Aparentemente, a crise econômica persistente não parece suscetível a medidas de austeridade ou à expectativa de que retomar os negócios como de costume pode salvar os bancos. Esta é uma crise como a da década de 1930, que exige medidas ousadas e criativas como as do Estado do bem-estar social e de Bretton Woods, mas voltadas para a necessidade de desenvolvimento global sustentável e conduzidas pela sociedade do conhecimento de hoje. É de se esperar que os políticos do mundo avançado caiam em si e entendam isso, e ao buscarem alguma orientação descubram o valor das ideias e argumentos de Mazzucato.
É um bom sinal que a versão anterior deste livro, muito mais curta, em forma de relatório, tenha tido sua importância imediatamente reconhecida pela União Europeia e esteja sendo cada vez mais citada nas esferas políticas. No Reino Unido, essas ideias tiveram destaque na mídia e têm sido incluídas em declarações e projetos de ministros e membros do gabinete paralelo. O trabalho de Mazzucato também tem chamado a atenção em outros países europeus. É de se esperar que esta versão completa, com os capítulos inéditos sobre tecnologia verde e a verdadeira história do iPhone, seja recebida com interesse ainda maior.
Há pelo menos três lições vitais para a efetiva institucionalização da inovação que podem ser tiradas da análise de Mariana Mazzucato. Existe uma necessidade de fortalecer as fontes de financiamento em P&D públicos; uma necessidade de aumentar o compromisso público com a tecnologia “verde” e a definição de rumos; e uma necessidade de atualizar as respostas keynesianas às crises econômicas modernas.
Se o investimento do Estado em P&D é condição necessária para gerar a inovação posterior no setor privado, então a garantia de um fluxo constante de recursos para essa finalidade é do interesse de todos. O relato que ela faz da história da Apple mostra que, longe de continuarem “loucos”, como Steve Jobs recomendou, o que muitos empresários bem-sucedidos fazem — e inclusive ele fez — é integrar os desenvolvimentos tecnológicos financiados pelo Estado a produtos inovadores. Considerando o enorme retorno gerado por seu sucesso, não deveriam esses empresários devolver uma parte para o governo, de forma que ele possa continuar assumindo riscos que depois se transformarão em produtos que irão revolucionar o mercado? Pode-se argumentar que a retribuição é criada pelas receitas fiscais. Ainda assim, a globalização e a tecnologia da informação permitiram a migração dos lucros para regiões com impostos mais baixos ou até mesmo para paraísos fiscais. É claro que precisa haver inovação no sistema tributário para assegurar que os gastos públicos muito arriscados possam continuar a garantir a futura inovação no setor privado. A análise de Mazzucato fornece o arcabouço para pensar as formas de reformar o modelo atual a fim de se conseguir isso.
O outro caminho a ser seguido pela inovação no setor público está relacionado à tecnologia “verde”. Pessoalmente acredito que, além de salvar o planeta, o caminho verde pode, se tiver o apoio adequado, salvar a economia. Transformando os padrões de consumo e produção e reformulando as infraestruturas e estruturas existentes, a tecnologia verde pode gerar crescimento econômico e sustentabilidade ambiental no longo prazo. O “crescimento verde” pode ter um impacto equivalente ao que a suburbanização e a reconstrução do pós-guerra tiveram para desencadear a idade do ouro no Ocidente com base no American way of life . É impossível que os novos milhões de consumidores que estão sendo incorporados à economia global encontrem bem-estar seguindo o caminho do consumo intensivo de energia e materiais explorado no passado. Os limites desses recursos aliados à ameaça do aquecimento global poderiam tornar-se um poderoso freio no processo de globalização ou no motor mais poderoso do crescimento, emprego e inovação em uma geração.
Mazzucato sustenta que a “revolução verde” irá depender de governos proativos. Ela mostra, com inúmeros exemplos da experiência das últimas décadas na Europa, Estados Unidos, China e Brasil, que o sucesso no caminho do verde ocorreu onde houve apoio governamental claro, comprometido e estável. Como no caso dos Estados Unidos com a tecnologia da informação, são esses países, que se dispõem a aceitar os grandes riscos e que estão determinados a apoiar seus empreendedores, os que têm mais probabilidade de liderar os mercados mundiais em tecnologias verdes. A incerteza do mercado é inevitável no contexto da inovação, mas a incerteza política — como a que existe nos Estados Unidos e no Reino Unido em relação a tudo o que é “verde” — é fatal. A análise de Mazzucato sugere que o sucesso é alcançado por aqueles países que conseguiram chegar a um forte consenso nacional e assim podem manter o nível de financiamento e o apoio político constante através dos altos e baixos da economia.
Isso nos leva à terceira lição: precisamos dos insights econômicos de Keynes e de Schumpeter. Como disse Keynes, o governo deve tornar-se o investidor do último recurso quando o setor privado fica paralisado. Mas na moderna economia do conhecimento, não basta investir em infraestrutura ou gerar demanda para a expansão da produção. Se a inovação sempre foi — como disse Schumpeter — a força que move o crescimento na economia de mercado, é ainda mais crucial na era da comunicação continuar a dirigir os recursos públicos para a inovação catalisadora. Em seu livro, acompanhando o sucesso da experiência dos Estados Unidos voltada para P&D e contratos públicos ligados à inovação, Mazzucato defende que o governo supere a recessão intensificando os esforços em inovação. Seria fundamental para o governo combinar as infraestruturas tradicionais com as tecnologias modernas e tornar-se ativo na criação dos novos mercados promovendo e preparando o caminho para a inovação radical.
Este é um daqueles livros que devem ser lidos por todos: aqueles do setor público que esperam resolver os principais problemas do momento; aqueles do setor privado conscientes de que é melhor envolver-se em um jogo em que todos lucram; economistas que precisam abandonar a compreensão limitada das forças de mercado divulgada por textos de economia convencionais; acadêmicos que desejam pesquisar essas questões; estudantes que precisam compreender que ideias amplamente aceitas não são necessariamente verdadeiras; o público em geral, frequentemente solicitado a ver o Estado como um fardo; e os políticos que precisam superar seu medo da ação do governo e elaborar as políticas ousadas que podem desencadear o crescimento e restaurar o bem-estar para todos.
Carlota Perez
Autora de Technological Revolutions and Financial Capital: The Dynamics of Bubble and Golden Ages [Revoluções tecnológicas e capital financeiro: a dinâmica das bolhas e eras do ouro]
Universidade de Tecnologia de Tallinn, Estônia;
London School of Economics, Universidade de Cambridge
e Universidade de Sussex, Reino Unido
Fevereiro de 2013