PARTE II

NAS Prisões

 

Uma porta de madeira recoberta de aço, presa ao muro de pedra por correntes de ferro. Um cadeado do tamanho de meu punho. “Não há campainha”, diz Beck. Som de correntes. Golpes surdos ecoam do interior escuro do presídio feminino. Aguardamos. O prédio longo e baixo da prisão fica ao fundo de um complexo cercado por muralhas que abrigam a administração provincial: o Welayat. O complexo é todo tomado por blocos de escritórios miseráveis: o escritório do governador, o tribunal, o centro de detenção masculina, a sede dos promotores públicos e dos investigadores. Ocupa uma área de dois ou três quarteirões próxima ao centro de Cabul e, apesar disso, não chama a atenção. Quase todos os prédios em Cabul se escondem atrás de muros anônimos. Já havia passado por ali muitas vezes, perguntando-me vagamente o que poderia ser, antes de entrar de carro pelos portões naquela fria manhã de janeiro com Beck e Marzia, sua colega afegã. Os guardas acenaram para que entrássemos, e o carro deslizara pela passagem gelada até o fundo do terreno. Tábuas estreitas colocadas sobre uma vala entulhada de lixo levavam até a entrada do setor feminino. Beck agarrou a corrente de ferro e bateu à porta.

Esta era a minha primeira visita ao presídio feminino com ­Rebecca Bradshaw, a diretora de operações, no Afeganistão, da Frauen die Helfen (FDH), uma ONG alemã. Beck, britânica, era jovem, mas já trabalhara por muitos anos na Croácia e em Kosovo, mudando-se depois para abrir o escritório em Cabul em fevereiro de 2002. Ao longo dos anos, a Frauen die Helfen desenvolvera uma especialidade macabra e necessária: oferecer assistência a mulheres traumatizadas em situações pós-conflito. Ou seja, mulheres que sofrem pela violência de ataques físicos, sexuais ou mentais em meio à violência da guerra, vítimas de uma violência elevada à potência. As médicas e psicólogas da FDH eram especialmente peritas em desatar os nós deixados por traumas múltiplos e em ajudar as mulheres a tecer novamente esses fios de modo a formar algo que se parecesse com uma vida. Mas como é que se pode conseguir isso depois de uma guerra que durou quase um quarto de século, em um país no qual é costume as mulheres e meninas serem confinadas, estupradas, espancadas, vendidas e assassinadas? Afogar-se em tal violência é como uma morte, lenta ou rápida; depressão, ansiedade, suicídio, violência e mais violência se abatendo sobre o “eu”. A entidade Médicos pelos Direitos Humanos (Physicians for Human Rights) tentou avaliar o estrago e relatou, em 2001, que “mais de 70% das mulheres afegãs sofriam de depressão aguda, quase dois terços eram suicidas e 16% já haviam tentado o suicídio”.105 Mas o que exatamente as faz sofrer: uma mulher com dores lancinantes, outra com entorpecimento e letargia? Por que essa grita tanto e aquela arranca os cabelos? O que faz com que uma fuja de casa e a outra ateie fogo ao próprio corpo? Como é que elas podem ser ajudadas? No Afeganistão, não faltavam mulheres como essas e algumas delas estavam naquele presídio.

“Elas sempre estão na sala das guardas”, disse Marzia. “Elas nunca ouvem.” Ela enfiou a cabeça em um grande buraco na porta e gritou em dari: — Olá. Olá. Vocês estão aí? — batendo novamente, com os punhos.

Um vento frio fez voar os papéis da vala atrás de nós e colou-os em nossas pernas. Fez tremer os galhos secos das árvores que se enfileiravam ao longo do muro de entrada do presídio, perfurado de balas, e nos envolveu em uma pequena nuvem de pó, como se tivéssemos sido escolhidas para um ataque. Marzia puxou uma ponta de seu cachecol sobre o rosto e, usando a outra para envolver o punho, fustigou a porta mais uma vez. Finalmente ouvi o ruído de chinelos se arrastando na pedra e um rosto severo apareceu no buraco da porta. A mulher olhou para mim, voltando depois o olhar para Beck e para a grande sacola de pano que ela trazia nas mãos.

— Ah, é você. O que trouxe?

Ela enfiou uma manga de lã marrom pelo buraco e virou a chave no cadeado. A porta se abriu. A nossa frente, um corredor se estendia na penumbra. Prendi a respiração e entrei. A guarda trancou novamente o cadeado e nos conduziu pelo frio corredor de pedra, que cheirava a bolor e umidade. Tropecei no chão irregular e pisei em poças invisíveis. O Afeganistão segue o calendário islâmico que conta os dias a partir da fuga do Profeta para Medina, de modo que no Afeganistão, naquela época, o ano era o de 1380. Até aquele momento, o calendário diferente parecera-me uma curiosidade cultural, como um sistema alternativo de contabilidade, mas em Welayat o século XIV se tornava real.

O corredor dava para um pátio onde um casebre circular se escondia entre montes de entulho e lixo. Camisas usadas pendiam de um varal, endurecidas pelo gelo. Três alas do presídio cercavam o pátio, mas as instalações na ala à direita jaziam abertas e inúteis, e a ala ao fundo estava ruindo. Dirigimo-nos à ala da frente, único setor que parecia estar em uso. A guarda afastou um cobertor que revestia uma passagem e nos abaixamos para entrar. Duas camas de ferro envolvidas por cobertores do Exército estavam junto a paredes opostas. Em ganchos perto da porta, havia uma fila de burcas azuis, das guardas, imaginei. Mesmo uma guarda do presídio poderia não se sentir segura sem uma burca nas ruas de Cabul. Sentei-me em uma das camas, como tinham feito Beck e Marzia, e, à medida que meus olhos iam se acostumando à penumbra, vi que uma chaleira fervia lentamente em um bico de propano no canto da sala. A seu lado, sob as janelas, estava o que parecia ser um monte de trouxas de retalhos ou pilhas de roupa suja no chão. Foi então que vi que cada trouxa era uma mulher enrolada em um xale e encolhida contra a parede, com os joelhos enfiados sob o queixo. Cada pilha era uma prisioneira.

Durante todo esse tempo, Marzia conversara amistosamente com a guarda e, agora, voltava sua ternura e confiança luminosas às pri­sioneiras. Cumprimentou cada uma delas pelo nome e foi reunindo os detalhes esparsos de suas vidas: “Como vai seu nenê, Zara?”, perguntou, cruzando o aposento para se ajoelhar no chão e afastando a ponta de um cobertor para olhar um rosto contorcido. “Você está dando o remédio para ela? Ela está conseguindo dormir? E você, Mehru, esteve com o médico? Fariba, sua mãe veio visitá-la?”. As mulheres murmuravam respostas tímidas, como se tivessem medo de responder algo errado. A nenê parecia um pouquinho melhor, obrigada. O médico não tinha vindo. Nem a mãe. Muito obrigada.

“É difícil para sua mãe vir tão longe”, disse Marzia, “e depois ter que ficar de pé, no frio”. Os familiares não tinham permissão para entrar no presídio. Deveriam esperar do lado de fora e conversar com a prisioneira pelo buraco na porta externa. “Ela virá quando puder. Eu vou ver o que aconteceu com o médico. Você ainda sente dor?”

A própria Marzia era pouco mais que uma menina, uma estudante que aprendera inglês como refugiada no Paquistão e entrara para a FDH como tradutora, mas seguia perguntando notícias e consolando, como uma tia bondosa, eficiente e preocupada. Virou-se depois para Beck para relatar o que ouvira e para traduzir as perguntas de Beck para a guarda. Tinham mesmo chamado o médico do presídio masculino? O presídio feminino não tinha médico próprio, nem enfermeira, nem enfermaria, nem remédios. A FDH deveria mandar um carro para levar Mehru para o hospital de mulheres? Amanhã estaria bom?

O cobertor sobre a porta era constantemente erguido, à medida que outras guardas e outras prisioneiras esgueiravam-se para dentro do aposento. As guardas cumprimentavam Beck e se sentavam nas camas. As prisioneiras se deixavam cair no chão a seus pés. Havia mais saudações, mais perguntas, mais providências, mas todos os olhos estavam grudados nas bolsas de pano que Beck e Marzia haviam trazido. Finalmente, chegara a hora de abri-las. Barras de sabão e sacos de uva passa foram distribuídos, um presente para cada mulher. As uvas sumiram primeiro. Depois, surgiram suéteres de lã, comprados em mercados de roupas usadas, mas recém-lavados, e Beck rapidamente apanhou os melhores deles e os ofereceu educadamente às guardas.

— Elas vão pegar as coisas melhores de qualquer jeito — sussurrou. — Então é melhor dar logo a elas.

— Elas são tão malvadas assim? — perguntei.

— Não, são muito pobres. Ganham menos de 20 dólares por mês. Muitas vezes não recebem pagamento algum. E daí os jornalistas e o pessoal de ONGs, como nós, chega todo animado com presentes para as prisioneiras. Como você se sentiria?

As prisioneiras afastaram-se silenciosamente com seus prêmios, e as guardas pediram cigarros a Beck. Sentaram-se nas camas, fumando e acariciando seus novos suéteres. Em pouco tempo, o pequeno aposento estava tomado pela fumaça. Beck lhes disse que logo eu voltaria para entrevistar algumas das prisioneiras. “Vocês sabem que estamos escrevendo um relatório sobre o Welayat para nossos doadores”, ela disse, “e a Ann vai nos ajudar. Assim, por favor, deixem-na entrar quando vier”. Marzia traduziu a solicitação e a resposta rápida de uma das guardas: “Ela fuma?”. Beck deu-lhe o resto de seu maço de cigarros. “Para mais tarde”, disse, enquanto nos levantávamos para sair. No corredor, ela pediu para dar uma olhada nos aposentos das prisioneiras, e a guarda nos levou mais ao fundo do corredor escuro, puxando um cobertor a cada porta para revelar mais um quartinho paupérrimo — seis, ao todo — tomado por camas de ferro em que mulheres, sentadas com as pernas cruzadas, abraçavam seus novos suéteres. Os quartos eram frios, com a umidade gelada e penetrante das pedras antigas, e iluminados apenas pelo sol da tarde contorcendo-se pelas janelas sujas. A luz pousou sobre uma fileira de sacolas plásticas penduradas na parede, cada qual contendo tudo o que cada prisioneira tinha, naquele momento, no mundo.

— No início viemos verificar a situação jurídica das prisioneiras — disse Beck. — Mas, como você pode ver, as necessidades delas são mais básicas. Demos-lhes aquecedores imediatamente, mas as guardas os venderam. Infelizmente, parece que qualquer coisa portátil por aqui sai andando pela porta da frente.

— Os cobertores também — disse Marzia. — As guardas disseram que as prisioneiras os enviaram para as famílias em casa. Como se elas tivessem famílias a que valesse a pena mandar presentes.

— Já vimos o suficiente? — perguntou Beck.

Logo estávamos de volta ao carro, passando pelo portão, dirigindo-nos para o trânsito de Cabul; mulheres livres indo livremente para onde quisessem. Meus sentimentos deviam estar estampados em meu rosto. Beck disse:

— Achei que você estivesse acostumada a visitar presídios femininos.

— Eu estou. Mas nunca vi um presídio assim.

Eu passara muito tempo em presídios femininos dos EUA, entrevistando as internas, mulheres sofridas, em sua maioria, presas por assassinato. Contara suas histórias em um livro. Isso fora há 25 anos, um período muito, muito longo em um país que se moderniza incessantemente. Naquela época, cada um desses presídios americanos era lúgubre e terrível a sua própria maneira, como o são todas as prisões, mas é preciso considerar que, mesmo então, cada um deles dispunha de água corrente, aquecimento central, eletricidade, luzes, privadas, banho quente, refeições quentes, atendimento médico, programas de reabilitação, aulas de extensão, TV, rádios, roupa de cama, cigarros, xampu, assistência jurídica, biblioteca, telefones, capelães, advogados, baralho, secadores, coca-cola, balas. Cada mulher tinha sua cela, um quarto inóspito e solitário, mas o quarto dela. O pior momento, sempre, era passar pela porta, ouvi-la bater as minhas costas, sabendo que eu acabara de exercer um privilégio que as mulheres a quem deixara lá dentro poderiam jamais conhecer novamente. Eu as deixara lá dentro com sua própria angústia. Mas aquilo ali era pior. Mulheres amontoadas em camas desprezíveis e imundas, algumas abraçando bebês enfaixados — pequenos e silenciosos como pães —, apinhadas em quartos úmidos, gelados. Era como se fossem passageiras clandestinas em algum pequeno navio sombrio, à deriva. Isso era miséria.

— É bom que você vá voltar para conversar com elas — disse Beck. Eu olhava pela janela o torvelinho indistinto do tráfego: uma fila de SUVs, os vidros escurecidos de presunção, indo a algum lugar, rapidamente.

— É. Acho que é.

 

As mulheres no presídio feminino não eram assassinas. Pelo menos, não muitas. A maioria delas nem havia cometido crime, não segundo qualquer dos padrões reconhecidos hoje no Ocidente. A maioria delas eram meninas e mulheres acusadas de ter cometido ofensas contra a moralidade pública. Muitas eram acusadas de zina, um termo que cobre indiscriminadamente sexo extraconjugal, tanto o consensual como o coagido. Algumas eram acusadas de ter contraí­do matrimônio “ilegal”. Algumas eram acusadas de fugir com um homem ou de fugir de casa. Uma fora detida pela polícia e trazida à prisão porque estava perdida.

Havia apenas 16 mulheres no presídio naquele momento, não muitas, em uma cidade com dois milhões de habitantes. As guardas diziam que raramente passavam de 35 prisioneiras. Isso era o máximo que Cabul poderia fazer pelos criminosos? Depois de tantos anos de guerra e privação, de tempos desesperados em que as pessoas tomam medidas desesperadas, certamente mais mulheres devem ter buscado sua sobrevivência à margem da lei. Onde estavam? Cabul contava com muitas delegacias de polícia nos distritos, cada uma com sua própria carceragem, e havia bloqueios nas ruas em toda parte, efetuados por soldados ou pistoleiros em uniformes ambíguos, e casas privadas nas vizinhanças, nas quais os detidos poderiam desaparecer discretamente. A polícia afirmava que nunca detinha mulheres nos distritos, mas que sempre as enviava para o presídio central. Os soldados e os pistoleiros não diziam absolutamente nada. Entretanto, mulheres e crianças desapareciam todos os dias. Há muito pouco tempo, dois adolescentes em casos separados, mas quase idênticos, haviam sido condenados a longas penas de reclusão por assassinato. Cada um deles fora preso em um bloqueio e mantido em cárcere privado onde foram insultados e abusados sexualmente pelos policiais que os haviam detido. Cada um dos garotos, em determinado momento, havia se voltado contra seu agressor e o matado. Era um crime sério matar um policial, independentemente do motivo, e os garotos foram jogados no bloco masculino do outro lado do pátio. De vez em quando, uma mulher que era trazida ao presídio feminino dizia que ela também fora presa e mantida cativa por homens em um cárcere privado, ou em uma delegacia de distrito. A polícia negava. Ela tinha provas? Ninguém acreditava nela. Todo mundo sabe que as mulheres mentem.

No entanto, mesmo que se somasse um número hipotético de mulheres detidas ilegalmente por policiais ou pistoleiros freelance, o total de mulheres encarceradas não era muito grande. Era de se imaginar a quantidade de outras mulheres suspeitas de zina, fuga com um homem, matrimônio ilegal ou outras ofensas aos padrões morais, que eram simplesmente julgadas e punidas em casa, por suas famílias. No Welayat, em Cabul, 13 das 16 internas encarceradas naquele momento, eram acusadas de crimes de zina. Um ano mais tarde, em 2004, uma agência internacional investigou o presídio feminino em Herat, cidade mais conservadora, e descobriu que 78% das detentas eram acusadas de zina. Mas em Jalalabad, região pashtun pouco distante da fronteira com o Paquistão, não havia absolutamente nenhuma mulher encarcerada por zina. Funcionárias explicaram a uma investigadora que tais “problemas” se resolviam “em família”. Esse era o fardo inescapável das meninas e mulheres afegãs: a honra da família. Sob os termos da “tradição” e das práticas “islâmicas” que as protegem, meninas e mulheres passaram a arcar com a responsabilidade pela vida moral e pela reputação das famílias que as possuem. Esse truque não é novo; no Ocidente, os vitorianos elevaram a mulher a um pedestal que exigia “pureza” moral. Mas o código afegão é mais severo e se faz cumprir com maior rigor. A mulher afegã que caía em desgraça perdia sua vida em um “assassínio pela honra”, aceito extraoficialmente para preservar a moralidade das mulheres. Ninguém sabe quantas meninas e mulheres, de quem se dizia haverem trazido desonra para a família, foram mortas por seus pais e irmãos. Quantas são levadas ao suicídio. Quantas são trancafiadas. Quantas “desaparecem”.

 

 

Durante os meses de janeiro e fevereiro de 2003, fui frequentemente ao presídio visitar as mulheres ali encarceradas. Eu ia com uma professora primária afegã, chamada Zulal, que traduzia para mim histórias e mais histórias, até que o padrão da justiça afegã para as mulheres começou a se desenhar com clareza.

Conversamos primeiro com uma mulher que, posteriormente, seria relacionada no relatório oficial da Frauen die Helfen — por questões de anonimato — apenas como C. Ela era acusada tanto de zina como de fuga com um homem. Ela e eu nos ajeitamos, uma diante da outra, com Zulal a meu lado, pernas cruzadas sob a janela da sala das guardas. Era o único aposento razoavelmente aquecido no presídio ou, pelo menos, assim parecia para Zulal e para mim, desde que não tirássemos nossos casacos e cachecóis. A chefe das guardas expulsou todo mundo da sala e sentou-se na cama ao lado do fogareiro a querosene para ouvir nossa conversa. C. disse que acreditava ter 19 anos. Poucos afegãos têm certidão de nascimento, de modo que a maioria consegue, no máximo, fazer uma estimativa da própria idade. Quatro anos antes, disse, quando ela tinha 15 anos, fora entregue em matrimônio por sua família. Agora, relembrando tudo, torcia os dedos e olhava fixamente para o chão; vi seu rosto pequenino cobrir-se de sombras à medida que contava sua história para Zulal. A casa de seu marido “não era boa”. A mãe do marido era uma “senhora má”, que cometera “adultério” muitas, muitas vezes, por ordem dele. Ele disse a C. que ela teria de fazer o mesmo. Zulal virou-se para mim, em seu rosto uma máscara rígida para esconder a emoção que aflorava:

— Acho que não é adultério — disse. — Ela não conhece uma palavra para isso, mas acho que em inglês é prostituição. O marido dela ganhava dinheiro. C. contou que, com o tempo, ela fugiu do marido e voltou para a casa do pai; mas seu marido mandara o irmão para trazê-la de volta, e os anciãos do vilarejo disseram que ela deveria ir. Ela não sabia dizer quanto tempo ficara lá, trancada na casa “não boa” do marido, fazendo o que ele mandava, a incapacidade de explicar o que aconteceu durante um certo período é parte do mal-estar trazido pela guerra e pela violência sexual, mas fugiu novamente e, sabe-se lá como, conseguiu chegar até o Paquistão. Lá encontrou emprego como doméstica em uma casa, mas sentia saudade da família e, depois de algum tempo, voltou para a casa do pai. A família não estava mais lá. Ela foi até a polícia perguntar por eles e eles a prenderam e a trouxeram para a prisão. Aqui ela ficara detida por muitos dias, e aqui ficará indefinidamente enquanto os investigadores do Estado examinam seu caso.

Depois conversamos com D. Ela é D. no relatório oficial que Beck escreveu, mas deixem-me dar-lhe um nome — falso, para protegê-la — mas um nome real para juntar-se ao rosto real que ainda vejo, após dois anos. Que seja Dustana, então. Significa “amiga”. Dustana disse que tinha mais ou menos 20 anos, embora sua pele amarelada e suas faces encovadas conferissem a ela uma aparência muito mais velha. Estava no presídio havia seis meses. Ela também havia sido dada em matrimônio, mas, seis meses após o casamento, o irmão do marido viera a sua casa e ordenara-lhe que saísse porque o marido havia se divorciado dela. O irmão mostrou-lhe um papel que parecia oficial, mas, como era analfabeta, ela não podia lê-lo. Ela pediu para falar com o marido, mas o irmão disse que não seria possível. Em vez disso, ele a enviou para a casa de uma tia. Lá, depois de algum tempo, a tia apresentou-lhe um homem de Bamiyan e disse-lhe que ela devia desposá-lo. Ela obedeceu, mas o casamento era uma farsa e, no dia seguinte, o novo “marido” desapareceu. Zulal virou-se para mim:

— Isso também não é prostituição em inglês? — Então, para surpresa de Dustana, seu marido reapareceu. Ele trouxe a polícia e insistiu que a prendessem por adultério e bigamia. Depois que os investigadores relataram o resultado de suas diligências ao promotor, ela foi levada ao tribunal, condenada por “casamento ilegal” e sentenciada a cinco anos de prisão. Dustana ainda estava desnorteada por aquilo que tinha se passado com ela. Ela chegara à conclusão de que fora enganada pelo irmão do marido. Mas não conseguia compreender qual era a participação da tia ou do marido no esquema.

E havia N. — Najela —, que não conseguia sequer imaginar a própria idade. Contou que ficara muito feliz quando sua família acertou seu casamento com um primo, porque, secretamente, ela o amava. Durante mais ou menos três meses após a cerimônia ela tivera um casamento feliz. Então o marido começou a trazer para casa homens “estrangeiros” e a forçá-la a “cometer adultério” com eles. Quando não podia mais suportar a situação, ela foi à polícia e acusou o marido de forçá-la à prostituição. Tanto Najela como o marido foram presos. Quando os investigadores concluíram o trabalho, o promotor concordou com Najela que o marido era um homem “muito ruim e imoral”. O juiz o condenou a cinco anos de prisão. Mas o promotor observou que ela “trabalhara” para o marido “por muito tempo” e que não prestara queixa “imediatamente” à polícia, que, à época, era talibã. Assim, ela foi considerada culpada de prostituição e condenada a três anos.

E. — Ejar — disse que tinha “mais ou menos 22 anos”. Contou que, ainda jovem, fora dada em casamento a um homem que a espancava frequentemente; até que, em uma noite de inverno, ele a jogou na rua. Buscando a proteção de um parente do sexo masculino, ela se refugiou, naquela noite, na casa de um tio; mas o marido foi à polícia e declarou que ela e o tio haviam cometido adultério. Ela foi condenada por zina e sentenciada a seis anos. Já estava na prisão havia nove meses, mas, como ninguém de sua família jamais vinha visitá-la, ela não sabia o que acontecera com o tio.

J. — Jamila — disse ter entre 22 e 25 anos. Enquanto falava, ela amamentava sua filhinha, nascida na prisão em que ela estava trancafiada havia oito meses. Contou que fora casada por um tempo, mas que um dia o marido lhe dissera, três vezes, que tinha se divorciado dela e que, segundo o Islã, ela deveria deixar a casa imediatamente. Na verdade, o procedimento de divórcio descrito no Corão exige que o marido declare sua intenção de divorciar-se de sua esposa na presença de duas testemunhas e que repita essa declaração diante de testemunhas duas vezes mais, a intervalos de um mês; durante esses meses, exige-se que o marido mantenha a mulher em sua casa como sua esposa em tudo, salvo nas relações conjugais. Mas Jamila acreditou no que o marido dissera: que essa versão condensada e conveniente de divórcio era “islâmica”. Jamila não quis falar sobre aonde fora ou o que fizera depois de deixar a casa do marido, mas, algum tempo depois, casou-se voluntariamente com outro homem, com quem fora bastante feliz. Quando seu primeiro marido soube do casamento, foi à polícia e acusou-a de bigamia. Prenderam-na por “matrimônio ilegal”. Seu primeiro marido jurou que nunca se divorciara dela e, como não havia testemunhas para provar o contrário, ela fora condenada a oito anos por fuga com um homem e zina.

L. — Latifa — contou-nos a mesma história. Ela fora condenada a cinco anos pelos mesmos crimes. Também tinha um bebê. Tinha 18 anos de idade.

 

Zulal e eu ficávamos lá, dia após dia, sentadas nos tushaks empelotados na sala das guardas enquanto a luz diminuía e o rosto descarnado da prisioneira a nossa frente desaparecia na escuridão. Então chegava a hora de dizer muito obrigada e adeus. Sempre tínhamos o cuidado de explicar, ao início de cada entrevista, que não podíamos fazer nada para ajudar a prisioneira em sua causa e que nos contar a sua história não iria lhe trazer nenhum benefício, mas que poderia ajudar outras mulheres, em outros momentos — essa era nossa esperança — se aquilo que ouvíssemos persuadisse legisladores, tribunais e a polícia a mudar o modo como faziam as coisas. Apesar disso, as prisioneiras sempre se aferravam as nossas mãos quando nos despedíamos. Resistir. Nesses momentos, Zulal sempre parecia profundamente tocada.

A primeira vez que eu propusera que ela me acompanhasse à prisão como minha intérprete, ela ficara chocada com a impropriedade da proposta. Recebera uma educação islâmica tradicional e desenvolvera o respeito afegão pelo comportamento honesto.

— Por que você vai conversar com essas mulheres? Elas são muito más.

— Por que você acha que elas são más? Você acha que elas nasceram más?

— Elas estão na prisão!

— Mas por quê? Como é que elas chegaram lá? E se elas não merecem estar lá? E se elas não forem nem um pouco más?

— Impossível. Não acredito.

No fim das contas, consegui persuadi-la com um sofisma: que era apenas conversando com as mulheres más que nós poderíamos ajudar a lei a tratá-las corretamente e, assim, proteger as boas. Zulal, com maior dificuldade, convenceu os pais de que meu trabalho era perfeitamente decente e de que eles deviam autorizá-la a me ajudar. Sendo uma mulher solteira, mesmo aos 30 anos, ela não poderia fazer nada sem a autorização de seu pai e irmãos. A princípio, com C., a primeira prisioneira que entrevistamos, ela havia sido bastante desconfiada e formal. Traduzira minhas perguntas com um profissionalismo rígido, mas, curvando-se, se aproximara para ouvir as respostas murmuradas por C. e então, no meio da história, ela virara para mim com um julgamento independente que deve ter surpreendido a ela própria: “acho que não é adultério”. Depois disso, dia a dia, ela se tornou menos dura, e eu sabia que ela começara a ver nessas mulheres a imagem de mulheres que conhecia: a sombra de suas amigas, de suas irmãs, dela mesma, de modo que agora, na hora da despedida, Zulal as abraçava delicadamente e dizia: “Posso ir agora?” Faz parte da polidez afegã, das boas maneiras. “Posso ter sua permissão? Por favor, perdoe-me. Posso ir?”

 

Depois dessas histórias, não adiantava falar em direitos da mulher. No Ocidente, gostamos de pensar que os direitos humanos se agregam ao indivíduo em virtude dele ser humano. Mas na sociedade afegã o indivíduo vale pouco, e a mulher vale menos do que isso. É a sociedade coletiva que importa — a umma (comunidade de crentes) islâmica ou a tribo ou, mais intimamente, a família.

As mulheres de Welayat eram acusadas de haver perturbado a sociedade ao violar o código moral que a mantém coesa. A justiça residia em reparar esse dano. Não se deveria buscar a justiça no castigo, pois punir o indivíduo, como fazemos no Ocidente, não produz nenhum bem social. Se as mulheres de Welayat eram punidas, como acontecia com muitas, que ficavam detidas por anos, isso era apenas um efeito secundário de trazer a sociedade de volta a seu correto equilíbrio. Nossa justiça é individual e punitiva. A justiça afegã é social e reparadora, ou pretende ser.

Mas esse conceito convida qualquer um que tenha uma queixa a usar o sistema legal para acertar as contas, da mesma forma como cria para o Estado a tentação de abusar de seu poder ao prender aqueles cujas ideias ameacem causar-lhe algum mal futuro. A prisão se torna um depósito para a esposa indesejada ou para a filha indecente, um fosso conveniente usado pelo marido ou pai de coração muito mole para, ele mesmo, cortar a garganta da mulher. Cada mulher em Welayat sabia que estava na prisão porque alguém em sua família queria que ela estivesse lá; seu marido ou ex-marido, seu irmão, pai, sua sogra, embora, em muitos casos, fosse difícil entender a motivação do acusador, ou mesmo a identidade do Iago familiar que armara a intriga nos bastidores. Jamila acreditava que seu primeiro marido, que a acusara de matrimônio ilegal, tinha ciú­mes de seu segundo marido e de sua felicidade. Latifa acreditava que seu primeiro marido, que a acusara da mesma coisa, planejava extorquir dinheiro de seu segundo marido. Mulheres atormentadas como Dustana angustiavam-se sem cessar pensando em quem havia armado a cilada (minha tia?) e por quê (meu marido?); elas pensavam no que haviam feito para merecer tal destino. O caráter obscuro desses casos deixava investigadores, promotores e juízes livres para especular também e frequentemente decidir casos com base não em provas empíricas ou apesar delas, mas em atitudes patriarcais. Mas, afinal, isso não era mais que sua obrigação, pois manter a sociedade sadia era seu trabalho, e a sociedade era, por definição, patriarcal.

 

 

Uma vez que uma mulher fosse presa, o que aconteceria com ela? Como se restabeleceria o equilíbrio familiar? Oficialmente, o sistema judiciário tem três níveis: um primeiro nível, em que ocorrem as investigações iniciais e as decisões judiciais são apresentadas; um segundo nível, em que os recursos são apreciados e investigações adicionais realizadas; e a Suprema Corte, que ouve recursos de última instância. Quanto mais se sobe dentro do sistema, mais conservadores os juízes se tornam, pois, por acidentes de educação e história, a maioria daqueles que estão no topo foi treinada exclusivamente na lei da Sharia. Costumava haver um sistema de tribunais para julgar casos de família, também estabelecido durante o governo comunista do presidente Najibullah, mas o Talibã acabou com eles; agora apenas Cabul tem um tribunal de família.

Os casos são apresentados pelos promotores (saranwali) a juízes que deveriam ser imparciais, mas até a composição do tribunal já sugere sua inclinação. Dos 2.006 juízes do Afeganistão, apenas 27 são mulheres.106 A ré tem tão pouca importância que frequentemente nem é convocada ao tribunal para seu próprio julgamento; mais tarde, notificam-na da sentença. Ela pode nunca saber do que foi acusada. E, geralmente, a acusação nem é de caráter criminal; “fugir com um homem”, por exemplo, não é crime, de acordo com o Código Penal, e prender pessoas por fazê-lo é uma violação do direito, internacionalmente reconhecido, de liberdade de movimento; entretanto, mulheres, e homens também, são presos por esse tipo de fuga o tempo todo. Uma juíza explicou: “Não devemos encorajar as mulheres a fugir de casa porque temos de manter uma sociedade de moral ilibada”. As mulheres que são testemunhas também são comumente mantidas fora dos tribunais, em nome da decência; e, nos casos em que elas comparecem, deve haver duas delas para igualar o testemunho de um homem. O Corão especifica que são necessárias duas mulheres “para que, caso uma delas erre, a outra possa relembrá-la”.107 O homem que presta testemunho não precisa de ajuda. Advogadas de defesa, estrelas no judiciário americano, estavam ausentes dos tribunais afegãos até 2004, quando a FDH iniciou um programa de assistência jurídica, financiado principalmente pelo governo alemão, para treinar um punhado de advogadas para defenderem as mulheres de Welayat. Mas por que um indivíduo deveria ter um advogado de defesa quando é a sociedade, representada pelo promotor e pelo juiz, que importa? Quando as novas advogadas de defesa se apresentaram ao tribunal com as prisioneiras de Welayat, os juízes as repreenderam: “O que vocês fazem aqui, defendendo essas mulheres más? Vocês também devem ser mulheres más”. Esse é o sistema, e, enquanto ele continua girando, o acusado permanece na prisão, mês após mês.

Logo depois de começar a entrevistar as mulheres em Welayat, fui fazer uma visita ao departamento jurídico do novo Ministério da Mulher do Afeganistão. O ministério era algo até então desconhecido na governança afegã, estabelecida em dezembro de 2001, sob o olhar atento do mundo, durante a conferência de Bonn, que inventou o Estado Islâmico Transicional do Afeganistão. Trazia a promessa de grandes mudanças para as mulheres afegãs, embora a primeira-ministra, Sima Samar (que passara grande parte da vida trabalhando pelos direitos das mulheres), tivesse sido desencorajada por seus colegas homens a fazer “demais” antes que o avião trazendo o novo governo aterrissasse em Cabul; não tardou muito para que ela fosse liberada de seu escritório sem sequer ter conseguido dispor de um aparelho telefônico. Sua sucessora declarou publicamente que espancar mulheres era um “costume normal” no Afeganistão, mas que não seria ela a criar caso quanto a isso; e, quando apareci no departamento jurídico, havia pouca possibilidade de que alguém no ministério fizesse qualquer coisa pelas mulheres, embora, alguns anos mais tarde, eles tenham pendurado um cartaz com os dizeres: “Grandes líderes têm grandes mães”. Mas, mesmo àquela altura, o departamento jurídico não tinha nem telefone, nem aquecedor.

O ministério se tornara uma piada em Cabul: o “Menostério” da Mulher. Sentei-me com três advogadas em um escritório gelado e contei-lhes sobre as várias mulheres em Welayat que precisavam de sua ajuda. Cada uma delas fora sujeita a algum tipo de violência: espancamento, abuso sexual, casamento forçado, estupro conjugal e cada uma dessas mulheres buscara escapar daquela situação de vio­lência. Como resultado, cada uma fora acusada de um “crime”. Algumas haviam deixado seus lares sozinhas e sido acusadas de fugir de casa. Outras haviam deixado o lar com a ajuda de um homem, amigo ou parente, sendo acusadas de fuga com amante, de matrimônio ilegal ou de zina. Cada uma dessas mulheres, argumentei, poderia perfeitamente sustentar em um tribunal que agira apenas para salvar-se de um ataque criminoso. As advogadas, enroladas em seus casacos e cachecóis, ouviam educadamente, como fazem os afegãos, mas suas expressões vazias me diziam que a barreira entre nós era maior que a da língua.

— Vocês entendem? Todas essas mulheres são vítimas de violência doméstica — disse.

— O que é isso?

Tentei explicar, em palavras simples, por meio de Zulal, mas continuávamos tropeçando em palavras e expressões (como estupro conjugal) que não tinham equivalente na língua dari, muito menos no direito afegão.

— Em meu país, é contra a lei o marido forçar a mulher a fazer sexo quando ela não quer.

As advogadas pareciam desconfortáveis com o tema, mas discutiram-no rapidamente; e então a advogada principal, que sabia um pouco de inglês, respondeu — No Afeganistão, não.

— Em meu país, é contra a lei o marido bater na mulher.

Outra apressada discussão em voz baixa: — No Afeganistão, não.

— Em meu país, é contra a lei forçar uma menina a se casar com um homem idoso quando ela não o quer.

— No Afeganistão, não. Em meu país, é costume.

A regra, quando se quer levar as pessoas a entender os direitos das mulheres, é “começar onde elas estão”. Mas onde estavam essas mulheres? Elas pareciam estagnadas, como as mulheres de Welayat, em algum lugar do século XIV. Educadamente, disseram que tinham gostado de conversar comigo e que esperavam que eu voltasse para conversar um pouco mais. Talvez em um dia que não estivesse tão frio. Enquanto isso, havia alguma coisa que elas pudessem fazer por mim?

 

— Há sim, claro. Vocês podem verificar como elas são tratadas, como seus processos são conduzidos. Podem estar atentas a seus direitos. Podem levar esses problemas para o governo e para os tribunais. Conseguir que elas sejam tratadas com justiça ou, talvez, conseguir que sejam soltas.

Dessa vez a discussão foi vigorosa e firme. Zulal traduziu: — Elas dizem que não podem aceitar esses casos porque essas mulheres são más — ela me lançou um olhar que dizia — Está vendo? Não sou a única.

— Pergunte-lhes por que elas acham que essas mulheres são más.

— Elas são criminosas.

— E por que vocês acham que elas são criminosas?

— Elas estão na prisão.

Zulal, a essa altura, já lutava para não sorrir, quase dando risadas enquanto traduzia, da boca da advogada principal, as palavras que ela mesma me dissera havia apenas algumas semanas. Talvez, assim como Zulal, as advogadas pudessem mudar de opinião.

— Pergunte-lhes se elas irão a Welayat ao menos uma vez.

— Não, elas não podem ir lá.

— Por que não?

— É uma prisão.

Beck e eu visitaríamos as advogadas do departamento jurídico muitas vezes para discutir assuntos legais e a situação das mulheres de Welayat. O trabalho delas, diziam, era sobretudo o de escrever documentos legais, embora nunca tenhamos conseguido uma só cópia de um documento escrito por elas. Oferecemos dar-lhes um curso de treinamento em violência doméstica, e elas responderam que ficariam agradecidas e que estavam ansiosas por fazer tal curso. Estabelecemos um programa semanal e divulgamos o lugar e a hora. Mas, cada vez que aparecíamos para o treinamento, as advogadas não estavam presentes. Estavam participando de um “curso de capacitação” obrigatório, de inglês ou computação. Tinham ido a uma reunião ou a um enterro. Não estavam se sentindo bem ou seus filhos estavam doentes. A chefe estava tendo um bebê.

 

 

 

E a lei era outro problema. Algo fugidio, algo difícil de definir, porque há muitas delas. A Constituição afegã de 2004 declara que: “Os cidadãos do Afeganistão — sejam homens ou mulheres — têm direitos e obrigações iguais perante a lei”.108 Mas qual lei? Há um código penal e um código civil e um corpo amorfo de práticas tradicionais (variando de um grupo étnico ou tribo para outro), comumente chamado de “direito” consuetudinário, e o código moral da Sharia, do qual várias escolas de jurisprudência islâmica ou Fiqh (principalmente no Afeganistão, o Hanafi ou a Shi’a) derivam conjuntos de leis que classificam os crimes e as penas aplicáveis — como Kisas (retaliação), Diya (pagamento por sangue) e Haad (amputações, apedrejamentos); e você pode começar uma discussão todo dia nos círculos jurídicos de Cabul sobre qual é qual e sobre qual tem precedência neste ou naquele conjunto de circunstâncias específico. No papel, os novos códigos em vigor sob a nova Constituição parecem razoavelmente claros, mas aqueles que deveriam aplicá-los não estão familiarizados com as novas codificações e, com frequência, são deliberadamente obtusos. Alguns juízes simplesmente negam a existência de uma Constituição e de códigos legais, afirmando que a Sharia é “a única lei do país”.109 Outros ressaltam que o significado das palavras “os cidadãos do Afeganistão — sejam homens ou mulheres — têm direitos e obrigações iguais”, não é equivalente ao sentido das palavras “homens e mulheres são iguais”. Imagine só.

O princípio da legalidade é a espinha dorsal de qualquer governança que se pretende democrata. Mas sem um judiciário informado para aplicar códigos legais legítimos, a justiça torna-se uma loteria (normalmente à venda para o litigante que paga mais) e a lei vira uma piada. Todo mundo reclama que juízes gananciosos confundem a lei afegã, permitindo vantagens pessoais; os afegãos vivem sob a lei do suborno. Mas várias agências internacionais começaram a trabalhar para organizar as leis afegãs e treinar juízes e advogados para aplicá-las, particularmente no que tange às mulheres e crianças; porque o mundo inteiro sabe que o Afeganistão não tem sido justo com as mulheres. Além disso, o Afeganistão assinou tratados internacionais garantindo os direitos humanos de mulheres e crianças — tratados em constrangedor desacordo com o direito afegão da forma como hoje é aplicado em toda a sua miríade de permutações. Alguns projetos treinam investigadores, promotores ou juízes. Alguns treinam policiais. Outros treinam advogados.

Em 2004, cerca de um ano e meio após minhas primeiras visitas às mulheres em Welayat, passei algumas semanas assistindo a um curso de treinamento oferecido por uma ONGI (ONG internacional) e formulado por advogados voluntários, juízes e professores de Direito para ensinar, a advogados afegãos, as seculares artimanhas dos advogados de defesa. Esperava que o curso me ajudasse a achar o caminho em meio aos múltiplos labirintos do direito afegão. Casos hipotéticos eram apresentados a 18 alunos — incluindo uma única mulher — pela instrutora, uma nova-iorquina vigorosa, articulada e inteligente que me parecia um modelo de sucesso em sua profissão. Para aquele círculo de homens afegãos, que tentava ao máximo não desejá-la, ela deve ter parecido mais uma arma de ataque ocidental, tão potente como um míssil Stinger ou uma mina. Eles não sabiam o que ela estava fazendo ali, menos ainda o que ela estava tentando ensinar. “Bem, então o sujeito é preso por roubar um tapete. Qual é a primeira pergunta que você deve fazer a respeito desse crime?”. Os homens resmungavam alguma coisa e baixavam os olhos, absortos na página a sua frente, que delineava o crime hipotético. Ela insistia: “Vamos lá. Qual é a primeira coisa que temos de saber?”. Escolheu um aluno para responder. “Será que o homem precisa do tapete?”, sugeriu ele.

“Não, não, não. Analise. Será que importa se ele precisa do tapete ou não? Não, não importa. O que importa?”. Desesperada, ela passou os olhos pelo círculo de homens, agora absolutamente mortificados pela resposta errada.

“Tudo bem. Tudo bem. Primeira pergunta: há testemunhas do crime? Ou é um crime sem testemunhas?”

Saber se alguém viu o crime ajuda a determinar se a polícia pode fazer uma busca sem mandado, o que, por sua vez, ajuda a determinar se um advogado esperto pode conseguir excluir uma prova incriminadora com base em um detalhe técnico, que não tardei a aprender, é tudo nesse tipo de defesa criminal. “Estamos ensinando argumentação, não direito”, explica a instrutora. E diz para seus alunos: “Observem como é pequena, bem pequena, essa alegação”. Pergunto-me se os alunos estão confusos porque ainda procuram, ingenuamente, algo parecido com justiça. Mas agora eles têm um objetivo, enquanto perscrutam mais uma vez os papéis amassados que apresentam o caso hipotético e, passados cinco minutos, alguém dá a resposta certa.

“Muito bem! Excelente!”

A professora está satisfeita, os alunos estão aliviados. Ela estabelecera uma dicotomia — é este tipo de crime ou aquele? — para começar uma análise que conduzirá os futuros advogados de defesa através de uma longa série de etapas do tipo isto ou aquilo dentro do código penal oficial, de forma a fazer com que finalmente eles entendam como arguir um caso com base na lei — na palavra escrita, com todos os seus convenientes detalhes técnicos — em vez de emaranhar-se nos ensinamentos do Profeta ou vaguear sem rumo pelo labirinto de motivação, parentesco, circunstância e fatos não comprováveis. “Será que o nó das leis afegãs poderia realmente ser desatado assim?”, pensei — um fiozinho de lógica ocidental por vez? Minha experiência me dizia que a mente afegã não funcionava em termos de dicotomias, pelo menos não muito além da monumental oposição entre homens e mulheres, ou entre mulheres boas e más; e até mesmo essa última distinção parece um tipo de defesa psicológica, o mesmo que geralmente usamos nos EUA para distinguir as pessoas boas (nós) das más (os outros) e que rapidamente se desfaz no complexo coração de uma boa muçulmana afegã, como Zulal. Mas deixa para lá. Eu tinha de prestar atenção.

“Tudo bem, agora já determinamos que é um crime com testemunhas. Qual é a próxima pergunta que precisamos fazer?”

Nova perplexidade. Mas a elétrica professora não desanima. Ela começa a se vestir cada dia com uma roupa afegã diferente, feita à mão, como se para mostrar aos alunos que ela é exatamente como eles, portanto, o que ela tenta ensinar não pode ser muito difícil. Incansavelmente, dia após dia, ela arranca as respostas das mentes assombradas dos advogados por pura força de vontade. Se for possível para alguém transformar os processos de defesa nos tribunais de Cabul, é essa a mulher que vai conseguir fazê-lo. Mas me pergunto em que essa transformação — se vier a ocorrer — vai beneficiar as mulheres. Estou assistindo ao curso porque me disseram que ele traz enormes possibilidades para mulheres acusadas de crimes, mas, tendo sido encorajada a encontrar dicotomias, vejo-me encerrada em uma dicotomia fundamental: quem disse que o advogado que aprendeu a defender o ladrão de tapetes, sem inutilmente perguntar se ele precisa de um, vai defender a mulher do ladrão de tapetes?

Um ano mais tarde, vou a um congresso sobre direitos da mulher realizado por membros do Judiciário trabalhando na Suprema Corte. Na ocasião, a ministra dos Assuntos da Mulher, Massouda Jalal, reclama dos mais eminentes juristas afegãos, que, apesar das mudanças na política e no governo do país, as mulheres permanecem sem direitos. Os próprios eminentes juristas emitem suas opiniões sobre essa situação e sobre as leis que regem o destino das mulheres. Talvez porque poucos deles tenham muita formação jurídica, não dizem nada a respeito de crimes com testemunhas ou sem testemunhas, nem sobre a regra do terceiro excluído, nem, tampouco, sobre prazos de detenção ou outros assuntos abordados no treinamento intensivo para advogados de defesa. Em vez disso, os influentes magistrados recitaram versos do Corão, em árabe. Nenhum deles parece realmente saber árabe, além dos versículos favoritos que decoraram para fundamentar seus votos no tribunal, de modo que o debate que resulta é uma série de monólogos incontestados, e não uma discussão que poderia levar a um consenso através de um processo de concessões recíprocas. Os juristas não estão interessados nas sutilezas do código penal. Isso é preocupação dos consultores internacionais que dão cursos de treinamento sobre textos e detalhes técnicos da lei escrita. Os juristas estão interessados em Deus, em seu Profeta e embora não o digam, em seus próprios lugares confortáveis no bolso de comandantes locais como Abdul Rasul Sayyaf e o ex-presidente Burhanuddin Rabanni, que, dos bastidores, moldam as políticas e as decisões da Suprema Corte.110 Há rumores de que esses homens sejam os arquitetos do recente confisco ilegal de áreas nobres em Cabul e que tenham colaborado com Mohammed Fahim, ex-ministro da Defesa no governo do presidente Karzai, que orquestrara o confisco, particularmente lucrativo, da área de Sher Pur. O confisco é “legitimado” por decisões do tribunal e de seu próprio presidente, sendo apoiado pela corrupção sistemática no Ministério da Justiça e como amplamente se acredita, nos altos escalões do governo.111 Quando ocorreu o confisco de Sher Pur — que retirou moradores de terras públicas e transferiu terrenos com valor de até 170 mil dólares para pessoas de dentro do governo e do Exército —, apenas quatro ministros do governo recusaram-se a participar.112

O presidente do tribunal era um tipo alto e imponente em mantos pardos, podendo ser confundido com Deus, ostentando sua longa barba branca e seu belo turbante branco. Clérigo muçulmano, havia ensinado a lei da Sharia, durante décadas, em uma madrassa no Paquistão, antes que o governo interino o nomeasse, em 2002, para a presidência da Suprema Corte. Ele sobe à tribuna ladeado por filas de seguranças vestidos de preto com armas automáticas, em uma exibição de poder que revela a natureza política de seu cargo. Ele diz aos participantes do congresso que as mulheres, sob o Islã, têm todos os direitos de que precisam e também privilégios especiais não conferidos aos homens. Os privilégios são três. Primeiro, as mulheres têm o privilégio de rezar, exceto quando impuras pela menstruação. Ele não precisa lembrá-las de exercer esse privilégio em casa; as mesquitas são reservadas aos homens. Segundo, as mulheres têm o privilégio de obedecer a seus maridos. E terceiro, as mulheres têm o privilégio de se abster de cometer ações más. Ele aponta como um pri­vilégio especial “extra” das mulheres o fato bastante conhecido de que os homens afegãos irão à jihad para protegê-las, como se as mulheres devessem ser gratas pelo presente de vinte e três anos de guerra. Há muito mais em seu longo discurso, sobretudo advertências para que as mulheres na plateia não se deixem arrastar pelos costumes corruptos do mundo ocidental, onde as mulheres são exploradas como objetos sexuais. Mas sobre o direito afegão e como ele poderia se relacionar com os direitos da mulher de acordo com o Islã ou com seus três privilégios perfeitos, nenhuma palavra. Os oradores seguintes fazem variações sobre o mesmo tema. Um discute até que ponto a mulher deve exercer seu direito à oração, e as recompensas celestiais que ela provavelmente conquistará. Alguns expõem o entendimento de que o Profeta permite que as mulheres recebam instrução, mas outros objetam. Outro promete que as mulheres terão seus direitos “na outra vida”.

Não é que esses juristas obstinadamente misóginos não tenham jamais ouvido a perspectiva mais liberal de acadêmicos islâmicos muito mais qualificados do que eles. As organizações internacionais têm ocasionalmente importado especialistas de lugares como a Malásia, a Índia, o Irã e Bangladesh para atualizar os juízes talibãs no sistema judiciário afegão. Em um congresso nacional sobre Direitos da Mulher, Direito e Justiça no Afeganistão, promovido, em maio de 2003, pelo Grupo Internacional de Direitos Humanos e financiado pela Unifem (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher) e pelos governos da Alemanha e da Itália, ao qual compareceram os mesmos magistrados afegãos conservadores, um acadêmico islâmico após o outro explicou, com meticulosas referências ao Corão, exatamente quando, onde e como, ao longo da História, o Islã fora distorcido por “vestígios de tradições e costumes árabes”; “fé excessiva em hadith (declarações do Profeta) apócrifos e pouco sólidos, que apresentam a mulher como intelectual e moralmente deficiente”; “práticas tribais”; “valores patriarcais enraizados”; uma tendência obsessiva a “dar ênfase excessiva à sexualidade”; e uma concepção “medieval” de mulher que “se tornou o padrão dominante, em clara oposição à práxis e ao modelo estabelecidos durante a época do Profeta”.113 O Dr. Mohammad Hashim Kamali, professor de Jurisprudência em lei islâmica na Universidade Islâmica Internacional, na Malásia, disse à plateia de islamitas afegãos que também o Islã fora distorcido pela “ascensão do moderno conservadorismo do século XX, e pela atual onda de islamismo que continua a evocar o tema da deficiência física e mental, inata às mulheres, como justificativa para sua perspectiva invejosa”. Como consequência, disse o professor, “atitudes patriarcais se interpuseram aos direitos da mulher à igualdade”, em clara contradição com “a evidência do Corão; e “mediação cultural e práticas preconceituosas corroem os direitos da mulher mesmo naqueles casos em que a legislação, e até a política oficial, determinam o contrário”.114 Todos os outros especialistas islâmicos importados pareceram concordar com a denúncia que o professor ­Kamali fazia do islamismo invejoso, e os próprios islamitas invejosos da plateia aplaudiram educadamente. Apesar disso, em todos os congressos jurídicos de que participei, os discursos seguiam o velho estilo invejoso. Cada reunião se abre e se encerra com noções populares do Islã — ou melhor, do pseudo-Islã, sequestrado pelos pontificadores patriarcais — entremeadas com lembretes medievais da diferença biológica que confere às mulheres o direito muito especial de serem protegidas pelos homens. Ninguém jamais chega às especificidades do Direito, porque é preciso esgotar, primeiro, as generalidades do “Islã”, e o Islã é, por natureza, inesgotável.

Finalmente uma professora de Direito da Universidade de Cabul ergueu-se na plateia para dizer: “A caneta que registra os direitos da mulher está sempre na mão de um homem”. Os homens riem. Ela continua: “A caneta que registrou o sagrado Corão estava nas mãos de um homem”. Os homens param de rir e, no silêncio reprovador que se segue, a mulher afunda em sua cadeira. E, assim, os homens continuam falando. Como prova incontestável de que as mulheres são criaturas inferiores, indignas de direitos humanos; um deles cita os “três dias de doença” que acometem a mulher todo mês. Tantos outros repetem o argumento que eu puxo uma colega afegã de lado e pergunto: “Vocês realmente só menstruam três dias?”. Ela ri: “Claro que não, mas, se soubessem o número de dias que ficamos ‘impuras’, eles nos enterrariam vivas”. Quando o congresso termina, dois dias depois, já está claro que muitas outras informações são também desconhecidas dos mais eminentes juristas do país. Um grupo, depois de dois dias de discussão, ainda debate se pessoas acusadas de crimes têm o direito de defender-se no tribunal. Os juízes não conseguem concordar a respeito da lei porque parecem não saber do que se trata.

 

Os “especialistas” internacionais que “treinam” afegãos em prática e teoria legais não conseguem muito mais. Qual é exatamente a natureza do direito afegão? Incontáveis workshops, treinamentos, congressos, manuais e pesquisas dedicam-se a defini-lo. A melhor exegese que ouvi foi apresentada em outro treinamento para advogados de defesa por um eminente acadêmico árabe em direito islâmico que trabalha com direitos humanos para a ONU. Ele tinha uma vantagem sobre os juristas afegãos citadores do Corão, porque o livro está escrito em sua língua. Mas, ao contrário deles, ele não começou pelo Islã. Em vez disso, explicou que a Constituição afegã de 2004 tem precedência sobre qualquer outro tipo de lei no país, incluindo a Sharia, e que ela acolhe os princípios dos principais documentos internacionais de direitos humanos, isto é, a Declaração Universal dos Direitos Humanos; o Tratado Internacional de Direitos Civis e Políticos e a CEDAW: Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e, especificamente, atribui vários deveres ao Estado (incluindo ação afirmativa) para garantir que as mulheres obtenham direitos iguais aos dos homens. A Constituição também especifica que “nenhuma lei pode ser contrária às crenças e prescrições da sagrada religião do Islã”.115 Mas é exatamente a inclusão desse artigo, afirma o acadêmico árabe, que demonstra a suposição constitucional de que os princípios dos direitos humanos, os princípios do Islã e a própria Constituição coincidem em consonância justa e harmoniosa. Diferentes escolas de jurisprudência islâmica atribuem diferentes direitos e restrições para as mulheres, disse; mas entendidos coletivamente como “Islã” — a palavra utilizada pela Constituição —, eles indicam que os direitos da mulher são iguais aos do homem. “Brilhante”, pensei. “Ninguém pode discordar disso.” Mas os homens em “treinamento” conseguiram discordar, em voz alta e por um bom tempo. “Não, as mulheres não podem se divorciar.” “Não, as mulheres não podem viajar sem um acompanhante do sexo masculino.” “Não, as mulheres não podem ser mulás. Nem imames. Nem presidentes. Não. Não. Não.”

Mais tarde, repeti a explicação do acadêmico árabe para um especialista legal alemão que assessora agências alemãs em Cabul e para um acadêmico americano que assessora o governo afegão. O alemão disse: “Não, desculpe. Ele está errado”. E começou a dissecar, dolorosamente, a teoria do acadêmico árabe, sendo, porém, logo interrompido pelo americano, que concordava que o acadêmico árabe estava errado, mas que discordava do alemão sobre exatamente onde e por que ele estava errado. Coloquei a cabeça nas mãos e rezei para que nenhum italiano entrasse na discussão. Os italianos — dentre todas as nações doadoras que estavam supostamente ajudando o Afeganistão — foram escolhidos para pôr em ordem e reconstruir o sistema judiciário afegão. Os italianos. Muitos funcionários da ONU e de ONGIs sugerem que os italianos recebam ajuda. Quando estão em particular, brincam que a jurisprudência italiana é perfeita para o emergente estado narcomafioso do Afeganistão.

Esqueça o direito. Mesmo que uma lei aplicável seja identificável, não pode ser adjudicada na maior parte do país, porque a maior parte do país não tem tribunais que pertençam ao sistema judicial do governo central. Em grande parte das províncias, os prédios dos tribunais foram destruídos. Os que restam ou foram reconstruídos ou não têm pessoal, porque os juízes a eles designados preferem permanecer na segurança de Cabul. Tribunais de apelação deveriam ter três juízes; os de Cabul têm seis ou sete, enquanto os das províncias não têm nenhum. O governo central e seu sistema judiciário simplesmente não têm autoridade na maior parte do país, que permanece “insegura”. Os juízes do Congresso da Suprema Corte concluíram que “o governo deve estabelecer, em todo o país, o Estado de direito de acordo com o Islã e por intermédio da Constituição afegã, de outras leis e regulamentos nacionais, e de documentos internacionais....”.116 Esse é um plano necessário, e já está mais do que na hora de ser posto em prática, mas mal dá para imaginar como poderá ser implantado.

Então eis o que realmente acontece, mesmo em Cabul, para restaurar o equilíbrio social quando alguém comete um “crime”: a família do acusador e a família do acusado se reúnem e chegam a um acordo. O segundo marido de Latifa (ou seu irmão) paga ao primeiro marido. O marido número um retira a queixa contra o marido número dois, que fica livre. Talvez o marido número dois goste o suficiente de Latifa para negociar também sua liberdade, talvez não.

Quando o suborno falha, pode haver ameaças, entre famílias ou entre uma família e as autoridades. Uma professora de Direito contou-me sobre sua breve carreira como juíza, há mais de vinte anos. Seu primeiro caso (em Cabul) foi o de um jovem que assassinara seu professor, em um crime particularmente cruel e brutal. Ela condenara o jovem a quinze anos. No dia seguinte, alguns homens foram à casa dela e ofereceram a seu marido muito dinheiro para que ela absolvesse o condenado. Ela devolveu o dinheiro. Naquela noite, os homens voltaram e disseram ao marido que, se ela fosse novamente ao tribunal, seria assassinada. “Foi o começo e o fim de minha carreira de juíza”, disse. Ela lecionou na escola secundária por quinze anos antes de ousar voltar ao Direito como professora universitária. “Ser juíza ou mesmo advogada não é um trabalho seguro.”

 

Sob leis tribais e do costume, como o código pashtunwali dos pashtuns, as negociações entre famílias são codificadas. Assassine uma esposa favorita e você deverá à família dela (o marido) quatro cópias novas do Corão, quatro mulheres e uma ovelha gorda. Se você não pagar, o marido terá todo o direito de matá-lo. Esse ato pode parecer simples vingança e, de fato, ser motivado por vingança badal, ou o desejo por vingança pode ficar cozinhando por anos em um coração pashtun, mas o assassinato compensatório parece ao afegão uma retribuição apropriada: uma compensação que recoloca em equilíbrio a balança da justiça social. Crimes menores também têm compensações prescritas, ou blood money (pagamento por sangue); e para ferimentos causados durante as incessantes disputas pashtuns também foram elaboradas compensações. O ferimento que faz com que um homem perca um olho ou uma orelha vale meio assassinato. Um corte nos genitais de um homem equivale a dois assassinatos e deve ser compensado por um número ainda maior de ovelhas e mulheres e cópias do sagrado Corão.117 O problema das mulheres em Welayat — para as mulheres afegãs, em geral — é que poucas têm o valor de uma esposa favorita e nenhuma vale nem a metade dos genitais do mais desprezível dos homens. Imprestáveis como são as mulheres, quem vai fazer um acordo por elas?

 

 

Homa era uma das mais queridas entre as guardas e as outras prisioneiras de Welayat; sua alegria parecia uma dádiva raríssima por aqui. O sorriso iluminava seu rosto bonito. Ela também parecia mais saudável: uma figurinha gorducha entre filas de mulheres emaciadas, subnutridas. Parecia ter tido uma vida mais feliz, mais confortável, até ser presa. “Acho que é porque ela não tem marido”, disse Zulal.

Ela tivera um marido, uma vez, lá pelos 16 anos, mas ele morrera nas guerras, deixando-a com um bebezinho. Embora outros homens a tivessem procurado, ela escolhera permanecer viú­va, morando com os pais, irmãos e irmãs mais jovens solteiras, criando seu filho. Vivera feliz por dez anos, contou, até que, certo dia, um primo, cuja proposta de casamento ela recusara, encontrou-a sozinha em casa e estuprou-a. Ela não denunciou a agressão porque, a despeito da abundância de leis no Afeganistão, não há lei específica contra o estupro. Em vez disso, o estupro é tratado em um subparágrafo da lei contra o adultério; uma mulher que denuncia um estupro é presa, acusada de adultério e permanece encarcerada enquanto os investigadores decidem se ela consentiu ou não o ato.118 Ela fez sexo, não fez? Mas, após o estupro, Homa vivera com medo de que o primo voltasse e tentasse estuprá-la novamente, que foi exatamente o que ele fez. Mas dessa vez ela estava preparada. Jogou querosene nele e acendeu um fósforo. Ele saiu da casa correndo, aos gritos, e foi rapidamente levado para o hospital.

Homa disse que, quando ela explicou ao pai de seu primo o que acontecera, ele acreditou imediatamente na veracidade da história. Ficou profundamente envergonhado pelas ações do filho e ofereceu-se para compensar o pai de Homa com ovelhas e outros bens, mas, antes que chegassem a um acordo definitivo, chegou do hospital a notícia — cerca de três dias depois do incidente — de que o homem tinha morrido. Depois disso, o pai acusou Homa de assassinato e exigiu que fosse condenada à morte. Ela alegou que agira em legítima defesa e que só pretendera afugentar o primo, não matá-lo. Ela acreditava que ele não tivesse tido queimaduras graves e imaginava que talvez tivesse morrido de outras causas, ou simplesmente por negligência médica, uma ponderação razoável, dado o lastimável estado dos hospitais de Cabul desde o período do Talibã, mas que não foi explorada. Quando conversamos com Homa, ela já estava encarcerada em Welayat havia vários meses enquanto seu caso era investigado, mas, recentemente, o investigador chegara a uma conclusão: ela era culpada de homicídio premeditado. Afinal, ela não matara o primo durante o ato do estupro. Em vez disso, esperara que ele tentasse novamente e “armara um plano”. O investigador sugeria que também havia outra possibilidade, embora ele não tivesse provas que a substanciassem, a não ser por aquilo que ele conhecia da verdadeira natureza das mulheres. Talvez não tivesse havido estupro nenhum. Talvez Homa tivesse seduzido o primo e, depois, assassinado-o a sangue frio para esconder o fato.

As coisas pareciam cada vez piores para Homa, e o pai do morto viu uma oportunidade de receber alguma compensação. Ele ofere­ceu resolver a coisa toda em troca de várias ovelhas gordas ­­(a quantidade era negociável) e duas das irmãs mais novas de Homa. É um costume antigo — chamado bad ou bad-la — oferecer mulheres e meninas como compensação. Geralmente as mulheres ou meninas são dadas em casamento a homens da família da “vítima”. Frequentemente tornam-se segundas (ou terceiras, ou quartas) esposas, proporcionando tanto trabalho doméstico como serviços sexuais, enquanto aquele que perpetrou o crime original fica livre. Uma vez que une as duas famílias — a do agressor e a da vítima — por meio desses casamentos múltiplos, acredita-se que seja um modo particularmente eficaz de remediar as coisas. Mas como as mulheres não têm voz na transação, nem meio seguro de iniciar um divórcio, aquelas que são forçadas a se casar como compensação tornam-se, na verdade, escravas. No Ocidente, tal acerto seria, em si, um crime, mas, sob a lei afegã do costume, é um remendo prático que, acredita-se, restaura, mais uma vez, o delicado tecido social. O problema é que parece restaurar uma sociedade feita exclusivamente de homens — uma sociedade em que as mulheres servem, como ovelhas, de ficha de barganha.

Outro problema, revelado por uma pesquisa recente, é que o sistema de bad na verdade não restaura, nem de longe, as relações sociais, mas, ao contrário, frequentemente piora a situação de todos os envolvidos. Além disso, provavelmente provoca aumento na criminalidade por permitir que autores de crimes fiquem impunes. Um estudo sobre a prática de bad em dez províncias, incluindo 50 casos na cidade de Cabul, concluiu que “como consequência, o sistema familiar inteiro se desintegra”.119 Alguns homens sofrem por serem forçados a entregar mulheres e meninas que eles poderiam vender, ao passo que outros podem se ver sobrecarregados com mulheres que não desejam, mas que são obrigados a sustentar. As principais vítimas são as meninas e mulheres. O relatório está cheio de casos como o da senhorita Z., que fora entregue como bad à família de um homem que seu irmão matara e que conseguira escapar depois de três anos apenas para ser caçada e morta pelo sogro. Crimes como esse são encobertos, diz o relatório, porque, embora “estejamos ­testemunhando a escravidão de mulheres no século XXI, ninguém se importa com a miséria e o sofrimento de alguém que foi utilizado como peça de resolução de conflito”.120

 

O Judiciário afegão não parece se importar. Oficialmente, o tribunal censura a prática de bad, como nesta recomendação apresentada em 2005 por magistrados que estavam participando do Congresso da Suprema Corte: “O governo deveria agir para erradicar costumes danosos e discriminatórios incompatíveis com o Islã e as leis do país, tais como entregar mulheres como indenização, prática proibida pelo Artigo 517 do Código Penal”.121 Apesar disso, os juízes continuam acreditando que o sistema de bad funciona muito bem para restaurar a harmonia entre homens — as únicas pessoas, afinal, que realmente importam — e geralmente acatam tais acertos informais, em vez de dar-se ao trabalho de encontrar uma lei aplicável e realizar um julgamento para fazê-la cumprir. O próprio presidente da Corte de Apelação de Cabul, ao mesmo tempo que considerava a pena de morte para Homa, fez saber que o tribunal aceitaria um acerto dessa natureza e permitiria que ela saísse livre. Mas Homa recusou-se a permitir que suas irmãs fossem entregues, mesmo para salvar a própria vida. Essa decisão confirmou a opinião afegã de que ela era uma mulher má, tão má que se recusava a submeter-se à vontade dos homens para o bem da “sociedade”. Ainda assim, o juiz foi político o suficiente para perceber que executar uma viúva não ficaria bem para o Talibã. Não seria bem aceito pelos doadores internacionais que sustentavam o país. Ele poupou a vida de Homa e condenou-a a quinze anos de prisão.

 

 

Certo dia, enquanto conversávamos com Homa, sobressaltamo-nos ao ouvir um tumulto no corredor e o som de homens gritando ordens. Alguém afastou o cobertor sobre a porta e uma luz ofuscante cegou-nos. No instante seguinte, estávamos cercadas de homens vociferando. Um deles enfiou uma câmera de TV no rosto de Zulal, enquanto outro — um intérprete afegão — perguntou-lhe, em dari, qual crime ela cometera. Era uma equipe de TV italiana que viera, como dezenas de jornalistas ocidentais antes deles, para filmar a mais popular história jornalística de interesse humano do Afeganistão: as mulheres na “prisão de Cabul”. A cinegrafista era uma jovem italiana que pediu que eu saísse para que minha presença ocidental não estragasse as imagens que ela captava. Era inútil tentar continuar nosso trabalho ou explicar como esse furioso assalto de homens e máquinas amedrontava e humilhava as prisioneiras. A equipe tinha um trabalho a fazer e pagara um belo suborno aos guardas para fazê-lo. “Não se preocupe”, disse a repórter. “Isso vai gerar muita solidariedade para essas mulheres. Esse lugar é tão horrível! É uma super história”. Virou-se para a cinegrafista que ainda filmava Zulal, que lutava para levantar-se: “Isso é esplêndido! Ela está tão arrasada. Está tão magra”.

Essa história e muitas outras semelhantes, naquele inverno, incluindo uma no New York Times, que conseguiu usar os termos “aconchegante” e “iluminado” para se referir ao presídio feminino —, provavelmente contribuíram mesmo para gerar, em todo o mundo, muita solidariedade para com as mulheres afegãs e comiseração pela prisão de leis medievais que confina suas vidas.122 Era também uma história importante para contrabalançar os relatos ufanistas do governo Bush sobre as recém-libertadas novas cidadãs do Afeganistão. Mas não ajudava muito as mulheres afegãs. Encorajava estrangeiros como eu a vir e a “estudá-las”, a realizar “levantamentos de necessidades” e “estudos de vulnerabilidade” (no jargão do negócio de ajuda), a escrever relatórios e esperar que alguém — alguém com mais poder, mais força, mais influência — fizesse alguma coisa.

Quando Beck publicou seu relatório sobre as meninas e mulheres de Welayat, em Cabul, em março de 2003, inseriu duas páginas de recomendações. A primeira nada a tinha ver com o Direito. Dizia: “Recursos deveriam ser imediatamente disponibilizados e uma agência responsável deveria ser selecionada para reformar a casa de detenção em que ficam atualmente as mulheres e seus filhos”.123 Começar pelo começo. Mas mesmo a recomendação de Beck estava escrita na forma universalmente prescrita para relatórios oficiais em toda a parte: a voz passiva. Ele se presta esplendidamente à indignação moral sem, na verdade, imputar culpa ou atribuir responsabilidade. Destinatários de boa-fé podiam ler o relatório, discuti-lo, até mesmo debatê-lo de forma indignada e, sobretudo, concordar que algo deveria ser feito por alguém. E depois arquivariam-no em F, de Frauen die Helfen ou em W, de Welayat, ou em outro lugar em que nunca mais o encontrariam, mas não sem antes anotar seu título em seus próprios relatórios trimestrais de trabalho como um item ao qual haviam devotado algum tempo. Os esforços são sinceros, escrever, ler, debater indignadamente, arquivar. A circulação de relatórios na voz passiva, assim como a circulação de Land Cruisers brancos pelas ruas de Cabul, é o que alimenta o negócio da ajuda. Beck trabalhara durante meses para reunir todos os fatos, fazer todos os contatos, marcar todos os encontros, realizar todas as entrevistas, participar de todas as reuniões e organizar todas as informações que deveriam constar de seu relatório. Depois, ela o escreveu. Revisou. Publicou. Depois disso, durante muitos meses, não aconteceu nada.

Foi aí que Rosemary Stasek chegou a Cabul. Rosemary não estava no negócio de ajuda. Ela havia galgado posições em Silicon Valley até abrir sua própria empresa de desenvolvimento de redes em Mountain View, Califórnia; mas, no fundo, era uma política. Possuía a energia de uma jovem e a antiquada idéia de que o propósito do governo é promover os interesses das pessoas comuns. Na área ao redor de Mountain View, onde Rosemary integrara a Câmara de Vereadores antes de se mudar para o gabinete de prefeita, muitas das pessoas comuns eram américo-afegãs. Desde a década de 1970, quando afegãos politicamente persegui­dos começaram a fugir do país em grandes números, milhares ha­viam chegado à Califórnia e à região que incluía a cidade de Rosemary. Como uma boa política, preocupada com seus eleitores, ­Rosemary visitou seus bairros, ouviu suas preocupações, participou de seus eventos para arrecadar fundos, comeu em seus restaurantes e comprou peças de artesanato e tapetes de lojas que enviavam os lucros para as viúvas em Cabul. Em 2002, ela se inscreveu para fazer uma viagem educacional de duas semanas pelo Afeganistão, para aprender mais sobre o país. Em Cabul, deu um jeito de conseguir audiências com ministros de Estado e reuniu-se com o presidente Karzai para discutir a situação, de político para político. Usando seu jeito fascinante, ela perguntou-lhe: “E quanto aos direitos da mulher?”, e ele respondeu: “Isso. Exatamente. E quanto aos direitos da mulher?”. Ela lhe disse que aquilo que seu governo fizesse pelas mulheres iria determinar, em última análise, a imagem que os americanos fariam dele.

Rosemary voltou para a Califórnia trajando uma camisa afegã bordada, nova, e começou a fazer discursos e apresentações com ­slides. Falou no rádio e na TV. Escreveu artigos para os jornais. Ela era uma figura bem quista em seu bairro. As pessoas gostavam de seu rosto, bem-disposto e franco, de sua atitude positiva e de seu website, em que contava aos eleitores o que estava fazendo. Ela era um pequeno milagre local da política americana: uma servidora pública empenhada, realizadora, dotada de princípios e totalmente transparente. No filme antigo que é sua vida na política, ela seria representada por Jimmy Stewart, movendo-se rapidamente. Seus eleitores fizeram doações e, em junho de 2003, Rosemary voltou a Cabul com cinco mil dólares e a obrigação de gastá-los para o bem das mulheres afegãs. Ela conversara com ativistas dos direitos da mulher que conhecera em um encontro anterior, e Beck Bradshaw lhe dissera: “Por que você não dá um jeito no presídio?”.

A cadernetinha de bolso que Rosemary levou naquela visita está cheia de números: medidas de portas e de batentes e de fios elétricos, e os números de celular de homens e mulheres cujos primos ou tios são carpinteiros ou encanadores ou sabem alguma coisa de eletricidade. Outras anotações registram seu progresso. Não desejando enviar homens para a prisão feminina, ela busca em Cabul boas trabalhadoras com prática. Há rumores de que existem mulheres que trabalham em obras para a Mercy Corps, mas, quando visita o local, ela descobre que “tudo que elas fazem é passar o martelo para os homens”. Ela confabula de novo com a diretora da prisão. Vão ter de ser homens. Mas encontrar os homens certos também é um problema. “Sr. Habibi, primo Najib, tem mano pedreiro freelance talvez.” “Marido da Soraya: conhece pintor?”. E números de telefone. Essa é sua anotação de 12 de junho: “Dia horrível quando os empreiteiros apareceram, foram à prisão, tiraram medidas e coisa e tal e voltaram com um preço de 25 K. Não!”. Mas ela não se deixa desanimar. Depois de um “almoço delicioso”, dá mais telefonemas. E há, então, mais páginas de diagramas e mais medidas e, finalmente, uma pequena lista que será a base de um contrato:

 

 

• 5 aposentos;

 

Rebocar

Pintar

+ teto

com fiação

$ 3.500 US

+ 840 US (pintura, 280 m2)

$ 4. 340 US

 

Esse valor ainda deixa um resto de dinheiro. As páginas seguintes estão cheias de coisas que ele poderia comprar: lençóis, remédios, absorventes, roupa de baixo, cigarros, sabonete. O resto do diário registra viagens frenéticas: ao mercado para comprar tecido fosco para cortinas; à costureira, com tecidos e medidas de janelas; e, quase todos os dias, à prisão, para verificar o trabalho de pedreiros, pintores e eletricistas. Ela elogia o trabalho, insiste que se refaça o que foi malfeito, pede mais primos para que o trabalho vá mais rápido.

Ao final, os cinco aposentos principais da prisão receberam fiação para eletricidade, foram rebocados, pintados de amarelo-claro, acarpetados com carpetes industriais finos e guarnecidos de cortinas azuis. Os tetos receberam acabamento em painéis branco. Há lençóis nas camas. Rosemary faz outra lista na parte de trás de sua cadernetinha — a lista de coisas ainda a serem feitas na prisão:

 

1. reconstruir o corredor;

2. construir um, ou melhor, dois banheiros;

3. séptico;

4. reformar o 6o aposento;

5. cozinha???

 

Durante o ano seguinte, algumas ONGIs finalmente começaram a trabalhar em alguns dos itens da lista de Rosemary. “Você os humilhou”, Beck diria depois. Enquanto inspeciona os cinco aposentos reluzentes no coração do lúgubre Welayat, Rosemary se sente feliz. “Não dá para fazer tudo”, diz. Ela ainda tem 20 dólares para gastar. Gasta-os em um pequeno frasco de perfume Christian Dior, um presente para Beck por ter-lhe dado uma idéia tão boa e tanto apoio. E volta para a Califórnia e para seus eleitores. Ela ficara duas semanas em Cabul.

 

 

Depois disso podíamos começar a pensar nas outras necessidades das prisioneiras e em seus direitos. A FDH enviava uma psicóloga, grande e maternal, chamada Zorha uma vez por semana ao presídio para conversar com as internas. Trazia médicas voluntárias germano-afegãs — sempre mulheres — ao presídio (e aos hospitais locais) para cuidar das mulheres e de seus filhos. Iniciou um programa de assistência jurídica, liderado por uma criminologista austríaca, para treinar advogadas de defesa a ajudar as mulheres a saírem da prisão. As guardas começaram a resmungar que as prisioneiras viviam melhor do que elas, então o pessoal da assistência jurídica iniciou um programa, chefiado pela jovem Marzia, para levar as guardas e o presídio ao nível das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros prescritas pela ONU. O projeto ofereceu a elas treinamento em administração, comprou cadernos e canetas, criou formulários para que mantivessem um registro dos visitantes, de problemas médicos e de entrevistas com advogados. Ensinou-lhes os direitos básicos das prisioneiras e os deveres profissionais do pessoal da prisão. Ensinou-lhes a informar ao advogado de defesa quando uma prisioneira fosse convocada ao tribunal. Comprou-lhes um armário e uma escrivaninha de verdade.

Certa manhã, em fevereiro de 2005, quando a neve caía pesadamente em Cabul, Zulal e eu fomos com Rosemary visitar novamente o presídio. Vinte meses haviam decorrido desde que Rosemary fora, pela primeira vez, trabalhar lá; dezesseis desde que o programa de assistência jurídica iniciara seu trabalho; dois anos desde que Zulal e eu passamos todas aquelas longas tardes tremendo de frio em nossos casacos de inverno enquanto as mulheres contavam suas histórias. Nesse tempo, tudo parecia haver mudado. A velha porta de madeira fora substituída por uma porta moderna, de aço, pintada de verde. A seu lado erguia-se uma guarita recém-construída, com uma placa: “Bem-vindo ao presídio feminino”. Mas a guarda não queria nos deixar entrar. Quem a gente pensava que era, afinal de contas, aparecendo lá sem marcar hora? “Ótimo!” disse Rosemary. “Não dá mais para simplesmente ir entrando, ou para subornar alguém. Esse é um grande progresso.” Vimos então Zarmina, a diretora, aproximando-se em meio à neve; uma mulher grande e roliça, embrulhada em xales pretos, materializando-se na brancura do ar. Ela reconheceu Rosemary de longe e correu para abraçá-la. Ela nos envolveu em seu xale volumoso e nos conduziu rapidamente pelo portão verde.

Lá dentro, caminhamos por um corredor bem iluminado. As paredes estavam pintadas de branco. Lâmpadas elétricas brilhavam no teto. Um carpete cinza se estendia sob nossos pés. Entramos em seu escritório, outrora uma cela em ruínas. Duas advogadas de defesa da FDH estavam sentadas ao lado da estufa à lenha, bebericando chá, esperando para falar com as prisioneiras recém-admitidas. ­Zarmina, radiante, tirou um pacote de biscoitos de uma gaveta repleta de livros de registro. Eu disse: “É bom vê-la em um escritório decente, em uma mesa decente”.

Rosemary protestou: “Eu gostava mais quando a gente se sentava junto na sala das guardas e conversávamos sobre qual cor usaríamos para pintar as paredes”.

“Nunca mais vou lá”, disse Zarmina. “Agora é um aposento para prisioneiras. Tenho esse escritório”. Era uma mulher que recebera boa educação, com mestrado em criminologia, mas que passara anos sentada em uma cama de ferro, fazendo chá em um fogareiro de propano. Ela ainda ganhava menos de 70 dólares por mês e ficava feliz se o pagamento não atrasava. Mas, agora, era uma profissional. Lançou o xale sobre os ombros e fez um gesto largo, que englobava a mesa, as cadeiras, o armário e a mesinha onde uma jovem interna enchia xícaras de chá. Ela disse de novo: “Nunca vou lá”.

— É um ótimo escritório — disse Zulal.

Mais tarde, caminhamos juntas pelo presídio, entrando em cada aposento, cumprimentando as mulheres, desejando-lhes sorte. Eu perscrutava os rostos, esperando que as mulheres que conhecera já tivessem saído. Rosemary olhava as paredes, as cortinas, o chão. Cada aposento tinha agora lâmpadas elétricas e uma estufa de madeira emanando calor. Os cinco aposentos que o grupo de Rosemary reconstruíra ainda estavam bons, embora as paredes estivessem escurecidas pela fuligem das estufas. “Você pode lavá-las na primavera”, disse, alegremente, Rosemary. Os dois aposentos para prisioneiras e o banheiro pequenino, apenas um buraco no chão, reformados depois por grandes ONGIs, já estavam em mau estado. “Eles gastaram dezenas de milhares de dólares”, disse ­Zarmina, “mas não prestaram atenção. Alguém ficou com o dinheiro e nos deixou com isso. O que eles têm a ver com tudo isso? Não é o dinheiro deles. Não é o presídio deles. Mas, veja, deveria ser refeito”. Lá fora, no pátio, dois homens com picaretas atacavam o chão de cimento que fora instalado no verão anterior, pago por outra grande ONGI. Os canos de água estavam bem abaixo, congelados. “Minha nossa”, disse Rosemary. “Mais gente que não está prestando atenção.”

Adentramos a ala mais distante do prédio, a ala que fora reconstruí­da, no ano anterior, por uma agência da ONU. O teto já apresentava goteiras, e a pintura descascava nas paredes deterioradas. Havia 20 máquinas de costura Butterfly, feitas na China e estavam empilhadas em um canto, amontoadas. “As instrutoras vieram somente durante dois meses, no verão passado”, disse Zarmina. “As mulheres queriam fazer roupas para os filhos e outras coisas para vender, mas as instrutoras só trouxeram tecido suficiente para ensiná-las a fazer roupas de boneca. Elas não têm bonecas. As mulheres pararam de vir às aulas. E, assim, as instrutoras também deixaram de vir. Disseram que as mulheres eram ingratas e que não tinham iniciativa.” Ela deu de ombros. “De qualquer modo, não dá para elas costurarem no inverno. Como vocês estão vendo, não tem aquecimento.” Mais adiante no corredor havia um aposento pequeno e frio em que um médico visitante atendia duas vezes por semana, e outro onde as prisioneiras poderiam ser entrevistadas, em gelada privacidade, por investigadores ou advogados. “Essas são melhorias importantes”, disse Rosemary, sorrindo, mas pude notar que ela anotava tudo, metodicamente, fazendo listas mentais.

— E como está o status jurídico das mulheres? — perguntou. — Quais acusações as trazem aqui?

— Está como antes, nada mudou. Fuga de casa. Fuga com um homem. Zina. Roubo, algumas vezes. E drogas. Há mais drogas, agora.

E mais prisioneiras. Havia 40 mulheres em Welayat, agora, e 16 crianças. Havia um sétimo recinto para prisioneiras, além dos seis anteriores, um aposento provido com as tradicionais almofadas afegãs, uma vez que era pequeno demais para ter camas suficientes. Eram 11 mulheres e quatro crianças que dormiam nos tushaks no chão. Havia também um novo presídio feminino, fora da cidade e dentro das muralhas de Pul-i Charkhi, onde, no passado, milhares de presos políticos foram torturados e mortos. Pul-i Charkhi era um lugar, como qualquer gulag, que deveria ter sido preservado apenas como um alerta para a História, ou então reduzido a pó, não reaberto para negócios. Mas o Welayat estava superlotado. Em nove meses, as advogadas da FDH haviam reduzido o tempo que as prisioneiras ficavam detidas esperando julgamento; haviam acompanhado as prisioneiras durante os julgamentos e conseguiram soltar 42 delas. Conseguiram que muitas acusações de cunho moral simplesmente não fossem aceitas. Ainda assim, mais e mais mulheres estavam sendo presas por delitos morais, em claro desacordo com os Direitos Internacionais da Mulher e a Constituição afegã. Era como se o Talibã ainda patrulhasse as ruas, fazendo hora-extra para encher o Welayat mais rápido do que o programa de assistência jurídica conseguia esvaziá-lo. Mas inaugurar outro presídio provavelmente não iria resolver o problema de superpopulação; é um truísmo da ciência penal que a população de prisioneiros se expande até preencher o espaço destinado a sua acomodação. Se você construir, eles vêm. E se a polícia parasse de prender mulheres por delitos morais? E se os juízes banissem dos tribunais esses não-crimes morais? Daí um novo presídio não seria necessário.

“Pul-i Charkhi é tão longe da cidade”, disse Zarmina. “É difícil para as famílias das prisioneiras ir visitá-las. E para as advogadas também. Demora muito.”

— Como decidem quem vai para lá? — perguntei.

— Mandamos as mulheres que vão ficar presas por muito tempo.

Zulal olhou para mim. Será que ela também estava pensando nas veteranas que conhecíamos? As “prostitutas” e “assassinas”? Os rostos de que tão bem nos lembrávamos e que não havíamos visto hoje? Talvez Najela, ou Ejar? Ou Homa?

Mesmo quando as prisioneiras deixam a prisão, elas não estão livres. A vergonha do suposto delito de uma mulher paira sobre ela e sobre sua família. Algumas vezes ela é absolvida nos tribunais e deixa o presídio apenas para ser encontrada morta, alguns dias depois, assassinada por seu pai e irmãos, para limpar o nome da família. O programa de assistência jurídica assumiu uma nova obrigação: garantir a segurança das mulheres que deixavam a prisão graças aos esforços de suas advogadas de defesa. Norinne Fafoe, a criminologista que chefiava o programa, criou uma equipe de mediação — ela própria, a intérprete, a advogada de defesa afegã — para se reunir com a família da mulher antes dela ser solta e para visitá-la novamente depois que houvesse voltado para casa. Elas tentavam manter o grupo de mediação pequeno para não atrair atenção indesejada à família, já arrasada pela humilhação pública, mas houve um caso em que consentiram que eu as acompanhasse.

Amina vivera bastante feliz com seu marido e filhos em um lar que incluía os cinco irmãos de seu marido, suas esposas e uma multidão de filhos. Até que, certo dia, o pai de Amina flagrou seu marido tendo relações com a irmã dela e matou ambos. O pai foi preso por matar o marido de Amina — embora não por ter matado a própria filha, ato justificável que qualquer pai zeloso poderia cometer nessas circunstâncias. Amina também foi presa pelo assassinato de seu marido, com base na peculiar justificativa de que ela deveria ter denunciado o adultério à polícia. Com a ajuda de uma advogada de defesa, ela alegou em juízo, com sucesso, que nada sabia do relacionamento de seu marido com a irmã e foi liberada para voltar para casa e para os filhos. Mas ela estava apavorada. Ainda que a vida de uma mulher não seja tão valiosa quanto a de um homem, ela temia que os cunhados a matassem como compensação parcial pelo assassinato do irmão. Os mediadores e o mulá vieram até a casa para negociar. Os cunhados foram persuadidos a não matar Amina, a mãe dos filhos de seu irmão. Eles decidiram, em vez disso, trancá-la em casa. Ela nunca poderia sair, nem para visitar a mãe. Negociações complementares produziram um acordo, por escrito, um pouco diferente: Amina teria autorização para visitar a casa dos pais, mas somente se informasse, com antecedência, todos os cinco irmãos. Após duas semanas o contrato continuava valendo e a casa continuava em um equilíbrio precário. Ocorreu então que o pai de Amina conseguiu comprar, por meio de suborno, sua fuga da prisão e voltou para casa. Amina quis visitá-lo, e à mãe. Os cunhados não permitiriam. Era nesse pé que as coisas estavam quando visitamos a casa dos cunhados três semanas após a soltura de Amina.

A casa era uma caixa de barro, em meio à fileira de casas iguais no sopé de uma montanha em Cabul. Subimos pelo caminho escorregadio e entramos primeiro em um pátio desolado e, depois, na própria casa. Não havia porta, apenas um cobertor cobrindo a entrada de um aposento pequeno e escuro cheio de mulheres: as cunhadas de ­Amina. Sovavam os tushaks da família, preparando-se para colocá-los em fronhas novas. Cumprimentaram-nos secamente e continua­ram o trabalho. O assunto ligado a sua cunhada parecia enchê-las de uma energia tão agressiva que pensei que as almofadas seriam destruídas pelas pancadas. Apenas Amina estava em um canto, sozinha, uma figura encolhida, sentada com as pernas cruzadas à indiana, afundada em melancolia. Sentamo-nos no chão, e, Laila, a advogada, perguntou a Amina como ela estava passando.

Khub astum.” Estou bem. Não parecia.

A advogada pediu para falar a sós com Amina, mas as cunhadas nem quiseram saber disso. “Nossos maridos não estão em casa”, disse uma delas, pequenina e irascível, que falava alto pelo grupo. Seu rosto estava rajado de pó, e seus pés nus estavam rachados e escurecidos. “Se você falar com ela, as crianças vão contar a nossos maridos, e eles vão nos espancar.” Todas as mulheres estavam furiosas com Amina. “Ela só traz problema”, disse outra.

“Por que ela deveria visitar o pai?”, perguntou uma terceira. “Quem é ela?”

“Será que ela pensa em quem vai ter de cuidar dos filhos dela?”

“As crianças vão chorar e nossos maridos vão nos espancar porque ela não está aqui para tomar conta delas.”

“Será que ela pensa nisso?”

“Ela só traz problema.”

Todas falavam ao mesmo tempo, um coro estridente de vozes ásperas e com expressões duras.

“Vocês não podem ficar aqui. Vocês têm de voltar quando nossos maridos estiverem em casa.”

Laila, a advogada, acertou uma hora e voltamos, uma semana mais tarde, para encontrar os cinco irmãos sentados, em fila, sobre os tushaks revestidos em fronhas novas. Vestidos da mesma forma, com largas calças de algodão, túnicas longas, coletes de lã e ostentando turbantes e barbas idênticos, pareciam ter sido produzidos em massa como, suponho, de certa maneira de fato o foram. O aposento tinha sido limpo. As mulheres haviam lavado o rosto e colocado saias limpas. Estavam todas sentadas no chão, em uma fila em frente à dos maridos, braços envolvendo criancinhas de nariz sujo que nos olhavam com um olhar perdido. Ainda desta vez, Amina estava sentada à parte, em um canto, mas sentada ereta como para mostrar que ainda não tinha sido derrotada. Dirigindo-se ao irmão mais velho, a advogada expressou nosso interesse de que Amina recebesse autorização para visitar a família, de acordo com o contrato original que os irmãos haviam aceitado ao colocar-lhe suas marcas. Ela lembrou-lhes de que Amina estava obrigada apenas a informá-los de onde pretendia ir. “Não”, disse o irmão mais velho. Ela estava obrigada não apenas a notificar os cinco irmãos, mas a obter sua permissão, e eles, por sua vez, estavam livres para não concedê-la, caso em que Amina não iria a lugar nenhum.

O ambiente estava carregado de tensão. As mulheres sorriam maliciosamente e nada diziam. A advogada refletiu por um momento. A intérprete de Norinne apertava freneticamente as teclas de seu celular, procurando, imaginei, o telefone do mulá. Parecíamos estar à beira de uma renegociação longa e amarga quando o irmão mais velho falou novamente: “De qualquer modo, não nos opomos a que nossa cunhada visite a família. É apenas nosso irmão mais novo que se opõe. É a ele, apenas, que vocês têm de convencer. Mas, como vocês podem ver, ele não está aqui”.

O momento passara. Não haveria briga. Mas a decisão continuaria a mesma. Amina não teria permissão para visitar a família.

“Quando poderíamos retornar para conversar com seu irmão mais novo?”, indagou a advogada.

“Isso eu não sei”, respondeu o irmão mais velho. Os outros irmãos não moveram uma palha para informá-lo. O ambiente ficou carregado novamente. O irmão mais velho falava para o ar, olhando por cima da cabeça da advogada. “Na verdade”, prosseguiu, após um longo silêncio, “estamos planejando nos mudar para uma casa maior. Estamos procurando uma casa com um aluguel mais baixo. Logo que encontrarmos uma casa assim, daremos uma festa. Convidaremos o pai de nossa cunhada. Convidaremos vocês”. Os irmãos aquiesceram. As esposas sorriram maliciosamente.

— Essa é uma idéia boa e generosa — disse a advogada. Ela fez uma pausa. — Já é tempo de todos vocês se sentarem e acertarem as coisas juntos.

— Sim — disse o irmão mais velho. — Algumas coisas precisam ser acertadas ou outra pessoa pode sair ferida.

Quando as mediadoras voltaram uma semana mais tarde, a família e Amina haviam desaparecido. A advogada não estava surpresa. “Você reparou”, perguntou “que não nos serviram chá?”

Mas era isso que acontecia em quase todos os casos que as advogadas tentavam mediar. Elas enchiam-se de esperança, a princípio, só para verem-se ludibriadas. Norinne achava que a equipe de mediação era visível demais; ela acreditava que, ao atrair, não intencionalmente, mais atenção para as famílias que visitava, a equipe acelerava sua mudança para outro bairro. A própria Norinne era alta e esbelta, uma beldade de cabelos eriçados e um estilo de se vestir extravagante e idiossincrático que fazia as cabeças se voltarem; uma vez, devido à pressão política, ela permitira a presença de uma equipe de TV da Deutsche Welle. Tinha esperanças de que uma equipe de mediação mais enxuta pudesse ter mais sucesso; mas as famílias continuavam se mudando, continuavam indo para longe de seu alcance. Era da vergonha que fugiam, ou da intromissão inoportuna de estrangeiros? Das ideias de justiça dos estrangeiros? Da peculiar noção dos estrangeiros de que uma mulher merece atenção?

 

 

Algum tempo depois, soube que Homa, a mulher que ateara fogo ao primo estuprador, fora libertada e recebida alegremente na casa dos pais. Fiquei feliz com a notícia. Mas ela não tinha sido condenada a quinze anos? Como saíra? Para descobrir, fui ver Marzia, que ainda coordenava o programa de treinamento em Welayat.

— Quando o caso dela chegou à segunda instância para investigações complementares, a sentença foi reduzida para seis anos. Depois, a Suprema Corte reduziu-a para três anos.

— Parece que as advogadas de defesa fizeram um trabalho esplêndido.

— Ah, não — disse Marzia. — Isso foi antes de começarmos o programa com as advogadas. Ela não tinha advogada de defesa. Ninguém tinha, naquela época.

— Então por que reduziram a pena?

— Ah, os tribunais sempre fazem isso. Eles sempre dão penas altas em primeira instância porque sabem que as instâncias superiores irão reduzi-las. Eles não têm de explicar a razão. Fiquei surpresa com o jeito casual com que Marzia descrevia o processo legal.

— Parece mais pôquer que justiça — eu disse.

— Parece o quê?

— Um tipo de jogo.

— É, sim. Você está certa. Mas foi outro jogo que a libertou. Foi Eid.

Todos os anos, no primeiro dia do mês seguinte ao Ramazan, os muçulmanos celebram o Eid al-Fitr. Depois de um mês de jejum e penitência, o Eid al-Fitr é uma celebração de ação de graça e de recomeço. O presidente Karzai o celebra distribuindo indultos aos presos, e uma parcela desproporcional daqueles que recebem indulto é de mulheres. Em teoria, apenas algumas pessoas são elegíveis para o indulto presidencial: pequenos criminosos; os idosos ou doen­tes; pais que deixam filhos desamparados e prisioneiros que já cumpriram uma boa parte da pena; um terço, para os homens, ou (em outro exemplo de disparidade legal) metade da pena, para as mulheres. Mas, na prática, o Eid representa mais uma oportunidade para se oferecerem propinas e fazer um acordo com o sistema. Entre as mulheres que receberam indulto no Eid de 2003 havia uma que foi solta depois de cumprir cinco meses de uma pena de três anos por matrimônio ilegal. Outra cumprira dez meses de uma pena de quatro anos pelo mesmo crime. Outra, condenada a doze meses por fugir com um homem, fora solta após cumprir apenas oito. E ainda outra, Homa, que correra o risco de execução, foi libertada depois de um ano e três meses. Uma vez que todas as mulheres que entrevistei, assim como Homa, haviam sido empurradas para o “crime” pela pobreza, coação ou violência, sendo condenadas sem provas ou apenas com provas circunstanciais, eu ficava feliz de vê-las libertadas. Mas quais eram as implicações para a justiça? Até que ponto torna-se mais fácil para a polícia e os procuradores trancafiar uma mulher quando acreditam que ela, no fim das contas, receberá um indulto? Até que ponto é mais tentador conseguir um acordo lucrativo a partir de um crime moral forjado se ninguém o leva a sério? Até que ponto é mais cômodo ignorar os matrimônios forçados, estupros, espancamento de esposas e prostituição forçada, se as meninas e mulheres presas por fugir de tal violência não ficarão, na verdade, presas por muito tempo? E qual é o sentido, então, de um sistema jurídico e de todos aqueles níveis legais se o destino de uma mulher ainda depende do capricho de um homem que, nesse momento, por acaso, é o presidente?

Norinne levou suas objeções ao vice-presidente da Suprema Corte. Argumentou que a aplicação “errática” da justiça gerava problemas entre as prisioneiras, já que algumas eram tratadas com severidade excessiva, enquanto outras eram objeto de leniência inexplicável. Observou que isso ensina desrespeito à lei e encoraja as prisioneiras a recorrer ao sistema de suborno. Muitas prisioneiras e suas famílias haviam pensado, todo o tempo, na advogada de defesa como uma negociadora de aluguel. Ficaram aborrecidas e agressivas quando as advogadas de defesa recusaram-se a aceitar ou oferecer propina. Que incentivo teriam eles agora para lidar com advogados e respeitar o Estado de direito? O vice-presidente da Suprema Corte concordou com a análise de Norinne, mas disse que a pressão para libertar mulheres em massa vinha da “comunidade internacional”. Talvez tenha sido obra de todas aquelas histórias nos jornais e na TV sobre o presídio miserável. Ou talvez todas aquelas histórias sobre o Talibã. Agora o mundo quer ver o “novo Afeganistão” tratar bem as mulheres. Assim, o vice-presidente se “sentia pressionado”, disse, a preferir o espetáculo à substância, a realizar o gesto teatral às expensas da justiça e da mudança genuína. Tratar bem as mulheres faz Karzai parecer presidencial, e George W. Bush positivamente imperial. Mas faz também com que Norinne escreva em seu relatório semestral, que outros trabalhadores de direitos humanos, em outras organizações, irão arquivar no F de Frauen die Helfen ou no L, de legal — “A pergunta a ser feita é por que seguir os procedimentos legais e por que ter advogados de defesa se, em última análise, a prisioneira será solta no Eid”.124 Qual é o sentido disso?

Quando Rosemary, Zulal e eu saímos da prisão, caminhando sob a neve, Rosemary estava animada e eu, deprimida. Ela conseguira muita coisa. O presídio melhorara “200%”, como também escreveu Norinne no relatório, e o padrão de vida da prisioneira média superara o do cidadão afegão médio. Algumas prisioneiras começavam a ganhar as causas nos tribunais. Era um começo. Entretanto, havia muito mais prisioneiras do que antes, e mais prisões. E o que aconteceria daqui a alguns anos, eu me perguntava, quando a ONU e as ONGIs fossem embora e o Afeganistão estivesse novamente por conta própria? Quem é que pagará advogados de defesa então, quando todo mundo sabe que é muito mais eficiente gastar o dinheiro em uma propina ou em um acordo? Pense em quantas cópias do Corão se pode comprar pelo preço de um advogado. Quantas ovelhas gordas. Mas, apesar de tudo, é um começo. Uma ideia. Uma centelha. É isso o que os trabalhadores de ajuda se dizem quase todos os dias, tentando ver todos os ângulos da questão, exasperando-se. Às vezes todo o trabalho parece sem sentido e, algumas vezes, parece só conseguir cegar os americanos e dar crédito àqueles mesmos políticos que criaram essa confusão, mas, algumas vezes, parece ser um começo. Os afegãos têm um ditado: Qatra qatra darya mesha. Gota a gota se faz um rio. Há dias em que você acredita nisso. Há dias em que não.

 

 

Estava pensando também em Amina, uma mulher que era livre e não era livre. Amina, que deixara a prisão de Welayat para adentrar os confins da vida cotidiana como uma mulher no Afeganistão. Como se garante o futuro de mulheres que não têm história? Por onde começar?

O rei Amanullah começou, há quase cem anos, quando retirou, em público, o véu que cobria o rosto de sua mulher, como se dissesse: “Olhem aqui! Que surpresa! Sob todo esse tecido. É uma pessoa!”. Até então, como contam os livros, a história da vida humana no Afeganistão era a história dos homens. Naquela época, como agora, as mulheres viviam em algum lugar fora de cena, atrás de paredes, carregando água e lenha, servindo comida e sexo. Alguns homens as colecionavam em haréns, como o avô de Amanullah, Abdur ­Rahman, que se dizia ter 199 esposas. Em algum momento da História, os homens começaram a esconder as mulheres. Exigiam que as mulheres escondessem seus corpos e, frequentemente, também seus rostos, com algo que lembrava papel de embrulho. A prática, eufemisticamente chamada de uso do véu, é comum, de uma forma ou outra, em todo o mundo muçulmano, e diz-se que é “islâmica”, embora, conforme incansavelmente observam acadêmicos islâmicos liberais, o Corão recomende o uso do véu, se é que o faz, sobretudo para as esposas e filhas do Profeta; e mesmo essa sugestão parece ter sido feita de forma abrupta em um momento em que o Profeta estava particularmente aborrecido com o comportamento de convidados que se deixam ficar, após o jantar, para admirar suas mulheres. E ele é acompanhado de outra sugestão: os homens devem jantar e ir para casa.125

Os historiadores que cuidadosamente registraram os feitos dos homens através dos tempos mostraram interesse incrivelmente reduzido pela vida e pelo guarda-roupa das mulheres; assim, é difícil afirmar com certeza exatamente quando e por que as mulheres afegãs começaram a se vestir com mortalhas de poliéster pregueadas. Alguns dizem que o uso do véu chegou ao Afeganistão com árabes nômades, que copiavam os costumes dos ricos citadinos cristão bizantinos e sasanianos (persas) zoroastrianos. Outros dizem que ele chegou ao Afeganistão vindo da Índia, onde muçulmanos adaptavam o estilo dos hindus ricos.126 Se tais teorias estão corretas — e quem é que vai saber? —, o uso do véu parece, originalmente, ter sido uma afetação de uma classe urbana ociosa por meio da qual homens ricos anunciavam publicamente que suas mulheres não tinham de trabalhar. Quem conseguiria trabalhar com aquela indumentária? Milionários americanos do século XIX faziam a mesma coisa, empacotando suas mulheres em anáguas, corpetes e anquinhas, cobrindo-as de jóias e peles, desfilando com elas como se fossem mostruários ambulantes, exibindo o status financeiro do proprietário.

Uma explicação mais comum para o uso do véu é a de que ele é necessário para “proteção”. Mas proteção contra quem? Contra o quê? É aí que as opiniões divergem. Muitos comentaristas relatam que Alá deu aos homens muçulmanos pujança sexual e desejo extraordinários. Qualquer homem é capaz de se excitar ao ver, ainda que de relance, um tornozelo, ou um cacho de cabelos fugindo sob uma echarpe. Será que ele pode ser responsabilizado por aquilo que, nessas situações, se sente compelido a fazer? Claro que não. Então, para proteger as mulheres de tão incontrolável apetite sexual — essa dádiva de Deus aos homens —, as mulheres devem ficar escondidas sob mantos. Esse argumento tem uma história longa também em sociedades não-islâmicas, como a dos EUA, em que, na maioria das vezes, é utilizado para reverter para a vítima a responsabilidade por estupro, incesto e abuso infantil; mas, em países islâmicos, assume uma lógica que se realiza a si mesma. Como era de se prever, o efeito de esconder o rosto e o corpo das mulheres é o de fazê-las ainda mais misteriosas e atraentes (e ainda menos parecidas com seres humanos reais), de tal modo que uma mulher que não esteja completamente “envelopada” — aquela que, inadvertidamente, mostra um pouco de cabelo ou de pele — pode correr risco real de ser atacada por algum macho excitado e predatório que acredita que Alá, em lapso notável, esqueceu-se de dar-lhe a capacidade de se controlar. As jovens afegãs que trabalham para a Madar, e que realizam suas tarefas pelas ruas de Cabul usando simples lenços de cabeça ou xales, fizeram uma peregrinação, em março passado, ao santuário de Ali em Mazar-i Sharif, onde milhares se reúnem para celebrar o Ano-novo. Quando voltaram, estavam estranhamente deprimidas e quietas. Passaram-se muitos dias antes que elas confessassem o que havia ocorrido: “Tivemos de usar burcas”, disse Lema, enquanto as outras olhavam para o chão. “Os homens ficavam nas portas do santuário. Muitos homens. Temos que passar pelos homens para entrar. Eles todos nos olham. Nos empurram. Nos tocam. Eles dizem coisas muito ruins. É terrível. Nádia chora. O que podemos fazer? Vamos ao mercado e compramos burcas e vestimos. Mesmo quando o Talibã foi embora eu disse nunca vou usar burca de novo. Mas o que podemos fazer?”

A mesma crença no apetite sexual do supermacho é utilizada em sociedades muçulmanas hoje — em outra distorção interesseira da aparente intenção do Profeta — para justificar a poligamia. Tendo muitos de seus seguidores morrido na guerra, Maomé sugeriu que os muçulmanos com recursos suficientes tomassem viúvas pobres como esposas adicionais, de modo a cuidar de seu bem-estar; assim, alguns afegãos irão argumentar que condições similares no Afeganistão de hoje fazem a poligamia ser quase obrigatória. Mas o muçulmano médio que vai à caça de esposas adicionais — como sua contraparte, o ocidental não-islâmico procurando uma nova namorada — não está buscando viúvas indigentes, nem pensando caritativamente no bem-estar das mulheres. Em vez disso, ele provavelmente mencionará sua superpotência sexual, dádiva divina, para justificar a aquisição de mais uma esposa (mais jovem).127 Afinal de contas, como irá satisfazer sua lascívia santa quando sua primeira esposa estiver “impura” com sua “doença” mensal ou quando estiver grávida? É melhor outra esposa — ainda que temporária — do que o pecado da fornicação. No Afeganistão, os homens dizem que suas primeiras mulheres sempre consentem “livremente” a vinda de uma segunda, terceira ou quarta esposa. Considerando-se que as primeiras esposas não têm lugar nenhum para ir, que escolha elas têm?128

Alguns comentaristas da sociedade islâmica, por outro lado, sustentam que o uso do véu é prescrito para proteger os homens das mulheres. Sob esse ponto de vista, é a mulher, não o homem, que se acredita ser dotada de uma sexualidade insaciável que a torna imensamente poderosa e potencialmente irresistível. Essa foi a visão abraçada por viajantes ocidentais pioneiros e “orientalistas”, que popularizaram as histórias de harém e as luxuriantes pinturas a óleo de odaliscas lânguidas. As mulheres devem ser escondidas sob mantos, para proteger a comunidade como um todo do poder destruidor de sua imensa capacidade erótica. Visões assustadoras da vagina dentata saltam à mente e sabemos que estamos chapinhando por um pântano de material psicanalítico não assimilado, nas profundezas da selva do medo primal. Mas a teoria nos ajuda a explicar o esforço extraordinário de islamitas conservadores em controlar não apenas o “empacotamento” das mulheres, mas também cada aspecto de sua vida. Como uma avalanche que despenca da montanha, a mulher que escapa ao controle pode trazer destruição aos homens, a suas casas e a todo o maldito vilarejo. O medo do colapso social se infiltra nas observações casuais da cultura afegã, como esse ­comentário feito por um grupo de estudos acadêmicos americano em 1962: “A água se equipara à propriedade e às mulheres como fonte de disputa no Afeganistão”.129 Os próprios afegãos têm um ditado que diz serem três as fontes de desordem social: “zan, zar, o zamin” — mulheres, dinheiro (ouro) e terras. Quando os afegãos nomeiam as ameaças à ordem social, citam as mulheres primeiro.

Há um século, Amir Habibullah, filho de Abdur Rhaman (que casara diversas vezes), perdeu o beneplácito de seus súditos mexeriqueiros quando suas esposas foram vistas em público cavalgando e utilizando “véus curtos”. Segundo amigas afegãs que se lembravam das histórias que lhes contavam as avós, o véu costumeiro da mulher afegã de classe alta urbana era, naquela época, uma coisa volumosa, até o tornozelo, bem parecido com a burca. Um historiador descreve o véu longo padrão como algo “parecido com uma tenda”.130 O véu curto adotado pela nata da sociedade era um tipo de burca até a cintura, usado sobre calças grandes, largas, com pregas como as de um acordeão, para que pudessem ser postas sobre um vestido, um arranjo que cobria completamente a mulher, permitindo-lhe, contudo, desenvolver atividades, como cavalgar, que eram impossíveis quando se usava a tenda até o pé. Esse traje, e o comportamento extraordinário que possibilitava às mulheres que o usavam, fez com que os afegãos questionassem a capacidade do emir de governar não apenas sua família, mas o país. Se um homem não consegue controlar suas mulheres, perguntavam-se, como poderá controlar seus súditos? Mas Amir Habibullah tinha uma atração por coisas modernas. A ele se credita o início de “vários processos de modernização afegã que permanecem até hoje” no Afeganistão, embora a modernização no Afeganistão não seja exatamente o que se possa chamar de uma tendência.131 Ele adorava carros e construiu uma ou duas estradas. Contratou um engenheiro americano para construir a primeira estação de força do país e instalou lâmpadas elétricas no palácio. Aprendeu fotografia e posou, ele mesmo, coberto de badulaques ocidentais em meio as suas quatro esposas e 35 consortes, todas sem véus e em trajes ocidentais. Devido a esse tipo de comportamento, os afegãos parecem não ter ficado surpresos, nem especialmente tristes, quando, uma noite, enquanto Amir Habibullah dormia, alguém meteu uma bala na sua cabeça.

Os homens cobriram também a história das mulheres. Talvez a ausência das mulheres dos livros de História fosse deliberada, mais uma questão de controle, privando-as de um contexto para rea­lizações e possibilidades. Talvez fosse simplesmente um desleixo pouco acadêmico, uma deficiência de empenho e imaginação. Talvez fosse um reflexo de quão pouco importavam as mulheres, não apenas para as crônicas minuciosas das aventuras de governantes e guerreiros, mas de maneira geral. Talvez uma literatura androcêntrica e misógina seja simplesmente o fruto inevitável de uma sociedade androcêntrica e misógina. Até mesmo o Corão é dirigido, em grande medida, aos homens e às preocupações masculinas. As esposas do Profeta reclamaram disso e chamaram sua atenção para o contingente de mulheres que o seguiam. Depois disso ele ditou alguns suras para as mulheres também, mas eles parecem, na melhor das hipóteses, uma tentativa tímida. Será que podemos esperar dos historiadores algo melhor que do próprio Profeta?

A inclusão conscienciosa da vida e das atividades das mulheres na História começou nos EUA a partir da década de 1970, como consequência (e parte) do movimento feminista. No mundo islâmico, as mulheres entram nos livros de História muito mais cedo, no século XIX, como tópico de discussão dos intelectuais muçulmanos, particularmente no Egito e na Turquia, sobre seu tratamento, segundo a lei e os costumes islâmicos. O tema veio à baila devido à invasão de territórios islâmicos pelas potências coloniais europeias, que traziam produtos, políticas e ideias europeias que questionavam práticas corriqueiras como o purdah (o confinamento de mulheres), a segregação dos sexos, a poligamia e o divórcio fácil (para os homens). À medida que os debates se estendiam, a questão do tratamento das mulheres imbricou-se com outros temas sociais críticos, incluindo nacionalismo, progresso nacional (posteriormente “modernização”), reformas políticas e sociais e mudança cultural. Alguns argumentavam que o status da mulher no mundo islâmico só poderia ser melhorado pelo abandono total das culturas dos paí­ses muçulmanos e pela adoção das tradições culturais de nações europeias mais “avançadas”. Era um argumento particularmente colonialista. Feministas ocidentais, em sociedades judaico-cristãs igualmente misóginas, não estavam descartando a própria herança cultural em favor de um modelo estrangeiro, mas lutavam por seus direitos dentro de seu meio cultural. Por que não poderiam as mulheres muçulmanas, elas também, questionar sua própria cultura? De acordo com a estudiosa do Islã Leila Ahmed, foi nesse contexto de dominação colonial “que se forjou permanentemente o elo que liga a questão das mulheres e os problemas de nacionalismo e cultura”.132 Nos debates culturais, política, cultura, classe, religião, o caráter de nação, direito, costume, governança, privilégios masculinos muçulmanos e o status das mulheres veem-se embrulhados em uma bandeira única, que, para o mundo, parece um véu.

Desde que a Europa e o Oriente Médio entraram em conflito pela primeira vez, as nações muçulmanas alternadamente combateram o imperialismo ocidental e acolheram, seletivamente, a modernização ocidental. Condenaram a corrupção moral do Ocidente, ao mesmo tempo que negaram seus atrativos prazerosos, sobretudo às mulheres. Denunciaram o materialismo ocidental, com razão, a meu ver, ao mesmo tempo que compraram produtos do Ocidente. No Afeganistão, o rei Amanullah instalou água encanada e telefones no palácio assim que pôde e não se sabe de um homem afegão que tenha recusado armas ocidentais. Mas vá uma mulher muçulmana remover seu véu ou tentar usá-lo em uma escola pública na França e o resultado pode ser apedrejamento público ou uma proibição pelo legislativo. Aquilo que uma muçulmana veste não é apenas uma questão de gênero. Ela carrega todo o peso do mundo islâmico.

Ao longo do século passado, as nações islâmicas sucumbiram, uma a uma, à universal fascinação masculina pelos aparelhos da tecnologia moderna: celulares, carros, computadores e um amplo leque de armas de guerra. Eles se renderam à corrupção moral do Ocidente: álcool, prostituição, rock-and-roll, charutos de Havana. Minorias influentes advogavam modernas ideias ocidentais: democracia, direitos iguais, liberdade de expressão e de imprensa, secularismo. Mas quanto mais os homens se modernizam, mais contam com a vestimenta e o comportamento tradicional de suas mulheres para manter a “cultura” e o “Islã”. Assim como capitalistas vitorianos desprovidos de escrúpulos contavam com a pureza e a generosidade enfadonha de suas mulheres para manter um certo tom moral entre as classes gananciosas. Impor “conservadorismo” e “honra” às mulheres, libera os homens para viver como quiserem. Mas injeta-lhes o medo de perder o controle. E o medo os faz cruéis.

Quando Amir Amanullah herdou o trono em 1919, era um jovem com algumas ideias modernas. Fora influenciado pelo sogro, o intelectual liberal e nacionalista Mahmud Tarzi, que, por muito tempo, publicara um jornal bimestral em Cabul — Seraj-ul Akbar (A Luz da Notícia) —, crítico tanto do imperialismo europeu como do faccionalismo e da resistência à mudança dos afegãos. Amir Amanullah conquistou imensa popularidade ao vencer uma rápida guerra anglo-afegã (a terceira) e finalmente arrancar o país da tutela britânica. Anunciou, então, uma nova Constituição e uma longa lista de políticas para modernizar a política externa e as instituições domésticas. A Assembleia Nacional que ele estabelecera aprovou sem questionamentos algumas reformas, mas recusou-se a aprovar medidas que afetavam a vida familiar. O novo código matrimonial de Amanullah propunha a taxação de casamentos poligâmicos. Seu programa educacional estabelecia uma escola para meninas. O que estava em jogo não era a “tradição”; sua proibição da escravidão foi facilmente aceita. O nó da questão era o status das mulheres. Membros de tribos se insurgiram contra muitas das suas inovações, mas os historiadores contam que o que mais os enfurecera foram aquelas mudanças destinadas “a emancipar as mulheres do poder absoluto que os parentes masculinos tinham sobre elas”.133

Em 1926, Amanullah assumiu o posto de rei e, no ano seguinte, anunciou planos de uma visita real à Europa. Não era apenas uma viagem de lazer — ele tinha objetivos sérios de política externa —, mas a jornada real pelas capitais do mundo ocidental iria mudar o futuro do rei e do país. O rei Amanullah e a rainha Suraya partiram em dezembro de 1927 com uma enorme comitiva. Quando regressaram, seis meses mais tarde, o rei estava ao volante de um imponente carro novo que viera dirigindo desde Teerã. Havia feito visitas oficiais à França, Bélgica, Suíça, Polônia e à União Soviética; encontrara o rei Fuad no Egito, Mussolini na Itália, o presidente Paul von Hindenburg na Alemanha, o rei George V e o primeiro-ministro Stanley Baldwin na Inglaterra, Kemal Ataturk na Turquia e o xá Reza na Pérsia. Durante a viagem, a rainha Suraya descartara o véu. Ela fora fotografada em público usando vestidos europeus sem mangas e com decotes generosos. Os vestidos parecem um pouco pequenos, como se ela não soubesse exatamente como é que deveriam ser usados. Suraya chegara até a visitar o santuário de Masshad, um dos lugares mais sagrados do Islã na Pérsia, sem o véu. Qualquer um poderia prever que haveria confusão quando o casal real voltasse para casa.

Mas, aparentemente, não o rei Amanullah. Ele mal cruzara a fronteira quando anunciou que o Afeganistão precisava de reformas amplas que só poderiam ocorrer com a emancipação das mulheres. Dois meses mais tarde, convocou 1.001 chefes tribais, mulás e cãs para um loya jirga de cinco dias em Paghman, presenteou-os com roupas novas — fraques, camisas brancas e gravatas pretas — e ordenou-lhes que se vestissem como um parlamento europeu. Depois, apresentou-lhes uma série de mudanças. A mais popular era o plano de comprar muitas armas para o Exército. A mais polêmica (e, possivelmente, a mais presciente) era a exigência de que os mulás que desejassem ensinar ou pregar fossem examinados e licenciados, e que os mulás do seminário ultraconservador de Deoband, na Índia, fossem completamente banidos do Afeganistão, porque poderiam ser “pessoas más e nocivas”, espalhando propaganda estrangeira perigosa.134 A reforma mais impopular foi uma tentativa de elevar a idade mínima de casamento para 24 anos, para os homens, e 18, para as mulheres. Essa proposta, que interferiria no casamento de crianças e na prática de oferecer meninas como indenização por crimes, não chegou a lugar nenhum. Delegados furiosos disseram que ela se opunha ao Islã.

Mas o rei Amanullah era incansável. Convocou outra reunião de ministros de governo, servidores públicos, cidadãos notáveis e diplomatas estrangeiros e deu início a uma série de quatro dias de discursos, ainda divulgando suas novas e empolgantes ideias europeias. No primeiro dia, ele descreveu a viagem como um triunfo de relações exteriores. No segundo, revelou que todas aquelas lindas armas para o Exército seriam pagas com uma redução nos soldos, um gesto de espantosa estupidez para um homem na iminência de precisar de um exército. No terceiro dia, ele adentrou, com sua oratória, por terreno desconhecido, aparentemente sem saber das minas que jaziam encobertas. Ele anunciou novas regras para o véu. O “véu afegão”, a burca até os pés, que cobria o rosto e parecia uma tenda, seria banido (era um risco à segurança das mulheres caminhando pelas ruas de Cabul, disse — e ainda é). Em seu lugar, as mulheres teriam a opção de usar um pequeno “véu turco” cobrindo a metade inferior do rosto — ou não usar véu nenhum. E, virando-se para sua rainha, o rei pediu-lhe, então, que removesse o véu que estava usando. Os historiadores contam que as mulheres presentes aplaudiram, mas nada dizem sobre como reagiram os homens. Prevendo a reação dos mulás, o rei Amanullah passou a atacá-los como um bando de fanáticos ignorantes. No quarto dia de discursos, o rei foi obrigado a confessar que o primeiro-ministro por ele indicado não conseguira convencer ninguém a participar do novo governo. Intrepidamente, o rei disse que ele mesmo levaria adiante as reformas propostas. “Sou um rei revolucionário e desejo causar uma revolução em cada aspecto da vida do país”, disse ele.135 E foi exatamente uma revolução o que ele conseguiu.

Os líderes dos pashtuns shinwaris, que encabeçaram a rebelião, lançaram um manifesto condenando as políticas propostas pelo rei. Das dez acusações que elencavam contra ele, seis tinham relação direta com o status das mulheres. Em primeiro lugar, diziam os rebeldes, o rei era culpado de “forjar seus próprios códigos e desconsiderar a Sharia”. Embora os rebeldes não citem qualquer código específico, a acusação claramente abrange interferências “não-islâmicas” nas práticas familiares tradicionais, como a proposta de Amanullah de elevar a idade legal para o casamento. Em segundo lugar, o rei limitava os homens a apenas uma esposa, ao passo que o Corão autorizava quatro. Terceiro, ele mandou que todos os funcionários do governo se divorciassem de suas esposas adicionais. Quarto, ele bania o chador (véu) e permitia que as mulheres não apenas cortassem os cabelos, mas que deixassem “desnudos os braços e os seios”. E, finalmente, ele planejava enviar “meninas crescidas para a Europa”. (O rei pretendia enviá-las para universidades.) Outra queixa dos rebeldes — de que o rei exigiria provas documentais nos tribunais, e não provas orais — também se relacionava ao status das mulheres; essa regra tornaria mais difícil tanto para o homem descartar-se de uma esposa indesejada acusando-a de um crime, como para juízes corruptos participarem de conluios para condenar mulheres, como bodes expiatórios, por crimes cometidos por homens. Outra queixa — a de que o rei abriria “teatros, cinemas e outros locais de entretenimento” — também tem a ver com as mulheres, uma vez que a nova política possibilitaria a vinda de espetáculos ocidentais na época das flappers, das sufragetes e da Nova Mulher. Os rebeldes também condenavam o rei Amanullah por incentivar a “corrupção”, como se isso fosse algo novo, e por mudar o dia de oração da sexta para o sábado; mas essas acusações — números oito e nove na lista — parecem simples acréscimos tardios.136 Está claro que o que colocou os shinwari em pé de guerra foi a interferência do rei em relação às mulheres “deles”.

O primeiro ato do novo pretendente ao trono — um novo Amir Habibullah, um ex-bandoleiro conhecido como Bacha-i Saqqua, foi abolir todos os impostos e, mais importante, todas as escolas. Quando ele foi deposto, apenas nove meses mais tarde, o novo rei Nadir Shah reabriu as escolas e criou novas, mas apenas para meninos e homens. Ele também lançou uma lista de dez pontos: o ponto um declarava que “todos os afegãos ... são iguais na fraternidade ­islâmica”.137 ­Também exigia que todas as mulheres que, claramente, não deveriam estar incluídas entre “todos os afegãos” na “fraternidade”, usassem véu. Nadir Shah revogou imediatamente a proibição do purdah e, dessa forma, automaticamente fez voltar as mulheres à custódia dos homens. Em 1931, seu governo adotou uma nova Constituição que simplesmente não mencionava as mulheres.

Quase trinta anos se passaram até que as mulheres pudessem, de novo, retirar seus véus. Em 1959, durante o reinado do filho de Nadir Shah, o rei Zahir Shah, o primeiro-ministro Daoud e outros membros do governo e da família real apareceram no palanque de honra durante as celebrações da semana da independência acompanhados de suas esposas e filhas, que tinham o rosto descoberto, sem véus. Daoud sondara discretamente a opinião pública, antes, ao mandar que mulheres sem véus trabalhassem como locutoras da Rádio Afeganistão e como recepcionistas e aeromoças da Ariana Airlines e o público as aceitara discretamente. Quando os mulás protestaram contra o não-uso do véu durante a semana da independência, Daoud estava pronto para eles. Desafiou-os a encontrar uma única ­passagem no Corão, ou o hadith, que especificamente exigisse o uso do véu. O grupo de especialistas do primeiro-ministro lhe assegurara que tal passagem não existia. E mandou prender os mulás, de modo que eles pensassem melhor antes de enfrentá-lo.138

Nos anos 1960 e 1970, as mulheres de Cabul deixaram o chador e ingressaram no mercado de trabalho. “Vestidos ocidentais, meias de náilon e batom” tornaram-se “símbolos de distinção social” para as mulheres, de acordo com observações de antropólogos americanos publicadas em 1962. Os homens conquistavam prestígio social comparável usando ternos e gravatas ocidentais.139 Muitas mulheres usavam minissaias no trabalho e no campus da Universidade de Cabul, onde alguns mulás ultraconservadores e o jovem Gulbuddin Hekmatyar atacavam-nas com ácido. Muitos habitantes de Cabul — homens e mulheres — dizem que os anos dourados foram os da década de 1980, durante a ocupação soviética, quando o governo comunista garantia igual acesso à educação e ao trabalho, enquanto a maciça ajuda sovié­tica trazia à capital um período de relativa ­fartura. Os bons tempos significavam que as mulheres poderiam desfrutar mais liberdade e que os homens se dariam ao luxo de não ligar. Mas depois os mujahidin islamitas tomaram Cabul e o presidente Burhanuddin Rabbani ordenou que as mulheres se cobrissem. Elas baixaram a barra dos vestidos até os tornozelos, as mangas até o punho, cobriram a cabeça com xales e se arrastaram pela cidade enquanto os mujahidin a destruíam. Então veio o Talibã, a segurança e a burca.

Estou contando esta longa história para que você saiba que a burca não veio do nada. Que ela tem uma história tão oculta e tão real quanto a história das mulheres que, de tempos em tempos, são obrigadas a usá-la. Uma história que não tem nada a ver, e tem tudo a ver, com o Islã e as ambíguas relações existentes entre o imperialismo ocidental e o mundo muçulmano. No Ocidente, a secular história de lutas pelos direitos da mulher mostra os mesmos avanços e recuos, o mesmo padrão de progresso e retrocesso que levou as feministas a descreverem os períodos recorrentes de nossas maiores conquistas como ondas. Mas no Ocidente as lutas têm sido travadas quase exclusivamente por mulheres, milhares das quais dedicam a elas uma vida inteira. Citar apenas algumas das líderes mais destacadas na América do Norte e na Europa tomaria muitas páginas; e uma lista dos direitos que as mulheres ocidentais exercem hoje seria tão longa quanto, e quase idêntica, à lista dos direitos dos homens, embora a misoginia nos EUA nunca tenha, de fato, desaparecido. No Afeganistão, por outro lado, os direitos que as mulheres podem reivindicar são poucos e, de diversas maneiras, diferentes dos direitos dos homens, pois mesmo aqueles direitos que existem de acordo com a lei, ou com o Islã, são vinculados à aprovação de um pai ou de um marido. O direito de sair de casa sem estar vestindo uma mortalha. O direito de ir à escola. O direito de trabalhar fora. E a lista das líderes na luta pelos direitos das mulheres é curta. Ideias feministas têm sido expressas no Afeganistão por um século, mas, sobretudo, por membros da intelligentsia que deixam o país, de modo que a batalha ainda é feita uma mulher por vez, dia após dia, e por trás dos muros das casas dos homens.

O que se passa nessas casas é complicado pela devastação psíquica da guerra. Enquanto os homens lutavam, a casa era o lugar das mulheres. Mas então os homens voltaram, eles próprios, traumatizados pelo que haviam visto e feito, e o espaço doméstico os sufocava, reprovando-os com lampejos do que poderia ter sido uma vida pacífica. Todo o peso acusador do ressentimento das mulheres caiu também sobre eles, pois agora estavam desempregados, sem trabalho, nem como soldados, nem como comerciantes (não havia nada para comerciar) ou fazendeiros (as minas não o permitiam). Para que serviam eles, afinal de contas, esses guerreiros da liberdade que haviam devastado seu próprio país? Então eles espancavam as esposas, as estupravam, as usavam como animais e ardiam de desejo pelos belos meninos dançarinos, como faziam quando eram soldados. As mulheres espancadas espancavam as crianças, e as crianças amarravam os cachorros e davam-lhes bordoadas com um bastão até que eles se despedaçassem.

Qualquer mulher espancada, forçada à submissão, pode cair na depressão e na apatia. Pode desenvolver uma doença psicossomática. Pode sofrer de dores nas costas, ou de dores de cabeça paralisantes, ou de insuportáveis dores pélvicas. Partes de seu corpo podem ficar dormentes ou perder completamente a sensibilidade. Ela pode se cindir de seus sentimentos e viver em algum lugar fora de seu próprio corpo, espiando a si mesma. Pode jogar seu corpo em um poço para livrar-se dele, ou bater com a cabeça na parede para voltar a ter algum contato com sua própria mente. Na cidade, ela faz intermináveis visitas ao médico em busca de simpatias e remédios. A receita-padrão para as pacientes é uma mistura de cinco ou seis antibióticos, analgésicos e tranquilizantes. Suspeita-se, agora, que a contaminação por hipermedicação esteja por trás do número crescente de bebês afegãos que nascem com defeitos cardíacos congênitos.140 É rara a habitante de Cabul que não tem um “problema” e uma bolsa cheia de comprimidos. Queixando-se apenas de pressão baixa ou de dores de cabeça fortíssimas, ela “descansa” quando pode e espera que alguém lhe conceda os direitos dos quais algumas mulheres se lembram, os direitos a respeito dos quais elas têm ouvido falar tanto ultimamente. A ONU, talvez. Ou alguma ONG internacional. As mulheres ganham alguns direitos, ou os perdem, ou os ganham e perdem, ao capricho de algum homem que, por acaso, é marido, ou pai, ou irmão, ou presidente — uns farelos jogados no quintal para acalmar as galinhas, como o perdão para uma prisioneira em honra do Eid.

Mas muitas mulheres entendem que os direitos têm de ser conquistados. Uma colega afegã chega ao escritório cheia de hematomas porque seu irmão talibã espancou-a com a chaleira na noite anterior e proibiu-a de trabalhar. Ela veio assim mesmo e, hoje à noite, o irmão baterá em sua cabeça com o rádio portátil com tanta força que a estrutura de plástico se despedaçará e voará para todo lado. E amanhã ela virá trabalhar, mais uma vez, porque acredita que tem o direito de estar aqui e que o irmão não tem o direito de tirar isso dela. Nós, que a amamos, tememos por sua vida, porque percebemos que ela está disposta a vencer essa briga. (“Onde é que estão os pistoleiros mujahidin quando de fato você precisa deles?”, pergunta uma chefe europeia. É uma piada amarga, nascida de nossa impotência.) Mas é nessa hora que a mulher afegã decide marcar sua posição. Ela arrisca a vida para afirmar seu direito ao trabalho. Deve haver milhares como ela espalhadas pelo país, resistindo sozinhas e em silêncio. Algumas vencerão.

 

 

É possível lermos a história afegã antes da guerra, que acabo de contar, como uma história de progresso para as mulheres no Afeganistão. Assim como no Ocidente, cada onda de reformas chega um pouco mais adiante na praia, até que a maré recue e os seixos no solo surjam novamente, apenas para serem submersos pelo próximo avanço da corrente. É assim que as mulheres reivindicam seus direitos no mundo ocidental, um pouco de cada vez, no curso de um longo período marcado por muitos reveses. Mas no Afeganistão essa história é virada de ponta-cabeça e contada de trás para frente, como uma narrativa admonitória para aqueles que chegarem ao poder. Os destinos históricos de Amanullah e de Daoud, e de uma sucessão de presidentes comunistas que promoveram os direitos das mulheres (juntamente com muitas outras inovações modernas polêmicas), se fundem em uma única grande advertência ao governo atual — e a todas as “partes interessadas” internacionais — para que se evite, de maneira absoluta, o tema dos direitos das mulheres. O presidente Karzai e seus camaradas parecem ter como regra nunca defender os direitos da mulher, embora Karzai tenha ocasionalmente ordenado que os mulás o fizessem. Um dos conselheiros mais próximos de Karzai observa: “Ele aprendeu muito bem a lição da História”.141 Outro camarada de Karzai oferece outra justificativa, frágil e que é, na verdade, uma ameaça: “Se as mulheres conseguirem direitos iguais, perderão sua aura de santidade”, diz, “e serão estupradas”. Mas de qualquer modo Karzai e sua turma provavelmente não defenderiam os direitos da mulher mesmo sem a distorcida lição da História. Ele mantém sua mulher mais ferrenhamente isolada que qualquer outro governante do Afeganistão desde o século XIX.

Por outro lado, algumas agências internacionais destinam-se a defender os direitos da mulher. Desde minha chegada ao Afeganistão, tenho ido as suas reuniões. Há pequenas sessões de estratégia com outros ativistas, só dois ou três de nós tentando descobrir o que fazer com uma jovem condenada a oito anos porque fora estuprada por quatro policiais, ou como salvar uma mulher trancada em um “abrigo” porque fugira de um marido brutal, ou como impedir o casamento forçado de uma talentosa colega afegã que quer terminar a faculdade de Medicina e se tornar pediatra. Em todos esses casos, e em muitos, muitos outros, não há nada que possamos ­fazer. ­Há também grandes reuniões públicas financiadas por vários ministérios do governo, ou agências da ONU, ou ONGIs. A partir de 2004, quase todas as agências e ministérios têm um assessor para questões de gênero; assessoria para questões de gênero soa menos ameaçador que assessoria para os direitos da mulher, e os assessores para gênero parecem ser uma tribo bem gregária.
O trabalho deles é fazer com que diversos setores e instituições do governo “incorporem” assuntos de gênero — em outras palavras, que demonstrem em seus planos e políticas um pouco de atenção com relação às mulheres; e, uma vez que levar em consideração as mulheres é um conceito revolucionário em uma cultura tão intensamente patriarcal como a afegã, os assessores para questões de gênero frequentemente parecem cometer erros.

Veja, por exemplo, um congresso realizado no início de 2005 pelo Ministério da Justiça e planejado pelo assessor para questões de gênero do ministério em cooperação com a embaixada do Irã. Em uma das sessões, três iranianas com véus muito fechados, discutiram as implicações da CEDAW, a Convenção das Nações Unidas para o Fim de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, um documento internacional sobre direitos humanos do qual elas pouco en­tendiam, porque seu país se recusara a assiná-lo.142 Foram seguidas de três especialistas no Corão escolhidos, para o bem da diversi­dade, em três diferentes países islâmicos. Eles discutiram longamente o problema de se saber se as religiões predominantes no mundo consideram que as mulheres são plenamente humanas e, consequentemente, qualificadas para ter direitos humanos. Infelizmente, não conseguiram chegar a uma conclusão definitiva.

Uma vez por mês, a Unifem, agência da ONU cuja tarefa é apoiar a causa das mulheres, convoca uma reunião para discutir a violência contra as mulheres. É chamada de “reunião de múltiplas partes interessadas”, porque é aberta a todos, de todos os setores: ONU, vários setores do governo afegão, Banco Mundial, ONGs internacionais locais e afegãos de associações e organizações da sociedade civil. Todo mundo vem e todo mundo concorda que muitas formas de violência contra a mulher são corriqueiras, generalizadas e terríveis, e que deveríamos fazer alguma coisa a respeito. Mas, durante as campanhas presidenciais, uma líder americana da Unifem nos advertiu, com extraordinário tato, que tivéssemos uma postura discreta, de forma a não arriscarmos que Hamid Karzai e, mais importante, George W. Bush perdessem a eleição. Talvez devêssemos formar alguns subcomitês ou até mesmo (depois de dois anos de reuniões) pensar em elaborar um plano de ação preliminar. As eleições presidenciais já ocorreram, mas gradual ainda é a palavra de ordem. Não se trata dos defensores dos direitos da mulher estarem tentando impor algum programa ocidental radical aos inocentes afegãos. Nosso “corpo consultivo” é composto, em sua maior parte, de afegãos; e as horríveis práticas costumeiras a que nos opomos, como vender meninas de 9 anos a velhos depravados ou entregar mulheres para compensar um assassinato, já foram proscritas pela Constituição afegã. Mas os órgãos internacionais e as mulheres afegãs se assemelham em seus temores. Sua sobrevivência depende de prestarem serviços sem ofender.

Ao mesmo tempo, Bush, o Pequeno, fez grande alarde da mítica “liberação” das mulheres afegãs e, assim, há de haver ocasiões para celebrá-la, ainda que da boca para fora. É preciso encontrar oca­siões para elogiar publicamente as mulheres. Como 8 de março — o Dia Internacional da Mulher. Durante dois ou três anos seguidos o Ministério dos Assuntos da Mulher e a Unifem, a agência da ONU que assessora o ministro, abrem a grande tenda do loya jirga no terreno da Universidade de Educação para hordas de mulheres. As mulheres, enroladas em casacos compridos e xales grandes e escuros, sentam-se silenciosamente em cadeiras de armar e ouvem os oradores. Primeiro, o mulá lendo o Corão. Depois, um homem representando o presidente Karzai. Depois um homem representando o Ministério das Relações Exteriores. Depois um homem representando o Ministério da Justiça. Cada um deles diz que deveríamos estar felizes por celebrar o Dia Internacional da Mulher, porque é um dia especial reservado para nós. A fim de que não subestimemos esse privilégio, eles lembram, em tom ressentido, que não há um dia equivalente reservado aos homens. Depois, quando todos os homens terminam, levantam-se de suas cadeiras na primeira fila, onde bebericavam chá enquanto seus camaradas falavam, e saem em bando, a caminho de coisas mais importantes. Daí é a vez das mulheres indicadas falarem. Sem familiaridade com o microfone, elas gritam para ler discursos longos, lamuriosos; a ministra dos Assuntos da Mulher, a chefe disso e daquilo e, finalmente, a americana tímida da Unifem que começa a dizer, em inglês, “Prezadas Senhoras”. Cada uma delas diz que deveríamos estar felizes por celebrar o Dia Internacional da Mulher, porque é um dia especial reservado para nós. E, depois, a cerimônia acaba, e todas as mulheres, discretamente, saem em fila e voltam para suas tarefas domésticas. No segundo ano é a mesma coisa. No terceiro, eu deixo de ir, mas uma amiga que compareceu ao evento relata uma quebra na tradição. O presidente Karzai faz uma breve aparição, em pessoa, dizendo às mulheres para ficarem felizes por celebrar o Dia Internacional da Mulher, porque é um dia especial reservado para lembrá-las de votar nele na eleição presidencial que se aproxima. Uma mulher na plateia se levanta e, de fato, se pronuncia: “Meu marido não deixará que eu me registre para votar”, diz. “O que devo fazer?” Karzai trata a pergunta como o faria seu mentor, George W. Bush, como uma piada. “Não se preocupe”, responde. “Vou ligar para ele e dizer-lhe para deixá-la votar.” A observação parece confirmar a noção do marido de que a permissão é um favor, não um direito constitucional. Mas, é claro, Karzai não tem o número do telefone dele, ou do telefone de qualquer outro marido que tiver cerceado, de igual forma, as mulheres na plateia. Minha informante diz: “Você sabe, as afegãs são respeitosas, mas não são burras. Depois disso, elas simplesmente deixaram de prestar atenção aos oradores. Começaram a conversar com as vizinhas e, quando a mulher da Unifem se levantou para dispensá-las, o barulho da conversa simplesmente abafou sua voz”.

Talvez essa tenha sido a razão do Ministério dos Assuntos da Mulher ter transformado a celebração de 2005 em um evento exclusivo. As reuniões de massa sob a tenda da loya jirga foram abandonadas em favor de um almoço de luxo, apenas para convidados, no Hotel Intercontinental, o melhor de Cabul. Obedecendo ao costume afegão, os convites vão para parentes e amigos de servidores gradua­dos do ministério, que não deixarão de manifestar sua gratidão pelo almoço ouvindo educadamente os oradores.

Doadores internacionais pagam a conta — dinheiro suficiente para financiar meu pequeno projeto de educação para professores pelos próximos trinta anos —, mas apenas um punhado de pessoas é ­convidado à mesa. O embaixador alemão, cujo governo liberou 10.000 euros para a ocasião e quer um pouco de reconhecimento público, tem seu nome colocado no fim da lista de oradores. Enquanto isso, de volta ao nosso escritório, fazemos o que as afegãs e suas colegas internacionais estão fazendo em todo canto da cidade: comemos bolo e dançamos. As donas de casa batucam no fundo de bacias plásticas enquanto o resto de nós gira, rodopia e ri como mulheres que realmente têm algo a celebrar.

As mulheres afegãs que conheço e amo merecem ser celebradas. São mulheres fortes, tão alegres como qualquer mulher no planeta. Cada uma de minhas colegas já experimentou sofrimento e dores angustiantes ao longo do último quarto de século, e a maioria delas sente a depressão como se fosse uma segunda pele; mas todo dia elas se arrumam para ir ao escritório. Muitas não têm eletricidade em casa, e algumas não têm água, mas elas conseguem estar perfeitamente elegantes. Usam longas saias retas ou túnicas até o joelho sobre as calças compridas, e uma camisa, ou suéter de lã ou um casaco bonito. Couro preto é bastante usado. Elas caminham pelas traiçoeiras ruas esburacadas em saltos plataforma, uma moda que uma amiga afegã chama de “mostrando o dedo para o Talibã”. Elas cobrem a cabeça com xales ou cachecóis macios que frequentemente deslizam para os ombros enquanto trabalham. Cumprimentam-se com sorrisos e uma recitação completa das perguntas rituais sobre a saúde, o ânimo, a família e o sono da noite anterior, todas disparadas rapidamente e em coro, acompanhadas por três beijos no rosto; face esquerda, direita, esquerda. As estrangeiras podem preferir um aceno ou um rápido olá, mas essas afegãs não. Da chefe à faxineira de meio período, cada mulher é cumprimentada antes que se possa iniciar qualquer trabalho. Quando mudo de uma casa cheia de afegãs para uma casa cheia de estrangeiras, sinto-me, subitamente, sozinha. Ninguém me beija. Ninguém pergunta como passei a noite. Sou invisível. Vou para o escritório — para as afegãs — para me sentir novamente reconhecida. Acho que é isso que essas mulheres têm feito umas pelas outras durante todos esses longos anos de guerra. É assim que elas sobrevivem.

Apesar disso, em nome da sobrevivência, elas podem se virar impiedosamente contra as mulheres cujo comportamento não-convencional questiona a definição de feminilidade da qual sua própria segurança parece depender. As boas mulheres tentam se preservar atacando as “más”. Estou pensando na reação de minhas colegas afegãs ao assassinato, em Cabul, de uma famosa apresentadora de TV, uma jovem que apresentava um programa de música popular e entrevistas que parecia ousadamente moderno para os padrões afegãos. Seu assassinato — que a maioria atribuía a seu pai e seu irmão — era o assunto do momento na cidade e também em nosso escritório, onde a europeia que chefiava a missão convocara uma reunião para discutir o assunto. Nova no Afeganistão, ela achou que as funcionárias quisessem organizar uma passeata ou publicar um protesto. Mas, para as afegãs, a morte de Shaima era exatamente o que ela merecia. Elas disseram que já era bastante ruim o fato dela aparecer na TV. E havia mais coisas. Ela fumava. Conversava com homens. Bebia álcool. Provavelmente estava grávida. Sim, com certeza haviam ouvido isso, que ela estava grávida. Assim, provavelmente ela simplesmente cometera suicídio, que seria a coisa mais sensata a se fazer, mas, de qualquer modo, era bom que ela estivesse morta. Para as estrangeiras da FDH, a execução de Shaima era uma terrível violação dos direitos humanos básicos, mas nossas colegas afegãs não podiam, nem queriam, ser persuadidas a ver as coisas dessa forma.

Nas ruas, as mulheres tocam a vida, caminhando para o trabalho, fazendo compras no mercado, levando as crianças para a escola. Muitas mulheres ainda estão embrulhadas em burcas, embora muitas outras não. A maioria usa a burca por segurança, algumas pelo anonimato, algumas pelo hábito e algumas talvez pelo status que pensam adquirir ao usar uma vestimenta outrora associada a uma classe mais alta. A mulher usar ou não a burca tem a ver com o momento em que se tornou adulta, e onde. Minha amiga Moska tem 40 anos; ela cresceu em Cabul durante o governo de Daoud e dos comunistas. Como estudante na Universidade de Cabul, ela usava minissaias e vestidos sem manga, e nunca sentiu a necessidade de cobrir a cabeça. Quando os mujahidin assumiram o poder, ela baixou o comprimento das saias e, sob coação, passou a usar uma echarpe; mas isso era só o aquecimento para o reino dos verdadeiros fundamentalistas. Quando o Talibã assumiu, ela comprou uma burca e usou-a, em três ocasiões, para percorrer a pé a pequena distância até a casa de parentes. “Teoricamente, é para protegê-la”, ela diz, “mas transforma você em um objeto. Você se perde — seu caráter de pessoa, sua humanidade — e perde todo o prestígio que pudesse ter com os homens. Até menininhos se sentem à vontade para dizer-lhe o que fazer. ‘Não ande aí.’ ‘Espere ali.’ ‘Vá para casa’. Como se você fosse um cachorro”. Depois dessas três breves caminhadas, ela guardou a burca e ficou dentro de casa durante cinco anos. Outra amiga, Selmin, tem cerca de 22 anos, mas ainda usa a burca aonde quer que vá. Ela não consegue enxergar através da pequena rede que cobre os olhos, o que faz com que tenha dores de cabeça terríveis e caia frequentemente. No calor do verão, empacotada em poliéster, ela desmaia. Sente-se indignada e envergonhada por usá-la, mas sua sogra diz que ela tem de fazê-lo, e o marido apóia a mãe. A mãe é uma senhora analfabeta que cresceu usando o purdah, em um pequeno vilarejo, e que adotou a burca durante o tempo do Talibã, quando veio para Cabul como refugiada, e ainda espera a autorização para tirá-la.

Com ou sem burca, as mulheres que conheço em Cabul levam o que parece ser uma vida normal, embora a maioria delas seja pobre. Elas se preocupam com a roupa para lavar, a casa para varrer e o jantar para fazer, embora o jantar provavelmente seja pão e arroz com um pouquinho de molho, talvez, feito de batata ou cenoura. Grande parte do mal-estar afegão é causado por desnutrição e anemia. Elas se preocupam com a segurança de seus filhos e a felicidade de seus maridos, e talvez nunca pensem em seus direitos. Por que deveriam? Ou já têm “direitos” suficientes para estar contentes ou não, muitas jovens não lembram ou não compreendem o que são “direitos” e não há muito que possam fazer a respeito. Muitas mulheres são felizes no casamento, orgulhosas dos filhos, apaixonadas pelos maridos, felizes por terem empregos interessantes. Outras vivem uma vida de discreta miséria. Uma médica suíça, ao ensinar às parteiras afegãs algumas técnicas para relaxar as pacientes durante o parto, faz com que elas treinem massagear delicadamente o pescoço umas das outras; algumas das parteiras, que desconhecem o toque carinhoso de uma mão delicada, começam a chorar. No ano-novo, uma amiga me dá de presente um grande xale preto, adequadamente islâmico, que só pode ser para envelopar minha cabeça e ombros. Outra traz um batom vermelho-brilhante. Os presentes não dizem nada de mim, eu nunca usaria nenhum deles —, mas dizem muito da variedade das mulheres afegãs e da incipiente esquizofrenia de seu momento na História.

 

Em uma tarde fria de inverno, algumas das mulheres que trabalham na Madar sobem até minha salinha com um bule de chá e um prato de bolachas. Elas se juntam ao redor do aquecedor, conversando alegremente. A Madar mudou para outro bairro, em que os aluguéis não são tão caros, e minha nova janela dá para uma encosta desolada em Karte Char, quarto bairro. Aqui e ali, entre as casas destruídas, um homem tira a neve do telhado, uma mulher recolhe do varal a roupa endurecida pelo gelo, um garoto com uma pá bate em um vira-lata. A neve cai sobre a cena que se desenrola a nossa frente como um quadro de Breughel, um panorama da vida doméstica de Cabul no inverno. A nossa frente, bem do outro lado da rua, há uma lojinha pequena, não maior que um armário, de um senhor que apareceu no filme Osama. Ele fez o papel do velho mulá lascivo que toma por noiva uma menininha chamada Osama. No final do filme, ele entra na banheira para um banho purificador, depois de ter estuprado a criança. Lá está ele sentado em seu pequeno quiosque, sua longa barba branca e seu turbante quase imperceptíveis em meio ao amontoado de balas e miudezas que vende. Lema diz: “Talvez você pudesse se casar com ele, Nadia. Ele é um astro de cinema”. É assim que eu fico sabendo, chorando de rir, que Nadia acha que tem de encontrar um marido.

Durante dois anos Nadia e Lema disseram-me que nunca casariam. Ambas têm 30 e poucos anos, mas estão despreocupadas com o avanço de seus relógios biológicos. Devido à inocência da mulher afegã em relação à sexualidade, às altas taxas de natalidade, 7,7 filhos é a média nacional e à expectativa de vida de 46 anos, elas podem não saber nem do relógio biológico, nem que, também para elas, ele avança. Elas gostam do emprego. Gostam do ato de sair de casa todos os dias, da importância de terem compromissos e deveres e registros para manter. Suas colegas mais velhas são viúvas cujos maridos morreram há muito tempo; um torturado e morto pelos comunistas, outro estraçalhado por um míssil americano lançado por um mujahidin. As viúvas pensam nostalgicamente sobre seus casamentos, que foram breves, mas muito felizes. Uma delas havia casado, por amor, com um colega da universidade. Mas a vida atual dessas mulheres, como viúvas que trabalham, é agradável o suficiente para provar que uma mulher pode viver muito bem sem marido ou pai, desde que um irmão ou um tio a acolha em sua casa. Agora, Lema também confessa que um marido não está fora de questão. Mas por quê? Parece que tanto Nadia como Lema, cujos pais morreram em combates, ouviram de seus irmãos que elas não seriam “sustentadas” indefinidamente. “Sustentadas” é a palavra que os irmãos usam, embora seja o salário das mulheres que sustente a casa. As mulheres têm de achar outros lares, outros homens. Ambas têm medo da força e da violência dos homens, da perda de amigas, da dissolução de vidas felizes. Falam da letalidade dos partos. No Afeganistão, que tem uma das piores taxas de morte materna em todo o mundo, uma mulher morre no parto a cada trinta minutos. Mas elas não veem saída.

— Eu não quero casar com um mujahidin ou um talibã — diz Lema.

— Todos homens talibãs — responde Nadia.

Lema pergunta:

— O que posso fazer?

Digo-lhes que, em meu país, não precisariam casar, se não quisessem. — Vocês gostam de trabalhar e se sustentar — digo. — Poderiam alugar uma casa e morar juntas, como irmãs. — Lema arregala os olhos, de espanto.

— Mas não temos dinheiro — diz. As mulheres solteiras que trabalham, como Lema, não têm independência econômica porque se sentem obrigadas a entregar o salário para a família. Como as operárias em moinhos americanos no século XIX, cujo salário custeou o estudo dos irmãos homens em Harvard, Nadia e Lema trabalham para pagar aquilo que os homens da família decidem comprar, e não para elas próprias. Essa pode ser uma das razões de terem tanto prazer no trabalho em si; não estão trabalhando por dinheiro. Mas essa servidão econômica, da mesma forma que as práticas costumeiras equivocadamente chamadas de “Islã”, mantém as mulheres afegãs em seus lugares. E esse lugar é sempre a casa de algum homem, sempre sob o controle de algum homem.143

Nadia diz:

— Não pode viver mulheres afegãs, sem homens.

— As pessoas pensariam que somos prostitutas — explica Moska, a viúva. — Mesmo como viúva tenho de viver com meu irmão — é a regra. Se uma mulher gosta da família ou do marido e é bem tratada, pode achar a vida boa e gratificante. Mas seu real status econômico e social é o de escrava. E, se não gostarem dela, ou se não a tratarem com consideração; bom, daí é outra história.

Para muitas mulheres, os problemas começam na infância, como filhas de mães que ainda são, elas mesmas, crianças, meninas-noivas vendidas em matrimônio e traumatizadas pelo estupro da noite de núpcias. O que podem saber sobre “ser mãe”? “Esta é uma nação de mães que são sobreviventes de estupros”, diz uma psicóloga alemã. “Na Alemanha, as pessoas fazem análise por vinte anos se têm uma história familiar como essa.” Uma especialista da ONU em combate ao tráfico reclama: “Como é que eu posso trabalhar em um lugar assim? A sociedade inteira foi traficada”.

Veja o caso das meninas do abrigo em Herat. Uma delas me disse certa vez, quando conversamos na prisão em que ela cumpria pena por prostituição: “Todas as nossas dificuldades começam com pais que não dão amor nem respeito aos filhos”. Ela nunca lera o trabalho de psicólogos eminentes que sustentam essa mesma teoria. Aos 19 anos, ela aprendera com a vida. As vinte e oito meninas do abrigo em Herat chamaram, pela primeira vez, a atenção daqueles que trabalham com direitos humanos em janeiro de 2003, quando um homem relatou ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) que algumas meninas estavam sendo mantidas em “custódia protetiva” por Ismail Khan, o então governador (ou déspota) autocrático de Herat. Descobriu-se que essas mulheres eram duplamente refugiadas. Muitas haviam fugido do Afeganistão com as famílias durante as guerras civis e viajado para o Irã; estavam habitua­das a andar livremente pelas ruas, a irem sozinhas ao mercado ou à casa de amigos. Mas, então, uma a uma, tornaram-se vítimas de violência, não nas ruas, mas em casa, na família. L. foi vendida em ma­trimônio, aos 13 anos, a um velho que a estuprou e a espancou até que ela fugisse. M. fugiu de casa depois que seu padrasto iraniano atacou-a sexualmente quando ela tinha cerca de 14 anos. Outras foram espancadas e expulsas de casa por padrastos que se recusavam, como fazem os afegãos, a sustentar os filhos de outro homem.

Uma a uma, as fugitivas haviam chegado a Mashhad, ao santuário do Imam Reza, onde encontraram refúgio temporário nos albergues para peregrinos. Lá, algumas delas caíram nas garras de cafetões, traficantes e contrabandistas de drogas que frequentam o lugar e foram postas para trabalhar. Algumas, identificadas repetidamente por câmeras de segurança, foram pegas pela polícia. Oficialmente ou semi-oficialmente, pois os relatórios a respeito permanecem “internos” e incompletos, as meninas foram classificadas como “mulheres desacompanhadas”. Algumas delas contam que foram levadas aos tribunais no Irã para sumárias audiências de deportação, mas, na ausência de documentação que o comprove, é possível que muitas tenham sido simplesmente entregues a um funcionário de fronteira afegã, a um sobrinho de Ismail Khan e, posteriormente, ao próprio governador de Herat. Várias das meninas disseram a investigadores do ACNUR que, certo dia, “alguns homens que trabalhavam para Ismail Khan” apanharam-nas e as levaram, através da fronteira, para um “abrigo” na vizinha Herat.

O que aconteceu lá é obscuro, e as mulheres se recusam a falar a respeito. Ao contrário das mulheres ocidentais, que podem denunciar vitimização, as mulheres afegãs sabem que serão culpadas por qualquer coisa “ruim”. Na casa de hóspedes em que foram confinadas, algumas mulheres viviam sob estrita vigilância, guardadas por homens. Algumas das meninas mais novas relataram que um grupo de cinco ou seis meninas mais velhas tinha “relacionamentos” com os guardas e que esse grupo frequentemente saía para “piqueniques” com homens. O investigador do ACNUR encontrou provas de espancamento pelos guardas, brigas entre as mulheres, automutilação, repetidas tentativas de suicídio e profundo transtorno psicológico. S. temia que sua família a matasse porque ela tivera relações sexuais. N. tentou se matar com uma injeção. K. tentou pular em um poço. F. tentou enforcar-se. M. se encharcou de querosene e foi salva da autoimolação apenas pela intervenção de outras mulheres. A lista prosseguia, registrando doenças físicas e “falta de clareza” mental, que, provavelmente, indicavam estresse pós-trauma. Algumas mulheres sequer conseguiam falar.

Após a investigação, o ACNUR classificou oficialmente essas mulheres como “refugiadas” e convenceu Ismail Khan a entregá-las para a Shuhada, uma ONG afegã fundada pela Dra. Sima Samar, antiga ministra dos assuntos da mulher e chefe da Comissão Afegã Independente para Direitos Humanos. A Shuhada rapidamente estabeleceu um “abrigo” para as mulheres em Cabul, prometendo-lhes alfabetização e treinamento vocacional. Embora nenhuma delas fosse acusada de qualquer ação imprópria, as mulheres foram novamente confinadas, “para sua própria proteção”, desta vez com vigilância ainda mais rígida e, de novo, guardadas por homens. O prometido treinamento vocacional era, no fim, tecer tapetes, uma atividade extenuante para gerar lucro, com o objetivo de abater os gastos com as mulheres. Elas começaram a atuar. Maquiavam-se. Vestiam-se de forma provocante. Ouviam música alta. Flertavam com os guardas. Fumavam. Dançavam.

O ACNUR convocou psicólogos e médicos internacionais que diagnosticaram as mulheres como profundamente traumatizadas pela violência física e sexual, e por grandes perdas; a perda do lar, da família e, em alguns casos, de filhos que tiveram de deixar para trás. Um psicólogo alemão que trabalhou com as meninas por muitos meses durante seu cativeiro em Cabul disse: “Elas desafiavam, como uma gangue de crianças de rua, mas não eram agressivas, não eram maliciosas. Eram um bando de meninas que criavam suas fantasias a partir de filmes do Bollywood indiano. Queriam ser estrelas de cinema. Elas tinham força. Eram sobreviventes”.144 O psicólogo relatou que a maioria delas não estava deprimida. Elas estavam furiosas por estarem presas.

Algumas conseguiram escapar, mas a polícia de Cabul pegou duas delas caminhando “desacompanhadas” e mandou-as para a prisão. Pelo menos uma delas, com a filhinha, foi enviada para um hospício, onde passa os dias tresloucada, esfregando obsessivamente os genitais da filha. A Dra. Samar enviou meia dúzia das meninas mais brilhantes para uma clínica financiada pela Shuhada, nas montanhas centrais, para treiná-las como enfermeiras. Mas o que fazer com o resto? A Dra. Samar se viu enredada no problema que afeta qualquer organização que tenta dar abrigo a mulheres vítimas de violência. Você consegue trazê-las para o abrigo, mas como fazer para que consigam sair? No Ocidente, mulheres vítimas de violência que se refugiam em abrigos nunca ficam presas; e, quando desejam, podem seguir com a vida, encontrar um emprego, uma moradia de transição, alugar um apartamento ou ir morar com amigos ou parentes. Mas isso é o Afeganistão, onde o único refúgio para uma mulher é a família. Que ela precise se refugiar da família é fato conhecido e universalmente negado. No Afeganistão, uma mulher que se perde da família nunca mais consegue voltar, e uma mulher sozinha é como se estivesse morta.

A Dra. Samar usou uma estratégia de fuga afegã. Colocou as meninas à venda. Isto é, ela anunciou que jovens núbeis estavam disponíveis, e os homens pararam para perguntar. Quando se encontrava um par, a Dra. Samar pedia o consentimento da noiva potencial. Ou ela concordaria com o casamento ou continuaria presa. Só duas mulheres se recusaram a casar. Para noivas, essas mulheres saíram barato: um colar, algumas pulseiras, uma pequena pilha de dinheiro. Isso as colocava ao alcance de homens que não poderiam pagar muito ou que tinham pouco a esperar; homens que nada tinham, de fato, a não ser seu gênero, para recomendá-los. Os casamentos ocorriam, um a um; e, algum tempo depois, a Shuhada forneceu-me o endereço das recém-casadas para que eu pudesse ver pessoalmente quão felizes elas estavam. Encontrei uma jovem, com hematomas feios, que contou que seu marido e o irmão dele frequentemente a espancavam. Disse que a haviam comprado como uma empregada, embora a usassem para sexo também, e ela esperava fugir. Soube de outra noiva que já havia fugido. Mas os outros endereços na lista não deram em nada. Eram endereços decentes, casas boas, mas as mulheres não viviam lá.

Para ocidentais trabalhando com direitos humanos, essas transações parecem muito com tráfico. Mas um representante afegão do ACNUR elogiou a Dra. Samar e a Shuhada por apresentarem uma resposta tão criativa, uma liquidação de noivas, ao problema de mulheres independentes, de outro modo insolúvel. A própria Dra. Samar sustenta que fez um grande favor às mulheres ao atestar seu caráter, vendê-las e recolocá-las em um lugar legítimo na sociedade afegã. “Elas só conseguiram maridos devido a minha recomendação”, afirma. “E o que mais poderíamos fazer? Não poderíamos mantê-las para sempre.”145 Você pode se perguntar com base em qual título legal ela as mantinha lá, mas essa irresistível pergunta é superada por outra, a pergunta da mulher afegã: o que mais posso fazer?

 

Na Madar, sempre começamos o dia com uma aula de inglês para as funcionárias. Mesmo no dia 8 de março.

“Hoje temos uma festa”, digo. “Por que temos essa festa?”

“Porque hoje Dia Internacional da Mulher!”, responde uma das mulheres, tropeçando na pronúncia de “internacional”.

“O que fazemos na festa?”

Elas gritam respostas em uma revisão rápida, imperfeita, de verbos simples: “Nós dançar. Nós cantar. Nós feliz. Nós comer. Nós tomar chá. Nós bonita. Nós conversar”.

“Sobre o que conversamos?”

“Conversamos sobre os direitos das mulheres”, responde Moska.

“O que são direitos da mulher?”, pergunto. Silêncio. Todas, exceto Moska, parecem perdidas até que Nilofar, a costureira, arrisca:

“O que nós queremos? Ir para o trabalho?”

“Sim”, diz Hosai. “Ir ao escritório.”

Escrevo no quadro-negro: O direito ao trabalho.

Maktab”, diz a viúva Meryam. “Estuda inglês.”

“Escola”, fala Taiba. Ela ajuda Meryam a escrever o vocábulo inglês para maktab em seu caderno. Escrevo no quadro: O direito de ir à escola. O direito à educação.

Brincalhona, Hosai sugere: “Direito do marido cozinha”.

“Direito do marido limpa”, exulta Taiba, que fugiu de um casamento violento com um poderoso comandante mujahidin. “Direito do marido varre.”

Não é preciso contar-lhes da renegociação das tarefas domésticas pelas feministas ocidentais há quase meio século; elas mesmas tiveram a ideia. Além disso, percebo que, na casa de Hosai, chefiada por um homem bondoso, já surgem ideias de equidade.

Nadia diz “Direito a nenhum marido”, e todo mundo ri. Ela aponta para o quadro e eu escrevo: O direito de escolher o marido. Começa uma discussão em dari sobre o sentido da palavra desconhecida “escolher”, e elas começam a aquiescer com a cabeça, gravemente. Eis o cerne da questão para elas: quem escolhe? De todas as mulheres na sala, apenas a viúva Meryam escolheu o próprio marido. Os pais de Hosai acertaram seu noivado quando ela tinha 5 anos e, quando chegou aos 13, casaram-na com um noivo de 22 anos. Tempos depois, quando ela já havia dado à luz três filhos, atravessou um período de ódio pelo marido por ele ter roubado sua juventude. À semelhança de muitas mulheres afegãs, ela vivera “shir ba shir” (de leite a leite) da gravidez para a lactação e daí para a gravidez novamente, sem nem ao menos ter fluxos menstruais entre um momento e outro. Porém, mais tarde ainda, depois de outros três filhos e da morte de dois, ela começou, de alguma forma, a amar o marido e a considerar-se uma mulher de sorte. Eles haviam se tornado companheiros.

Escrevo no quadro: O direito de votar. É 2004. Todos os rostos se viram para mim ansiosamente, antecipando algo novo, e Homaira pergunta: “O que significa votar?”. Eu faço a mímica de escrever em um pedaço de papel, dobrá-lo e entregá-lo, dizendo: “Karzai. Não Karzai. Votar. Escolher o presidente”. Seus rostos se iluminam. “Ah, vo­tar. Baly. Sim. Votar.” Elas entenderam a palavra, e o conceito, mas vejo que não estão impressionadas. O que a possibilidade de es­colher o presidente pode significar para mulheres que não podem es­colher o marido? Outras coisas são mais importantes. O direito a sobreviver e aquilo que ninguém menciona: o direito a seus próprios corpos, o direito a segurança, proteção, refúgio contra a violência, paz.

“Escolher”, diz Meryam. Taiba ajuda-a a escrever a palavra em seu caderno. “Direito a escolher.”

 

 

Em 2003, repórteres observaram que as mulheres em Herat estavam ateando fogo aos próprios corpos. Surgiram histórias no mundo todo sobre muitos casos de autoimolação em Herat. A Unifem fez uma estimativa de 190 autoimolações em um único ano, mas ninguém jamais apresentou estatísticas definitivas. Os registros hospitalares são incompletos e inconsistentes, e a polícia reconhece que suicídios bem-sucedidos sequer são informados. É melhor enterrar a menina queimada no quintal e poupar a família da vergonha. Mas os repórteres usavam palavras como epidêmico. A maioria das meninas queimadas que apareciam nos hospitais era de adolescentes que atea­ram fogo ao corpo para fugir de um casamento forçado. Havia um quê de protesto romântico nas histórias, embora elas nada tivessem a ver com amor. Casamentos forçados são transações comerciais; um homem compra uma menina de seu pai. São comuns nesse país empobrecido, onde, frequentemente, uma filha é o único bem que um homem tem para vender. Outras meninas se incendeiam porque foram seduzidas e abandonadas no clássico estilo afegão: o menino convence a menina de que, se tiverem relações, os pais delas terão de deixar que eles se casem; mas, depois, ele se recusa a se casar com uma “prostituta”. Agora ela é mercadoria com defeito e não pode ser vendida para mais ninguém, uma vergonha para a família; é como se estivesse morta. Mas os relatos jornalísticos concentram-se menos nas razões das meninas atearem fogo ao corpo e mais na curiosa pergunta: por que Herat? Minha colega afegã, Salma, acreditava que a pergunta era de uma obtusidade cômica. “Não é Herat”, disse. “Acharam suicídios em Herat porque foi em Herat que eles procuraram. Herat é uma cidade famosa. Os jornalistas queriam ir lá. Então foram a Herat e procuraram, e isso é o que encontraram. Mas você pode procurar em qualquer lugar. Vai encontrar a mesma coisa.” Para provar o que dizia, levou-me a procurar em Cabul.

Fomos de hospital em hospital e ficamos ao lado de meninas e mulheres que haviam comido veneno de rato, ingerido produtos de limpeza cáusticos, ou drogas não identificadas, na esperança de morrer. Essa fora vendida a um velho. Aquela tinha um marido que a espancava e mandava que ela fizesse o que as mulheres fazem nos filmes pornográficos da TV via satélite. Outra estava desesperada porque o marido a descartara depois de tomar uma nova esposa e ela temia que seus irmãos a matassem se ela voltasse à casa paterna. Outra queria casar com o colega de escola, mas seu pai planejava vendê-la a outra pessoa. Uma a uma, cada mulher contou uma versão do que pareciam ser histórias contraditórias: algumas eram forçadas a ficar com homens que não desejavam, enquanto outras desejavam homens com os quais não poderiam ficar. Mas todas as histórias eram iguais no final, e nada havia de romântico a respeito delas. Elas eram atravessadas pela violência como por uma veia escura. Eram todas sobre escolhas negadas. Eram todas sobre a mesma pergunta: o que mais posso fazer?

 

A resposta era mais violência. Autoinfligida. Posteriormente, investigadores de direitos humanos pesquisaram homens e mulheres em Herat, aleatoriamente, sobre atos de violência contra a mulher, mulheres que haviam sido espancadas, trancafiadas, estupradas, forçadas ao casamento ou descartadas dele. Em todos os casos, os investigadores perguntavam: “Que conselho você daria a uma mulher nessa situação?”. A resposta mais comum, de homens e mulheres de todas as idades, foi: “Ela deveria se suicidar”.146

O Hospital Karte Se é o hospital central do país para queimaduras. Pode ser que já tenha sido um lugar acolhedor, construído sob árvores de folhas largas ao lado do rio Paghman, mas as árvores foram cortadas e o rio minguou e se tornou um esgoto fedorento. Os prédios sombrios do hospital precisam de tinta e de desinfetante. Uma das três alas, com 70 leitos, é reservada exclusivamente para vítimas de queimaduras. Muitas pessoas sofrem queimaduras em Cabul, especialmente no inverno, quando tanques de propano, tão frequentemente usados dentro de casa para a iluminação e para a cozinha, explodem. O hospital recebe essas vítimas de Cabul, e os casos mais sérios, com queimaduras em mais de 50% do corpo, de outras cidades ligadas por avião à capital. No campo, pessoas com queimaduras sérias não têm chance de sobreviver. Os casos mais críticos de autoimolação em Herat são mandados para esse hospital. É aqui que muitas delas morrem.

“Quantas”, pergunto ao diretor do hospital, um pashtun de barba negra e olhar feroz. Mas ele não sabe dizer. O hospital não conta os pacientes, nem suas doenças específicas. Ele me diz, em vez disso, que entre 3% e 6% das pacientes com queimaduras, são casos de autoimolação. Como ele calcula porcentagens sem ter os dados é um mistério e, mais tarde, uma médica na ala das mulheres eleva essa porcentagem para 10. Pergunto quantos casos de autoimolação são de meninas e ele me olha desconsolado. “Todas meninas”, diz. “Homens não ateiam fogo ao corpo.”

“E as meninas? Por que o fazem?”

Ele dá de ombros. Os motivos estão além de sua compreensão. E diz: “Por que você não pergunta a elas?”

Na sala de emergência suja, no canto mais distante, fora do caminho, está uma jovem. Talvez tenha 16 anos. Está deitada de costas, enrolada até o pescoço em um cobertor imundo. Sobre sua cabeça, fios de fuligem descem do teto escurecido. Seus braços estão sobre o cobertor, envolvidos em grossas camadas de gaze umedecida. Um tubo endovenoso serpenteia entre as bandagens até seu pulso. A menina geme e engasga com as próprias lágrimas. Ela recupera o fôlego e grita, um lamento longo e grave, e, depois, volta a gemer. Ao lado da cama, sua irmã mais nova chora, tentando secar as lágrimas com a ponta do cachecol. A enfermeira-chefe, ao pé da cama, relata o caso sem emoção, como se a paciente não estivesse ali. Essa menina foi forçada a casar-se com um homem mais velho, explica. Posteriormente, ele a acusou de adultério porque um amigo dele a viu conversando com um menino na rua; ele ordenou que ela voltasse para a casa de seu pai. Ela não desejara casar-se com esse marido, mas voltar para casa seria trazer a vergonha sobre a família, como uma mancha. Ela temia que seu pai a matasse para que essa mancha fosse lavada. Em crise, ela buscou conselho junto a uma vizinha, que lhe disse: por que você não se queima? E foi o que ela fez. Encharcou-se de óleo diesel e ateou fogo ao próprio corpo. As chamas queimaram 90% de sua pele, poupando apenas a cabeça, que agora repousa em um travesseiro ensopado de lágrimas em algum tipo de agonia de consciência e dor, separada do corpo enfaixado e arruinado, como se já estivesse morto. Aproximo-me e toco-lhe o rosto sujo. Ela se acalma imediatamente e volta seus olhos castanhos para os meus. O que vejo neles é demais para mim. Desvio o olhar para seus cabelos escuros. Estão secos e sujos, de cor cinza por causa da poeira das ruas. Na raiz, uma camada de pele da nuca parece se desprender da cabeça, ou talvez seja a própria pele soltando-se do crânio. Não consigo falar. Ela urra de novo e grita, claramente: “Eu quero morrer”. “Você vai morrer”, responde a enfermeira. No dia seguinte, ela está morta.

Ela é apenas uma. Duas ou três meninas e mulheres que tentaram se matar dão entrada, toda semana, em dois hospitais de Cabul: o Khair Khana e o Wazir Akbar Khan. Dez mulheres e meninas classificadas como vítimas de khoshoonat hlai zanan — violência contra a mulher — dão entrada, toda semana, no hospital Rabia Balkhi e, entre essas, há ao menos uma que tentou o suicídio. Uma médica na outra maternidade de Cabul, a Malalai, conta-me: “Nós não recebemos muitas suicidas, mas recebemos muitas recém-nascidas, deixadas em nossa porta todos os dias. As mulheres têm muitos filhos. Não conseguem alimentá-los. Quando já têm duas ou três meninas e vêm aqui para ganhar mais uma, elas as deixam conosco. Nas escadas. Ninguém quer meninas”.

Os meninos são o futuro dos pais. São eles que ficam em casa e cuidam de suas mães, ao passo que as meninas logo são negociadas para servir a outros. Assim, ninguém as deseja muito e ninguém as trata muito bem. Meninas são transitórias, portanto não compensa dar-lhes muita atenção, nem se apegar a elas. A empatia com elas é algo desconhecido. Mesmo em famílias afetuosas e amorosas, as meninas ocupam um lugar psicológico peculiar e precário e mesmo esse espaço depende de se comportarem bem. Conquanto possam ser amadas, elas vivem por condescendência, como hóspedes. Em uma matéria assinada no New York Times, o escritor francês Berbard-Henri Levy contou a história de Homa Safi, de 21 anos, talentosa repórter do Nouvelles de Kaboul, a revista franco-afegã que Levy fundou em Cabul. Ela se apaixonou por um jovem muito respeitável, mas seu pai não permitiu que eles se casassem porque “o jovem era xiita, não um sunita, e ... de qualquer modo, ela estava prometida ao filho de um amigo, um homem que ela jamais conhecera”. Homa Safi comprou uma enorme quantidade de “remédios” e suicidou-se. Profundamente aflito, o pai, “enlouquecido de desespero”, jurou que “se Deus lhe devolvesse sua filha amada, ele a daria em casamento ao jovem que ela amava”. Levy conclui que Homa morreu “não devido à crueldade, mas devido à insensatez infinita que o fundamentalismo provoca”.147 Mas atribuir essa tragédia doméstica ao Islã conservador é não entender a questão e, pior, é sufocar, com a estática da política, a voz clara da jovem falecida. Homi Safi está morta porque seu pai conhecia seu desejo, sua escolha, e os negou. Isso é crueldade. E é também comum. O que ela era, afinal, essa “filha amada”, senão uma menina? Uma amiga conta, alegremente, que sua prima veio de um vilarejo para dar à luz seu primeiro filho em uma maternidade de Cabul. No dia seguinte, chega a notícia de que é uma menina. Minha amiga informa que a mãe e a criança estão passando bem, embora a mãe esteja, claro, muito triste. “Por quê?”, pergunto. “Seu marido não fala com ela. Diz que é vergonha para ele.” Uma semana mais tarde, minha amiga conta que a mãe está aprendendo a aceitar a filha indesejada. O pai da criança falou com a esposa apenas tempo suficiente para dizer: “Se fizer isso comigo de novo, mato você”.

O modo como as meninas são recebidas na vida ajuda a explicar o porquê de tantas delas desejarem deixá-la. Isso é a khoshoonat ­hlai zanan, a violência contra a mulher. A médica responsável pelo ­Rabia Balkhi é uma mulherzinha robusta que parece muito profissional com seu avental e gorro imaculadamente brancos. Está furiosa. Diz: “Vocês vêm aqui e me perguntam sobre violência e suicídio, mas vocês não fazem nada a respeito. E vocês não são os primeiros a vir. Eu lhes digo em farsi. Eu lhes digo em pashtu. Eu lhes digo em inglês. Elas estão morrendo todos os dias, essas meninas. Essas mulheres. Elas são espancadas. Estupradas. Mutiladas. O que precisávamos era de um hospital para mulheres vítimas de violência de todos os tipos. Porque isso não tem fim. Daí nós diremos a todos os hospitais: por favor, não admitam essas mulheres, mas mandem-nas para o hospital central. Daí nós cuidaremos delas. Daremos a elas assistência psicológica, jurídica. Nós as ajudaremos a encontrar uma forma de viver. Se não for assim, o que podemos fazer? Eu as conserto e as mando de volta para os mesmos maridos, ou pais, ou sogras, que as espancam e estupram e queimam novamente. Talvez, da próxima vez, elas vão a outro hospital. Ninguém tem registro. Há muitos, muitos casos, mas se perdem. Vocês têm de fazer alguma coisa”.

Salma explica que só podemos oferecer sugestões ao governo; mas, ao ouvir falar de governo, ela começa de novo.

“Isso não é política”, diz. “Isso não é um regime, Karzai, Talibã, Rabbani. Isso é o patriarcado.”

Era a primeira vez que ouvia uma mulher afegã dizer em voz alta a palavra proibida, “patriarcado”, que tantas vezes me viera à ­mente. O que ela descrevera era o patriarcado conforme existia no Ocidente há menos de um século e como ainda deve existir em alguns lugares. Pesquisadores de direitos humanos estimam que 95% das mulheres afegãs estão sujeitas à violência — a cifra comparável para as mulheres americanas caiu para menos de 30% — e que as mulheres afegãs experimentam a violência com mais frequência. Algumas delas muitas vezes diariamente. Mas a maior diferença entre as mulheres afegãs e as americanas está naquilo que acreditamos em relação a nós mesmas, e em relação a nossos direitos e às injustiças que sofremos. No Afeganistão, a maioria das mulheres acredita que seus maridos, por direito, irão determinar sua vida sexual. Acreditam que os maridos e as sogras, por direito, irão ditar o que elas podem vestir, aon­de podem ir e o que elas farão de suas próprias vidas. Acreditam que os maridos e as sogras podem, por direito, espancá-las a qualquer momento, e que seus pais, por direito, podem matá-las, se elas en­vergonharem o nome da família. Mesmo mulheres jovens, com acesso à educação, das quais se poderia esperar que contestassem essa distribuição de direitos, perguntam, em vez disso: “O que mais posso fazer?” Marzia, jovem e instruída, que é uma amiga tão delicada para as mulheres de Welayat, se opõe ao meu entendimento de que as mulheres não deveriam ser presas por delitos sexuais. Assim como os cristãos fundamentalistas nos EUA, e o papa recém-falecido, os afegãos confundem sexualidade e vida moral. “Precisamos ter leis contra a zina”, diz Marzia. “Caso contrário, os homens não se sentiriam seguros para permitir que suas esposas e filhas saíssem para trabalhar.” Ela não consegue nem imaginar um mundo em que as decisões estejam nas mãos das mulheres.

Outra diferença entre as mulheres afegãs e americanas surge daquilo em que suas respectivas sociedades acreditam e daquilo que ensinam através do direito. Quase todos os americanos acreditam que espancar a esposa é crime. Ainda que décadas de agitação política feminista tenham sido necessárias para persuadir o público a respeito, essa opinião agora reflete nas leis que criminalizam a violência doméstica, o estupro, o estupro marital, a perseguição velada, o tráfico, a prostituição forçada e a escravidão, como também em outras leis que determinam apoio social para mulheres vítimas de violência. Quase todos os afegãos parecem acreditar que os homens são criaturas superiores que têm todo o direito de fazer exatamente o que quiserem.

Nessa cultura, o próprio casamento se torna uma forma de violência. Pode começar com o casamento forçado de uma menina-noiva, como o da menina Osama, no filme e com a consumação forçada que deixa a menina dilacerada e permanentemente incapacitada. Muitas jovens noivas de Cabul são levadas ao hospital para fazer curativos na manhã seguinte ao dia de seus casamentos, e algumas delas morrem. E há também o trauma emocional: a menininha de 9 ou 10 anos, que não sabe nada da vida a não ser ajudar a mãe, é entregue a completos estranhos, um dos quais, seu “marido”, a derruba e estupra, fazendo com que ela se dilacere e sangre. Uma vez que ninguém tem registro de datas de nascimento ou de casamento, não é possível traçar estatísticas referentes a casamentos de crianças, mas no campo parece ser a regra. Famílias pobres que contam com o preço de uma noiva fazem bem em vender a menina cedo, antes que ela seja muito velha e a mercadoria estrague. A lei afegã agora exige que, para casar, os meninos tenham 18 anos e as meninas, 16, e a Sharia ordena que a idade mínima para as meninas seja 15 anos. Mas os fundamentalistas que acreditam em emular o Profeta observam que uma de suas esposas tinha 9 anos quando se casou com ele. Ela estava brincando em um balanço quando foi chamada para o casamento. No campo, eles tomam esposas de 7 ou 8 anos. Nas cidades também. Em Herat, pesquisadores encontraram meninas-noivas entre as mulheres que entrevistaram; quase um terço delas se casara com menos de 16 anos, algumas com não mais de 7 anos. Em Cabul, algumas vezes as parteiras que servem aos bairros mais pobres encontram meninas-noivas trancafiadas ou amarradas para que não fujam. “Não devemos encorajar as mulheres a fugir de casa”, disse a juíza, “porque temos de manter uma sociedade moral”. Nós as encontramos em Welayat, onde a maioria das mulheres casara jovem. Nós as encontramos nas maternidades, onde estavam dando à luz.

No hospital Malalai, cerca de 70 mulheres dão à luz toda noite e, pela manhã, os médicos fazem um breve discurso sobre “planejamento familiar” e as mandam para casa com seus novos bebês. Apenas cerca de 5% dos maridos permite o uso de contraceptivos, diz a médica-chefe; assim, a maioria das mulheres pede injeções ou DIUs imperceptíveis. Em uma ala de recuperação do hospital Malalai, encontramos 11 noivas inconscientes ou dormindo. Estão deitadas de costas. Suas camisolas hospitalares estão grudadas nas costelas, de forma que se veem seus ventres nus. Atravessando cada ventre pálido e encovado há um rastro de grosseiros pontos pretos. “Cesarianas”, diz a médica. Essas meninas, com 11 ou 12 anos, ainda são crianças. Seus corpos ainda não estão desenvolvidos o suficiente para dar à luz. No campo, sem intervenção cirúrgica, morreriam. Nesse quadro, diz a médica, meninas tão jovens provavelmente gerarão bebês desnutridos, defeituosos ou retardados. Bebês que não conseguirão sobreviver. A médica conta que observou outra coisa curiosa a respeito das meninas-noivas, iguais às que jazem a nossa frente, cobertas de pontos como abajures remendados. “Elas não criam laços com os bebês”, diz. “É como se elas não sentissem nada.”

E, no entanto, ela acredita que essas meninas tenham sorte. “Podemos ajudá-las”, diz. “Elas não morrem.” A médica é uma mulher pequenina, ela mesma pouco maior que uma criança, mas é ativa e eficiente. Ela mantém o hospital muito limpo. Grupos de mulheres em aventais azuis estão lavando as paredes e o chão com desinfetantes e, enquanto nos leva de uma ala à outra, ela para aqui e ali para encorajá-las com delicadeza. “As garotas que se imolam são as piores”, diz. “Poderíamos evitar isso com uma educação adequada. Só acontece porque elas não sangram.”

— Como assim?

— Sim, é por isso que elas se matam. Você não sabia? Elas se casam, entende? E na noite de núpcias elas têm de sangrar, ou dirão que são meninas más, irão espancá-las e expulsá-las de casa. Elas têm de voltar à casa do pai, entende? Então, se imolam. — Entramos em sua sala, e ela se senta atrás de uma grande mesa sob um diploma emoldurado da Faculdade de Medicina da Universidade de Cabul. “Há outras razões, claro, mas essa é a mais comum. A virgindade é muito importante em nossa cultura, entende, por isso precisamos ensinar a todos sobre os sete diferentes tipos de virgens.”

— Sete?

— Sim, sete.

— Por favor, me desculpe — digo —, mas acho que no meu país só temos um.

— Está vendo? A educação é muito importante.

Ela arranca um pedaço de papel verde-claro de um bloco em sua mesa e faz com uma esferográfica azul, sete esboços meticulosos do colo do útero. Cada um deles se mostra, examinado de perto, ligeiramente diferente dos outros, quer pela forma, quer por algum pequeno detalhe sugerido pelas hachuras delicadas. “Veja que há sete tipos diferentes de colo de útero”, diz. “Sete tipos diferentes de virgens. O ponto importante é que só cinco deles sangram. Esses dois aqui...”, diz, circulando com a caneta dois de seus pequenos desenhos.“Esses dois tipos de virgens não sangram.”

— É mesmo?

— Sim. Você entende a dimensão do problema que elas têm? Elas não sangram. As pessoas pensam que são meninas más. São espancadas e expulsas de casa. Por isso elas se imolam. Em Cabul, muitos pais instruídos nos trazem suas filhas para exames antes do casamento. Muitas vezes, entende, conseguimos prepará-las, se for necessário. Dar alguns pontos. Mas, infelizmente, a maior parte do nosso povo não é instruída — ela me dá o papel verde com os pequenos desenhos azuis. — Você deve ajudá-los a se informar a respeito da ciência.

Salma e eu voltamos para conversar mais uma vez com as pacientes no hospital de queimados e soubemos que passar no teste da “virgem que sangra” não é nenhum talismã contra a violência, longa e brutal, do casamento. Dessa vez nos encaminhamos para a ala geral das mulheres, uma galeria ampla cujo teto baixo, enegrecido pela sujeira, era sustentado por arcos, como em uma cripta. Nos intervalos entre os arcos há camas de ferro em que vítimas de queimaduras jazem sob cobertores suspensos semelhantes a tendas, para que não toquem as feridas que vão cicatrizando. Uma enfermeira nos conduz pela galeria e para ao lado da cama de uma mulher mirrada, sem idade definida, que ignora nossas saudações. A enfermeira afasta o cobertor para que possamos ver a perna direita da mulher, queimada, na parte da frente, desde o joelho até o tornozelo. A queimadura devorou a pele do joelho, expondo a patela e os ligamentos das articulações. A ferida é profunda, de um marrom sujo que tende ao verde-arroxeado, e seca como uma velha fatia de toucinho. As bordas da ferida são roxo-claras. A enfermeira diz que essa mulher brigou com o marido e, aborrecida, deixou cair na perna, acidentalmente, óleo de cozinha fervente. Enquanto a enfermeira fala, a mulher volta-se para a parede. “Todas as mulheres nessa ala sofreram queimaduras acidentais”, diz a enfermeira. Depois, vendo meu ceticismo, acrescenta que frequentemente é impossível saber o que se passou com uma mulher que se queima. As mulheres têm medo de nos contar, diz, porque mais cedo ou mais tarde terão de voltar para a família em que o “acidente” aconteceu, e em que pode acontecer de novo. Algumas vezes funcionários do hospital denunciam casos suspeitos à polícia, diz ela, como têm obrigação de fazer, mas a polícia não se interessa muito por essas “vítimas de cozinha”. Esta aqui está nesta cama, com a perna suspensa sob a tenda, há oito meses. Ninguém sabe se ela voltará a andar, e ajudá-la a fazê-lo não é função do hospital. Seu marido jamais a visitou, mas, em dois ou três meses, ela voltará para suas tarefas em casa, menos útil e talvez um pouco mais taciturna, mas terá aprendido alguma lição secreta compartilhada pelas mulheres que jazem em seus leitos nesse quarto, sob as tendas sujas, olhando fixamente o teto azul.

É este o segredo: subjugar as mulheres pela violência. É uma subjugação suavizada pela tradição familiar e pela consolação do Islã, e algumas vezes transformada pelo amor; mas é, de qualquer forma, subjugação. É tão bem camuflada, ou tão universalmente ignorada, que chega a passar por um defeito passageiro do Talibã; mas é tão completa que até mesmo as mulheres que jamais estiveram sujeitas à violência física conhecem o código. Sua resignação é o mantra que passa pela pergunta: o que mais posso fazer? As mulheres da diáspora afegã — afegãs americanas e canadenses, afegãs alemãs e suíças, e afegãs francesas — que regressaram para ajudar a “terra natal” e as refugiadas que voltam depois de anos no Paquistão ou no Irã expressam sua frustração quanto às mulheres afegãs que jamais deixaram o país. “Lavagem cerebral” é uma expressão muito usada. “O patriarcalismo começa em casa”, diz uma afegã canadense, bastante franca, chamada Rajiba. “As mulheres de hoje aprendem desde criança a fazer o que os homens mandam. Aprendem a pensar que os homens são melhores que as mulheres. Elas realmente acreditam nisso. Lá no fundo, elas acham que é verdade mesmo.”

“Não é que as mulheres não tenham seus truques”, diz a afegã alemã Tamina. “Elas são muito espertas. Elas têm de manipular para conseguir sobreviver a cada dia. Têm suas pequenas mazelas, suas pequenas rivalidades, suas pequenas fofocas. Elas sabem dar nó em pingo d’água.” Mas essas são táticas subversivas de pessoas que sabem que não têm nenhum poder real. “Basicamente”, diz Tamina, “elas aceitam tudo o que os homens dizem e obedecem.”

“As mulheres afegãs sofrem lavagem cerebral desde a infância”, diz a professora Nahid Rahimi, que leciona na universidade. “Quando há homens na sala, as alunas não se manifestam. Não respondem a perguntas. Você pensaria que elas são completamente idiotas. Eu as encorajo, mas não posso culpá-las. Eu faço a mesma coisa. Se estou em uma reunião ou em uma discussão com colegas homens, sempre tomo todo cuidado para não falar demais; e, mesmo quando sei a resposta a uma pergunta, sou cautelosa o suficiente para não dizer nada.”

 

 

Essa é uma autoanulação voluntária, uma subserviência voluntária, uma voluntária idiotização de metade da população que ocorre mesmo entre mulheres instruídas, profissionais que pareceriam ser a exceção à regra. Talvez tamanha autoabnegação seja sintomática do trauma da guerra. Talvez derive da intensa pressão, feita pelos pares, da cultura tribal. Os afegãos vestem as mesmas roupas, comem a mesma comida, vendem os mesmos produtos nas lojas vizinhas, rezam as mesmas orações cinco vezes por dia e preocupam-se da mesma forma com que alguém se desvie da norma. Ou talvez essa rotineira demolição das mulheres seja, como parecem pensar tantas mulheres afegãs, consequência de um condicionamento de infância, uma lavagem cerebral corriqueira inscrita indelevelmente pelo uso ocasional da força. Os pesquisadores relatam que um dos principais “limites à participação das mulheres” na vida fora de casa e na mítica nova democracia afegã é que a “violência contra as mulheres é utilizada como forma de reforçar a adesão das mulheres às normas do purdah local”.148 Mas, dada toda a violência pessoal e política que as mulheres afegãs sofreram, geralmente não é preciso muita truculência. Um breve lembrete põe a mulher em seu lugar. Quando a professora Rahimi leciona para uma classe de alunos conservadores na universidade, eles viram o corpo quase imperceptivelmente e nunca olham para ela. Seu pai, seu marido e seus chefes homens na universidade deram-lhe, todos eles, permissão para lecionar, mas agora ela se vê diante de mais um exército de homens: seus alunos e seus colegas.

Vivendo assim, sempre ao bel-prazer dos homens, as mulheres têm de aprender a antecipar os desejos dos homens e, para fazê-lo, têm de aprender a ver as coisas como os homens as veem. Muitas adotam a perspectiva masculina de forma tão absoluta que parecem incapazes de sentir o sofrimento de outras mulheres. Em vez disso, inevitavelmente, competem umas com as outras. Cativas do patriarcado, procuram cuidar de si mesmas com uma intensidade que eclipsa a empatia, a lealdade e a cooperação. “Essa é outra coisa que aprendem em casa, desde crianças”, diz Tamina. Em uma família grande com poucos recursos, sempre destinados primeiro aos homens e meninos, as meninas aprendem a lutar pelas sobras. Mais tarde, depois do casamento, elas competem com as cunhadas e disputam com a sogra a lealdade do marido.” Como podem se apoiar mutuamente? A professora Rahimi conta que não recebe apoio de suas colegas de universidade. Pelo contrário. Elas a desestimulam a “criar problemas” e aconselham-na vivamente a não falar tanto de seu principal interesse: os direitos humanos das mulheres. Alunas de excelente desempenho na universidade reclamam de serem tratadas com distância por outras alunas; ela diz que as professoras que deveriam encorajá-las, ao invés disso, advertem-nas de que elas “não se encaixam”. A competição para serem aceitas fecha-as em si mesmas. Se uma mulher se manifestar em uma discussão, nenhuma outra irá apoiá-la, ainda que ela tenha expressado uma queixa comum. Elas não confiam umas nas outras. Não apóiam umas às outras. Mesmo quando dançam, dançam uma de cada vez.

Muito disso não é típico da cultura afegã. Meninas da minha geração que cresceram nos EUA aprendiam as regras também, menos draconianas, certamente, mas bastante perversas. Algumas portas eram fechadas para nós, assim como algumas formas de ser. “Não seja esperta”. “Não seja louca”. O cristianismo ensinou-nos a subserviência, a autoanulação, a preciosa castidade. Em meu caso também, a repressão era inculcada pela violência em casa e pela ameaça de violência por qualquer homem na rua. Portanto, a subjugação das mulheres no Afeganistão é extrema, mas não nova, e aquelas entre nós que deploram o fato de o governo Bush estar se aproveitando da situação para ganhos políticos devem ser perdoadas por nosso cansado desgosto feminista. A subjugação das mulheres no Afeganistão, não é consequência de serem afegãs. Não é consequência de serem muçulmanas. É consequência de serem mulheres. Simplesmente. Torna-se pior devido à pobreza, à guerra, ao analfabetismo, ao isolamento, ao fundamentalismo, ao imperialismo e às condições práticas do atual século XIV.

Nas longas noites de inverno, quando está frio demais para ficar muito longe da estufa, as mulheres da FDH costumavam sentar-se juntas nos tushaks da sala e conversar. Éramos estrangeiras de seis países diferentes, mas o trabalho era mais pesado para Nooria, a única dentre nós, naquela época, que tinha também a nacionalidade afegã. Afegã e alemã, Nooria é uma ginecologista que se voluntariou para passar um mês em um hospital de Cabul. Seu pai fora líder de um partido democrático de centro durante a luta entre os comunistas e os islamitas radicais. Como o antigo presidente Rabbani, ele recebera uma educação islâmica na Universidade Al-Azhar no Cairo, mas fora para a Alemanha fazer seu doutorado em História, onde lecionara estudos islâmicos durante muitos anos antes de voltar ao Afeganistão. Nooria disse: “Ele era um homem com uma mente capaz de abraçar os dois mundos, o Islã e um tipo de democracia de base ocidental que se coaduna com princípios islâmicos de justiça social. Era nisso que ele estava trabalhando aqui quando foi assassinado”. A mãe de Nooria levou os filhos de volta para a Alemanha, onde Nooria se formou. Agora, vinte anos mais tarde, ela voltara ao Afeganistão com a mãe para visitar o túmulo de seu pai e os parentes que haviam deixado para trás, e para fazer tudo o que ela pudesse para ajudar. Nooria compartilhava da esperança de seu pai de conciliar duas culturas díspares, mas, como muitas outras afegãs de dupla nacionalidade que voltam ao país, ela encontrou pouca coisa em comum com suas antigas conterrâneas. Nooria fala sobre elas com uma espécie de desespero.

Ela diz que sua mãe lembra que os afegãos eram bastante indiferentes uns aos outros antes da guerra, mas que, agora, depois de tanto conflito, depois de testemunhar tantas coisas indescritíveis, eles se tornaram duros. Diz que as mulheres com quem trabalha no hospital parecem estar sempre falando de suas próprias mágoas, de seus problemas femininos, de seu salário insuficiente e de suas dores nas costas. Estão sempre fazendo contas, diz, sempre pensando em dinheiro. Se o salário é de dois mil afeganis, elas só trabalham o que imaginam ser o valor de dois mil afeganis. Elas acreditam que, se recebessem cinco mil afeganis, iriam se empenhar muito mais; contudo, como não recebem o salário mítico que exigiria um empenho equivalente a sua imaginada capacidade plena, nenhuma delas se empenha nem um pouquinho.

A médica sênior chega caminhando, bem-vestida, maquiagem pesada, de nariz empinado e anuncia que hoje não está de plantão na sala de partos. A médica abaixo dela diz que esqueceu o avental e que, portanto, não pode realizar partos. Uma outra, chamada para atender um caso iminente, faz a episiotomia, tira o bebê, entrega-o à enfermeira e sai. Não fica por ali para ver se mãe e criança estão bem, ou para cuidar do corte que acabou de fazer nos tecidos da parturiente; ela deixa essas tarefas para a médica júnior, não tão importante quanto ela. A maioria dos partos acaba sendo feita pelas médicas menos experientes, as parteiras. Há um parto que está demorando, e três parteiras tentam acelerar as coisas espancando a mulher. Elas batem em seu rosto, esmurram a barriga e insultam-na: “Faz força, sua cadela com cara de merda”. Da cama ao lado, uma mulher está pedindo ajuda, mas nenhuma das médicas ou parteiras dá a mínima atenção. “Ajudem-me, por favor”, grita. Finalmente, uma enfermeira levanta o lençol, revelando uma poça de fezes aquosas entre as pernas da mulher. A enfermeira vai embora. Minutos mais tarde, a mulher pede ajuda de novo e o bebê desliza, sozinho, do canal uterino para dentro da poça e lá permanece, enquanto a mulher pede ajuda desesperadamente e as enfermeiras e médicas ficam olhando de longe.

“Que tipo de mulheres são elas?”, pergunta uma advogada espanhola, “sem empatia por outras mulheres?”

“Que tipo de mulheres?”, responde Nooria. “São mulheres afegãs. Como poderiam ter empatia por outras mulheres? Elas acreditam naquilo que os homens lhes dizem e naquilo que toda a experiência delas confirma: que as mulheres não valem nada. Menos que um carro ou uma vaca ou um aparelho de TV. Nada. E dar à luz é só mais uma tarefa, talvez mais dolorosa e perigosa do que outras, mas ainda assim é apenas rotina.”

Transmito a Nooria uma história que minha colega afegã Salma me contou, de um tempo em que ela era uma menina fugindo, pela estrada, de seu vilarejo, atacado pelos mujahidin. Uma mulher bem a sua frente tombou de joelhos, de repente. Gemendo, agarrou com força a burca. O pai e a mãe de Salma pararam para oferecer ajuda. Passados alguns minutos, a mulher puxou de debaixo da burca um recém-nascido ensanguentado, limpou-o com a bainha do manto, levantou-se e continuou a correr. Só mais uma tarefa.

“Sim”, diz Nooria. “Estou vendo como elas aprenderam.”

Ela repete uma história que sua mãe ouviu de uma parente: a história de um homem que foi morto por um mujahidin, esquartejado e jogado, pedaço a pedaço, em uma panela com água fervente enquanto sua mulher e seus filhos eram obrigados a olhar. Depois disso, os mujahidin fizeram o mesmo com as crianças, uma a uma. Nooria diz: “Claro que essa história é, na verdade, sobre a mulher forçada a olhar”. Isso foi durante a guerra. Eu me lembro (embora não comente no momento) o que uma de nossas advogadas contou-me a respeito de uma cliente. Ela é a viúva de um comandante mujahidin, um dos tenentes de Gulbuddin, que costumava derramar água fervente em seu abdome, suas coxas e seus genitais para “limpá-la” antes de estuprá-la. Ele celebrava seu clímax arrancando com os dentes nacos de carne de seus seios, braços, pernas e rosto. Seus membros e seu corpo estão agora lanhados e cobertos de cicatrizes, segundo a advogada que a acompanhou a um exame médico; e a pele de sua barriga está tão contraída pelas cicatrizes que ela não consegue mais ficar de pé normalmente. A advogada contou: “Ela costumava ser linda e alta, mas agora está baixa. Ele morreu, mas ela ainda tem medo. Ela está realmente muito baixa”. Isso aconteceu depois das guerras, no tempo de paz. São essas coisas, experimentar essas coisas, ouvir sobre essas coisas, mesmo quando, como no caso da advogada, você é pago para ouvir, que deixam você embrutecido, duro. No Afeganistão, há uma quantidade suficiente de histórias como essa para deixar o país inteiro duro como pedra.

Não muito depois de minha chegada a Cabul em 2002, fui a um grande congresso sobre a questão da mulher, financiado pela ONU, que reuniu mulheres de todas as províncias vizinhas. Foi no Hotel Intercontinental, que, à época, era o melhor naquela Cabul destruí­da. Enquanto escutávamos os discursos na sala de conferências, o pessoal do hotel arrumou um grande buffet no saguão. Quando os discursos terminaram, encaminhei-me para o almoço com minha intérprete, uma estudante de Medicina de uma importante família da Cabul. Na cabeceira da mesa do buffet, peguei um prato, mas uma mulher veio por trás de mim e arrancou-o de minha mão. Peguei outro, mas outra mulher deu-me um safanão no ombro que me arremessou, do lado da mesa, contra a parede. Minha intérprete me apanhou enquanto eu me ajeitava e levou-me para um canto. “Creio que devemos esperar”, disse, como quem pede desculpas. As mulheres que haviam agarrado os pratos enchiam-nos rapidamente, arrancando nacos de carne e amontoando punhados de batatas e de repolho. Algumas nem se incomodavam em pegar pratos e ficavam ao lado da mesa do buffet, comendo rápido com as duas mãos. Uma mulher pegou uma travessa de coxas de galinha e despejou-a dentro da bolsa. Outras levaram embora travessas de carne cozida ou de pilau de arroz. Duas mulheres lutaram por uma bandeja com fatias de bolo quando uma terceira a apanhou inteira. Era como um daqueles desenhos antigos de mulheres se degladiando em uma liquidação no porão da Macy’s, mas a cena se desenrolava em silêncio. Sem dizer uma só palavra, as mulheres atacaram a comida com a voracidade sistemática dos gafanhotos e, quando terminaram, não havia mais uma migalha. O furor com que comiam, desesperadamente, solitariamente, trouxera-me lágrimas aos olhos.

— Eu consigo alguma coisa para você no restaurante — disse minha intérprete.

— Não, obrigada — respondi. — Não é importante — mas ela se desculpava, profundamente constrangida.

— Essas pessoas não sabem se comportar — ela disse.

— Acho que elas só estão com fome.

— Não — respondeu. — Esse é o jeito como elas vivem.

 

 

Paradoxalmente, a mesma obstinação que gerou essa refeição furiosa pode servir de mecanismo de autocontrole em situações em que as ações ou o discurso de uma mulher podem ser problemáticos o bastante para “deixar as coisas piores”. A mulher afegã é de uma fortaleza discreta, indistinguível da “passividade”, que lhe permite sobreviver a tempos e pessoas difíceis. Veja as mulheres que trabalham para a Madar. Essa pequena ONG está sempre à beira da falência, e Caroline vive na esperança de que uma das “especialistas” estrangeiras que vêm de vez em quando ajudá-la possua um cérebro para finanças comparável ao grande coração que ela tem. A esperança faz com que ela lhes dê o benefício da dúvida, de modo que, embora sendo ela mesma praticamente uma afegã, confia a Madar a uma especialista estrangeira atrás da outra, que não sabem nada do Afeganistão. As mulheres afegãs de sua equipe, que estão com ela desde o princípio, não têm escolha, a não ser acomodarem-se aos ditames que surgem de opiniões técnicas duvidosas. Uma visitante quer ensinar aos lavradores afegãos como cultivar a terra. Outra quer treinar as mães para cuidar de seus bebês. Várias, eu inclusive, tentaram ensinar aos professores como ensinar. Uma está determinada a resolver os problemas fiscais da Madar transformando sua popular loja de artesanato em uma loja sofisticada. Ela faz com que a equipe de costureiras, cujo tradicional bordado afegão vende bem há muitos anos, passe a fabricar os vestidos deselegantes que desenha. As afegãs da equipe, obedientemente, dão entrada nos projetos necessários, conseguem as permissões necessárias, indo, sem qualquer reclamação ou protesto, do Ministério da Agricultura para o Ministério da Saúde, para o Ministério da Educação, para o Ministério do Comércio. Durante todo esse trâmite, conversam discretamente entre si e trocam ideias. Mesmo quando sei que estão desanimadas, seus rostos permanecem tão impassíveis quanto o relógio quebrado no escritório improvisado e em eterna reorganização. Já ao final, sob o barulhento reinado autocrático de Mary Lou, a perita em moda e algumas das costureiras vão para casa depois do trabalho e choram escondido.

— Ela nos manda cortar a seda tão linda — sussurra pra mim a costureira principal.

— Você reclamou com a Caroline?

— Não, não. Vamos conversar quando Mary Lou tiver voltado para os EUA.

— Mas isso pode ser daqui a meses. Por que você não fala com a Caroline?

— Não, não. Não se incomode. Haverá tempo para isso.

As mulheres percebem a feiúra das peças que são forçadas a produzir, mas supõem que alguém, em algum lugar, deve gostar dessas coisas, já que Mary Lou não para de falar sobre o “mercado”. O que as incomoda é ter de cortar a seda que sempre guardaram para pedidos muito especiais. Elas conhecem as mulheres que a tecem. Sabem quão difícil e quão demorado foi tecê-la. E o tecido é tão lindo. Apesar disso, elas cortam, dão pontos e passam como exigido até que toda a seda se vá, assim como a perita americana, que deixa atrás de si pilhas e pilhas de caríssimos modelos Mary Lou que ninguém quer comprar. No fim, a perita ganhou dinheiro com seus serviços, e a Madar perdeu. Mas as mulheres ainda têm seus empregos, e nem uma única palavra de aborrecimento ou de reclamação foi dita pelas afegãs, a não ser discretamente, ocasionalmente, em um sussurro, para mim. Não é que eu seja uma amiga especial, embora seja útil para elas encorajar-me a pensar que sou. Elas devem ter sussurrado reclamações a meu respeito também, a outras que elas desejavam conquistar, até mesmo à pavorosa Mary Lou. É assim que elas lidam com suas famílias. Foi assim que elas enfrentaram o Talibã. É assim que elas sobrevivem ao massacre da “ajuda” estrangeira.

Será esse comportamento, resignação heroica, inação covarde, egoísmo sagaz ou estresse pós-trauma? Ou será alguma complexa estratégia de sobrevivência desenvolvida para manter a vida em zonas desconhecidas para nossos comportados dicionários de diagnósticos pseudopsicanalíticos? Nos últimos anos, muitos livros motivacionais foram escritos sobre o heroísmo das mulheres afegãs, sobre sua coragem, força e poder de recuperação. Muitos livros descrevem a força da mulher afegã como “escondida” ou “velada”, como de fato tinha de ser sob o Talibã, quando tantas mulheres arriscaram a vida por terem lecionado para crianças. O heroísmo algumas vezes consiste em ser discreto, de modo que o Afeganistão, como todas as sociedades patriarcais, não tem muitas heroínas com discurso franco, visíveis na linha de frente. Só consigo pensar em duas, e uma delas está morta.

Seu nome era Meena. Como uma garota de classe média crescendo na Cabul dos anos 1970, ela estudou História e Literatura com professores progressistas na escola secundária para meninas em Malalai e na Universidade de Cabul, que na ocasião fervia de opiniões radicais. Em 1977, na condição de estudante de 22 anos, fundou a Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (RAWA). Começou com um grupo pequeno de mulheres jovens que trocavam ideias sobre direitos da mulher e igualdade; depois passou a espalhar tais ideias por meio de cursos de alfabetização para mulheres pobres. Ao contrário dos grupos políticos dos homens existentes no campus universitário naquele tempo, grupos como o dos maoístas e o incipiente Jamiat-i Islami do professor Rabbani, a RAWA rejeitava tanto o sectarismo étnico quanto o islamismo como base para o Estado. Único, até hoje, entre os partidos afegãos, a RAWA propugna a separação da mesquita do Estado em uma república secular e denuncia os mujahidin islamitas — todos aqueles heróicos “guerreiros da liberdade” — como “terroristas”, “bandidos” e “gangues de criminosos fundamentalistas”. Isso explica o porquê de Meena ter tido de fugir do Afeganistão e o porquê da RAWA jamais ter sido convidada para a mesa de “reconstrução nacional” depois da guerra. No início dos anos 1980, ela transferiu as operações da RAWA para Quetta, no Paquistão, para servir aos refugiados afegãos; e foi lá que ela foi assassinada em 1987, provavelmente por agentes do onipresente Gulbuddin Hekmatyar. Àquela altura, Meena e a RAWA já eram bem conhecidas na Europa. Meena era uma oradora carismática, e a RAWA sempre fora astuta quanto às relações públicas. No período do Talibã, quando o mundo começou a notar o Afeganistão, a RAWA era a única organização de mulheres afegãs que se podia achar na Internet. As feministas americanas descobriram-na lá e adotaram-na. Juntando forças para apoiar “as mulheres do Afeganistão”, elas enviaram dinheiro e apoio moral à RAWA, que ainda operava nos campos de refugiados do Paquistão, enquanto milhares de mulheres anônimas arriscavam o pescoço ao operar escolas e serviços de saúde domésticos no Afeganistão, desafiando o Talibã. Com o desaparecimento de Meena, parecia não haver ninguém para liderar a RAWA no Paquistão e poucas mulheres, ou homens para manter viva a causa secular nesses novos tempos de conservadorismo islâmico opressivo. Destacadas feministas ocidentais ainda importam membros da RAWA para falar sobre as mulheres afegãs, mas a organização idolatrada nos EUA é quase invisível em casa.149 Lá, a verdadeira heroína Meena foi eclipsada por outro líder carismático radical, que é seu contemporâneo exato: Osama bin Laden.

Outra heroína da vida real, tão corajosa e tão franca quanto Meena, apareceu no loya jirga constitucional de 2003. Uma delegada, Malalai Joya, 25 anos, levantou-se e perguntou por que razão os déspotas locais e os comandantes mujahidin sentados nas primeiras fileiras não deveriam ser julgados por crimes de guerra contra “afegãos indefesos”. Afegãos comuns, incomodados pela mes­ma questão, aplaudiram sua coragem, mas os déspotas e os co­mandantes que participavam do governo Karzai ofenderam-se com a liberdade desse discurso. O presidente tentou expulsá-la da convenção constitucional, e ela teve de ser colocada sob proteção da ONU por causa do risco que corria.150 O fato de Malalai Joya ter sido eleita para o novo Parlamento, em 2005, pode ser um sinal de mudança.

Mas Meena e Malalai Joya não se parecem em nada com as heroínas tradicionais apresentadas como modelos de comportamento, embora, ironicamente, Malalai Joya deva ter recebido seu nome em homenagem a uma delas: uma menina pashtun que serviu, em um momento decisivo da História, de líder de torcida para os homens que lutavam. Em 1880, durante a segunda guerra anglo-afegã, a lendária Malalai deu novo ânimo aos combalidos soldados pashtuns ao cantar estes versos inspiradores, ou palavras em pashtu, com este sentido aproximado:

“Meu jovem amor, se não caíres na batalha de Maiwand,

Oh, Deus, é que alguém te preserva para seres símbolo de vergonha.151

 

Os homens, envergonhados, voltaram à luta e venceram, mas Malalai foi morta no campo de batalha para culminar uma história que é, ao mesmo tempo, uma inspiração para os homens que lutam e uma narrativa de advertência para as mulheres que pudessem querer seguir, de fato, seu exemplo. A outra “heroína trágica” tradicional do Afeganistão é a talentosa poeta farsi e árabe Rabi’a Balkhi, que teve os pulsos cortados por ordem do irmão, o governador de Balkh, quando soube que ela se apaixonara por um escravo turco. Também sua história destina-se a alertar mulheres voluntariosas, mas ela é muito admirada por ter escrito a seu amado um último poema — com seu próprio sangue — enquanto morria, uma façanha comumente atribuída tanto ao poder transcendente da poesia como ao poder terrível e perturbador da sexualidade feminina. Para honrar as trágicas heroínas, os afegãos dão seus nomes as suas filhas e também a edifícios públicos: as duas grandes maternidades de Cabul e a escola secundária para meninas em que Meena se formou. Até agora, não há nada que tenha sido nomeado em homenagem a Meena.

Hoje, entretanto, há uma nova heroína de ficção, também chamada Rabia. Ela é a personagem principal de um filme de ação sonhado por uma policial de Cabul, Saba Sahar. Uma vez que a polícia afegã não só é treinada como também recebe auxílio da Alemanha, Saba Sahar foi ao escritório alemão para assistência técnica em Cabul e pediu 8 mil euros para fazer um filme sobre uma policial; como esse escritório é chefiado por uma alemã criativa que gosta de cinema e como 8 mil euros são migalhas, Saba Sahar conseguiu o dinheiro. O filme se chama QanoonA Lei. E a lei é representada pela dedicada policial Rabia. Ela não é nenhuma Cagney ou Lacy, mas fica muito elegante com seu uniforme e os óculos escuros. O filme começa com Rabia em sua mesa rememorando a recente cerimônia de formatura na Academia de Polícia de Cabul, em que ela, Rabia, filha de Abdullah, orgulhosamente jurou servir o povo do Afeganistão. Ela é chamada para enfrentar alguns traficantes que lhe oferecem dois milhões de afeganis (cerca de 40 mil dólares) para deixá-los em paz, mas Rabia é incorruptível. Os traficantes a advertem de que, mesmo que ela os prenda, eles estarão livres em algumas horas, um comentário realista ao atual funcionamento da justiça em Cabul, mas, apesar disso, ela cumpre seu dever.

A seguir, Rabia é chamada para uma ocorrência de conflito familiar. Um homem perdeu a filha de 10 anos em um jogo de cartas, e o vencedor está tentando arrancar a criança da mãe. Rabia põe ordem nas coisas prendendo os dois homens. Na cena seguinte, ela salva uma criança de um traficante que se disfarçara usando uma burca. Ela percebe alguma coisa no jeito como ele anda. Depois, algema um jovem arrogante que está assediando uma menina na rua. Só se passaram alguns minutos, e a policial recém-formada já está limpando Cabul e incutindo medo, bem, talvez não medo, mas preo­cupação, nos narcomafiosos da cidade. Os bandidos são sujeitos em roupas ocidentais, embriagando-se com bebidas ocidentais e idolatrando os bens ocidentais. O bandidão, que parece americano, se explica, estou contando a versão em inglês, feita pela própria diretora, do roteiro em dari: “Eu sou um matador, sou um homem mau, sou um assassino humano, e sem vinho eu não como nem bebo outras coisas. Sem matar e destruir eu não tenho outros trabalhos. [...] Agora eu quero ser rico e o dinheiro capturou o mundo inteiro”.Mas o que esses bandidos podem fazer com uma policial que não é suscetível às tradicionais propinas? “Cada vez que ela respira”, diz um perplexo criminoso, “Rabia está dizendo ‘Qanoon é meu pai, Qanoon é minha mãe, Qanoon é meu tudo’.” Ela diz que prefere passar fome a aceitar propina. Se ela fosse homem, o chefe criminoso Sultan mandaria matá-la; mas, como ela é mulher, basta que consigam fazer com que ela se case. Ele manda um dos membros da gangue, um sujeito sujo, desleixado, com um bigodinho, oferecer ao pai de Rabia um preço pela noiva que ele não pode recusar; e, antes que você perceba, lá está Rabia, bajulando o marido e pedindo permissão para voltar a trabalhar.

Rabia é ludibriada por algum tempo, chegando a inadvertidamente transportar drogas para Zahir, seu marido, no carro que ele lhe deu. Mas não demora muito para que a lua de mel termine em confronto: “Sim, eu pensava que meu marido era um homem de negócios”, diz Rabia, “mas agora descobri que ele é um homem do negócio de drogas, de partes de corpos de crianças, raptando criancinhas inocentes e depois matando-as e vendendo seus rins. [...] Sou uma policial. [...] Jurei servir meu povo e meu país. O governo investiu em mim e me fez uma policial, e agora eu vou aplicar a lei a você”. Mas antes ela tenta fazê-lo ver o erro de seu mau caminho: “Essas crianças que você rapta e leva, você arranca os rins, arranca os olhos. Elas não têm uma mãe? Elas não têm um pai? Você trafica narcóticos, essas mães desesperadas, com quanta dificuldade elas criaram os filhos e você os ensina a usar narcóticos; ao invés de servirem suas velhas mães, eles acabam servindo vocês, seus desgraçados”. Depois, passa a usar todas as artimanhas persuasivas de uma boa mulher: “Veja, Zahir, veja Zahir, sou sua esposa. [...] Derramo lágrimas para você, não por isso que você me derrotou, derramo lágrimas para você por nosso povo, por nosso país destruído”. E, então, a súplica: “Vamos, Zahir, ajude-me. Vamos, Zahir, livre as vidas dessas pessoas sem esperança, desses desgraçados e assassinos. Vamos, vamos. Vamos nos dar as mãos. Vamos nos dar as mãos. Vamos nos dar as mãos. Vamos nos dar as mãos. Você ajudará a polícia. Você cooperará com o povo; nós vamos juntos nos dar as mãos; juntos, vamos submeter esses desgraçados à lei. A lei irá ajudá-lo”.

Ela o conquista, é claro, mas a gangue o apaga, momento em que Rabia, em uma demonstração peculiar de amor pelo marido criminoso que se gabava de tê-la usado o tempo todo, jura beber o sangue dos assassinos. Há muito mais. Rabia resgata crianças sequestradas. Ela cruza um cenário desértico espetacular sobre uma grande motocicleta Jin Hao, dirigindo devagar, para que o chador não voe muito. E ela é ferida algumas vezes. Mas, no fim, Rabia e o filme são salvos pelos mocinhos, que chegam com força total, vindos do oeste: legiões de policiais afegãos treinados pela Alemanha dirigindo jipes da polícia afegã doados pela Alemanha. Após acabarem com a gangue, eles se juntam às hordas de cidadãos agradecidos no quarto de hospital em que Rabia se recupera dos tiros que recebeu. Um oficial lhe diz: “Estou orgulhoso de sua presença aqui. A polícia está orgulhosa de você, o povo do Afeganistão está orgulhoso desse tipo de polícia”. Enquanto a cena se esvai, Rabia responde: “Obrigada, policial. Seja esta a vida, este é o dever da polícia: servir o povo e servir seu país. Obrigada”.152

Os cartazes são melhores do que o filme. Rabia de uniforme com uma fita vermelha amarrada no chapéu. Rabia com sua arma. ­Rabia na motocicleta. Rabia usando muita maquiagem nos olhos. Mas Rabia, como heroína de ação, é uma decepção, porque no fundo ela é uma “boa” mulher afegã submissa. Ela casa com um homem que nunca viu porque seu pai lhe diz que essa é sua obrigação. Ela pede permissão a esse homem para viver sua própria vida. Ela o “ama” mesmo quando descobre que ele está no negócio de matar crianças e vender seus órgãos no mercado negro, e que ele a desposou apenas para tirá-la do caminho. Ela vai atrás da gangue inteira sozinha, como se não tivesse aprendido nada no programa de treinamento alemão, e tem de ser salva pela maior mobilização de policiais (homens) na história do Afeganistão. Talvez seja por isso que o filme se chama A Lei, em vez de Rabia. Por trás da fantasia há a realidade sobre os prósperos narcomafiosos (dentro e fora da lei) e sobre a vida das mulheres afegãs e o fato espantoso de que qualquer mulher, não importa quão madura, dedicada e perfeitamente treinada, não importa se ocupando um cargo alto e uma posição de valor para si mesma e para o país, pode ser comprada e vendida.

 

 

Durante o Eid, os afegãos se arrumam e visitam os amigos. Nunca fui capaz de decifrar os sinais que diziam às pessoas em Cabul quais famílias deveriam circular e quais deveriam ficar em casa e recepcionar, mas Caroline era sempre do grupo que circulava. Em 2005, circulei pela cidade com ela para visitar as famílias do pessoal da Madar. Primeiro fomos a um apartamento no quarto andar de um dos velhos edifícios da época dos soviéticos, sem escadas e em ruínas, que fazem com que este bairro, chamado de Terceiro Macrorayon, lembre algumas partes desoladas de Vladivostock ou de Murmansk. Demorou um bom tempo para que o motorista de Caroline, Hassan, conseguisse achar o prédio certo em meio a filas de clones idênticos e sem numeração; ele teve de parar em vários prédios para perguntar. Finalmente encontramos o endereço certo e, cruzando a entrada coberta de lixo, subimos as imundas escadas de concreto e passamos rapidamente, como em um túnel de vento, pela corrente de ar gelado que entrava pelos vidros quebrados das janelas na escadaria. Esses são os apartamentos mais cobiçados de Cabul, porque foram originalmente equipados, na década de 1970, com vasos sanitários com descarga, aquecimento e lâmpadas elétricas que — quem sabe? — um dia podem funcionar de novo. O boato local é que um desses apartamentos foi recém-vendido a um estrangeiro por 70 mil dólares. O fato da família pobre de Nadia, de professores, ter se mudado para cá recentemente era mais um dos aspectos da logística das pessoas em Cabul que eu não conseguia decifrar; mas lá estava Nadia no alto da escada, sorrindo feliz e cantando uma canção de boas-vindas a sua nova casa, como se nenhuma de nós soubesse que era dessa casa que seu irmão pedia que ela saísse. Lá dentro, um linóleo estava estendido no chão do quarto estreito de Nadia, um quarto que seu irmão cobiçava e ali nos sentamos de pernas cruzadas no tushak que lhe servia de cama e comemos o pilau que ela colocara a nossa frente. Caroline era o tipo de pessoa que não gosta de ser distraída enquanto come, mas, naquele dia, não parava de olhar para o buraco na parede ao fundo do quarto, onde, certa vez, uma bomba atingira o prédio. O buraco deixado pela parte da janela que fora destruída estava preenchido com trapos e coberto com um plástico, mas, ainda assim, o vento frio entrava. “Você vai consertar isso aí?”, perguntou Caroline. Nadia deu de ombros: “Vou”, disse. “Talvez. Talvez meu irmão. Ele conserta isso.”

Nadia nos acompanhou para irmos de carro até o outro lado da ci­dade, até a casa que Lema e sua família haviam alugado em Taimoni. Era uma típica casa de Cabul, apenas uma janela e toscos tijolos de barro, com um pequeno jardim, agora desolado, mas contendo a promessa do verde da primavera. Em abril, os mirrados bastões junto à parede do jardim se tornariam árvores floridas. Lema e suas duas irmãs solteiras nos receberam no portão e nos conduzi­ram ao ­gulkhana, uma espécie de solário interno, onde sua mãe, linda e sempre doente, descansava sobre almofadas, aquecida pelo sol que atravessava as janelas. Essa era uma casa de mulheres, e logo as esposas de dois dos irmãos de Lema se juntaram a nós. Três me­ni­ninhos, filhos de uma das cunhadas, estavam sentados, um ao lado do outro, junto à parede perto da porta, como se tivessem acaba­do de entrar e não pretendessem ficar. Sentaram ali, quietos, ­sem dizer nada, ouvindo a conversa das mulheres. Três lindas me­ni­ninhas, filhas de uma das cunhadas, sentaram-se no chão a sua vol­ta, enquanto ela dava de mamar a seu bebê. Seu primeiro ­menino. ­O irmão estivera com elas apenas uma semana, e as meninas já podiam perceber sua força. O sorriso de sua mãe era radiante.

Mubarak, mubarak”, disse Caroline. “Parabéns pelo nascimento de seu filho.”

“Estou muito feliz”, respondeu a jovem mãe. “E meu marido e minha sogra também. Estamos todos felizes.” A sogra, deitada nas almofadas, esboçou um sorriso cansado. “Antes eu só tive meninas. Estava tão triste que disse: ‘Não quero mais ter filhos’. Mas agora que tenho esse menino, eu quero muitos, muitos filhos mais. Talvez agora, ensh’allah, muitos, muitos meninos.”

A irmã mais nova da jovem mãe também a estava visitando e, embora ainda não fosse casada, disse que ela também esperava ter muitos, muitos meninos. Nesse meio tempo, contou, iria deixar a escola e vir para cá ajudar a irmã. Teria sido o acréscimo de mais essa menina ao grupo familiar que fizera o irmão de Lema começar a insistir para que ela se casasse?

 

“Adoro limpar a casa”, disse. “E lavar. Esse é um trabalho muito bom, e eu posso treinar. Eu também posso ajudar a cuidar do menino.”

“Mas você deve completar seus estudos”, disse Lema, que tinha sua carreira. “Você não precisa de treino para limpar a casa. Sempre há uma casa para limpar, e qualquer um pode fazê-lo. Mas, se terminar os estudos, você pode fazer outras coisas.” A menina manteve um silêncio respeitoso, mas pude ver seu ceticismo. “Veja o meu caso”, prosseguiu Lema, oferecendo-se como um exemplo que poucas meninas têm em suas famílias. “Terminei os estudos secundários. Faço aulas de inglês. Faço aulas de computação. Agora tenho um bom emprego. Trabalho em um bom escritório. Todos os dias posso sair de casa, andar pela cidade e fazer o meu trabalho. Posso ganhar dinheiro para a família. E, além disso, meu trabalho é bom. Ajuda muitas mulheres. Isso também me faz sentir bem.”

“Mas você não tem marido”, respondeu a menina.

“Se eu quiser um marido, eu arranjo um marido, mas nesse momento eu não quero. Não quero dedicar minha vida a limpar a casa. Acredite em mim, é melhor terminar seus estudos.”

A filha mais velha da jovem mãe serviu novamente chá para as convidadas e para a fileira dos atentos meninos, enquanto a ­segunda passava o prato de bolo. E foi a própria jovem mãe que veio em defesa da irmã, a potencial limpadora de casas. “Lema, querida”, disse, “quando chega do trabalho, você está cansada. Você não nos ajuda a fazer o jantar, nem a lavar os pratos, nem a fazer as camas. Você não faz as coisas que são boas para uma mulher fazer”.

“Sou eu que pago a comida”, disse Lema. “Isso é para você também. Seu marido está desempregado.”

“Isso é bem verdade, Lema, querida, mas esse não é um trabalho apropriado para mulheres. A primeira coisa é conseguir um marido, e a coisa mais importante é ter um menino.”

Lema riu. “Talvez”, disse, “mas eu não seria uma mulher feliz sem um emprego”.

“Mas, Lema, querida”, disse a jovem mãe, “sem um menino, você nem é uma mulher”.

 

Caroline convidou Lema para vir conosco visitar a viúva Meryam, que morava bastante longe, no térreo de outro anônimo bloco de apartamentos soviéticos. As paredes de concreto pareciam irradiar frio como uma geladeira, e a sala de estar, quase sem nada, estava absolutamente gelada. Meryam trouxe dois aquecedores de propano e uma braçada de cobertores. Enrolamo-nos como se fôssemos torcedoras em algum jogo de futebol no inverno e nos amontoamos nos tushaks bebendo chá-verde, que ficou gelado no momento em que Meryam o despejou em nossas xícaras. Meryam, que tinha tendência à depressão, parecia tão radiante quanto a jovem mãe que deixáramos cuidando de seu bebê na casa de Lema; e a razão, mais uma vez, era um menino. Seu filho Hamid, de 14 anos, viera passar o dia em casa, vindo da escola militar que frequentava, fora da cidade. Hamid era filho único póstumo, nascido três meses depois que seu jovem pai fora morto, em uma rua de Cabul, por um míssil mujahidin. O governo pagava a educação que treinaria o menino para ser um oficial do Exército Nacional Afegão. Os EUA haviam escolhido despejar dinheiro no Exército, que poderia apanhar Osama bin Laden, e não na polícia, que poderia ter estabelecido um mínimo de segurança para os habitantes de Cabul. Hamid estava exultante por fazer parte do programa da Força Aérea, disse Meryam. Ele planejava ser piloto.

Meryam deixou a sala e voltou com o garoto. Ele era bonito, daquela forma suave dos meninos no auge da adolescência, e já era mais alto do que a mãe. Vestia uma camisa escura e um elegante terno ocidental. Entrou na sala e afundou-se em uma almofada próxima à porta, na postura provisória dos menininhos que ouviam nossa conversa na casa de Lema. Assim como eles, ele ouvia em silêncio a nossa conversa até que cometi o erro de fazer-lhe, diretamente, uma pergunta sobre a Força Aérea. Sem responder, ele se levantou e saiu apressadamente da sala. Ele já era velho demais para sentar-se na sala das mulheres, e jovem demais para ter aprendido a sair com autoridade e indiferença. Meryam logo o seguiu para servir-lhe chá e bolo em sua própria sala; e, mais tarde, quando a convidamos para se juntar a nós em nosso circuito de visitas, ela recusou. “Man bacha”, disse. Meu menino. Ela não podia deixá-lo. Ele era o objeto de todo seu amor e a fonte de toda sua alegria. Em anos futuros, ele viria para casa nos feriados escolares, como Eid, para permitir que ela o servisse. Quando for muito velha para trabalhar, ela ficará em casa, talvez aqui, nessa mesma sala gelada, aguardando essas ocasiões. Se ele for um bom menino afegão, continuará a cuidar dela, ainda mais do que da esposa ou das esposas que ele certamente terá algum dia. Irá sustentá-la e virá visitá-la quando puder. Mas estará distante, voando.

 

 

Três anos depois de nossa primeira visita conjunta ao presídio feminino em Welayat, Beck e eu pegamos um carro e descemos pela estrada de Jalalabad, passando pelos grandes campos da ISAF (Força Internacional de Assistência à Segurança) cercados de sacos de areia e arame farpado, e viramos para o sul, atravessando o rio Cabul em direção ao presídio de Pul-i Charkhi. Zulal veio conosco para servir de intérprete. Desde muito longe podíamos ver as muralhas de pedra se erguendo na planície empoeirada e, como a estrada era péssima, nos movíamos em direção a elas como em câmera lenta, em meio à poeira e à ansiedade. O presidente Daoud construíra Pul-i Charkhi para “reformar” ou remover aqueles que pudessem se opor a sua república, e governantes afegãos de uma tendência política ou outra a têm usado, desde então, para livrar-se de seus inimigos. Foi aqui que minha amiga Orzala ficou presa, quando criança, com toda a família até que o Crescente Vermelho Internacional conseguiu libertar as mulheres e crianças. Foi aqui que meu amigo Sharif ficou aleijado pela tortura; que o marido de minha amiga Moska foi fuzilado; que minha amiga Acquela ficou aguardando diante dos portões, mês após mês, o dia, que nunca veio, em que seus filhos seriam libertados. Foi aqui que o pai de meu amigo Obidullah foi torturado por ser comunista e, muitos anos mais tarde, que Obidullah foi torturado por não sê-lo. Quase todo mundo em Cabul tem uma história aqui.

Entregamos a carta de autorização aos comandantes policiais de barbas grisalhas que ficavam nos portões e logo estávamos do lado de dentro das muralhas, atravessando um pátio cheio de lixo em que uma dúzia de prisioneiros interrompeu seu jogo de vôlei para olhar estupidamente para a mulher de cabelos cor de cenoura, sem véu, que passava por ali. A nossa frente apareciam os blocos de celas com suas longas janelas gradeadas, colocadas alto o bastante para que os prisioneiros não conseguissem ver através delas. Atravessamos mais portões de ferro, mais policiais armados e cruzamos o campo amplo e desolado, ainda cheio de tábuas quebradas, que era o pátio do recém-reformado setor feminino. O pátio estava vazio, a não ser por uma cadeira de encosto reto, absolutamente solitária no meio da desolação. Foi então que notamos, na extremidade do pátio, uma mulher que marchava para cá e para lá com botas de salto alto. Ela não fechara os zíperes, de forma que os canos de suas botas agitavam-se como se fossem grilhões. Nós a reconhecemos como uma das cinco chinesas presas quando a polícia invadiu os bordéis que haviam demorado demais para pagar o baksheesh. A cidade agora estava infestada de bordéis e contava com um pequeno exército de trabalhadoras do sexo, comentava-se que eram seis mil, em 2005, incluindo muitas meninas chinesas e filipinas traficadas para saciar os apetites exóticos dos homens da comunidade internacional, dos funcionários de embaixadas e dos empreiteiros americanos. ­O Afeganistão é um posto “sem-família” perigoso demais para as espo­sas ocidentais. O mercado negro de carne feminina, direcionado exclusivamente aos estrangeiros (principalmente americanos), torna difícil para as mulheres ocidentais falar convincentemente aos afegãos sobre os direitos da mulher.

Um ônibus parou atrás de nós, e policiais de camisa parda surgiram do nada para nos empurrar para fora do caminho. A porta do ônibus se abriu e, uma a uma, surgiram burcas azuis: um pequeno desfile de novas prisioneiras transferidas de Welayat. Olhei seus pés, enfiados em sapatos de salto alto com correias ou salto plataforma, pisando cuidadosamente o chão. E suas mãos: uma agarrando a orla da burca, outra segurando com força uma sacola plástica ou a mão de uma criança pequenina. Os policiais haviam trazido uma mesa e várias cadeiras, e sete deles se sentaram para decidir qual o procedimento correto para registrar novas prisioneiras. Dois policiais empurravam as mulheres em direção à mesa. Um pegou uma tábua e brandiu-a com força contra as costas de uma mulher. “Ei!”, gritei. Foi uma reação automática, não muito inteligente, e Beck tocou-me o braço. O guarda se afastou, indolentemente, como se não tivesse ouvido.

 

Entramos no corredor da prisão, longo e escuro. Assim como algumas partes de Welayat, o edifício, que fora reformado, já começava a voltar a seu primitivo estado de ruína. A umidade se infiltrava pelas paredes pintadas de amarelo e fungos vicejavam como flores azuis. O chão de cimento do corredor estava inundado pela água que vazava das privadas. Beliches de ferro se apoiavam, dois a dois, junto às paredes das celas grandes, cada qual abrigando de 15 a 20 mulheres. Cada cela tinha um aparelho de TV falando ininterruptamente — o toque humanitário dos doadores internacionais —, mas a maioria das mulheres o ignorava. Ficavam em seus beliches com o rosto voltado para a parede, imersas em algum tipo de solidão ou sono. Uma guarda que conhecíamos, uma policial pequenina e rija, com os cabelos tingidos dramaticamente de preto, veio nos cumprimentar com a boca desdentada. Ela fora transferida de ­Welayat para cá contra a vontade, juntamente com nove outras colegas; se tivesse perdido o ônibus para os empregados pela manhã, teria de gastar uma fortuna para vir de táxi até o trabalho. Como todo mundo naquele lugar, ela queria nossa ajuda. Disse-nos que estava trabalhando demais. Só havia dez guardas femininas e 87 prisioneiras para cuidar e agora o ônibus trouxera mais. “Nunca tivemos tantas prisioneiras”, disse. “Mais todo dia.”

Ela nos deixou em uma sala de reuniões no fim do corredor e voltou, alguns minutos mais tarde, com Serena, a prisioneira que viéramos visitar. Fizemos um círculo mais aconchegante com as desconfortáveis cadeiras de metal de costas retas e nos sentamos. Na parede ao nosso lado, havia um cartaz contra a violência que mostrava homens de aparência malvada espancando as esposas com bastões. Tentamos relaxar. Serena era uma das garotas do abrigo em Herati, uma que não havíamos encontrado antes porque era muito hábil em fugas. Mas Beck a conhecia, e, por meio dela, soube fragmentos de sua história. Beck ficou de mãos dadas com Serena enquanto eu a conduzia por uma versão revisionista de sua própria vida, altamente censurada e editada; uma recriação fantasiosa de si mesma. Eis o que eu já sabia: ela sobrevivera a estupro, encarceramento, prostituição, tentativas de suicídio e um estupro por uma gangue de quatro homens, um comandante local e seus guarda-costas, tão brutal que lhe provocara um aborto. Tinha cerca de 19 anos de idade, estava completamente sozinha no mundo e já cumprira dez meses de uma pena de cinco anos por prostituição e consumo de álcool. Eis o que ela me contou: um conto de fadas em que as lembranças brutais do abrigo em Herat desapareciam em um sonho de piqueniques. Nenhuma menção a prostituição ou sexo nem a brigas com outras meninas do abrigo ou a tentativas de suicídio ou ao desespero que fez com que ela, várias vezes, cortasse os pulsos com uma lâmina, deixando as cicatrizes que eu tocava com as pontas de meus dedos para mostrar-lhe que estava do seu lado e que lia em seu corpo um texto diferente. Era o abrigo em Cabul que era horrível, disse; sujo e muito severo. Nenhuma folga. Nenhum piquenique. Serena fugiu. A polícia a capturou e a trouxe de volta. Um mês depois, ela fugiu de novo. Foi presa novamente por uso de álcool e passou mais tempo em Welayat. Uma advogada da assistência jurídica conseguiu soltá-la, e ela foi enviada para outro cárcere, que chamavam de abrigo. Ela quebrou uma janela e fugiu de novo, descendo por uma corda feita de colchas. A vida é um filme. Ela era toda hora presa por embriaguez, que admitia com uma risada, e por prostituição, que ela não admitia.

Depois, disse, fora viver com uma amiga, alguém que conhecera na prisão. Contou que, por três meses, não ficara menstruada. Então, houve uma manhã em que ela foi ao hamam e alguém notou que ela estava sangrando muito e a levou para o hospital. Eu sondava as lacunas desses eventos com perguntas delicadas, e emergiu então que “dois policiais” a haviam detido, estuprado, feito outras coisas com ela e a jogado na rua, e era por isso que havia tanto sangue. Perguntei se era possível que ela houvesse perdido um bebê, e Zulal explicou-lhe a pergunta, delicadamente, em dari. Houve uma pausa. “Provavelmente”, disse Serena. Mas ela não conseguia falar sobre isso, e eu não iria forçá-la. Ela estava criando um novo eu: não a menina que fora espancada, estuprada e deixada para morrer, mas uma mulher que gostaria de aprender inglês e, um dia, conseguir um emprego. Algumas vezes, dizia, quando ficava acabrunhada pelo remorso de ter deixado a casa do pai, ela se lembrava de quão cansada estava da vida. Mas tentava não pensar nisso. Quando perguntei se poderia escrever a respeito dela neste livro, concordou sem hesitar. “Pode usar meu nome”, disse. “Não é meu nome. Nada disso é sobre mim.”

Ela era uma garota inteligente. Foi Serena quem me disse que todas as dificuldades das mulheres na vida vêm da falta de amor e de respeito de seus pais por elas. Tinha estudado até a oitava série antes que seu pai interrompesse sua educação quando ela tinha 13 anos (“é o bastante para uma menina”) e tentasse forçá-la a casar com um primo de quem ela não gostava. Ela queria livros para ler porque era muito aborrecido ficar na prisão; e, quando perguntamos que tipo de livro, respondeu “Física”. Disse: “Não livros de criança, por favor. Física”. Durante todo o tempo ela foi tão bem-educada, delicada e gentil, falou de forma tão macia, tão cortês, perguntando se poderíamos conceder-lhe alguns minutos para fumar um cigarro, que Beck disse: “Na Inglaterra, ela seria considerada uma boa menina”.

“Ela é uma boa menina”, disse Zulal. “É o Afeganistão que não é bom.”

 

 

Não muito tempo depois de termos voltado de Pul-i Charkhi, chegaram da província de Badakshan, ao norte, notícias de que uma jovem e seu suposto amante tinham sido acusados de adultério e condenados aos castigos aprovados por um comandante local. A rádio afegã disse que o acusado recebera 100 chibatadas. A mulher foi arrastada de casa, com a ajuda do marido, e apedrejada até a morte. A Anistia Internacional informou que essa era a primeira execução desse tipo desde o regime do Talibã. Minha amiga Ingrid fazia parte de uma delegação enviada pela Comissão Europeia a Badakshan para investigar. Eles falaram com o governador do distrito, a polícia, o déspota local e com os anciãos e mulás que aprovaram a sentença, e também com as famílias da mulher e do jovem, que eram vizinhas de porta. Voltaram a Cabul convencidos de que jamais saberiam a verdade. Disseram-lhe que o jovem não era seu amante de fato. Que seu marido nem estivera lá. Nem qualquer outro homem da cidade. Que ela não havia sido exatamente apedrejada, mas talvez espancada pela família ou apenas estrangulada. Funcionários haviam desenterrado o corpo para que o médico local pudesse dar uma espiada. Todo mundo dizia que esse era um assunto de família e que não dizia respeito nem ao público nem à lei. E, de qualquer forma, o comandante e os mulás por trás disso tudo tinham contatos tão bons que não fazia o menor sentido tentar culpá-los pelo episódio. De todo modo, não era a primeira vez que faziam algo do tipo em Badakshan, então por que todo o alarido? Ingrid fez a pergunta afegã: “O que mais podemos fazer?”, e continuou: “Todo mundo sabe exatamente o que nos dizer. Todos conhecem o jargão dos direitos da mulher. Você imaginaria que existem tantos déspotas e mulás feministas em Badakshan? Lá, onde as mulheres nem podem sair de casa? Todos eles são a favor de educação para meninas e mulheres, todos a favor de as mulheres trabalharem, votarem e concorrerem ao Parlamento. Os homens estrangeiros contentam-se com isso. Dizem: ‘Bem, é só um problema de família, afinal de contas’. Eles são tão cuidadosos, sabe, em respeitar a família afegã, a cultura afegã. Tentei argumentar. Disse: ‘Essa mulher foi assassinada’. O chefe da delegação respondeu: ‘Sabe, você realmente não deveria ser tão eurocêntrica. Estamos falando de costumes locais’.”

Mais ou menos nessa época, soube pelos jornais que Cabul logo contaria com outro presídio feminino. Faltavam escolas, clínicas médicas e abrigos para mulheres e crianças de rua. Moradia também. Em Cabul, no inverno, as pessoas ainda viviam e morriam em tendas. Mas a ONU concordou em destinar 300 mil dólares à construção de mais um presídio feminino. O vice-ministro da Justiça, Mohammad Qasem Hashemzai, anunciou orgulhosamente que seria construído “para atender aos padrões internacionais”.153

Há uma piada entre as estrangeiras em Cabul que diz que, quando os homens estão à frente de um projeto de assistência, a primeira coisa em que pensam é concreto. Eles gostam de construir coisas e argumentam, com alguma razão, que grandes objetos de concreto no meio da paisagem lembram aos cidadãos locais que estamos de fato “reconstruindo” seu país. Mas por que outro presídio para mulheres? Um presídio que, previsivelmente, logo estará cheio de novas prisioneiras. Que tipo de “lembrete” é esse? E então vem a pergunta difícil para mim: o que eu estive fazendo todo esse tempo? Graças ao trabalho de estrangeiros e afegãos, algumas leis mudaram, advogadas de defesa foram treinadas e passaram a ajudar as mulheres, juízes aprenderam a aplicar a lei; e o resultado é que homens, estrangeiros e afegãos, decidiram construir mais uma prisão para mulheres. Há rumores de que se construirão prisões para mulheres também nas províncias onde, antes, não havia nenhuma. Durante todo esse tempo, pensei que estava “ajudando” as mulheres afegãs na prisão. Mas é inegável que, como resultado da mudança de regime promovida pelos americanos e da “liberação” do Talibã, mais mulheres definham em prisões afegãs, pelos mesmos velhos “crimes”. Lembrei-me mais uma vez da explicação daquela juíza: “Não devemos encorajar as mulheres a fugir de casa porque temos de manter uma sociedade moral”. Até as mulheres acreditam nisso. Até as prisioneiras acreditam nisso. Pensei novamente no provérbio afegão que me ajudou a enfrentar tantos dias difíceis: Qatra qatra darya mesha. Gota a gota se faz um rio. Há dias em que você acredita nisso. Há dias em que não. Até que chega um dia em que você olha para o rio e vê em que direção ele está correndo.

 

105 “Afghan Recovery Report”, nº 44, Institute for War and Peace Reporting, 17 de janeiro de 2003.

 

106 “Afghanistan: Country Gender Report, agosto de 2004”, relatório provisório do Banco Mundial, Cabul, 2004, p. 64.

 

107 Corão 2:282. Alguns especialistas apontam outras passagens que equiparam o testemunho de ambos os gêneros, como em Corão 24:6-9. Mas as culturas patriarcais geralmente derivam o “governo” do Islã de leituras seletivas.

 

108 Artigo 22 (2) da Constituição da República Islâmica do Afeganistão, 4 de janeiro de 2004.

 

109 Omite-se a referência para preservar o anonimato do autor do relatório.

 

110 Sobre a “enorme influência” de Sayyaf sobre o tribunal, ver Chris Johnson e Jolyon Leslie, Afghanistan: The Mirage of Peace ­(London e New York: Zed Books, 2004), p. 163.

 

111 Entrevista, porta-voz da Comissão Independente de Direitos Humanos do Afeganistão, que solicitou que seu nome fosse omitido. 30 de março de 2005.

 

112 Johnson e Leslie, p. 164-165.

 

113 Mohammad Hashim Kamali, “Islam, Pernicious Custom, and Women’s Rights in Afghanistan”, anais da Conferência Nacional sobre Direitos da Mulher, Direito e Justiça no Afeganistão, 26 e 27 de maio de 2003, Kabul: International Human Rights Law Group, 2003, p. 46-47.

114 Kamali, p. 53.

 

115 Artigo 3, Constituição da República Islâmica do Afeganistão, 4 de janeiro de 2004.

 

116 “The Role of the Judiciary in Safeguarding Women’s Rights: proceedings of a Conference of the Supreme Court of the Islamic Republic of Afghanistan, 22 a 24 de fevereiro de 2005”, Kabul: medica mondiale, maio de 2005, p. 26.

 

117 “The Customary Laws of Afghanistan”, Kabul: International ­Legal Foundation, setembro de 2004, p. 10, 13-14.

 

118 Código Penal da República Islâmica do Afeganistão, artigos 428 e 429.

 

119 “Bad Painful Sedative: Final Report”, Kabul: Women and ­Children Legal Research Foundation, 2004, p. 8.

 

120 “Bad Painful Sedative: Final Report”, p. 18.

 

121 “The Role of the Judiciary in Safeguarding Women’s Rights”, p. 26.

 

122 Amy Waldman, “The 15 Women Awaiting Justice in Kabul ­Prison”, New York Times, 16 de março de 2003:4:1.

 

123 Omite-se a referência para preservar o anonimato do autor do relatório.

 

124 Omite-se a referência para preservar o anonimato do autor do relatório.

 

125 Corão 33:59 e 33:53. Sura 33:59, o versículo a que geralmente se atribui a “prescrição do uso do véu” está aberto a traduções e interpretações substancialmente diferentes. Frequentemente é traduzido para sugerir que as esposas e filhas do Profeta e as “mulheres piedosas” deveriam “lançar suas vestimentas exteriores [i.e., burcas] sobre os corpos de forma que fossem reconhecidas e não fossem molestadas”. Mas como é que uma mulher vestindo uma burca pode ser “reconhecida”? Outra tradução parece trazer um pouco mais de bom senso, dizendo que as esposas e filhas do Profeta e as “esposas dos fiéis” deveriam “deixar seus véus caírem até embaixo. Assim elas serão mais facilmente reconhecidas e não serão desrespeitadas”. Mas dizer que se deve deixar o véu “cair até embaixo” implica expor o rosto ou abaixar a barra? Uma mulher deve ser reconhecida individualmente ou genericamente, como seguidora do Profeta? As possibilidades para discussões são infinitas.

 

126 Louis Dupree, Afghanistan (Princeton, N. J.: Princeton ­Universtity Press, 1973), p. 531; George Macmunn, Afghanistan: From Darius to Amanullah (London: G. Bell, 1929), p. 296.

 

127 Jan Goodwin relata esses casos em entrevistas com mulheres islâmicas em Price of Honor: Muslim Women Lift the Veil of Silence on the Islamic World (Boston: Little, Brown, 1994).

 

128 Asne Seierstad descreve um caso típico de “consentimento” em O Livreiro de Cabul. Ela escreve: “Não dizer nada significa que se consentiu”. E embora os membros da família se opusessem ao plano do livreiro de tomar uma segunda esposa, “ninguém ousava dizer nada em contrário – ele sempre conseguia o que queria”.

 

129 Donald N. Wilber et al. Afghanistan: Its People, Its Society, Its Culture (New Haven, Conn.: HRAF Press, 1962), p. 136.

 

130 Ludwig W. Adamec, Afghanistan’s Foreign Affairs to the ­­Mid-Twentieth Century: Relations with the USSR, Germany, and Britain (Tucson, Ariz.; University of Arizona Press, 1974), p. 44.

 

131 Louis Dupree, p. 438-439. Quem geralmente recebe o crédito por iniciar a modernização e a liberalização de tendências no Afeganistão do século XX é o intelectual nacionalista Mahmud Beg Tarzi. Ele era conselheiro de Amir Habibullah, tutor dos filhos do emir, Inyatullah e Amanullah (seu sucessor), e casou-os com suas próprias filhas. Ver também Ewans, p. 111-112; Louis Dupree, p. 453-457.

 

132 Leila Ahmed, Women and Gender in Islam: Historical Roots of a Modern Debate (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1992), p. 129.

 

133 Adamec, p. 90.

 

134 Adamec, p. 132-134.

 

135 Adamec, p. 137.

 

136 Adamec, p. 140.

 

137 Adamec, p. 183.

 

138 Dupree, p. 530-533.

 

139 Wilber et al., p. 80.

 

140 Entrevista, Dra. Laila Arash, Cabul, 2 de maio de 2005.

 

141 Conversa pessoal, 13 de março de 2005.

 

142 Tanto o Afeganistão como os Estados Unidos assinaram a CEDAW em 1980; o Afeganistão ratificou a convenção em 2003, mas os Estados Unidos não o fizeram até agora.

 

143 O candidato presidencial Wakil Mangal disse a repórteres: “A mulher pode obter todos os seus direitos quando tem acesso à educação, mas sem auto-suficiência financeira ela não consegue sair do controle do homem”. “On the Issue of Afghan Women: Interviews with Presidential Candidates”, Kabul: medica mondiale, outubro de 2004, p. 18.

144 Entrevista, Cabul, 26 de abril de 2004.

 

145 Entrevista, Cabul, 7 de abril de 2004.

 

146 Marjo Stroud, pesquisa não publicada, fevereiro-março de 2004.

 

147 Bernard-Henri Levy, “A Tale of Love and Death in ­Afghanistan”, New York Times, 17 de abril de 2004.

 

148 Shawna Wakefield, “Gender and Local Level Decision ­Making: Findings from a Case Study in Samangan”, Kabul: Afghanistan ­Research and Evaluation Unit, março de 2005, p. 3.

 

149 Em 2003, celebridades feministas americanas, incluindo Jane Fonda, Oprah Winfrey e Eve Ensler levaram uma ativista da RAWA ao Madison Square Garden para mostrar sua burca em uma demonstração midiática de solidariedade feminina. Zoya, com John ­Follain e Rita Cristofari, Zoya’s Story: An Afghan Woman’s Struggle to Freedom (New York: William Morrow, 2002), p. 210-212. Para um relato favorável sobre a RAWA, ver Cheryl Bernard, Veiled ­Cou­rage: Inside the Afghan Women’s Resistance (New York: ­Broadway Books, 2002).

 

150 Johnson e Leslie, p. 171.

 

151 Louis Dupree, p. 411.

 

152 Qanoon, or The Law, enredo por Nasir Yosuf Zai, diálogos por Saba Sahar, Cabul, 2005. Todas as citações são da versão original em tradução inglesa preparada pelos realizadores.

 

153 “Afghan justice ministry promises to build new prison for ­women with many facilities”, Pajhwok Afghan News Service, 6 de março de 2005.