PARTE III

Nas Escolas

 

“Você olha o mapa e vê todas aquelas pequenas formas contornadas por grossas linhas pretas. Algumas estão pintadas de verde, algumas de amarelo, algumas de rosa. Cada uma tem uma legenda: Afeganistão, Paquistão, Quirguistão, e assim por diante. Você olha para todos esses países coloridos diferentes e acredita que sejam reais.”

Meu amigo europeu faz uma pausa para tornar a encher nossas xícaras com chá-verde. Estamos sentados, juntos, no jardim de sua casa em Cabul, em uma manhã de final de inverno, e o sol é tão forte que temos de nos refugiar à sombra de uma antiga sempre-viva. A nossa volta, há canteiros baixos e sebes que se estendem até os muros para proteger o jardim da rua movimentada, mais além. No topo do jardim, esparrama-se a velha casa, comprida e baixa, aquecida graças às muitas janelas e cercada de varandas que se derramam delicadamente em direção às árvores. Assim era Cabul antes das guerras, uma vida serena e graciosa, isolada atrás de muros, sustentada por outra classe de cozinheiros e faxineiros, jardineiros e guardas, e por homens que recolhiam com suas pás os excrementos humanos e os levavam embora. Há algo de extraordinariamente confortável em estar agora sentada aqui, sob o sol, mordiscando amêndoas e amoras, bebericando chá amargo e ouvindo meu amigo falar sobre os velhos tempos, antes das guerras, nesse país que ele conhece tão bem. Mas é irreal esse momento de aparente segurança nesse jardim geométrico em que hoje nada floresce. As pessoas que outrora viviam entre tais jardins — as “melhores” famílias, a intelligentsia — foram perseguidas por um regime ou por outro, e aquelas que sobreviveram fugiram, há muito tempo, para a Europa ou para a América do Norte, deixando para trás aqueles que haviam trabalhado para manter a classe que não poderia sustentar o país. A maioria delas nunca voltará.

“O Afeganistão nunca foi um país de verdade”, diz meu amigo. “Assim como o Paquistão, sempre foi uma ficção política. Sempre a invenção de outros países, reais, que tinham alguma finalidade para o espaço que ocupa nos mapas que eles traçaram.” Ele se deixa ficar em silêncio enquanto um helicóptero de combate americano ronca ruidosamente sobre nós, e penso nos afegãos distantes que, neste exato instante, podem se lembrar desse jardim, dessa cidade, desse país como algo real.

“E hoje?”, pergunto quando o helicóptero vai embora.

“O governo quer reconstruir algum tipo de Estado-nação, como o que estava gradualmente se desenvolvendo antes de 1978, antes da invasão soviética. Mas os americanos têm outros planos. O plano real tem a ver com bases militares permanentes, oleodutos e uma remodelação significativa dessa parte do mundo para servir ao projeto imperial de Washington, mas aquele que é divulgado é o da democracia instantânea, infelizmente imposta, como o comunismo, de cima para baixo e a assim chamada economia de mercado.”

“Como se os afegãos precisassem que os americanos os ensinassem a comerciar!”

Meu amigo ri. “Pois é, eles vêm fazendo isso há, o quê, uns dois mil anos? Mas agora, no assim chamado livre-mercado, exige-se que eles comprem produtos de exportação americanos. Na verdade, não é comércio. É mais parecido com consumo compulsório”. Ele faz uma pausa para levar aos lábios uma xícara de cerâmica com desenhos que devem datar de mil anos atrás. “Claro, a pressa toda era para reeleger Bush”, continua, “portanto pode ser que agora eles recuem e partam para a próxima cruzada. Se eles fossem espertos, ou gentis, deixariam os afegãos tocarem as coisas. Mas claro que eles não são espertos, e a gentileza nunca faz parte dessas coisas.”

“Mas os afegãos dizem que não querem que os americanos os abandonem. Você com certeza não acha que os EUA deveriam se retirar novamente.”

“Os afegãos querem paz”, diz. “Deixe-os manter o governo com B-52. Deixe que os aviões continuem voando. Você não os vê lá no alto, mas todo mundo pode ouvi-los. Todo mundo sabe que estão lá. E deixe os afegãos continuarem tentando encontrar seu próprio caminho.”

O cozinheiro aproxima-se com um bule de chá fresco e um prato de bolo e passamos juntos mais uma hora, sentados em um jardim afegão inexistente, discutindo teoricamente o destino do país há muito perdido e que parece nunca ter sido um país de verdade. Mais tarde, caminho para casa pelas ruas imundas e olho novamente o mapa que tenho pendurado na parede do meu quarto. O Afeganistão é verde.

 

 

Vim ao Afeganistão não para teorizar, mas para fazer algo prático para ajudar o país a se reerguer. Mas não há muito que eu saiba fazer. Sou boa para ficar sentada em jardins, boa para cuidar deles, mas não sei remover minas terrestres, nem construir estradas, nem consertar um sistema de irrigação. Uma coisa que sei fazer bem é ensinar, e pareceu-me que, depois do estrago feito ao sistema escolar pelo Talibã, o Afeganistão iria precisar de professores. Posteriormente, fiquei sabendo que havia mais além do problema do Talibã. O Afeganistão sempre precisara de professores e de escolas. No papel, o Afeganistão tem educação primária gratuita desde 1915 e educação primária gratuita obrigatória desde 1931, quando a ideia foi posta na Constituição.154 Mas não adianta ter educação obrigatória se não se tem o dinheiro para construir escolas, treinar professores ou imprimir livros; assim, na prática, quase ninguém vai à escola. Quando cheguei lá em 2002, o Afeganistão tinha um sistema educacional descrito pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento como “o pior do mundo”.155

O Islã prescreve que todos os muçulmanos, homens e mulheres, devem buscar conhecimento e educação para promover a justiça social na comunidade islâmica. Mas, como o conhecimento é mais facilmente perseguido por aqueles com tempo livre, a educação há muito se tornou uma arte da elite, praticada nas cortes dos samanidas em Balkh no século IX, dos ghaznavidas em Ghazni nos séculos X e XI, dos timuridas em Herat no século XV e em Kandahar no século XVIII. Quando chegou o século XIX, essa instrução de elite transformara-se na base da educação tradicional, destinada a transmitir a doutrina islâmica, e pouco mais. O ensino dava-se em madrassas privadas ligadas às mesquitas e era financiado pelas comunidades e patronos ricos. O currículo, uma mistura de máximas do Corão, poesia persa clássica e práticas e crenças tribais costumeiras, variava de madrassa para madrassa; como se acreditava que o conteúdo viera de Alá por meio do Corão, não era sujeito a investigação crítica, nem a discussão. Muitos dos professores eram mulás de educação precária, eles mesmos quase analfabetos, e sua “metodologia” era a de aprender pela rote, repetição e memorização estimuladas pela “vara longa”, ainda usada nas salas de aula afegãs.156 Os alunos aprendiam a recitar o Corão em árabe, mas não a ler e escrever em suas próprias línguas. Apesar disso, graças ao conselho do Profeta aos seus seguidores, de que buscassem o conhecimento, até mesmo homens semieducados eram respeitados.

Amir Abdur Rahman — aquele das 199 esposas — geralmente recebe o crédito por ter iniciado a reforma educacional, embora ainda seja difícil perceber alguma mudança. Segundo a História, quando ele assumiu o poder, em 1880, determinado a estabelecer um Estado-nação centralizado, buscou 30 servidores que soubessem ler e escrever, e só conseguiu encontrar três. Ele construiu escolas para educar os servidores públicos que sua ambição requeria e refreou os mulás, iniciando, assim, a perene competição entre a educação “moderna” e a tradicional. É possível que Abdur Rahman tenha conseguido dar instrução a alguns servidores alfabetizados, mas os professores tradicionais seguiram ensinando o Corão e o Panj Ganj (Cinco Tesouros), o mais popular dos livros didáticos, que versa sobre a educação islâmica e que inculcava no povo verdades universais, tais como a superioridade natural do macho muçulmano.157

Acredita-se que outro “momento decisivo” na educação afegã tenha sido resultado de uma viagem feita pelo filho de Abdur Rahman, Amir Habibullah, à Índia, em 1907. Tendo visto jovens muçulmanos aprendendo Direito e comércio moderno no Aligarh College, próximo a Delhi, ele voltou a Cabul para estabelecer a Escola Secundária de Habibiya para meninos, em que um corpo docente de muçulmanos hindus lecionava tanto disciplinas das modernas escolas europeias, como aulas da madrassa tradicional. Foi na Escola Secundária de Habibiya que se formou a geração de homens que compuseram o governo e dirigiram o país durante a maior parte do longo e confuso reinado do rei Zahir Shah. O filho de Amir Habibullah, o “revolucionário” rei Amanullah, acelerou a mudança da educação tradicional para a moderna, da mesquita para a moderna escola secundária. Em 1921, fundou a primeira escola secundária para meninas — com um corpo docente de professoras francesas, alemãs, hindus e turcas — e, nos anos seguintes, abriu mais duas. Ele também fundou outras três escolas secundárias para meninos, em que estrangeiros lecionavam em língua estrangeira: a francesa Istaqlal (onde Ahmad Shah Massoud estudou), a alemã Nejat, e Ghazi, de língua inglesa, onde as aulas estavam a cargo, primeiro, de anglo-hindus e, posteriormente, de professores britânicos. O estabelecimento dessas escolas secundárias foi o maior salto na educação afegã e, contudo, um pequeno passo. As escolas eram poucas, as matrículas eram pouco numerosas e todo o sistema se concentrava em Cabul. Ao final do reinado de Amanullah, em 1930, o moderno sistema afegão de educação consistia em 13 escolas primárias e secundárias, e o número total de alunos matriculados era de 1.590. Essa nova educação patrocinada pelo governo se tornou a meta da elite, e as poucas escolas secundárias em língua estrangeira passaram a ser o caminho para a próxima geração chegar ao poder. Durante os anos da guerra, quase todos os líderes políticos importantes haviam se formado em uma das escolas secundárias do Estado.158

Muitos desses líderes também cursaram a Universidade de Cabul, que começou em 1932 como uma Faculdade de Medicina filiada à Universidade de Lyon, na França. Em 1938, adicionou-se uma Faculdade de Direito, filiada à Universidade de Paris, e, depois disso, vieram Ciências e Letras. As mulheres foram admitidas em 1957 em faculdades destinadas só a elas, e essas faculdades foram abandonadas, quatro anos depois, em favor da coeducação. A universidade continuou a agregar faculdades até a década de 1960, cada uma filiada a uma universidade estrangeira, incluindo várias instituições americanas. A Faculdade de Agronomia mantinha parceria com a Columbia University Teachers College, e a Faculdade de Engenharia com o US Engineering Team, um grupo de nove universidades e institutos de tecnologia americanos.159 Mais significativa para o futuro do Afeganistão foi uma parceria, estabelecida em 1951, entre a Faculdade de Teologia (Sharia) e a Universidade Al-Azhar, no Egito, assim como a parceria estabelecida, em 1967, entre o Instituto Politécnico e a União Soviética.

Naquela época, durante a guerra fria, os homens sentavam-se em escritórios abafados em Washington e Moscou, examinando mapas-múndi abarrotados de pequenos países rosas, verdes, amarelos. Os homens em Washington mandavam ajuda ao pequeno Afeganistão para contrariar os homens em Moscou e suas ambições comunistas. Grande parte dessa ajuda foi para a educação, o que resultou no fato do inglês se tornar a língua não-afegã mais importante no país e aquela prescrita pelos regulamentos afegãos como segunda língua em todas as embaixadas estrangeiras. Louis Dupree observa que a língua “espalha a ideologia ... simplesmente pela forma como expressa as ideias, tanto concretas como abstratas”, mas a ideologia americana não foi muito bem compreendida. Mesmo quando em 1964 a USAID investiu dinheiro para consolidar as diferentes faculdades da Universidade de Cabul em um único campus no estilo americano, foi a empresa da Alemanha Ocidental, que realizou a obra, quem ficou com a fama.160 Mas, àquela altura, quase dois mil estudantes universitários afegãos — na maioria, homens — viajavam todo ano ao exterior para usufruir de bolsas de estudos fornecidas pelos países anfitriões: a URSS, o Egito e os EUA. E eles voltavam com ideias novas.

Até então, a despeito da interferência de países mais poderosos e mais reais, o Afeganistão conseguira, ao longo dos séculos, proteger-se de ideias indesejáveis. O panorama em si já desencorajava interferências. O analfabetismo punha a informação fora do alcance de 95% da população. Assim, até bem recentemente, o Afeganistão era como uma tabula rasa ideológica na qual os efeitos da educação moderna eram inscritos pelos atos políticos de uma minúscula elite instruída. Mande uma geração de jovens estudantes afegãos à União Soviética e cerca de dez a vinte anos depois você terá um golpe comunista — como o deposto rei Zahir Shah percebeu tarde demais —, e depois outro, e outro. Esses são os afegãos, afinal de contas, e eles nunca conseguem se entender. Mande outra geração estudar no Egito, o lar da Fraternidade Muçulmana e de um regime militar repressor, e você terá vários partidos de islamitas radicais que estão preparados, como os comunistas antes deles, para lutar entre si, se não pela justiça social, certamente pelo poder. Mande um grupo muito maior, não a elite, dessa vez, com sua moderna educação internacional, mas meninos analfabetos pobres e sem esperança, muitos dos quais feitos órfãos pela guerra e incite-o a adentrar os limites da educação tradicional, das madrassas fundamentalistas radicais do Pashtunistão, e você terá o Talibã. Agora os EUA estão, mais uma vez, de volta ao Afeganistão, e a USAID está despejando milhões de dólares do bolso do contribuinte na educação afegã, o que parece tornar pertinente a pergunta: o que vem depois?

 

 

Mas essa é uma pergunta difícil. Tenho de admitir que, a princípio, naquela primeira vez em Cabul, concentrei-me apenas nas pequenas coisas, porque era dessas pequenas coisas que a sobrevivência parecia depender. Como barq. Eletricidade. É a primeira palavra que os ocidentais aprendem em dari. A primeira pergunta, e a maior, é Barq darem? Temos eletricidade? A primeira sentença é Barq nes. Não há eletricidade. Quase quatro anos depois de terem cessado os bombardeios americanos e de se ter iniciado a reconstrução, liderada pelos americanos, a barq continuava a ser um grave problema, a menos que você vivesse no centro da cidade e distribuísse um bocado de baksheesh. O próprio Ministério da Energia admitia que apenas 6% dos afegãos tinham eletricidade, embora intermitente.161 Mas quando cheguei a Cabul, praticamente não havia eletricidade. Dizia-se que o presidente Karzai dera um ultimato ao ministro responsável: forneça eletricidade à capital ou... ou o quê? E, ainda assim, nada de barq. Ela desaparecera com os rios, transformados em poças esparsas pela longa seca, que fez parar as enormes turbinas da usina hidrelétrica de Sarobi. Falava-se também de um novo gerador, de tamanho monumental, que iria produzir barq para a cidade inteira, desde que fosse possível encontrar o diesel para abastecê-lo. Quando 2005 chegou, as pesadas nevascas e as chuvas da primavera haviam elevado os rios quase aos níveis normais, quando as turbinas de Sarobi começaram a girar de novo e o antigo ministro da energia foi substituído por um temível ex-comandante mujahidin e ex-governador de Herat, Ismail Khan — que prometeu acabar com a corrupção —, o fornecimento de energia ainda era irregular, o chefão do escritório de energia local ainda recebia baksheesh, e eu aprendera a construir sentenças mais longas em dari sobre outros assuntos.

Mas, naquela época, quando olhava pela janela de meu quarto, na penumbra, à noite, podia ver erguer-se, do centro de Cabul, da área onde o próprio Karzai vivia, o inconfundível clarão da eletricidade. Imaginei que pessoas importantes devessem ter geradores, ou talvez, dada a concentração de ministros no centro de Cabul, tivessem eletricidade mesmo, enquanto nós, em bairros menos influentes, continuávamos no escuro. Certo dia, durante a aula de inglês que eu ministrava, uma aluna que vivia em uma parte distante da cidade contou que na noite anterior vira televisão até um pouco depois das nove, quando a energia sumiu de novo no meio de um programa sobre conserto de automóveis. “Como você conseguiu eletricidade?”, perguntei, invejando aquelas míseras três horas. Esse caráter aleatório era inexplicável e enlouquecedor para uma americana mimada, ainda desacostumada às vicissitudes da vida em Cabul. Mas, para os outros alunos, o relato era alentador. “Talvez hoje à noite chegue em minha casa”, disse um. “Talvez amanhã à noite nós tenhamos”, disse outro. “É possível”, completou um terceiro. “Tudo é possível”, disse Nasir, o filósofo da classe. Ninguém se interessou em perguntar sobre o programa a que a colega assistira, nem o que ela tinha aprendido sobre consertos de automóveis. Os afegãos não perdem tempo com coisas não essenciais que já passaram e acabaram. Em vez disso, parecem sempre esperançosos e na expectativa, aguardando a barq como antes esperavam por Ahmad Shah Massoud.

Aquela aula e aqueles alunos demandavam toda a minha atenção. No primeiro inverno, longo e gelado, eles se tornaram minha tábua de salvação. Minha própria barq energizadora. Eles mesmos eram professores de inglês que trabalhavam nas escolas secundárias de Cabul que sobreviveram às guerras civis e às bombas americanas. (As mais veneráveis — Habibiya, Mamlalai, Ghazi — estavam em ruínas.) Naquele tempo, enquanto os alunos voltavam à escola depois da terrível interrupção do Talibã, o inglês ainda era reconhecido como a língua estrangeira preferida, e todos os alunos eram obrigados a estudá-la da sexta série até o último ano do ensino médio. Mas essa exigência gerava muitos problemas. Com tantas escolas destruídas, aquelas que sobraram estavam superlotadas e as turmas eram numerosas demais digamos, 60 ou 70 jovens. Muitos dos professores de inglês mais bem preparados tinham fugido do país. As professoras tinham ficado trancadas em casa por cinco ou seis anos; e, embora muitas delas secretamente ensinassem as crianças em casa, a maioria não teve chance nenhuma, durante o período do Talibã, de treinar nem o inglês, nem sua prática de sala de aula.

Pior ainda, pouquíssimos tinham realmente aprendido a língua, para começo de conversa. Eles conseguiam entender, por cima, um texto simples em inglês, mas não sabiam pronunciar as palavras. Não conseguiam fazer com que a língua escrita se transformasse em língua falada. Não sabiam falar. Nenhum deles conhecia métodos de ensino além do método da rote, que tinha sido a prática afegã padrão durante séculos, de modo que se punham à frente de uma turma lotada de alunos perplexos e tentavam ensinar inglês lecionando em dari ou pashtu. Obrigavam seus alunos a decorar sentenças em inglês com erros de pronúncia. Os meninos aprendiam, por repetição, a falar um inglês capenga, da mesma forma que gerações de alunos das madrassas aprenderam a recitar versos do Corão em árabe. Quando meus alunos, esses professores dedicados, mal-preparados, começaram a conversar em inglês, entendi por que, na maior parte dos casos, nas escolas de inglês se seguia um livro e um livro bem antigo, por falar nisso. Só um de meus alunos não havia se formado em inglês na Faculdade de Línguas e Literatura de uma universidade afegã; alguns deles tinham bom conhecimento de gramática, embora sua terminologia fosse datada. Mais tarde, quando começaram a pegar o jeito da língua falada, pediam-me para explicar a diferença entre um “determinante” e um “demonstrativo”, ou para identificar o tipo específico de locução adverbial que não funciona nem como advérbio de tempo, nem de qualidade. Eles possuíam a teoria da língua sem possuir a língua, e faziam cada pergunta com grande ansiedade, como se a resposta — tal qual uma súbita infusão de barq — pudesse liberar um fluxo irrefreável de discurso iluminado.

Eu sei como eles ficaram assim. Cheguei a Cabul na esperança de multiplicar o efeito de minhas aulas ensinando aqueles que ensinariam a outros. Comecei pelo topo da hierarquia, nas instituições de ensino superior. Há quatro em Cabul: a Universidade de Cabul, a Universidade de Educação, o Instituto Politécnico e o Instituto Médico. Visitei os três primeiros, reuni-me com os chefes de departamento de inglês em cada um deles, apresentei minhas credenciais e me ofereci para ministrar aulas de conversação e de novas técnicas de ensino para quaisquer dos interessados em seu corpo docente. Expliquei que eu era voluntária; não haveria qualquer custo para o departamento. Tudo o que tinham a fazer era providenciar uma sala e determinar o horário das aulas. Todos os chefes de departamento ficaram entusiasmados e agradecidos pela oferta. Todos eles disseram que o corpo docente precisava mesmo de ajuda. Na Universidade de Cabul, o chefe de departamento reuniu os professores, um grupo sólido de acadêmicos impassíveis, todos homens. Os mais velhos do grupo, que haviam se formado havia quarenta anos, com bolsas de estudos, na Columbia University Teachers College, pareceram felizes em relembrar (falando fluentemente) os anos passados em Nova York. Os de meia-idade ficaram em silêncio. Os jovens, que ainda ostentavam barbas ao estilo talibã, foram hostis, e percebi que a conversa dos mais velhos sobre os bons tempos na Big Apple deve ter-lhes parecido surreal.

Eles tinham sérias objeções. Disseram que alguns homens tinham vindo da Inglaterra, ou de algum outro lugar desses, para ajudá-los com metodologia de ensino havia apenas algumas semanas. Eles haviam trazido novos livros didáticos que continham figuras de homens e mulheres jovens fazendo juntos coisas absolutamente não-islâmicas. Coisas como sentar-se à mesa de um restaurante, ou andar na rua. Havia uma figura de uma mulher usando um vestido sem mangas e cantando em um microfone. Havia um exercício que pedia aos alunos que trouxessem fotografias de suas famílias e as mostrassem aos colegas. Fotografias de suas mães e irmãs! Como os afegãos poderiam usar esses livros? Quem eram esses homens da Inglaterra, ou de um lugar desses, para dizer-lhes como ensinar? ­E, afinal de contas, quem diabos era eu? Era uma boa pergunta. Quando deixei o prédio, um deles veio atrás de mim, correndo, com um velho livro didático em mãos. Só uma pergunta, por favor, era a única ajuda de que ele precisava, disse, apontando uma sentença quase ilegível em uma página bastante surrada. Como exatamente eu faria um diagrama para explicar esse período? E o advérbio aqui, que tipo de advérbio era?

Passadas uma ou duas semanas, os chefes de departamento da Universidade de Educação e do Instituto Politécnico chamaram-me para dizer que não haviam conseguido encontrar nenhum professor interessado em participar das aulas. Parece que estavam todos muito ocupados com seus outros trabalhos de tradutores, ou motoristas, ou mensageiros para a ONU, para as embaixadas ou para as ONGIs. Estavam todos fazendo bico. E quem poderia culpá-los? Considerando-se seus salários patéticos, talvez 40 dólares por mês, a escolha entre melhorar o inglês e ganhar algum dinheiro com o pouco inglês que sabiam era óbvia. Bem mais tarde, em 2005, encontrei outra americana que ensinava inglês como segunda língua e que viera ao Ministério da Educação através de um grande programa educacional patrocinado pela USAID. Como “consultora” oficial, empregada por uma empreiteira, ela recebia quase 1.000 dólares por dia para ministrar o mesmo tipo de aula que eu oferecera, de graça, três anos antes. “Eu não consegui montar o curso”, contei, “porque todos os professores estavam fazendo bico”. Ela respondeu: “Ainda estão”. Eles também não queriam a ajuda dela. Mas, dado o seu contrato, a descrição de suas tarefas e o salário, ela não poderia aceitar “não” como resposta. A solução foi encontrar outro doador — o Banco Mundial, dessa vez — para pagar “complementos” salariais de 200 dólares mensais aos professores, aumentando seu pagamento básico, para que eles deixassem seus empregos extras e participassem das aulas de inglês. “Isso não é uma espécie de propina?”, perguntei. “Não”, respondeu. “É um incentivo.” E então, para fazer-me sentir melhor em relação a meu fracasso, ela completou, gentilmente: “Geralmente é preciso um doador realmente grande para conseguir que as pessoas façam aquilo que é melhor para elas”.

 

 

Já que as universidades não me queriam, tentei o nível imediatamente inferior. Caroline, minha chefe na Madar, já tinha dado a ideia de ajudar professores secundários de inglês com o idioma, e havia uma turma que já estava funcionando. Ele recebera as bênçãos do Ministério da Educação e uma pequena subvenção de uma fundação americana, dinheiro para comprar livros didáticos e fitas, e para ajudar a custear as passagens de ônibus dos alunos. Ela escolhera professores de muitas escolas secundárias diferentes e ministrara as aulas ela mesma antes de passá-las para alguns de seus voluntários na Madar. O problema é que nem Caroline, nem qualquer das voluntárias sabia nada sobre o ensino de inglês como língua estrangeira. Elas submetiam os professores secundários ao mesmo tipo de palestras ininteligíveis e às mesmas repetições do livro didático que os professores aplicavam a seus alunos, e não demorou muito para que os professores começassem a desistir das aulas.

No dia em que assumi, encontrei um pequeno grupo de homens e mulheres cujos rostos abatidos traziam uma expressão de cansaço e desespero. Cumprimentaram-me educadamente: “Olá, senhora”, e tentaram, honestamente, responder as minhas perguntas simples sobre seus nomes, sua saúde e suas carreiras como professores. Eles sabiam responder os nomes de cor, e “Fantankou” era razoavelmente compreensível, se você soubesse qual tinha sido a pergunta. Mas o resto era sofrível. Em cinco minutos, minha tarefa estava clara. Meu trabalho, conforme eu o entendia, era fechar o livro, ignorar os advérbios e fazer com que esses 15 professores começassem a falar. Ao longo dos três meses seguintes, essa seria minha resposta pessoal ao 11 de setembro e minha pequenina contribuição para a reconstrução do Afeganistão. Pequenina, mas não fácil, dado que sua língua nativa, o dari, vinha equipada com muito menos sons vocálicos do que o inglês. Também não tem algumas de nossas consoantes, embora tenha outras que deixem os falantes nativos de inglês tropeçando humildemente na língua. Logo apresentei a meus alunos os exercícios trava-língua: The ship is tipping. The sheep is sleeping. Eles confessaram que nunca haviam ouvido nada assim antes. Hesitavam, envergonhados, até que, um a um, começaram a tentar. Eles se concentravam intensamente, fazendo caretas e enrolando a língua em fonemas desconhecidos, titubeando a princípio, depois de forma mais segura, e mais alto e mais rápido, até que todo aquele grupo sério caiu em uma sonora gargalhada. Eles são dedicados, corajosos, engraçados. E entenderam a diferença entre sheep e ship. Eles vão para casa todos os dias, no ônibus, murmurando para si mesmos, as mulheres treinando sob suas burcas lickety split e clean jeans, e seu inglês começa a soar, a cada dia, um pouco mais parecido com o inglês real.

Uma turma se reúne em uma escola no meio de um bairro de sisudos blocos de apartamentos construídos pelos soviéticos. Outrora exclusivamente uma escola secundária, agora é usada também para aulas do ensino fundamental e do ensino médio. Os diferentes grupos etários deveriam, teoricamente, usar o prédio em turmas separadas, mas, a qualquer hora, os corredores estão lotados de meninos pequenos, barulhentos, que correm para lá e para cá gritando e brigando, enquanto meninas pequenas, enroladas em grandes chadors brancos, ficam silenciosamente sentadas na sala de aula. As professoras ficam desacorçoadas no corredor em meio à confusão de meninos gritando, como se não houvesse nada que elas pudessem fazer. É como se fosse uma escola preparatória para mujahidin, treinando mais uma geração daquele tipo de sujeitos que destruíram o país durante as guerras civis.

A escola reabriu recentemente, tendo sido completamente reformada pelas forças de segurança da ISAF, e já está se deteriorando. A conservação não é um dos pontos fortes dos afegãos, porque jamais tiveram muito o que conservar e, hoje, conservar custa dinheiro. Houve um dia em que fui ao banheiro e vi as privadas novinhas, de estilo ocidental, transbordando. O chão estava coberto de fezes e poças de urina. Tento reclamar ao diretor, mas estamos presos em lados opostos da barreira linguística, de modo que decido arrastá-lo lá para cima e abro a porta do banheiro para que ele dê uma olhada e sinta o cheiro. Imediatamente, ele se desculpa. Ele apressadamente me leva de volta a seu escritório e, orgulhosamente, oferece-me a chave de um toalete exclusivo para professores. Como é que lhe digo que ele não entendeu o problema? Depois da aula, converso com Palwasha, uma de minhas melhores alunas e que, por acaso, leciona nessa escola. Ela tem de dizer ao diretor, digo-lhe, que ele deveria mandar limpar o banheiro. É um perigo para a saúde das crianças. “Não se preocupe, por favor”, me diz ela. “Nós não deixamos as crianças usarem o banheiro da escola. O banheiro da escola é sujo.” Mais tarde, depois de ver alguns meninos acocorados no pátio da escola, descubro que o banheiro não foi limpo, mas que a porta foi trancada. É uma solução afegã. Aprendo a olhar para o outro lado.

Nossa sala de aula é um pequeno escritório no térreo. As paredes estão cobertas por uma leve camada de tinta azul clara da ISAF, mas o chão está em péssimo estado e as janelas estão quebradas. Não há móveis, mas os homens da turma espertamente roubam algumas mesas e bancos de uma sala de aula ao fim do corredor. No dia seguinte, a sala está vazia de novo, mas os homens logo encontram aquilo de que precisamos. Seis dias por semana, durante três meses, os homens começam o dia caçando móveis que as mulheres então limpam com os pedaços de pano que trouxeram de casa para esse fim. Eu compro um quadro-branco e algumas canetas coloridas; e, para evitar que desapareçam junto com a mobília, carrego-os para lá e para cá, entre a casa e a escola, todos os dias. Os homens se revezam, esperando por mim no portão, para carregar o grande quadro- branco para a sala de aula. Nós o colocamos no peitoril da janela onde todos os alunos conseguem vê-lo e onde ele também bloqueia o vento, que entra pelo grande buraco na janela. Depois, as mulheres tiram as burcas e se sentam do lado esquerdo das mesas. Os homens se sentam à direita. O prédio não tem aquecimento, e nossa sala, que dá para o norte, é sempre mais fria que o mundo aquecido pelo sol lá fora. Por isso, vestimos roupas quentes. Para mim, isso significa longas roupas de baixo térmicas e uma gola olímpica, calças de inverno pesadas, um ou dois suéteres de lã bem compridos, um colete e um grande casaco impermeável. Nos dias mais frios, nem tiro as luvas de lã que uso, tendo de usar meus dentes para destampar as canetas coloridas. O último homem a entrar fecha a porta da sala de aula por causa dos garotinhos barulhentos. Os alunos põem a sua frente os cadernos e seus lápis rombudos. Esses são os rituais matinais. E aí estamos prontos, mais uma vez, para começar.

Começamos do zero. Todos sabem um pouco de inglês, mas há lacunas enormes e imprevisíveis em seu conhecimento, como os buracos deixados pelas bombas nas paredes da escola, que explicam por que o ensino em Cabul tem sido uma coisa errática. Também parece haver lacunas em suas mentes: recessos da memória que eles não conseguem, ou não querem, atingir. A atenção é breve e logo se perde; qualquer barulho alto na rua os sobressalta. É um espanto para mim que eles consigam aprender qualquer coisa, e um ato de coragem o simples fato de tentarem. Mas, dia a dia, lentamente preenchemos as lacunas. Mais tarde, quando fico sabendo um pouco de suas vidas, pergunto-me como sequer sobreviveram e como ainda podem desejar ensinar. É uma profissão otimista, que implica um futuro, mas eles se prepararam para ela ao longo de um passado terrível. Palwasha, que chefia o departamento de inglês nessa escola, é uma mulher muito bonita: alta, esbelta, graciosa e, por fora, surpreendentemente serena. Ela iniciou seus estudos na Universidade de Cabul durante a ocupação russa. Então os mujahidin trouxeram sua guerra fratricida à capital, jogando bombas e mísseis uns sobre os outros e sobre a cidade que se estendia entre eles. Nenhuma área de Cabul foi mais atingida que os bairros de Hazara que ficam próximos à universidade. As aulas de Palwasha foram para o Instituto Politécnico, onde é quase impossível de se chegar, e por um período de mais um ano ou dois, enquanto os bombardeios prosseguiam, ela continuou seus estudos de maneira intermitente. Finalmente, recebeu seu diploma e conseguiu um emprego como professora de inglês em uma escola secundária de Cabul. Ela adorava o trabalho, mas sua carreira mal começara quando foi encerrada pelo Talibã. Passou cinco anos dentro do apartamento da família. Ela voltara a lecionar havia apenas três meses. “Professora, desculpe”, ela me diz. “Inglês. Uma língua bonita. Em cinco anos eu a perco.”

Agora, em poucos meses tenho de fazê-la recuperar o idioma e fazer com que consiga falá-lo. Deixando os filhos pequenos e as mães idosas em casa, meus alunos vêm para a escola todos os dias em ônibus públicos lotados. Para cada um deles, a viagem leva quase duas horas. Estão todos contaminados por um idealismo à moda antiga. São jovens demais para se lembrarem de como é a “paz”, mas querem fazer algo para que seu país consiga atingi-la. O magistério, para eles, é uma vocação nobre, e, como o salário é muito baixo — naquela época, cerca de 30 dólares por mês —, uma vocação altruísta. Eles despejam sobre mim todo o respeito que sentem pela profissão que compartilhamos. Param na soleira da porta pedindo permissão para entrar na sala de aula, antes de mergulharem em uma profusão de saudações formais. Quando a aula termina, permanecem sentados enquanto guardo minhas coisas, agradeço-lhes por terem vindo e saio da sala. Então eles se levantam e fazem uma fila atrás de mim (homens à frente) para me dizer adeus, enquanto, de pé no corredor, espero, com a chave na mão, para trancar a porta da sala na esperança de deter os ladrões de mobília. Não adianta dizer a meus alunos que eles podem ir. Passar pela porta antes do professor é vergonhoso, e um afegão faz qualquer coisa para evitar a vergonha. Além disso, meus alunos acabaram gostando de mim e de meu método pouco ortodoxo. Eles percebem que o que parecia dificílimo na semana passada agora está mais fácil. Eles ouvem a si mesmos e a seus colegas, falando, de fato, inglês. Eles falam e, milagrosamente, entendem uns aos outros. Ousam fazer piadas. E estão profunda e constrangedoramente agradecidos. Ao final do curso, sentem por mim aquilo que sinto pela eletricidade que, finalmente, chega uma noite a meu prédio e torna possível meu primeiro banho quente no Afeganistão.

Todos os meus alunos têm histórias terríveis. Alguns fugiram para Peshawar e passaram anos em campos de refugiados. São os que falam melhor o inglês. Muitos ficaram em Cabul, as mulheres trancadas em casa. Quase todos eles perderam pais e irmãos para os soviéticos, os mujahidin ou o Talibã. Perderam mães, irmãs, tias, avós e filhos para a doença, a fome ou os ataques militares. Mulheres e meninas foram estupradas e assassinadas. Homens e meninos foram tomados para servir como soldados ou “meninos dançarinos”, e nunca mais voltaram. A família de apenas um de meus alunos sobrevivera inteira. Perderam apenas a casa, em um ataque de mísseis, duas horas após terem fugido. Algumas das mulheres arriscaram a vida dando cursos clandestinos em casa; os grupos frequentemente incluíam tanto meninos como meninas, porque muitos meninos haviam perdido a vaga na escola quando as professoras desapareceram. É por isso que os meninos nessa escola são tão levados, dizem os homens da classe. Eles não tiveram a escola adequada, nem a vara longa, para ensinar-lhes o respeito. As crianças sempre chegavam às escolas domésticas sozinhas ou em pares, e tinham o cuidado de irem embora da mesma forma. Uma de minhas alunas disse que nunca teve medo de uma batida talibã porque um líder talibã da vizinhança havia, secretamente, colocado seus próprios filhos em sua escola. Mas outra me conta a história de uma classe inteira de garotas que saiu despreocupadamente de sua escola doméstica e deu de cara com uma patrulha talibã. Os talibãs pularam do veículo, agarraram as menininhas, bateram-lhes com os cassetetes, torceram seus braços, suspenderam-nas pelos tornozelos e gritaram com elas para que dissessem o nome da professora. As menininhas lutaram como gatos encurralados. Arranharam, morderam, conseguiram se soltar e fugiram correndo em meio a um labirinto de entulho. Elas ficaram em casa uma semana ou mais e, depois, uma a uma, voltaram para a escola doméstica. Sua professora, minha aluna, diz: “As garotas aprendem rápido a não falar”.

Parece ser uma lição de que elas não se esquecem, pois, a princípio, as mulheres em minha aula ficavam imóveis como pedras. Nenhuma delas fazia qualquer pergunta, nem dava qualquer resposta. Se eu chamasse uma mulher, ela olhava para mim com olhos suplicantes e permanecia em silêncio. E daí os homens começavam a falar, todos ao mesmo tempo. Se eu tivesse deixado a cargo de meus alunos, os homens teriam falado o tempo todo, enquanto as mulheres ficariam sentadas em silêncio, dia após dia, ouvindo. Mas eu percebera que, antes e depois das aulas, as mulheres pareciam ter muito o que dizer umas às outras. Assim, começamos a ter muito daquilo que os professores de línguas chamam de “trabalho em duplas”; cada aluno calmamente trabalhando com um colega; depois, eu afastava os colegas um pouco mais para que cada um deles tivesse de falar alto para ser ouvido. O próprio ato de falar parecia restaurar a confiança e a esperança. O silêncio foi nos deixando lentamente, expulso pelo ruído da ávida conversação que abafava até mesmo o barulho dos meninos no corredor. Algumas vezes, os meninos irrompiam na sala de aula para ver o que estava acontecendo. Até que um dos homens se levantasse para afugentá-los, eles ficavam olhando de boca aberta para as mulheres tagarelando alegremente.

Pelo menos as mulheres conseguiam trabalhar juntas. Sussurrando, a princípio, e depois falando com mais confiança, elas se ajudavam em todas as tarefas. Eu trocava os pares todos os dias, e cada nova dupla feminina imediatamente formava uma equipe. Mas os homens não. Ficavam sentados obstinadamente em seu canto da sala, cada qual olhando fixamente para o próprio livro. Tirei alguns dos livros, de modo que cada dupla masculina só tivesse um livro. Então os parceiros sentavam-se lado a lado, cada um deles agarrando um lado do livro, ambos olhando fixamente para a página. Essa era a ideia deles de trabalho em duplas. Mas, quanto a falar um com o outro, fazer perguntas e responder, estabelecer algum tipo de diálogo, colaborar na execução de uma tarefa comum, nem conseguiam começar. E qual era o objetivo disso? Como professores, eles impunham silêncio à sala de aula de modo que pudessem falar. Acreditavam que sua tarefa não era encorajar a conversação entre os alunos, mas evitá-la. A noção de que os alunos poderiam se ajudar mutuamente era desconhecida e, portanto, suspeita. Mas o problema ia bem além da pedagogia.

Cada um dos homens veio me explicar que não conhecia os outros. Não eram aparentados. Não tinham frequentado as mesmas escolas. Não lecionavam na mesma escola. Não sabiam nada sobre a família dos outros, de onde vinham, quem eram seus pais. Como alguém poderia esperar que trabalhassem juntos? Havia apenas sete homens na turma e, no entanto, eles formavam sete facções, como os mujahidin. Não é que não quisessem aprender. Todos eram, individualmente, alunos aplicados. Mas a cooperação, para eles, era ainda mais difícil que o inglês. Por fim, desafiada por esse problema afegão, apliquei uma solução afegã que violava todos os meus princípios de uma pedagogia positiva. Humilhei-os publicamente. As mulheres eram mais espertas, disse eu. Alunas muito melhores. Olhem como elas conversam bem juntas. Qualquer um poderia fazer o mesmo, sem dúvida, a menos, é claro, que esse alguém fosse completamente burro. Os homens ficaram chocados. Ficaram magoados, fu­riosos e envergonhados. E assim, como as mulheres a princípio, eles começaram a sussurrar juntos e, pouco a pouco, a falar. Mas eles nunca pegaram realmente o jeito de se ajudar mutuamente. Eles ten­tavam escapar da parceria dirigindo todas as suas observações a mim, e, quando isso não funcionava, transformavam o trabalho em duplas em uma competição brutal. As mulheres apenas sorriam de modo indulgente, da mesma forma que as professoras no corredor olhavam de maneira benigna para os meninos barulhentos. Palwasha disse: “Professora, eles são homens”.

Quanto a homens e mulheres trabalharem juntos, isso teria sido “ruim”. Eles poderiam conversar por sobre a mesa, mas não poderiam sentar do mesmo lado. Não poderiam dividir um livro. Não poderiam di­vidir uma carteira. Alguns dias, quando não tínhamos cadeiras suficientes, os sete homens se apinhavam em um único banco, enquanto uma ou duas mulheres ocupavam outro. Frequentemente eu punha cartazes ou fotos nas paredes em volta da sala e dava aos alunos alguma atividade oral que envolvia circular para examinar o material, mas os homens não se aventuravam no lado das mulheres, mesmo pagando o preço de, com isso, perder metade da lição. De alguma forma, e a despeito dos obstáculos culturais, fomos formando algo parecido com uma família, de modo que ao fim do curso os alunos conseguiram organizar juntos uma celebração. As mulheres colocaram panos sobre as mesas e puseram aí os pratos de mantu e pilau que haviam cozinhado em casa. Os homens trouxeram refrigerantes, pães e biscoitos. Alguns alunos trouxeram seus filhos e filhas porque queriam que eles vissem que estavam se formando. Todos se arrumaram para a ocasião e levantaram-se orgulhosamente para receber o Certificado de Aprovação com seu nome impresso na maior fonte que encontrei no computador. Mas, ainda assim, eles não conseguiam ficar juntos para uma foto da turma inteira. Eu tinha de fotografar os sexos separadamente, disseram. Então, ignorei a tradição do privilégio masculino e tirei primeiro a foto das mulheres. Eu as vejo agora: oito mulheres de pé, ombro a ombro, no pátio ensolarado da escola. Suas longas saias, casacos e chadors são escuros — pretos, cinza, marrons — contra o amarelo monótono do muro da escola ao fundo. Nada azul. Nenhuma burca.

 

 

Homens e mulheres não podem viver assim sem desenvolver algum tipo de problema psicológico. Só para dar um exemplo, meus alunos, de ambos os sexos, têm definições bastante limitadas do que sejam “homem” e “mulher” e do que deveriam ser. O “deveriam ser” é uma mistura imiscível de pseudo-Islã e filmes bollywoodianos sensuais. A realidade é outra coisa. Devido ao fato de terem visto de perto tão poucos exemplares do sexo oposto, tiram conclusões gerais a partir de uma amostra muito restrita. Baseados naquilo que presenciaram em suas próprias famílias, os solteiros estão ansiosos por casarem com “boas” mulheres, e as solteiras simplesmente não querem se casar. Metade das mulheres da turma não é casada, e muitas têm irmãs que não se casaram. A princípio, suspeitei que fossem solteiras devido ao número de homens que morreram nas guerras; mas as mulheres também morreram aos milhares nos bombardeios e ao dar à luz, de modo que a população é mais equilibrada do que se poderia esperar. Só os ataques aéreos americanos mataram pelo menos quatro mil civis em Cabul, sem considerar gênero ou idade.162 Mas soube, depois, que as solteiras morrem de medo de homens. Uma de minhas melhores alunas, Nilab, de 32 anos, mora com os pais e três irmãs solteiras, todas professoras. Seu pai era pedreiro, mas agora está velho demais para trabalhar. Nilab me conta, em particular, que o pai espancava a mãe quase todos os dias por ela mandar as filhas para a escola, mas que a mãe mandava as meninas assim mesmo e aguentava o castigo. Tanto Nilab como suas irmãs formaram-se na universidade, tornaram-se professoras e tiveram uma escola durante o período do Talibã. A maioria de seus irmãos desapareceu durante as guerras, de modo que a casa agora é totalmente sustentada pelo salário que as irmãs ganham como professoras. A certa altura, quando se tornou “velho demais”, o pai deixou as surras de lado; e agora, diz Nilab, ele se orgulha de que suas filhas tenham empregos bons e respeitáveis. Mas quando lhe peço para redigir um parágrafo sobre seus planos futuros, Nilab escreve: “Não me casarei. Não gosto dos homens. Os homens são muito maus. Os homens afegãos são maus e perigosos”.

As duas jovens mais bonitas da classe são casadas; ambas foram vendidas em casamento, quando ainda adolescentes, por pais que devem ter precisado ganhar um pouco de dinheiro durante a guerra. Um casamento é feliz, e o outro não. Fariba me conta que chorou a noite inteira antes do casamento porque estava muito triste por deixar a família e com muito medo de conhecer o marido. Quando o viu pela primeira vez na cerimônia, ela chorou novamente, porque ele era muito rústico; e então ela se lançou à oração. Ela rezou, ainda durante a cerimônia, para que seu marido rústico fosse gentil, e suas orações foram atendidas. Peço aos alunos que redijam um parágrafo sobre “sorte” e Fariba escreve: “Meu marido é muito gentil e bom homem. Ele me deixa ensinar na escola. Ele me deixa visitar casa da minha mãe. O marido minha amiga não é bom homem. Eu sou uma mulher é muita sorte”. Ela mostra fotografias de seu filho e de sua filha, e observa que as duas crianças são muito bonitas. Outra prece atendida.

Palwasha, por outro lado, é casada com um homem mais velho, bonito. Ela mostra as fotos do casamento. Embora nas fotografias ela não passe de uma menina, ostenta o elaborado penteado armado e a dramática maquiagem das noivas afegãs modernas. Ela está espantosamente bela no vestido verde utilizado na primeira parte da cerimônia — antes da conferência nikkah em que os homens das duas famílias negociam o preço —, e, mais tarde, no vestido de noiva branco. Por respeito aos pais, as noivas afegãs não devem parecer felizes por se casarem e saírem de casa; nas fotografias, Palwasha exibe a expressão adequada de tristeza e de obediência resignada. Mas ela exibe, hoje, a mesma expressão. Sua aparente serenidade é, no fundo, tristeza. Mais tarde, fico sabendo o motivo: ela não tem filhos. Esse é o azar dela, diz. Mas há mais. Os pais do marido estão descontentes com ela porque não consegue engravidar. Eles insistem para que o marido tome uma segunda esposa. Passado mais algum tempo, depois de eu ter marcado para ela uma consulta em uma médica europeia que está visitando o país, fico sabendo que o problema é com o marido, e que tanto Palwasha como o marido sabem disso. “Disfunção erétil”, diz a médica — doença que, no Afeganistão, se pode curar, mas não se pode mencionar. Assim, Palwasha tem de sofrer a humilhação e a angústia de não ter filhos, confortada apenas pelo fato do marido ter de resistir à pressão familiar para encontrar uma segunda esposa, cuja idêntica impossibilidade de conceber poderia trazer à luz toda a farsa.

Faruq também escreve sobre azar: “Eu não estou encontrar boa garota casar comigo. E procurar boa garota. Minha mãe procurar. Minhas irmãs procurar. Minha mãe e minhas irmãs não encontrar”. Faruq está mais do que pronto e desejoso de se casar, e ele me parece um bom partido. Formado em uma universidade da província, ele mora em Cabul há muitos anos, lecionando no ensino médio e fazendo bicos como mensageiro para uma ONGI. Ele é muito ambicioso e consegue, praticamente sozinho, convencer-me a complementar a aula com uma sessão matinal de conversação, de uma hora, a que ele jamais deixa de comparecer. Ele também tem iniciativa e criatividade. Impõe-se a tarefa de projetar um aquecedor para nossa sala de aula; e, embora tenhamos de nos livrar da geringonça quando uma mesa pega fogo, é uma boa tentativa. Ele é trabalhador, organizado, invariavelmente educado e cortês, e não faz segredo de sua busca. Ele tenta arregimentar as mulheres da classe para que “procurem” pa­ra ele. Várias delas poderiam ser, elas mesmas, boas candidatas, mas Faruq não quer escolher uma esposa entre seus pares. Ele quer uma menina de uns 13 anos, 15 no máximo, e, de preferência, uma que não tenha avançado “demais” na escola — o que, para ele, sig­nifica a quinta série, o limite máximo do ensino fundamental. Eu observo que uma garota com mais instrução, mais próxima de sua própria idade, poderia ser uma companheira melhor, e, já que ele gosta tanto de conversar, uma interlocutora melhor; mas discurso não é o que ele deseja de uma mulher. Ainda assim, a classe inteira participa da busca. No ano seguinte, fico sabendo que ele ainda está avaliando possibilidades e que já se ofereceu, sem sucesso, a várias famílias. Ele chegou a se oferecer para minha amiga Lema, que é mais velha e mais instruída. É uma mostra do seu desespero. Então, dois anos mais tarde, chega a boa notícia: Faruq encontrou a noiva perfeita em uma menina muito nova, sem estudos. Tento, com alguns de seus antigos colegas de classe, encontrá-lo para levar-lhe presentes e conhecer a esposa, mas ele desapareceu em meio à alegria conjugal.

Mas por que a busca de Faruq se tornou o foco de nossa aula de inglês? Por que todos os tópicos para redação geravam composições sobre maridos e esposas? Como uma aula de inglês como segunda língua se tornara uma novela das oito afegã? O tópico parecia erguer-se como um bolo de casamento gigante sobre a mesa da sala de aula. Não conseguíamos evitá-lo. Pensei que estávamos obcecados pela relação entre os sexos porque elas eram proibidas. Qualquer pessoa do sexo oposto que não seja membro de sua família imediata é uma ave rara, tão exótica quanto um avestruz. Mas comecei a pensar que havia mais do que isso. Encontrar uma esposa ou um marido era encontrar um lar, era encontrar segurança e proteção, e um futuro. Nem sempre funcionava assim, sabíamos bem. Duas mulheres da turma eram viúvas. Um homem perdera a esposa. E o fato de Palwasha não ter filhos revelava a falibilidade do futuro. Mas buscar era ter esperança. E em Cabul, naquela época, a esperança era a única coisa que permitia a alguém seguir em frente.

Ninguém encoraja Faruq mais do que Nasir. Ele servira como soldado no exército de Najibullah não porque acreditasse no comunismo, mas porque esse era o melhor emprego que ele conseguira em Cabul quase ao fim da ocupação soviética. Ele lutou com o exército até ser capturado pelos mujahidin. Eles o trataram muito bem, contou, e persuadiram-no de que ele estava do lado errado. Então, a partir daí, ele lutou pelos mujahidin. Em seguida, foi capturado por outra facção de mujahidin, que o tratou mal e que o forçou a lutar por eles. Por fim, Faruq se cansou de lutar, ele, de fato, jamais gostara muito da coisa e, atravessando a fronteira, chegou ao Paquistão. Lá, de alguma forma, próximo a Peshawar, localizou sua irmã mais velha, que se casara e mudara há anos. Ele ficou em sua casa e trabalhou para seu marido, aprendendo a consertar bicicletas, até que os talibãs derrubaram os mujahidin e tomaram o poder no Afeganistão. Ao primeiro sinal de lei e ordem, Nasir retornou a Cabul, não porque acreditasse no fundamentalismo, mas porque parecia-lhe seguro voltar para casa. Estivera fora durante seis anos. Ele encontrou o pai e a mãe, que acreditavam que ele estivesse morto, mas a garota com quem ele esperava se casar havia se casado com outro. Assim Nasir, como Faruq, começou novamente sua busca por uma garota até que encontrou uma, “a melhor de todas”, disse a Faruq, e logo eles tiveram dois filhos. Ele abriu um pequeno negócio de conserto de bicicletas. E depois, porque gosta tanto de crianças, arrumou um segundo emprego dando aulas na escola de ensino infantil. Ele não tinha qualquer preparo para a tarefa, nem instrução, mas gostou do trabalho, e os alunos gostaram dele. Ele não era professor de ensino médio; mentira para entrar nas aulas de inglês porque queria aprender. Quantas mentiras a vida o fizera contar, perguntei-me, esse homem gentil que servira em três exércitos sem acreditar em nenhum? Ele não gosta de contar detalhes de sua vida. Preferia as generalidades da filosofia. Certo dia, quando Faruq divagava sobre sua busca incansável pelo amor, Nasir disse: “A vida é amor”. No último dia de aula, o dia da festa, ele trouxe junto seu filhinho. O menino ficou sentado, em silêncio, de mãos dadas com o pai e, quando a cerimônia de formatura terminou, colocou o certificado de Nasir dentro de sua mochila de escola, para levá-lo para casa em segurança.

 

 

No ano seguinte, esgotada, após bom uso, a pequena subvenção da Madar, coube-me buscar dinheiro para poder lecionar para uma nova turma. Assim, enviei um e-mail para meu círculo de amigos, que reenviaram meu pedido para círculos maiores, de modo que uma bela quantia chegou ao escritório da Madar. Meu segundo grupo, mais numeroso, era composto de professores vindos de diferentes escolas de outra parte da cidade. Passados mais alguns anos desde a guerra, eles já não pareciam tão magros, tão cansados nem tão destituídos de eletricidade e de TV via satélite. Os jovens da turma, que assistiam a muitos filmes de ação em DVDs pirateados, tinham milhões de perguntas depois da aula sobre o sentido exato e o uso apropriado de expressões americanas populares, como motherfucker, cocksucker, shithead, asshole, dumb ass, ball breaker. A lista parecia interminável. E Dick, como em Cheney, era um substantivo ou adjetivo? Era um nome ou uma descrição?

Talvez Bollywood os tenha conquistado, ou talvez os professores de inglês de Cabul tenham dominado esse linguajar sujo, porque meu terceiro grupo, no inverno de 2004 e 2005, não fez nenhuma pergunta sobre o tema. Eu percebia, também, outras mudanças. Eu começava a receber professores mais graduados, que eram mais velhos e mais experientes. Muitos se lembravam dos bons tempos antes das guerras ou durante o período de Najibullah, aquele pequeno intervalo entre a saída dos soviéticos e a chegada dos mujahidin a Cabul, quando tanto os homens como as mulheres se vestiam de maneira diferente e pareciam mais amigos. As mulheres se lembravam de carreiras interessantes ensinando bons alunos, muito melhores, disseram, que os alunos de hoje, que, graças ao Talibã, nunca adquiriram hábitos de disciplina, concentração e empenho. Os professores mais experientes possuíam todos esses hábitos antiquados, enquanto seus colegas mais jovens ainda pareciam dispersos e se distraíam facilmente. Os homens e mulheres mais velhos conseguiam estudar juntos, até mesmo sentar-se juntos no mesmo banco, se necessário, e formar uma dupla de trabalho, embora alguns dos colegas mais jovens ficassem escandalizados ao ver um homem e uma mulher que não eram parentes compartilhando um livro. Mas a maior mudança em meus alunos era que eles estavam exigentes. Na primeira aula, estabeleceram suas condições. Os jovens queriam mais dinheiro para a passagem de ônibus; só podíamos oferecer um dólar por dia. Queriam saber quanto eu ganhava e quem me pagava. Não acreditavam que eu estivesse trabalhando de graça. Por que alguém faria isso? Era inimaginável. Eu estava trabalhando para a CIA? Talvez fosse isso. Nesse caso, por que eu não podia dar-lhes mais dinheiro para a passagem de ônibus?

Os professores mais graduados, por outro lado, queriam aprender algo novo; se não fossem aprendê-lo nas aulas, então não viriam. Eles eram professores de verdade, afinal de contas, que pensavam em coisas como currículo, material didático e metodologia. Antes de mais nada, disseram, queriam livros novos e melhores. Encontrar tais livros não é um problema, já que os volumes não-islâmicos em inglês, de que reclamaram os professores na Universidade de Cabul, são usados em cursos comerciais em toda a cidade. As livrarias têm pilhas dos melhores livros britânicos e americanos para ensino de inglês como segunda língua, em edições baratas reimpressas no Paquistão, junto com as fitas pirateadas que os acompanham. A maioria apresenta uma série de situações do dia a dia, como ir às compras ou preparar uma refeição. Eu escolho esse e aquele aspectos da vida ocidental que podem ser compreensíveis e não ofensivos para esses alunos e improviso, depois, outros materiais e atividades. Esqueça a lição sobre namoro. Uma vez, depois de eu ter explicado o significado de blind date, uma mulher disse: “Igual ao meu casamento”.)Esqueça também a lição sobre esportes, com suas fotos de mulheres de patins ou nadando e de homens jogando golfe. (“Por quê?”) Tente a lição sobre ocasiões especiais que celebramos. Dar uma festa para apresentar a casa nova surge como um costume comum; meus alunos se surpreendem ao saber que os americanos também levam presentes aos amigos que se mudaram para uma nova casa. Eles pensavam que os afegãos e os americanos não tinham absolutamente nada em comum.

E eis a foto de um casamento, outra ocasião festiva que temos em comum, em que, inacreditavelmente, a noiva americana veste um longo vestido branco aparentemente copiado da moda afegã. (Os vestidos de noiva ocidentais fazem sucesso em Cabul desde a década de 1920, quando a noiva do filho mais velho do rei Amanullah lançou a moda.) Eles querem saber se também atiramos para cima em nossos casamentos, como fazem os afegãos, e a resposta os decepciona. Talvez não tenhamos tanto em comum, afinal de contas. A foto de um lindo casal branco, de cabelos grisalhos, olhando-se apaixonadamente nos olhos cria um alvoroço na sala e faz com que as mulheres comecem a tagarelar. A legenda diz que o homem e a mu­lher na foto estão celebrando o aniversário de 50 anos de ca­sados. (Lembro-me, tarde demais, que a expectativa de vida de um afegão é de 46 anos.) Praticamos a pronúncia da palavra. “O que significa aniversário?”, querem saber, e minha explicação os deixa estupefatos. “Nós celebrar casamento”, diz um homem. “Nós ficar felizes. Mas depois do casamento nós não celebrar.” Uma mulher diz: “Depois do casamento, nós não somos felizes”, e as gargalhadas ecoam pela sala. Eles querem saber o que o marido e a mulher fazem no aniversário de casamento. Eles recebem convidados? Sim, alguns casais, explico, mas na maior parte das vezes o marido e a mulher vão a um bom restaurante e têm um jantar especial. (Deixo de mencionar o não-islâmico champanhe.) Eles riem, perplexos por um costume estranho. Um homem e a esposa irem a um restaurante? Sozinhos? É como golfe. “Por quê?”.

 

 

Passado algum tempo, depois do início de um novo ano letivo e da volta de meus alunos à sala de aula, rodo por Cabul para ver o que eles aprenderam. Algumas das escolas em ruínas foram reformadas, e diretores orgulhosos convidam-me a escritórios onde o chá é servido em mesas enfeitadas com buquês de flores de plástico. Mas, com maior frequência, sou conduzida a uma sala de aula miserável onde os soquetes das lâmpadas, vazios, pendem sobre a cabeça de 50 ou 60 alunos amontoados, de três em três, em bancos onde deveriam se sentar apenas dois e onde um professor escreve de forma ilegível em um quadro-negro que não é mais do que uma camada de tinta preta espalhada, sem qualquer capricho, sobre a parede. Algumas vezes, a sala de aula é uma velha tenda da Unicef no pátio da escola, e aí simplesmente não há lugar para o professor escrever. Visito uma escola de ensino médio para meninos em um bairro afastado, um prédio antigo de dois andares, bastante deteriorado, com uma fila de oito tendas da Unicef no pátio. Atrás das tendas, outra fileira de salas de aula está sendo construída, com dinheiro fornecido pelos japoneses. Essa escola, com uma equipe de 180 professores, funciona em três turnos para atender mais de sete mil crianças. Meu aluno Aziz dá aulas para quatro grupos de oitava série, com 65 meninos cada um. Isso dá um total de 260 alunos, que ele vê todos os dias. Eu nem pergunto a frequência com que ele pede aos alunos que façam uma tarefa escrita.

Mas os alunos são esforçados. Mãos se levantam a cada pergunta feita. Quando chamado, o aluno se levanta e lê em voz alta a resposta do livro, completando a sentença com a palavra que falta. Com muita frequência, a resposta está errada, e errada de uma forma que mostra que nem o aluno nem o professor entenderam o sentido da sentença em questão. A lição é, de novo, sobre aqueles petulantes advérbios — dessa vez, advérbios de tempo. “Ele vai comprar novas estufas porque raramente faz frio no inverno”, diz um aluno, em uma situação em que o texto oferece uma escolha entre raramente e frequentemente. “Muito bem”, diz o professor, meu aluno Aziz, e passa para a próxima sentença. Um outro aluno lê: “Ele gosta de relaxar à noite então ele raramente assiste à TV”. “Muito bem”, diz Aziz. É verdade que assistir à televisão afegã, com suas reportagens sobre crianças afegãs sequestradas por traficantes de órgãos no mercado negro, realmente não é relaxante, e, assim, a resposta do aluno talvez seja mesmo muito boa, mas não acredito nisso. Talvez Aziz tenha aprendido isso comigo, creio, essa forma de encorajar sempre. Mas uma resposta certa de vez em quando ajudaria. Ainda assim, olhando a sala e vendo os meninos ambiciosos, ficando de pé em um salto para dar a resposta, acredito que conseguirão aprender, apesar do precário conhecimento que seu professor tem de advérbios e de outros elementos do inglês. De algum modo, por saberem que o inglês os ajuda a conseguir empregos melhores e por seu professor os elogiar tanto, eles aprenderão sozinhos.

 

As classes de meninas que visito são melhores, porque as professoras que observo são melhores naquilo que fazem. Elas têm um domínio maior do inglês e dão a resposta certa com maior frequên­cia. Mas, ainda assim, elas ficam na frente da sala diante de filas de bancos abarrotados e fazem as alunas repetirem frases de livros didáticos surrados, que requerem a inserção de uma única palavra em sentenças que as meninas parecem considerar incompreensíveis. As alunas cospem as palavras como se as sílabas tivessem um gosto ruim.

“O que aconteceu com os novos métodos didáticos que treinamos em nossas aulas?”, pergunto às professoras. “O que aconteceu com o trabalho em duplas, com os jogos e, por favor, lembrem-se, com a conversação?” Apenas Sima dera a suas alunas breves momentos, durante as aulas, para que elas pudessem falar umas com as outras e praticar o que haviam aprendido. As garotas haviam feito pequenos grupos e conversado animadamente em inglês, mas sussurrando, como se temessem ser pegas pelo Talibã.

“Ah, professora”, diz Sima, desesperada. “Isso não é permitido.”

Ela recebe o apoio de Momina. “Meu diretor também é professor de inglês”, diz. “Ele me mandou parar com essas coisas.”

“Temos de dar uma aula expositiva, ou as mães e os pais nos criam problemas”, diz Sima.

“É isso. Temos de estudar o livro porque as mães e os pais estudaram o livro.”

“Professora, nós quer fazer diferente. Mas isso não é permitido.”

 

 

Durante três anos, eu procurara ajuda para esses professores. Eles não poderiam ensinar inglês melhor, a menos que melhorassem seu próprio inglês. Não poderiam abandonar o velho livro didático sem que tivessem novos materiais. Não poderiam mudar sua forma de ensinar até que o número de professores desejando essa mudança se transformasse em massa crítica. Eles precisavam de ajuda, pediam-na, e eu queria ajudá-los. Mas eu era uma novata em “ajuda humanitária”. Não sabia as regras do jogo. Pensei que, se eu conseguisse alguns professores voluntários de inglês como segunda língua que se juntassem a mim em Cabul, poderia expandir o pequeno programa da Madar para que ele atingisse quase todas as escolas de ensino médio. Em 2002, depois do encerramento da minha primeira turma, enviei por e-mail um convite para professores de inglês como língua estrangeira que eu conhecia em Nova York. A primeira resposta, por e-mail, resumia a reação geral: “Voluntário? No Afeganistão? Agora? Você ficou louca?”. Vi que teria de oferecer o que posteriormente aprendi a chamar de “incentivo”. Assim, escrevi uma breve proposta para expandir o programa de formação de professores da Madar e projetei um orçamento que incluía passagens aéreas, salários mensais e auxílio-moradia para professores adicionais, e fiz a peregrinação pelas fontes de financiamento. Algum tempo depois, uma conhecida da USAID me disse que eu havia cometido o erro de pedir muito pouco dinheiro, apenas cerca de 12 mil dólares. “Multiplique por dez ou 12”, ela disse, “e alguém talvez dê pelo menos uma olhada”. Mas, em toda parte, a resposta a minha proposta excessivamente modesta era alguma variação, condescendente e desalentadora, de um simples não.

Naquela época, me senti inepta por não conseguir ajuda para os professores de inglês de Cabul e fiquei furiosa por eles. Mas, lendo um artigo de George Packer em The New Yorker, aprendi que o meu fracasso não era o único. Havia outro, de Joe Biden, o senador democrata de Delaware. Em janeiro de 2002, como presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, ele visitara Cabul atendendo a uma solicitação do Bush Dois para que criasse leis que pudessem conquistar as mentes dos jovens no mundo muçulmano. Bush colocara o 11 de setembro no contexto de uma guerra cultural impregnada de religião, talvez para evitar discutir as políticas específicas dos EUA que bin Laden dissera haver induzido os ataques da Al-Qaeda. Biden tinha uma leitura diferente do 11 de setembro, embora ele também conseguisse evitar discutir a política externa americana. Ele situava o 11 de setembro como uma espécie de guerra entre classes, sustentando que a ideologia odiosa por trás dos ataques é fruto da pobreza, da miséria humana e da repressão política. A forma de contrapor a ideologia do ódio, acreditava Biden, era estabelecer o compromisso sólido de expandir, por todo o mundo, as condições materiais que promovem os valores da democracia liberal, especialmente o da educação. Depois que Biden o desapontou como alguém incapaz de conquistar mentes, Bush contratou uma empresa de relações públicas para produzir um filme ufanista, estúpido, sobre as alegres vidas de muçulmanos morando nos EUA. Biden elaborou uma proposta para construir 1.000 escolas no Afeganistão ao custo de 20 mil dólares cada uma e preenchê-las com todos os professores que haviam perdido seus empregos por causa do Talibã. Packer relata que Biden (como eu) acreditava que teria maior chance de sucesso pensando pequeno, embora o que Biden considerasse “pequeno” não fosse pouca coisa. Ele disse: “Você consegue enfiar 20 milhões de dólares em qualquer parte de um orçamento de um trilhão, e isso era algo específico. [...] Era algo concreto, que poderíamos mostrar ao Afeganistão que estávamos fazendo. [...] Era algo diferente da mira de um fuzil”.163

Por trás da proposta de Biden estava aquilo que ele descreveu a Packer como “um evento catalítico”. Quando estava para sair de uma escola em Cabul, uma jovem levantou-se da carteira e disse: “Vocês não podem partir. Vocês não podem partir. [...] Eles não vão me impedir de aprender a ler. Eu vou ler e vou ser médica como minha mãe. Vou sim. Os EUA têm de ficar”. Biden comentou com Packer que entendera o que a menina estava dizendo: “Não me sacaneia, mané! Vocês me colocaram aqui. Disseram que iriam me ajudar. É melhor vocês não saírem agora”.164 Mas o governo Bush já estava voltando suas atenções para o Iraque, preferindo o fuzil à escola, e a proposta de Biden para a educação no Afeganistão não deu em nada.

Em 2005 tentei novamente, com a ajuda da Madar, conseguir ajuda para meus professores. Àquela altura, o Ministério da Educação já contabilizara mais de 70 diferentes projetos de educação no país, desde a construção de escolas até a formação de professores, e havia muitos outros geridos por pessoas que nem haviam se dado ao trabalho de comunicar ao Ministério o que estavam fazendo. Mas ainda não havia qualquer programa para professores de inglês no ensino médio. Havia também mais doadores em Cabul, mais fontes de financiamento. Ou, como fui perceber, mais pessoas para se recusar, usando alguma variação enlatada de não, embrulhada no jargão da ajuda internacional. (Eu também estava aprendendo o dialeto, estava recebendo minha educação no Afeganistão.) Esse doador não “priorizara” o ensino médio. Aquele não o fizera seu “foco”. Um terceiro disse que o ensino médio estava além de seu “nexo de interesses”. Outro tinha outra “visão”.

A visão, no fim das contas, era alfabetização universal. E a visão poderosa, que parecia emanar da USAID, parecia, de fato, universal. Quem poderia duvidar de que se tratava de uma grande ideia, e há muito necessária? Quem não gostaria de ver toda uma nação libertada do analfabetismo para os prazeres e benefícios práticos da palavra escrita; uma mãe capaz de escrever um recado para o professor de seu filho, um pai capaz de se corresponder com o filho que trabalha no estrangeiro, uma família inteira capaz de ler qualquer coisa, desde a bula em uma caixa de remédios até a poesia de Rabi’a Balkhi? Mas será que esse era o lugar para começar? Eu ainda queria educar os educadores, muitos dos quais, sendo mulheres, tinham sido expulsos de seus empregos por cinco ou seis anos, estando, além disso, traumatizados. Eu também fazia pressão em favor das que tinham instrução incompleta, as estudantes universitárias que precisavam de cursos de reforço e de apoio moral para completar seus estudos interrompidos. Mas os peritos em educação optaram, em vez disso, por educar aqueles que não tinham recebido educação nenhuma.

Eles diziam que era a coisa mais “democrática” a fazer. Em uma cultura de analfabetos, diziam, aqueles que receberam educação anterior e os que tiveram instrução incompleta são “elite” e não deveriam ter direito a ajuda. O Congresso americano concorda, autorizando ajuda apenas para educação básica de base ampla. Provavelmente é verdade que meus professores de 30 dólares por mês do ensino médio de Cabul sejam uma “elite”, mas e quanto aos alunos para quem lecionam? Eduque o educador, eu pensava, e o educador fará um trabalho melhor educando outros, ou, na linguagem do ne­gócio da ajuda, esse “investimento em recursos humanos” geraria um “retorno imediato”. “Pode ser verdade”, disse meu contato interno na USAID, “mas não é sexy”.

Eu não tinha levado o “sexy” em consideração. “Sexy” foi o modo pelo qual a ajuda externa para o Afeganistão foi se esgotando dentro da política americana. “Sexy” era como aparecia o Afeganistão na televisão americana em um ano de eleições presidenciais. “Sexy” eram a “visão” e as imagens de televisão de meninas analfabetas jogando fora suas burcas e aprendendo a escrever seus nomes. Parecia-me notável que depois de anos de elogios aos “guerreiros da liberdade” afegãos — os sujeitos que Ronald Reagan chamou de “o equivalente moral de nossos pais fundadores” — quão pouco as pessoas se importavam, agora, com o que iria acontecer com os homens afegãos.165 Deixa para lá o fato de que milhares de afegãos que haviam se alfabetizado nos programas de educação compulsória da era comunista rapidamente esqueceram o que haviam aprendido, já que não havia nada para ler, nem qualquer razão para escrever. Uma lição que aprendi durante minha educação no Afeganistão é a de que os “peritos” em ajuda internacional, especialmente os americanos, têm que responder a um poder político mais alto. Eles não podem se dar ao luxo de permitir que a experiência histórica obstrua esse negócio de “visão.”

Além disso, alfabetização e ensino básico são o ás na manga dos peritos em educação da ajuda internacional. Muitos dos peritos em educação trabalharam na África, onde a visão é geralmente obscurecida pela expectativa mais baixa que se tem dos africanos. Poucos (exceto os africanos) esperam que as crianças africanas passem do ensino fundamental, de modo que é na escola primária que os peritos têm trabalhado há muito tempo. Todo esse trabalho gerou resultados contraditórios, mas isso é outra história. Os planos, os programas, os orçamentos, esses já estão prontos, assim como os cursos de “capacitação” e “treinamento” para professores inexperientes, critérios de avaliação de programas e uma longa lista de “indicadores” que evidenciam sucesso. Até mesmo os relatórios finais já estão nas mãos dos peritos, com exceção de uma alteração nos números aqui e ali. Quão sensato deve ter-lhes parecido transferir, para um novo lugar, esses programas pré-fabricados de alfabetização e de educação primária.

Você poderia pensar que se quisesse ajudar um país empobrecido, destruído pela guerra, iria perguntar às pessoas que vivem lá quais prioridades têm e que tipo de ajuda precisam. Mas geralmente não é assim que a ajuda internacional funciona. Ao invés de fazerem isso, os países doadores ou instituições financeiras decidem o que eles querem dar ao país pobre ou “em desenvolvimento”, de acordo com seus próprios interesses, e depois oferecem a ajuda através de projetos elaborados e controlados por peritos externos. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a principal preocupação dos países doadores tem sido o desenvolvimento econômico. Como conseguir fazer com que a economia cresça é o tema de um debate monopolizado, nas últimas décadas, pelos fundamentalistas do livre mercado (ou neoliberais), para quem o crescimento é uma função do investimento e da acumulação de capital por meio da operação de mercados livres das amarras de regulamentações governamentais que busquem proteger da exploração os trabalhadores, os recursos naturais e o meio ambiente.

Na ajuda para o desenvolvimento, assim como na economia neo­liberal, tudo vem de baixo para cima, ao menos em teoria. Na prática, claro, a ajuda geralmente não goteja, nem pinga, nem mesmo escorre lá de cima. Na verdade, a ajuda que, supostamente, deveria ajudar os pobres do mundo tem, geralmente, o efeito oposto. Na maioria dos países de Terceiro Mundo que receberam ajuda, a diferença de renda entre ricos e pobres aumentou, assim como nos EUA. (Joseph Stiglitz, economista ganhador do prêmio Nobel, pergunta: “Se isso não funcionou nos EUA, por que funcionaria em países em desenvolvimento?”).166 Os ricos ficam mais ricos, enquanto os pobres (especialmente as mulheres pobres) perdem acesso à terra, aos recursos, e as suas formas tradicionais de sustento. Os especialistas que refletem e escrevem sobre o propósito e a prática da ajuda concluíram, há muito tempo, que “o crescimento econômico... simplesmente não conseguiu infiltrar-se em direção à base”.167 Stiglitz observa de maneira direta: “Não é verdade que ‘uma onda que se eleva levanta todos os barcos’.” Alguns barcos, parece, são feitos “em pedacinhos”.168

Sendo esse o caso, muitos advogam uma abordagem mais democrática à questão da ajuda, que começaria pela base: pergunte às pessoas comuns em localidades específicas o que elas querem, e ajude-as a satisfazer essas necessidades básicas. Talvez o Congresso acreditasse estar abraçando a perspectiva democrática quando autorizou ajuda apenas para a educação básica. Muitos tentaram implementar esses programas, especialmente nas décadas de 1960 e 1970, mas se defrontaram com os interesses de chefes locais, de governos repressivos e de doadores poderosos cujos projetos eram impostos de cima para baixo. John Brohman, uma autoridade em teorias de desenvolvimento do Terceiro Mundo, observa que estratégias de ajuda “de baixo para cima, localizadas, nadavam contra uma forte corrente de poder econômico e político.169 Então, as coisas são de cima para baixo, ainda que todo mundo saiba que o desenvolvimento “bem-sucedido” em qualquer país em desenvolvimento, provavelmente tornará a vida pior para boa parcela da população. Os neoliberais consideram o aprofundamento da miséria dos pobres como um preço necessário a ser pago pelo “crescimento”, assim como as mortes acidentais de civis nos bombardeios americanos: triste mas inevitável.170

De maneira geral, as grandes instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial e o Banco de Desenvolvimento Asiá­tico, enviam a ajuda aos governos, enquanto o programa de ajuda dos EUA, a USAID, prefere canalizar o dinheiro através de empreiteiras independentes e (de maneira secundária) de ONGs, ignorando o governo do país recipiente, uma vez que não se pode confiar que ele vá fazer aquilo que os EUA querem. Os doadores europeus fazem dos dois jeitos. A seguir, o doador contrata um “consultor” perito regiamente pago para passar duas ou três semanas no país que irá receber a ajuda, fazendo um “levantamento de necessidades”. Atualmente, a taxa para os consultores contratados para os projetos educacionais da USAID no Afeganistão é de cerca de 500 dólares por dia, mais transporte e hospedagem, mais uma quantia para despesa diária e uma porcentagem adicional a título de compensação por “privações” ou “perigo”. A taxa para consultores em projetos de negócios financiados pela USAID pode ser o dobro disso. Uma vez que o consultor é contratado pelo doador, e que futuros trabalhos de consultoria dependem do doador estar satisfeito; o bom consultor invariavelmente descobre que as necessidades avaliadas no país recipiente proposto clamam, exatamente, por aquilo que o programa do doador propõe. O próximo passo é encontrar mais consultores para implementar o projeto.

Cada vez mais, na USAID, isso significa contratar uma empreiteira privada, pois os EUA privatizaram a ajuda externa mais ou menos da mesma forma que privatizaram seus exércitos por procuração (como os contra ou os mujahidin) e suas próprias operações militares. Em 2003, mais de um terço dos 87 bilhões de dólares então no orçamento para a guerra do Iraque, ia para dez mil empreiteiras militares privadas, o que dá uma empreiteira para cada dez membros dos serviços regulares do Exército.171 Se é possível atrelar os militares à carroça capitalista, por que não engatar-lhe também o impulso humanitário? Em 2001, Andrew Natsios, o chefe da USAID, falou com toda a franqueza sobre a natureza egoísta da ajuda americana. Como “instrumento chave de política externa”, disse, a ajuda externa “auxilia as nações a se prepararem para participar do sistema de comércio global e a se tornarem melhores mercados para as exportações dos Estados Unidos”.172 Os mercados locais afegãos, entretanto, são tão absolutamente dominados por oligarquias enriquecidas pelo tráfico de drogas e com boas ligações políticas, a narcomáfia e seus amigos, que alguns economistas acreditam que maior crescimento econômico possa, de fato, diminuir as possibilidades de segurança nacional e de uma mudança democrática genuínas no Afeganistão.173

Não obstante, porque o propósito subjacente à ajuda americana é o de tornar o mundo seguro e aberto para os negócios americanos, a USAID agora introduz os interesses comerciais desde o princípio. Ele envia solicitações de propostas para uma breve lista de velhos conhecidos e confere os contratos ao licitante que estiver em suas boas graças no momento. Algumas vezes, ele convida apenas um licitante a se candidatar, o mesmo procedimento eficiente que tornou a Haliburton tão notória e tão lucrativa no Iraque. Em muitas áreas, incluindo educação, ele “pré-seleciona fornecedores”, aceitando propostas a cada cinco anos, mais ou menos, para um CQI — Contrato de Quantidades Indefinidas” (IQC, em inglês). As empreiteiras submetem informações indefinidas sobre o que estariam capacitados a fazer em áreas não especificadas, caso algum contrato mais definido se materialize; os vencedores se tornam empreiteiras indicadas que são convidadas a submeter propostas quando uma situação real aparecer. A USAID gera essa situação real na forma de uma SDP — Solicitação de Propostas, enviada para os “fornecedores pré-selecionados” e talvez a outros, que então concorrem para fazer, em outro país, o trabalho indicado por Washington. Essa imposição de cima para baixo do que é para ser feito, e do que não é, tornou-se agora corriqueira demais para exigir justificativa. É assim que são as coisas, e isso ajuda a explicar o porquê de minha pequena proposta de baixo para cima ter sido descartada sem mais delongas: ela não era apenas barata demais e “antidemocrática”; ela nadava contra a corrente. No que diz respeito ao processo de pré-seleção que coloca certas empreiteiras em posição privilegiada; tanto os funcionários da USAID, como as empreiteiras me disseram que isso economiza tempo, mas ninguém me explicou por quê, se a celeridade é tão importante e o processo tão eficiente, os projetos de educação no Afeganistão estão apenas começando a andar cerca de três anos depois da dispersão do Talibã. “Não há nada de errado nisso”, diz um amigo na USAID. “Isso é rápido.”

O tempo é relativo, suponho, e certamente você pode argumentar que é trabalho da USAID dizer o que é rápido e o que não é, quem está dentro e quem está fora. Mas os critérios de seleção não são exatamente o que se chamaria de “transparentes”. Tomando um exemplo do “setor” de construção, o caso da autoestrada Kabul-Kandahar é instrutivo. Com a manchete “Milhões desperdiçados em estradas de segunda classe”, o jornalista afegão Mirwais Harooni informou no Kabul Weekly que, muito embora outras companhias internacionais estivessem prontas a reconstruir a estrada por 250 mil dólares por quilômetro, o grupo Louis Berger, sediado nos Estados Unidos, conseguiu o serviço por 700 mil dólares por quilômetro, dos quais há 389. Por quê? A resposta americana padrão é que os americanos fazem um serviço melhor. Um funcionário da USAID me disse que as empreiteiras afegãs frequentemente são excluídas porque “elas não conhecem nossos métodos de contabilidade”. Mas a Louis Berger contratou companhias turcas e hindus para construir a estrada, a um custo final de cerca de um milhão de dólares por quilômetro; e qualquer um que viaje por ela pode ver que já está em ruínas. O antigo Ministro do Planejamento, Ramazan Bashardost, reclamou que, no que diz respeito à construção de estradas, os talibãs trabalhavam melhor.174 (No website da USAID, a autoestrada Kabul-Kandahar é apresentada orgulhosamente como um feito importante, apenas mais um exemplo da distância entre a propaganda americana e a realidade afegã.)

Talvez seja apenas coincidência o fato da maioria dos grandes vencedores entre as empreiteiras privadas terem nomes vagamente grandiosos como Bearing Point, Creative Associates International e Social Impact, Inc., seguindo o exemplo das operações do Departamento de Defesa “Liberdade Duradoura”, “Justiça Infinita” e “Causa Justa.” Mas nem mesmo forçando muito a linguagem ou a imaginação se pode chamá-las de organizações “humanitárias”. Se você perguntar, a maioria responderá que trabalha com “desenvolvimento”, uma fase na intervenção de reconstrução nacional que eles consideram mais sofisticada que a ajuda humanitária imediata, que salva vidas. Seus diretores no país confessarão, modestamente, que seu verdadeiro negócio é “fazer o bem”, embora, claro, seu verdadeiro negócio seja fazer negócios, o que eles fazem no mundo inteiro. A Bearing Point, por exemplo, especializada em “integração de sistemas comerciais”, emprega 16 mil pessoas em 39 países. Ela costumava ser o braço consultivo da empresa de contabilidade KPMG (atualmente sob investigação por permitir que seus clientes ludibriassem o imposto de renda por meio de isenções fiscais fraudulentas), mas, na esteira do escândalo da Enron em 2002, mudou de nome e ficou com quase todos os clientes da empresa de contabilidade da Enron, a malfadada Arthur Andersen.175 Em 2003, logo após ter conseguido dois grandes contratos no Afeganistão e um no Iraque, a Bearing Point, da mesma forma que a Enron, aumentou exageradamente seus lucros, gerando uma ação coletiva dos acionistas por fraude mobiliária. Quem melhor que eles para receber 98 milhões de dólares de dinheiro do contribuinte para “melhorar a governança econômica” no Ministério das Finanças e no Banco Central do Afeganistão?176

Assim como a Bearing Point, as “melhores” empreiteiras são empresas muito lucrativas e, como a maioria, orgulham-se de sua eficiência. “Temos os sistemas preparados para maximizar realizações e propiciar sucesso”, diz um diretor de país, sem ironia, quando lhe perguntei o que qualificava sua empresa a gastar vários milhões de dólares de dinheiro do contribuinte. Tendo os mesmos sistemas preparados, não importa onde, as empreiteiras tendem a ver as ONGIs humanitárias como bons samaritanos atrapalhados que gastam tempo e dinheiro tentando desenvolver programas de ajuda apropriados para cada país individualmente. Na verdade, muitos desses samaritanos obstinados persistem entre as ONGs, ainda tentando trabalhar de baixo para cima, ainda falando sobre dar poder às pessoas comuns e sobre democracia de base. As empreiteiras, por outro lado, ficam com um olho nos doadores e outro no orçamento, o que não deixa muita capacidade visionária para ser aplicada às condições locais. Para efetuar o trabalho de campo real, elas frequentemente contratam os serviços das mesmas ONGs samaritanas cujos princípios eles desprezam. Quando isso acontece, a ONG pode ter a sensação de estar de ponta-cabeça, uma vez que ela também se torna parte do pacote que vem de cima para baixo.177

 

 

Eu não sabia, mas quando fui trabalhar ensinando professores, eu tropeçara no “efeito multiplicador” da “cascata”. O significado disso é que não se importam, simplesmente, homens e máquinas americanos para construir uma estrada ou um sistema de irrigação; ensina-se aos afegãos algumas técnicas de construção que eles, por sua vez, ensinarão a outros. Isto é chamado “aplicar o efeito multiplicador à sua contribuição” e “maximizar resultados” em “cascata”, e é uma boa ideia mesmo antes de ser embelezada pelo jargão. Um esforço desemboca em outro, como uma série de cachoeiras. A USAID incluiu esse efeito cascata em muitos contratos, de modo que todos os programas de educação com verbas gordas são projetados em múltiplos níveis, como os programas de água na Califórnia. Veja, por exemplo, os programas de alfabetização, dos quais há dois grandes projetos, financiados, ao menos em parte, pela USAID. Eles são geridos por diretores internacionais que supervisionam consultores internacionais que treinam e supervisionam os instrutores afegãos principais, que treinam e supervisionam os instrutores-líderes afegãos, que treinam e supervisionam os instrutores de campo, que treinam e supervisionam os professores afegãos em treinamento, que ensinam a ler a meninas e mulheres e a meninos e homens afegãos em diversos lugares nas províncias. Cada nível de instrutores recebe um treinamento de vários dias, talvez até de uma semana ou duas, antes de ser liberado para treinar o nível subsequente. Os instrutores visitam com frequência aqueles a quem treinaram e os reúnem, periodicamente, para um outro treinamento de aperfeiçoamento de um dia ou dois. Essa linha de transmissão de apoio, todos concordam, é o que evita que o conteúdo transmitido simplesmente evapore no ar. O conhecimento flui por ela até o campo, enquanto o consultor internacional no topo da linha tenta se manter um passo à frente do resto. Ou veja o PEP, o Programa de Educação de Professores (TEP, em inglês), projetado para melhorar a qualidade dos professores de escola fundamental no sistema escolar do governo, e financiado por múltiplos doadores, incluindo a USAID e o Banco Mundial, e gerido, em parte, por empreiteiras privadas. Ele conta com 20 instrutores principais que treinam 150 instrutores líderes que, espera-se, treinarão 2.500 educadores de professores que treinarão 125 mil professores em 34 províncias.178 Até agora eles só treinaram alguns educadores de professores em seis províncias, mas estão apenas começando e, de qualquer forma, de acordo com as melhores estimativas, nem há tantos professores assim em todo o país. As escolas do governo, sozinhas, têm um déficit de 40 mil professores.

Até 2005, todos esses ambiciosos e complicados projetos de alfabetização e de aperfeiçoamento de professores primários estavam atrasados, mesmo pela definição da USAID de “rápido.”

“Que tal uma cooperação?”, pergunto a uma consultora em pânico, que trabalhava para uma das empreiteiras. O programa dela mal fora lançado. “Não ajudaria se houvesse compartilhamento de material?”

“Não temos tempo de cooperar. Estamos todos muito ocupados”, responde, referindo-se a outros programas, geridos por outras empreiteiras. “E, de qualquer forma, esses sujeitos são os concorrentes.”

“Mas vocês não estão todos trabalhando para um mesmo objetivo?”

“Um objetivo, muitas empreiteiras”, responde.

Não demora para que os programas de formação de professores comecem a usar a oferta de salários mais altos para conseguir os melhores instrutores. Quando fico sabendo que um dos programas de alfabetização estava procurando professores experientes para treinar, recomendei alguns dos professores secundários das minhas turmas. Depois de serem entrevistados, eles me contaram que tinham perdido a vaga para outros que já estavam recebendo treinamento. Eu tinha certeza de que eles haviam entendido errado. Mas não, a consultora internacional que deveria treinar os instrutores de professores só aceitava candidatos que já tivessem passado pelo curso oferecido por outro projeto de ajuda. “É bem mais rápido”, explicou ela, “treinar um instrutor de professores que já tenha sido treinado”. Provavelmente é verdade. Mas o treinamento repetitivo das mesmas pessoas girando em torno dos mesmos projetos não pode ser considerado uma cascata. É mais como um redemoinho.

 

 

Ainda assim, eu estava feliz em ver esses projetos de educação profissionais serem finalmente iniciados. Os consultores internacionais que os chefiavam pareciam um grupo entusiasmado, experiente e dedicado. E todo esse negócio de efeito cascata fazia sentido para mim, provavelmente porque era o que eu mesma tinha feito, antes de aprender a terminologia que o pudesse tornar vendável. Agora eu queria ver como isso estava funcionando. Assim, fiz plano de acompanhar alguns instrutores ao “campo” para dar uma espiada e ver como estavam se saindo os professores que haviam recebido treinamento. Tendo sido severamente advertida, de antemão, que não seria possível garantir minha segurança se eu me aventurasse nas províncias, fiquei surpresa ao ver que as “províncias” em questão ficavam apenas um pouco mais adiante, próximas o suficiente para um instrutor visitar duas ou três classes em um único dia e ainda voltar a Cabul antes do escritório fechar às três e meia.

Lá, nas planícies do Shamali, que os Estados Unidos haviam reduzido a pó, com bombas subatômicas, há apenas alguns anos, lá, atrás dos muros dos complexos agrícolas onde vacas malhadas pastavam placidamente no jardim, mulheres de todas as idades se sentavam no chão de um salão ensolarado para lutar com o alfabeto dari. Uma após a outra, as mulheres, jovens e velhas, levantavam-se para ir ao quadro-negro improvisado, desenhando, com grande cuidado, alguma forma sinuosa que, associada, algum dia, a outras, significaria um nome que elas conheciam. Elas já estavam familiarizadas com os equivalentes ao M. e ao S. e conseguiam formar palavras inteiras que significavam salaam e Islã. Uma das professoras mal tinha 15 anos, mas tinha estudado até a quinta série em Cabul, antes de casar-se e mudar-se para o vilarejo natal do marido. Agora, ela ganhava 75 dólares por mês, muito mais que um professor secundário em Cabul, para ensinar as suas vizinhas aquilo que sabia; e ela levava seu trabalho a sério. Ela colocou em prática o treinamento para professores que recebeu, organizando as mulheres em pequenos grupos de discussão, conduzindo-as em jogos didáticos. Na língua dari, cada letra do alfabeto tem sua forma básica alterada quando aparece em uma palavra, ligada a uma outra letra que a precede ou segue. As professoras que receberam treinamento ensinam a diferença desenhando luvas nas letras nos pontos em que elas podem se juntar. Algumas vezes, elas pedem que as alunas formem uma palavra, cada menina ou mulher representando uma letra; as alunas se colocam na ordem certa para escrever a palavra solicitada, de mãos dadas como requer o alfabeto, e ficam em frente as suas colegas de classe, radiantes. Em cada sala de aula, um ensolarado salão de fazenda, uma loja de vilarejo, um sótão em um celeiro, mulheres e meninas alegremente se submetem às tarefas da alfabetização sob a direção de suas recém-formadas professoras, como essa noiva adolescente, e dos instrutores que aparecem toda semana para incentivar e trazer planos de aula. Era uma lição de humildade sentar-me entre elas. Fiquei encantada. Também eu comecei a sonhar o sonho da alfabetização universal.

Quando perguntei às mulheres nas aulas o porquê de quererem aprender a ler e escrever, muitas disseram que queriam poder ler o Corão. Queriam ver se ele dizia, de fato, aquilo que os mulás e seus maridos falavam que dizia, especialmente sobre as mulheres. Uma senhora de idade disse: “Quero ver se tem alguma coisa lá para mim”. Ela não se importava com o tempo que fosse levar. Ela estava disposta a passar três anos, o tempo que um adulto analfabeto normalmente demora para se alfabetizar, ou ainda mais tempo, se fosse necessário. Mas, infelizmente, esse programa estava previsto para terminar em poucos meses, e, além disso, havia demorado para começar. Era demasiado ambicioso, também. O perito americano responsável me disse: “Você não pode estabelecer um currículo decente com o tempo que tínhamos. O processo leva ao menos dois anos, e mal tínhamos um. Tínhamos de costurar alguma coisa, mas nunca tivemos a oportunidade de realmente testá-lo”.

“Então por que você o fez?”, perguntei.

“É o que está especificado no contrato. É o que a USAID queria”.

“Mas você é o educador”, retruquei. “Você não lhes disse que não dava para fazer?”

Ele riu. “Não dava para fazer isso”, disse. “Eles dariam o contrato a outra pessoa.”

Ele era uma pessoa agradável, esse perito em educação, que me garantiu que estava fazendo tudo o que podia, menos abrir mão do trabalho. Ele me contou como conseguira essa oportunidade. A USAID tinha conferido o contrato a um empreiteiro “na área da saúde” que, por sua vez, subcontratara o serviço de desenvolver um currículo para um programa de educação internacional à grande universidade para a qual ele trabalhava. A universidade, por sua vez, fez um acordo com uma ONG internacional para treinar os instrutores de professores, e com outras dez ONGs locais e internacionais, incluindo instituições respeitáveis como a CARE e a Save the Children, para fazer o trabalho que eles chamam de “implementação”. Eu tomava notas enquanto ele falava, e lá estava, descendo pela página, um diagrama em degraus, semelhante ao esboço do mecanismo de transposição de peixes da represa Grand Coulee, com as setas apontando de um nível para o seguinte como os salmões, na água, descendo o rio.

“Efeito cascata”, disse eu.

“O quê?”

“O dinheiro. Veja.” Mostrei meu diagrama desse negócio que cheirava mal, como peixes podres. “O financiamento vai, em cascata, de um empreiteiro para outro. Suponho que todo mundo fique com uma porcentagem. Então, me diga: quanto do financiamento original é, de fato, gasto em campo aqui, digamos, em salários para os instrutores afegãos e nos vilarejos para alugar as salas em que são dadas as aulas?”

“Meu Deus”, respondeu. “Sabe que eu não tenho certeza mesmo? Estou imaginando uns 20%. Talvez dez.”

“E os outros 80% ou 90% por cento?”

“Bem, eles vão para o pagamento dos serviços de empreiteiros e subempreiteiros americanos. E de suas despesas gerais, claro, lá no escritório central nos EUA e no daqui também. Aqui ele vai para pagar o aluguel do escritório e moradia — você sabe como os aluguéis em Cabul são altos, de modo que os déspotas afegãos ganham dinheiro com isso e os custos com transporte, carros e motoristas — de novo, dinheiro para os afegãos — voos, materiais que têm de ser importados, mobília, alimentação, álcool, coisas desse tipo.”

“Então talvez 70% ou 80% por cento vá para o bolso de americanos?”

“Provavelmente. Pouco mais, pouco menos. Não tenho os números”, diz. “Mas você entende, claro, que esse é o único jeito de organizar as coisas para conseguir dinheiro do Congresso. Eles nunca autorizariam esses grandes programas de ajuda se pensassem que nós estaríamos perdendo controle do dinheiro. Meu salário é depositado, em dólares, diretamente em minha conta em meu banco nos EUA. Ele jamais sequer deixa o país.” Fez uma pausa para dar um sorriso cúmplice. “Você sabe o que eles dizem em Washington: ‘A caridade começa em casa’.”

 

 

Talvez eu não tivesse me incomodado tanto se esse homem tivesse falado dos afegãos, a quem ele estava sendo muito bem pago para ajudar, como algo mais do que estatísticas ou indicadores de sucesso. Ou se qualquer dos outros empreiteiros que conheci não tivessem se mostrado tão absolutamente convencidos de que os projetos meia-boca que apresentavam eram “melhor do que nada” para pessoas a quem jamais tinham visto. Como aquelas mulheres dedicadas em Shamali, Ghazni ou Paghman, desenhando, com preciosos pedaços de giz, os contornos do idioma que, acreditavam, poderia levá-las a uma vida melhor. Mas o que aconteceria com as mulheres, perguntei, e com os homens também, que se dedicavam com igual intensidade em salas de aula não muito distantes? O que aconteceria com eles? Os homens poderiam conseguir empregos, ele respondeu. Mas, para as mulheres, havia um plano. “Foi assim que todo esse programa começou”, disse. Alguns consultores, ao fazerem um levantamento de necessidades, haviam detectado uma carência, nas províncias afegãs, de mulheres suficientemente instruídas para se tornarem parteiras. E há uma necessidade desesperada de parteiras, uma vez que as taxas afegãs de morte infantil e materna estão entre as piores do mundo. Assim, a USAID financiara o empreiteiro da área de saúde, que financiou o subempreiteiro da área de educação, que por sua vez financiou uma ONG que tinha um programa de alfabetização para mulheres que, conforme se esperava, iriam se formar no programa de treinamento para parteiras para o qual a USAID havia, inicialmente, financiado o empreiteiro de saúde. Mas havia um problema de coordenação do tempo. Porque os programas de alfabetização demoraram para começar, o programa de treinamento para parteiras se iniciou muito antes que as esperadas graduadas no programa de alfabetização estivessem prontas para se inscrever. E o programa seguinte de treinamento de parteiras estava programado para começar muitos meses depois de as candidatas potenciais terem completado seu curso de alfabetização preliminar, que, de qualquer forma, era curto depois para conseguir alfabetizá-las. O perito tinha apenas algumas noções vagas de como as mulheres poderiam conseguir ingressar nas aulas para parteiras. Ele observou que, de qualquer modo, nem todas as 20 mulheres em uma classe de alfabetização de um vilarejo precisavam se tornar parteiras.

Ouvi muitas histórias como essa, de projetos que não haviam sido pensados até o fim. Alguns eram bem planejados, mas começavam tarde e terminavam cedo, quando os peritos com contratos de um ano voltavam para casa, ou doadores míopes passavam a financiar alguma outra coisa. Veja, por exemplo, o caso de um projeto multimilionário da USAID para fazer com que 170 mil alunos adolescentes, em 17 províncias, fizessem a escola primária pagando aos professores salários extras por trabalharem nos finais de semana e nos feriados. Entre as muitas ONGs que o empreiteiro contratou para fazer o serviço nos vilarejos estava uma organização afegã de mulheres que geralmente lidava com problemas de mulheres e crianças. Foi sua boa reputação e a promessa de que os alunos concluiriam o curso que convenceram os pais pashtuns das províncias, bastante desconfiados dos motivos americanos, a mandar seus filhos para a escola. As coisas iam bem até o empreiteiro anunciar que o financiamento iria terminar um ano antes, com os alunos ainda no quarto período. Uma mulher da ONG afegã, furiosa, me perguntou: “Qual é o problema com os EUA? Por que eles estão sempre começando coisas que não conseguem terminar? Eles poderiam ter conseguido a gratidão de um milhão de afegãos, todos esses alunos, professores e suas famílias, mas, ao invés disso, conseguiram fazer com que eles ficassem furiosos”. Pelo menos 100 mil desses afegãos furiosos, calculei, eram garotos adolescentes de instrução precária. “Eles estão furiosos com a gente também”, continuou a mulher. Ela estava quase chorando. “Eles confiaram em nós, e agora perdemos a credibilidade. Ficamos tão honradas quando fomos convidadas a participar de um projeto da USAID, de um projeto tão bom. Algumas pessoas nos alertaram de que seríamos cooptadas pelos americanos. Mas é bem pior. Eles estão nos humilhando.”

Nenhum dos empreiteiros, consultores, ou peritos ficará por aqui tempo suficiente para ver o que acontece com as ONGs desacreditadas ou com os alunos abandonados. Os países escandinavos, que têm os programas de ajuda mais respeitados, frequentemente trabalham, durante um longo período, no âmbito da comunidade, com o objetivo de conferir poder às pessoas locais. O Comitê Sueco tem assistido moradores de vilarejos afegãos por mais de vinte anos, sem interrupção, nem mesmo no período do Talibã. Os EUA, ao contrário, trabalham no curto prazo, buscando conseguir resultados rápidos ao mesmo tempo em que mantêm o poder em suas próprias mãos e que, incidentalmente, transferem o dinheiro do contribuinte para o bolso das empresas privadas, particularmente daquelas que o devolvem como “contribuição de campanha”.179 Muitos trabalhadores do setor de ajuda em todo o mundo nutriam esperanças de que o fim da guerra fria iria libertar a ajuda externa de interesses políticos, tornando-a acessível para aqueles que dela precisam. Mas isso não aconteceu. Depois do 11 de setembro, a ajuda americana se tornou uma arma na guerra do governo contra o terror. O principal beneficiário é o Paquistão.180 Usada como instrumento de uma política externa facciosa, a ajuda americana é um amigo nada confiável.

Poucos trabalhadores no setor da ajuda são tão ingênuos como eu era quando cheguei ao Afeganistão para oferecer ajuda, embora muitos sejam profundamente idealistas. A não ser pelos militares e executivos aposentados, a maioria é bastante mais jovem do que eu e ainda não se tornou cínica. Os trabalhadores de ajuda humanitária tendem a ser cidadãos do mundo, poliglotas, que veem que lugar pequeno esse mundo é, e como ele se liga como um só. Cada vez mais, eles vêm de todas as partes do planeta, bem preparados, com diplomas de pós-graduação, muitos de universidades americanas e europeias em áreas como educação internacional, direito internacional e “desenvolvimento”. Muitos são médicos, enfermeiros, especialistas em saúde mental, engenheiros, hidrologistas, agrônomos, especialistas em retirada de minas, programadores. Alguns vêm pelo dinheiro, outros pela aventura, outros porque não conseguem emprego em seus países. Muitos vêm porque se sentem desconfortáveis em meio à abundância de seu país natal, outros porque o desespero desse país pobre parece mais real. Alguns, aqueles que trabalharam no Peace Corps antes das guerras, lembram-se de um Afeganistão em paz e querem restaurá-lo. Por uma razão ou outra, todos querem dar uma mão. Alguns fazem um bom trabalho, isto é, trabalho que realmente melhora a vida dos afegãos comuns, conforme relatam os próprios afegãos. Outros não. Mas os empreiteiros começam e terminam em outro lugar.

Não que os empreiteiros não consigam, necessariamente, “fazer o bem”, mas o que eles fazem melhor é cumprir o contrato imaginado pelo doador, pelo Banco Mundial, pela USAID ou seus equivalentes na Inglaterra, no Japão ou na Alemanha. Não há nenhuma razão para eles terem de prestar contas uns aos outros, como têm feito as ONGs internacionais como a CARE, a Oxfam ou a Mercy Corps, ajudando-se reciprocamente no sentido de estarem envolvidas em uma tarefa comum. Nenhuma razão para que tenham de prestar contas ao público ou aos “beneficiários” que eles, supostamente, devem “servir”. As melhores ONGIs têm identidades individuais. Cada uma delas foi fundada com um objetivo, frequentemente implícito em seu nome, como Save the Children, International Rescue ­Committee ou Médecins Sans Frontières, e as pessoas têm alguma ideia do trabalho que fazem. Cidadãos comuns em seus países de origem contribuem para ajudar seu trabalho. Mas nenhuma velhinha envia seus trocados para a Bearing Point ou para a misterirosa DynCorp, que é uma das maiores empreiteiras militares particulares do mundo. Os empreiteiros não têm nenhuma identidade específica, nenhum princípio fundador, nenhum objetivo a não ser o de ganhar dinheiro e talvez receber críticas no lugar do governo quando as coisas dão errado, como a Halliburton faz, de tempos em tempos, aperentemente sem diminuição de seus lucros. De maneira geral, é do interesse das ONGs cooperarem entre si e serem abertas a respeito do que estão fazendo, ao passo que os empreiteiros buscam sobreviver conduzindo seus negócios com o máximo sigilo.

Talvez porque sejam tão bons em obter lucros, muitos empreiteiros americanos tendem a pensar que são muito melhores e mais espertos do que as pessoas que eles deveriam ajudar. Se os afegãos são espertos, por que não são ricos? Os empreiteiros são inteligentes o suficiente para saber que não é fácil se estabelecer um valor para muitos dos projetos que eles são chamados a realizar. Quanto deveria custar para um contador americano treinar funcionários de um ministério afegão em práticas de contabilidade? Quanto deveria custar para consultores educacionais americanos treinarem 125 mil professores primários? Quem sabe? Assim, os empreiteiros, compreensivelmente, tendem a cobrar o valor que o mercado estiver disposto a pagar; e quanto mais dinheiro pedem por seus serviços, mais valiosos esses serviços parecem aos doadores. Além disso, os doadores frequentemente preferem ter alguns contratos grandes do que ter vários contratos menores. Os empreiteiros bem-sucedidos também sabem se valorizar. Eles acreditam que têm direito a viver bem. Assim, quando um empreiteiro “quente” com, digamos, 98 milhões de dólares de dinheiro do contribuinte para gastar, traz 100 consultores e conselheiros (todos homens), pode gastar meio milhão de dólares em um piscar de olhos. Ele pode instalá-los em dez ou 12 casas grã-finas, cada uma com um aluguel de cerca de dez mil dólares por mês, na parte da cidade mais inundada de dólares. Pode fornecer-lhes boa comida e bom vinho vindos da Europa ou dos EUA, e guarda-costas do tipo macho, jovens empregados vagamente efeminados, e uma SUV, um cozinheiro e um intérprete para cada um. E depois, o empreiteiro pode acrescentar uma coisinha extra ao salário de seis dígitos, digamos, alguma coisa a título de “periculosidade”, a título de ser “no exterior”, alguma coisa a título de per diem, e uma conta para despesas. Digo “pode” porque todos esses tópicos são secretos por “razões de segurança”. Você pode fazer as contas: essa é uma bela fatia do orçamento gasta com o sustento de homens (a maioria americanos) estrangeiros, livres de famílias em­baraçosas, vivendo em um estilo e em um nível de fantasia psicossocial de que poucos podem desfrutar em casa.

A justificativa para se desperdiçar o dinheiro dos impostos dessa forma é que, supostamente, ele vai “comprar as melhores pessoas”, mas um número surpreendente de consultores e conselheiros trabalhando para empreiteiros como a Bearing Point brincará, abertamente, sobre o quão pouco entendem do trabalho em que estão envolvidos. Como o advogado superpoderoso que conheci em uma festa e que tinha um contrato para assessorar um ministério governamental em direito tributário. “Eu não conheço nada de direito tributário”, disse com uma risada. “Imóveis residenciais são mais a minha praia. Mas o bom de trabalhar com esses afegãos é que eles não sabem a diferença”. Mas talvez eles saibam. Funcionários afegãos tentaram encerrar o contrato da Bearing Point em 2004, observando que alguns desses consultores “não eram necessários” e que outros “não eram os melhores profissionais”. Mas a USAID considerou que a Bearing Point estava “trabalhando bem” e manteve o contrato.181

 

 

Aqueles envolvidos em contratos educacionais em Cabul parecem ser um pouco melhores que o pessoal comercial. Afinal de contas, os consultores de campo são professores preocupados com crianças. E muitos deles são mulheres, o que não necessariamente os faz melhores, mas sim um pouco diferentes. (Elas não frequentam bordéis, por exemplo.) Entretanto, assim como aquele sujeito agradável preso no esquema, eles haviam deslizado para o sistema de empreitadas com fins lucrativos, tendo de responder, em última instância, aos doadores e a seus objetivos políticos. O maior empreiteiro americano na área de educação no Afeganistão, a Creative Associates International, consolidou suas relações com a USAID e o Departamento de Defesa durante o governo Reagan quando ofereceu “cursos de treinamento vocacional” para os contras. Desde essa época, eles já firmaram mais de 400 contratos, e a USAID se tornou a fonte de quase todo seu lucro, que chega até 50 milhões de dólares por ano. Em março de 2003, a Creative Associates conseguiu um contrato de 60 milhões de dólares para trabalhar com a educação primária no Afeganistão, além de um outro no Iraque que pode chegar a 157 milhões de dólares. (Os números são sempre incertos.) Essa inesperada sorte dupla fez com que a Inspetoria Geral investigasse o contrato para o Iraque e levou o senador Joseph Lieberman a concluir que “não houve, essencialmente, qualquer licitação competitiva”. Aqueles que haviam sido convidados a fazer propostas competitivas para a licitação e recusaram, foram, ao invés disso, agraciados pela Creative Associates com polpudos subcontratos. Talvez isso tenha acontecido por acaso, ou talvez as empreiteiras de fato cuidem umas das outras, afinal de contas. De qualquer forma, o ardiloso contrato para o Iraque transformou a Creative Associates em algo como a Halliburton do pessoal da Educação. Apesar disso, eles conseguiram um segundo contrato para o Iraque, no valor de 56 milhões de dólares, menos de um ano depois,182 e há rumores de que sejam os primeiros da fila para mais uma empreitada, no valor de 75 milhões de dólares, no Afeganistão.

Uma das primeiras de suas grandes tarefas no Afeganistão era a de providenciar a impressão de milhões de livros didáticos, extremamente necessários. Infelizmente, eles contrataram o serviço de impressão na Indonésia, junto a gráficas que não conheciam nem dari, nem pashtun; quando os livros chegaram a Cabul, por via aérea, a um custo esplêndido, viu-se que eram ilegíveis. Alguns textos haviam sido embaralhados e encadernados juntos, como Religião e Biologia, de modo que um capítulo sobre a vida do Profeta poderia ser seguido por outro sobre plantas. Quem me contou essa história foi um funcionário do Ministério da Educação, que disse que os livros ainda estão estocados em algum lugar.183

Para ser justa, a Creative Associates não foi a primeira empresa americana a fazer um trabalho lamentável com os livros. Essa distinção pertence ao Centro para Estudos do Afeganistão da Universidade de Nebraska em Omaha, algumas vezes confundida com a ONU por causa de sua sigla, UNO. Quando a Creative Associates teve de conseguir dez milhões de livros didáticos para atender os termos do contrato com a USAID, eles aparentemente tentaram passar para frente reimpressões de textos originalmente desenvolvidos pela UNO para um outro contrato com a USAID, celebrado em 1984. ­A UNO produziu os livros, cerca de 30 milhões e os utilizou nas es­colas para refugiados que mantinha no Paquistão, onde a USAID continuou a financiar os programas de educação da UNO até a suspensão de toda ajuda americana ao Afeganistão em 1994. Entre os refugiados havia afegãos de todas as linhas políticas, mas os livros haviam sido desenvolvidos por e para partidos islamitas. Tempos depois, é claro, soube-se que a CIA estava por trás de todo o esquema, parte de sua ajuda secreta anti-soviética aos guerreiros da liberdade. Depois que se encerrou o financiamento pela USAID, a UNO foi trabalhar para empresários americanos do setor petrolífero; ela conseguiu um contrato de 1,8 milhão de dólares com a Unocal para treinar trabalhadores para a construção do oleoduto trans-Afeganistão, e ajudou a organizar a visita, financiada pela Unocal, dos ministros do gabinete talibã aos Estados Unidos, em 1997. Contudo, durante todo esse tempo, a UNO manteve sua produção de livros no Paquistão, de modo que em janeiro de 2002, a USAID a considerou em “condição privilegiada” para publicar oito milhões de livros e treinar quatro mil professores para o início do novo ano letivo, pós-Talibã, no Afeganistão.184

Àquela altura, alguns críticos já haviam notado que os livros didáticos originais da UNO tinham muitas figuras de armas e de balas, e que alguns dos problemas de matemática, falando de números de soviéticos mortos, pareciam promover a violência. Assim, trabalhando no Paquistão, a UNO retirou as figuras e referências violentas ou, pelo menos, foi o que disseram e entregou os milhões de livros dentro do prazo. Mas então os críticos notaram que os livros ainda continham um bocado de violência, além de uma grande quanti­dade de versículos do Corão. As normas da USAID proíbem o uso do dinheiro de impostos para promover a religião, mas funcionários do setor de ajuda e da Casa Branca de Bush disseram que referências religiosas eram necessárias em uma cultura religiosa, até mesmo, ao que parece, o tipo de referência religiosa que inspirou o Talibã. Assim, esses textos financiados conjuntamente por uma universidade americana, por extremistas islâmicos no exílio, pela USAID e pela CIA, se tornaram, desde essa época, os livros didáticos padrão no Afeganistão e poderiam ter aparecido em novas edições se a Creative Associates tivesse enviado um revisor que soubesse ler dari/pashtun para supervisionar a impressão.

Algumas pessoas em Nebraska não ficaram nem um pouco contentes com isso. Em 2005, Paul Olson, professor de inglês na Universidade de Nebraska, em Lincoln, e membro da Nebraskans for Peace, informou, com certo atraso, ao Conselho Administrativo da universidade, que os textos “promoviam a violência e a jihad”. Isso violava normas da universidade que proibiam a disseminação de material educacional contrário a direitos humanos reconhecidos. “Estamos fornecendo propaganda carregada de violência às crianças afegãs da era talibã”, disse Olson. “Os terroristas do 11 de setembro surgiram desse contexto.” Defendendo a universidade, o presidente do Conselho, Howard Hawks, alegou (erroneamente) que os livros não haviam sido projetados para crianças mas para “mujahidin afegãos analfabetos que combatiam as forças soviéticas.” De qualquer modo, o Congresso e o Departamento de Estado (para não falar da CIA) haviam especificado que os livros deveriam ser escritos por afegãos, de modo que a UNO não tinha “qualquer envolvimento ou responsabilidade no que tange ao conteúdo”. Quanto aos livros atual­mente utilizados no Afeganistão, Hawk disse que eles eram “obra do governo do presidente Hamid Karzai e nada tinham a ver com a UNO”.185

O ano letivo de 2005 estava apenas começando em Cabul; assim, depois de ter lido sobre os debates em Omaha, levei Salma, minha colega na Frauen die Helfen, para fazer umas compras no mercado central, onde dúzias de livreiros se sentam atrás de carrinhos de mão abarrotados de livros didáticos e romances baratos. Gastamos uns poucos dólares para comprar uma série completa dos antigos livros didáticos da UNO para escola primária, em dari. Eram brochuras finas, com indicações claras mostrando a série e a disciplina. Impossível dizer se haviam sido “revisados” ou não. Nós os arrastamos até o carro e, durante a volta ao escritório, tentei convencer Salma a ler alguns dos livros para mim e me contar o que diziam. Salma era estudante de Direito em Cabul, possuía uma inteligência absolutamente brilhante e estava sempre pronta a aceitar mais trabalho. Mas, dessa vez, ela se recusou.

Eu sei o que eles dizem. Não quero lê-los de novo.

Você já os leu?

Claro. Na escola. Todos nós os lemos na escola. É por isso que eu e meus colegas de classe na universidade não sabemos nada.

Como assim, vocês não sabem nada?

Em primeiro lugar: não sabemos a história do nosso país ela estava olhando os volumes da pilha de livros. Jogou um no meu colo. História e Geografia, Quinta Série. É a história da Arábia Saudita disse. E a geografia de Meca. Nada do Afeganistão lançou-me outro. Dari, Quarta Série. Dê uma olhada. Começa com a vitória da Revolução Islâmica. É informação do Profeta, dos mujahidin e da jihad contra os kharaji, estrangeiros, e contra idéias estrangeiras. Nada de dari. Nada sobre a história de nossa língua. Nossa literatura.

Você sabe quem escreveu esses livros? pergunto.

Claro. Os mujahidin. Gulbuddin. Os mulás no Paquistão. Homens desse tipo ela parecia cuspir as respostas, furiosa. São feitos no Paquistão, mas são livros americanos.

Como eu não sabia lê-los, levei os livros a um acadêmico afegão, um senhor mais velho que havia recebido uma boa educação antes da invasão soviética. Depois de ler, ele ficou muito angustiado. “Esses livros são para a madrassa”, disse, “não para a escola”. Independentemente da matéria; dari, matemática, história, religião, os livros gravitavam em torno da vida do Profeta e de seus ensinamentos. Perguntei-lhe se havia alguma coisa sobre a história afegã e ele tomou um texto de história para a terceira série. “Esse aqui conta sobre o rei Amanullah”, disse. “Conta que ele voltou da Europa com ideias ocidentais, contra o Islã, e que todas as pessoas o odiaram e proclamaram uma jihad contra ele.” E esse texto em dari diz que a revolução comunista foi “o dia mais negro na história do Afeganistão.” Não parecia haver muita coisa sobre a história afegã antes ou entre esses dois eventos, separados no tempo por 50 anos.

O acadêmico me mostrou uma longa passagem que definia o mujahid ideal como um homem pronto a dar tudo o que possuía; suas propriedades, seu conhecimento, seus pensamentos, mesmo sua esposa e filhos, para seu Deus. Ele é um homem honesto, sempre obediente a Alá, sempre pronto a defender a vida e a propriedade de seus irmãos muçulmanos, sempre trabalhando pela unidade dos muçulmanos em toda parte, em todo o mundo. Tal pessoa facilmente se tornaria um mártir para o Islã. O acadêmico correu o dedo pela página do livro didático, publicado há dez anos, e traduziu, rapidamente: “Se um homem está lutando contra um inimigo do Islã, ele é a pessoa que faz feliz a seu Deus. Se um homem dá a sua vida por essa causa, ele terá um lugar alto junto a Deus. [...] Quando o mártir vê sua posição alta junto a Deus, ele deseja ter outra vida para poder ser um mártir novamente”. Fechou o livro. “Está vendo? É motivacional”, disse. “É por isso que digo que são livros para a madrassa.” Agradeci-lhe, reuni meus textos inspiradores e fui caminhando para casa, passando pela escola do bairro bem no momento em que um bando de menininhas de vestidos pretos e chadors brancos vinham saindo do pátio. Havia milhões de crianças na escola agora, mais do que em qualquer outro momento da obscura história do Afeganistão, como gostava de alardear o governo Bush. Essa parte era verdade, embora a porcentagem de meninas fosse maior durante a era comunista. Mas eles estavam lendo os mesmos velhos livros.

Não é que ninguém tivesse pensado em escrever novos livros. Esse fora um dos primeiros objetivos do Ministério da Educação, onde especialistas da Columbia University Teachers College passaram alguns anos ajudando a desenvolver um novo currículo escolar e a redigir novos textos. Os novos livros tinham por objetivo questionar as velhas práticas de ensino baseadas na rote. Incluíam muitas perguntas, atividades e tópicos para discussão, todos voltados para a promoção do tipo de “aprendizagem ativa” que envolve os alunos e desenvolve a capacidade de raciocínio crítico. A maioria dos educadores ocidentais sustenta que, sem raciocínio crítico, o processo democrático não consegue se consolidar. Em 2005, os novos livros para a pré-escola e terceira série já estavam na gráfica, no Afeganistão; textos para a primeira e quarta séries já estavam prontos para rodar. Havia um primeiro esboço para a quinta série, mas nada ainda para a sexta série. E nada para as séries mais adiantadas, embora a Columbia University e o Ministério da Educação tivessem esperanças de produzir novos textos para todas as séries, até o terceiro colegial. A falta de fundos estava emperrando o processo. Um professor de Columbia me explicou: “É muito difícil conseguir financiamento, a menos que você esteja ligado ao governo dos Estados Unidos, à USAID.” Assim, ainda por algum tempo, até que o Ministério da Educação consiga arranjar dinheiro para produzir os novos livros, dedicadas crianças afegãs correrão para a escola, carregando em suas mochilas, como se fossem bombas, os velhos livros didáticos jihadi.

A Creative Associates e outras empreiteiras da área de educação, financiadas pela USAID, reportam-se apenas a peritos em educação da USAID, profissionais e bem pagos, que vivem e trabalham em um labirinto de contêineres brancos atrás das paredes de concreto, com arame farpado, no Café Compound do Forte Paranoia, a embaixada americana. Muitos deles são amigos que obtiveram seus títulos acadêmicos em educação avançada nas mesmas universidades e tendem a contratar uns aos outros; empreiteiras conseguem consultorias na USAID, enquanto antigos funcionários da USAID tornam-se consultores ou conselheiros para empreiteiras, uma prática comercial camarada que lembra um pouco o costume afegão de contratar infinitos primos. Muitos dos melhores peritos em educação da USAID recusam-se a visitar os projetos das empreiteiras que fiscalizam porque, para fazê-lo, eles têm de viajar na companhia de pelo menos dois veículos militares abarrotados de soldados em traje de combate completo que aterrorizam, ao longo de todo o caminho, os habitantes dos vilarejos afegãos. Um funcionário da educação, frustrado, reclamou para mim, entre um capuccino e outro no café da embaixada: “Como posso visitar uma escola primária com todos esses soldados? Espera-se que eu ajude as crianças, não que as traumatize”. Assim, os funcionários da educação da USAID ficam sentados em suas pequenas caixas brancas e leem relatórios (por e-mail) de empreiteiras que enumeram os “indicadores” de seu sucesso garantido. É, sobretudo, um jogo de números: tantos milhões de livros impressos, tantas centenas de escolas construídas, tantos milhões de crianças na escola. Eu peço a várias empreiteiras cópias de seus relatórios; sendo uma contribuinte, imagino que tenha direito a saber como eles estão gastando meu dinheiro. Mas não, as empreiteiras me dizem que eles não têm permissão para mostrar seus relatórios a ninguém, exceto ao seu supervisor responsável na USAID. “Está no contrato”, um deles me diz. Eu não sei se é verdade ou não porque o contrato também não pode ser feito público.

Mas dá para ver como o relatório final para a USAID se torna o fim da história. As empreiteiras não têm de se preocupar com o que acon­tece depois, nas localidades concretas do Afeganistão, porque es­tão fazendo as malas para irem ao Iraque ou ao Irã ou onde quer que os construtores de impérios se voltem a seguir. E a USAID não tem de prestar contas a nenhuma outra nação na Terra, muito menos ao Afeganistão. Um amigo suíço foi contratado por uma ONGI, atraí­do pela promessa de 1.200 dólares por dia, para garantir a “sustentabilidade” do projeto da empreiteira. A sustentabilidade é um “conceito-chave” ou “pilar” do desenvolvimento, sugerindo que um bom projeto é aquele que as pessoas locais continuarão levando adiante sem você, muito tempo depois de você ter partido. É a primeira preocupação das ONGs escandinavas, mas parece só ocorrer às empreiteiras quando já é bem tarde. Depois de uma empreiteira americana ter passado seis meses “capacitando” uma centena de homens (nenhuma mulher) para trabalhar com orçamentos, eles contrataram meu amigo suíço para colocar esses sujeitos aperfeiçoados em ministérios do governo. Era isso que solicitava o “pilar de sustentabilidade” do contrato. Meu amigo fez o serviço, sabendo muito bem que, em questão de semanas, cada um dos homens para os quais ele tivesse conseguido uma colocação teria arranjado um emprego como pessoal ou aluno de outro programa de treinamento gerido por outra empreiteira. “Posso colocá-los no governo”, diz ele, “mas não posso fazê-los ficar lá se o governo não os paga. E não vai conseguir pagar, de jeito nenhum, os salários que eles conseguem com as empreiteiras. Simplesmente não é sustentável.”

Assim, à semelhança dos alunos dos programas de formação de pro­fessores comprados para serem treinados novamente por outros pro­gramas de formação de professores, os alunos de contabilidade passam para níveis mais altos. E meu amigo suíço, tendo cumprido os termos do contrato, ainda que brevemente, recebe mais uma tarefa de curto prazo, mais bem paga, com outra empreiteira de curto prazo. Há cada vez mais dessas pessoas, tanto estrangeiros como afegãos, pegas no turbilhão do dinheiro, subindo para o céu como os redemoinhos que aparecem agora, no fim do inverno, nas ruas de terra batida, girando furiosamente, subindo para desaparecer no céu amplo e claro.

 

 

O afegão médio diz que toda essa ajuda estrangeira não mudou nada. Os afegãos dizem isso até em Cabul, onde, na verdade, muitas coisas mudaram bastante. O motorista aponta para as suntuosas narco-villas, envidraçadas, com os telhados novos, que se espalhavam por nossa rua e diz:

Ópio. Não é para mim.

Ópio não é para você?

Não ele ri. Ópio tudo bem. Casa grande não é para mim. Casa grande para homem do ópio.

E quem é esse homem do ópio? pergunto. O motorista ri e dá um sorriso maroto.

Faço uma coisa por você. Não conto para você.

Ele partilha da opinião comum de que as novas riquezas do Afe­ga­­nistão são produzidas localmente. Acredita-se que o ópio do Afe­ganis­tão, que responde por 87% do total mundial, movimente mais de 30 bilhões de dólares por ano globalmente, embora a maior parte do lucro não fique no país. Ainda assim, a safra de papoula de 2004 rendeu aos afegãos 2,8 bilhões de dólares. Isso equivale a 60% do PIB legal do país, ou mais do que a metade da renda nacional total; é mais do que o dobro do valor que os Estados Unidos deram em quatro anos para a reconstrução do Afeganistão (1,3 bilhão de dólares), que, de qualquer forma, nunca chegou ao país.186 Mas não são os agricultores afegãos que estão ficando ricos. Os lucros vão para traficantes com boas ligações políticas, déspotas, comandantes, funcionários do governo, os de sempre. Ainda assim, o cultivo de papoula tirou muitos fazendeiros da pobreza abjeta e permitiu que mantivessem suas terras. Quando visitei uma família de agricultores pobres que conhecera no ano anterior, fiquei feliz em ver que haviam comprado um gerador, lâmpadas elétricas, um aparelho de TV e uma motocicleta. A origem dessa boa fortuna era a papoula, plantada a poucos metros da casa. “Por favor, não conte para os americanos”, pede o filho. “Agora podemos ir à escola.” Seu gesto englobava seus dois irmãos mais novos. “Se os americanos tirarem nossa papoula, teremos de voltar a trabalhar para os produtores de tapetes.” Em vez disso, a esposa do agricultor fora trabalhar nos campos de papoula de um grande latifundiário local, ganhando cinco dólares por dia. Ela saía de casa e ganhava um bom dinheiro — circunstâncias que se reproduziam em todo o país, mudando dramaticamente o status da mulher no campo. Os maridos não as mantêm em casa quando há um dinheiro desses a ser ganho.187 Mais acima na cadeia do negócio do ópio, nos centros dos governos provinciais e em Cabul, os lucros se tornam visíveis nas vistosas narco-villas. Sua pompa espalhafatosa mostra que seus donos não têm medo de nada. Também sugere a afegãos comuns, como meu motorista, que eles têm mais a ganhar com o comércio de ópio do que com todos os doadores internacionais juntos. Ao final de 2004, o diretor do Escritório das Nações Unidas Contra Drogas e Crimes anunciou: “O temor de que o Afeganistão degenerasse em um narco-Estado está se tornando uma realidade”.188

Eis outra consequência imprevista e embaraçosa da guerra por procuração dos Estados Unidos contra os soviéticos. Antes dos mujahidin enfrentarem os soviéticos em 1979, o Afeganistão produzia uma quantidade bastante pequena de ópio para mercados regionais; nem o Afeganistão, nem o Paquistão, produziam heroína. Ao final da jihad, a área da fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão se tornara o maior produtor mundial tanto de ópio como de heroína processada, fornecendo 75% do ópio em todo o mundo. Um especialista de nome Alfred W. McCoy relata em The Politics of Heroin (A Política da Heroína) que foram os mujahidin que mandaram que os camponeses afegãos cultivassem papoula para financiar a jihad. Foram os agentes da inteligência paquistanesa e chefes traficantes como o versátil vilão Gulbuddin que processaram a heroína. Segundo relatos, Gulbuddin possuía seis refinarias. Foi o exército paquistanês que transportou a heroína para Karachi para ser exportada. E foi a CIA que tornou tudo isso possível ao fornecer cobertura legal para essas operações. A CIA aplicou ao Afeganistão a lição que aprendera, tempos antes, no Laos e em Burma: uma guerra secreta requer uma fonte secreta de recursos, e não há nenhum melhor que o tráfico de drogas.189 Como terminar o tráfico quando a guerra secreta termina parece ser um problema de sincronia que a CIA não conseguiu resolver.

Os fundamentalistas do livre-mercado que advogam o crescimento para a globalização aderem aos princípios do economista britânico do século XIX, David Ricardo. Sua teoria da “vantagem comparativa” propõe que um país irá obter mais produtos no mercado internacional caso se especialize em exportar aquilo que consegue produzir com maior eficiência. No Afeganistão, a “vantagem comparativa” surge, de longe, no cultivo da papoula. Cresce em qual­quer lugar, como se vê pelo fato de que agora floresce em todas as pro­víncias. Coloca-se um pouco de esterco no campo e água, para co­meçar. Você manda as mulheres tirarem as ervas daninhas e recolher a resina. É o suficiente. A papoula tem flores lindas e se espalha praticamente sozinha. Muitos afegãos acreditam que é injusto os países ocidentais banirem a única coisa que eles produzem bem, especialmente quando parece haver uma demanda insaciável pelo produto exatamente naqueles países que o proibiram. Os afegãos também acreditam que seja hipócrita. Os afegãos estão sempre perguntando: “Por que vocês não proíbem o álcool?” Tanto as drogas como o álcool são haram (ruim ou proibido) no Islã, mas da mesma forma como o Afeganistão torceu as regras sobre drogas para financiar a jihad, ele agora torce as regras sobre o álcool para agradar os residentes estrangeiros que parecem não conseguir viver sem ele. A turma anti-heroína no Ocidente não torce as regras, entretanto. Um consultor americano contratado para avaliar o problema do cultivo da papoula expressou a opinião não-oficial de muitos que têm estudado o comércio de drogas nos Estados Unidos e no exterior: “A única saída sensata é a legalização das drogas. Mas ninguém da Casa Branca quer ouvir falar nisso”.

Em vez disso, o que eles têm feito há anos é fingir que não veem. Os ingleses, que são os responsáveis pelas operações antinarcóticos no Afeganistão, Bush Dois e Karzai, resmungaram alguma coisa, vez ou outra, sobre a redução da produção de papoula, mas, de fato, não fizeram muita coisa. Então, ao final de 2004, sob pressão de republicanos moralistas, Bush subitamente prometeu 780 milhões de dólares para uma guerra afegã contra as drogas; um salto dos 73 milhões de dólares do ano anterior. Karzai fora empossado, finalmente, como presidente eleito, eleito demais, para falar a verdade. (O número de eleitores registrados superava em cerca de um milhão o número de cidadãos.) Em seu discurso de posse, ele fez uma promessa solene de acabar com o negócio de drogas em dois anos. Os britânicos pressionavam pelo financiamento de “formas alternativas de sustento”, capazes de levar os agricultores a cultivarem outros produtos. Mas por que os agricultores trabalhariam duro para produzir algo que vale muito menos? Os americanos defendiam uma campanha intensa de erradicação da papoula, completa com sprays desfoliantes.

 

Então, em dezembro de 2004, agricultores da província de Nangarhar, próxima à fronteira com o Paquistão, reclamaram que alguns aviões haviam vindo à noite e pulverizado seus campos e casas com pequenas bolinhas cinzentas, e agora suas papoulas estavam morrendo. Seu gado e seus filhos estavam doentes. Karzai ficou furioso. Seu porta-voz chamou o incidente de “uma questão de soberania, uma questão de se estar atento àquilo que ocorre no país”.190 A Inglaterra e os Estados Unidos negaram ter qualquer envolvimento no assunto. O embaixador Khalilzad disse que os EUA nem haviam contratado o serviço. Hajji Din Muhammad, governador de Nangarhar, não engoliu essa história. Disse: “Os americanos controlam o espaço aéreo do Afeganistão, e nem um passarinho voa sem que eles saibam”.191

Você poderia pensar que os americanos iriam atrás dos chefões da droga, não daqueles que plantam, mas os militares hesitaram porque, como explicou ao New York Times um anônimo oficial americano, eles são “os sujeitos de quem os EUA ainda dependem para caçar o Talibã, a Al-Qaeda e Osama bin Laden”.192 Um soldado americano em Kandahar disse ao jornal britânico Independent: “Começamos acabando com os caras da droga e eles vão acabar com nossos caras”.193 Talvez seja por isso que o tenente-general David W. Barno, o mais importante comandante americano no Afeganistão, tenha publicado uma avaliação oficial em dezembro de 2004, pouco mais de uma semana depois da confusão da pulverização das plantações, que dizia: “O cultivo de papoula e a produção de ópio continuarão a crescer no Afeganistão”.194 Meu motorista e uma porção de outros afegãos comuns acham que isso é ótimo.

 

 

Para o afegão comum, por outro lado, a ajuda estrangeira parece ser algo de que apenas os estrangeiros desfrutam, vivendo como reis em suas casas enormes, dirigindo por aí em seus enormes SUVs. Os afegãos não gostam dos restaurantes em que os estrangeiros passam as noites bebendo, fumando, despreocupados, homens e mulheres juntos. Eles não gostam dos bordéis, 80 deles em 2005, em que estrangeiros, e afegãos também, são algumas vezes vistos no jardim com mulheres nuas.195 Eles não gostam do fato de que metade da cidade ainda esteja em ruínas, que muitas pessoas ainda vivam em barracas, que milhares não consigam encontrar emprego, que as crianças passem fome, que mulheres em burcas remendadas ainda peçam esmolas nas ruas e caiam na prostituição, que crianças sejam sequestradas e vendidas como escravas ou assassinadas para que se vendam seus rins ou seus olhos. Os afegãos não veem nenhuma diferença entre as empreiteiras endinheiradas e os dedicados voluntários humanitários. Somos todos estrangeiros. Todos vivemos escondidos atrás das armas de guardas sem rosto e velozes veículos de patrulha. Todos juramos nossas boas intenções. E os afegãos continuam a perguntar: “Onde está a ajuda que vocês nos prometeram?”

Algumas respostas aparecem em um relatório recheado de fatos publicado em junho de 2005 pela Action Aid, uma ONGI amplamente respeitada com sede em Johanesburgo, África do Sul. O relatório examina a ajuda ao desenvolvimento oferecida pelos países em todo o mundo e afirma que apenas uma pequena parte dela, talvez 40%, é real. O resto é “fantasma”. Quer dizer, os recursos não aparecem nunca, de forma alguma, no país destinatário. Uma parte deles nem mesmo existe, salvo como um item contábil, quando os países colocam perdão de dívida na coluna da ajuda. Muitos desses recursos jamais deixam o país de origem, como aquele belo salário do perito em educação que vai direto para seu banco americano, um acerto que é prática comum. Muito é desperdiçado em “assistência técnica superfaturada e ineficiente”, com todos aqueles peritos estrangeiros metidos. E grandes porções estão “vinculadas” ao doador, o que significa dizer que o recipiente é obrigado a comprar produtos do país doador, mesmo quando, especialmente quando, os mesmos produtos são mais baratos localmente.

Sem ser nenhuma surpresa, os EUA superam os outros países em muitas dessas negociatas, ficando atrás apenas da França como o maior fornecedor do mundo de ajuda fantasma. Quarenta e sete por cento da ajuda americana para o desenvolvimento é despejada em assistência técnica superfaturada, ao passo que a porcentagem do orçamento anual dos países escandinavos gasta em assistência técnica vai de 12% (Noruega) para 4% (Suécia). Luxemburgo e Irlanda se saem ainda melhor, com 2%. Quanto a atrelar a ajuda à compra de produtos do país doador, a Suécia e a Dinamarca simplesmente não o fazem. Nem a Irlanda, nem o Reino Unido. Mas 70% da ajuda americana está vinculada à compra, pelo destinatário, de produtos americanos. A conclusão é que 86 centavos de cada dólar de ajuda americana, são ajuda fantasma. De acordo com as metas estabelecidas há anos pela ONU, e aceitas por quase todos os países do mundo, todos os países ricos deveriam transformar 0,7% de sua renda nacional em ajuda anual aos países pobres. Até agora, apenas Luxemburgo (com a taxa de ajuda real em 0,65 de sua renda nacional), os países escandinavos e a Holanda chegam perto. Na outra ponta do espectro, os EUA gastam um irrisório 0,02% de renda nacional em ajuda real, o que resulta em uma contribuição de 8 dólares de cada cidadão “do país mais rico do mundo.” Em comparação, os suecos contribuem com 193 dólares por pessoa, os noruegueses com 304 dólares e os cidadãos de Luxemburgo com 357 dólares.196 Parece que os americanos estão sendo mais enganados que os afegãos. Quando Bush Dois se vangloria de milhões em ajuda para o Afeganistão, os afegãos querem vê-los. Os americanos pressupõem que estejam lá. Meu palpite é que a maioria dos americanos ficaria chocada de pensar que estamos “ajudando” o mundo no ritmo de oito dólares cada um. Dava para conseguir mais se a gente passasse o chapéu. Quando mandei aquele e-mail a meus amigos, pedindo dinheiro para meu projeto de ensino, ninguém me mandou ridículos oito dólares.

O problema é que os EUA dizem uma coisa e fazem outra. São como um pai sovina, prometendo milhões e depois deixando de fazer o cheque. Frequentemente o presidente faz uma promessa pública espetacular e o Congresso se recusa a destinar as verbas. Ou ele envia a esposa a Cabul para anunciar uma doação que já havia sido feita. Os EUA não são a única nação doadora que age desse modo, mas é o mais rico e parece ser aquele com menor capacidade de concentração. Esse comportamento deixa o governo afegão com “lacunas” notáveis. No Orçamento Nacional para Desenvolvimento de 2003, o Afeganistão solicitou 250 milhões de dólares para a educação, mas recebeu apenas cerca de 77 milhões de dólares de doadores internacionais. Isso dá apenas 31%, deixando uma lacuna de cerca de 172 milhões de dólares. Os doadores gastaram mais de 49 milhões de dólares em educação fora do governo, em coisas como os projetos de alfabetização da USAID, mas isso ainda deixa uma lacuna de 123 milhões de dólares.197 O orçamento para educação de 2004 e 2005 solicitava que o Ministério da Educação gastasse cerca de 388 milhões de dólares, dos quais apenas 117 milhões de dólares, ou 30%, se materializaram.198 O governo nunca sabe quanto dinheiro vai entrar, nem quando. Ele nem sabe o que já saiu. Como informou de Cabul o Human Rights Research and Advocacy Consortium: “No setor da educação, praticamente não há dados corretos disponíveis sobre o que foi gasto, onde e em quê”.199 Assim, o governo segue acumulando lacunas.

O planejamento foge de seu controle, assim como o dinheiro. O Ministério da Educação planeja novos livros didáticos, para os quais não há financiamento, enquanto o financiamento americano maciço vai para a promoção da alfabetização fora das escolas ou para reformar um dormitório para mulheres na Universidade de Cabul. De 70 agências e organizações envolvidas em projetos de educação em 2003, muitas sobrepuseram ou duplicaram serviços. Muitas não se deram ao trabalho de informar ao governo. Algumas eram positivamente secretas. Mesmo se o governo tivesse dinheiro, seria praticamente impossível bolar um plano em um ambiente assim, para nem falar em conseguir que “as partes interessadas” o sigam. Nessas circunstâncias, os planos começam a se parecer com projetos para castelos no ar. Um pretende que os alunos, em todo o país, comecem a aprender inglês na terceira série, embora atualmente, como já mencionei, não haja um número de professores de inglês competentes nem para atender às escolas secundárias da capital. Outro determina que todas as aulas na Universidade de Cabul sejam dadas em inglês, uma língua que poucos alunos, e menos professores, sabem. Um amplo plano de longo termo aponta as metas do governo para o “setor de educação” para daqui sete anos. Mas não apresenta as estratégias para se chegar lá.

Dessa maneira, os planos do governo, assim como os relatórios do governo Bush sobre o Afeganistão, vão subindo como balões na primavera, voando para cada vez mais longe dos fatos no chão. Muitas escolas são construídas tendo por base uma planta-padrão, com valor de 174 mil dólares (embora a empreiteira, Louis Berger, esteja anos atrasada); o que é caro demais para as comunidades manterem, grande demais para se conseguir professores suficientes e “centralizado” demais para que as meninas de vilarejos vizinhos venham andando. (As pequenas escolas de bairro de Joe Biden, a um custo de 20 mil dólares teriam servido perfeitamente bem.) Eu visitei uma das escolas do governo construída com ajuda japonesa, agora utilizada como escritório por uma ONG dinamarquesa, e outra ocupada apenas por um vigia que dormia em uma sala de aula, cozinhava em outra, rezava em outra, recebia visitas em outras e reservava a maior como garagem para sua bicicleta.

Mesmo os números espetaculares de novas crianças na escola, contam uma história de sucesso incompleto. É ótimo que mais de quatro milhões de crianças estejam na escola (deixando de lado a questão da qualidade das escolas), mas esse número inclui apenas cerca de metade dos meninos qualificados para a educação primária, e menos de um terço das meninas. As crianças da cidade têm melhor sorte. Cabul e Herat matriculam 85% de suas crianças, mas afaste-se alguns quilômetros da cidade e as matrículas caem para menos de 50%. Em algumas partes do país, matrículas muito mais baixas, especialmente de meninas, refletem velhas divisões culturais aprofundadas pelo islamismo radical. Algumas províncias ainda têm mais madrassas que escolas secundárias. Quase metade de todos os alunos matriculados em escolas no Afeganistão vivem na província de Cabul, a maioria deles na capital, enquanto apenas 10% vivem nas províncias orientais e outros 10% no sul. As sete províncias do sul, território pashtun e talibã, têm o menor número de matrículas de todos: apenas 19% das crianças que vivem na província de Helmand vão à escola. Nas províncias de Zabul e Badghis, apenas uma menina em cada 100. Os alunos também abandonam a escola em números assustadores. Estima-se que três quartos das meninas na pré-escola hoje terão desistido até a quarta série, assim como mais da metade dos meninos.200 As meninas saem primeiro, a maioria delas ao final da pré-escola ou da primeira série. Na oitava série, haverá muito poucos meninos ainda na escola, exceto nas grandes cidades, e praticamente nenhuma menina.

Esse é o tipo de notícia mais equilibrada que se encontra no campo, mas não na TV americana. Como eu realmente não gosto de ser sempre aquela que fica achando defeito em tudo, vou lhes contar uma história mais feliz. Certa manhã, entrei na cozinha da Frauen die Helfen e encontrei uma amiga aos prantos. Tomei suas mãos entre as minhas, para confortá-la, e ela me disse que estava chorando de alegria. Marina, afegã de nascimento, é cidadã alemã, para onde sua família fugiu depois da invasão soviética. Agora uma aluna de pós-graduação na Alemanha, ela volta a Cabul durante as férias da universidade para trabalhar como intérprete para a FDH. Naquela mesma manhã, disse ela, o vigia a chamara ao portão onde uma jovem a esperava. “Você se lembra de mim?”, perguntou a jovem.

Três anos antes, quando sua família estava desesperada por dinheiro, a jovem conseguira um emprego temporário na FDH como ajudante de cozinha, durante um curso de treinamento de um mês. Marina era a intérprete para o curso e, sendo a única falante de dari, era a encarregada de dar as instruções para as empregadas. Ela foi gentil com a jovem que, notara, estava apavorada pelo fato de estar sozinha, trabalhando para estrangeiros em uma casa estranha. O fim do curso significava o fim do emprego para a jovem, e para Marina, que voltou para sua casa na Alemanha. Ela não vira mais a jovem até que ela apareceu no portão da casa naquela manhã, com cópias de documentos preciosos para mostrar que ela se formara no ensino secundário e em um curso de língua inglesa. Ela acabara de ser aceita em um programa de treinamento em uma ONG afegã, onde aprenderia a ser professora primária. Marina me disse: “Fiquei feliz por ela, claro, mas não sabia o porquê dela querer me mostrar essas coisas. E aí ela me agradeceu, e agradeceu, várias e várias vezes. Ela disse: ‘Eu queria que você soubesse porque você me disse para não sair da escola, e eu fiz o que você disse’”. Marina estava chorando de novo e nos abraçamos na cozinha gelada, ambas com lágrimas nos olhos agora e rindo até que outras colegas vieram e Marina contou a história de novo e alguém colocou a chaleira no fogo.

Há muitas histórias como essa em Cabul, de pequenas coisas que acontecem, frequentemente desconhecidas ou que passam despercebidas, entre uma pessoa e outra, pequenas coisas que mudam uma vida e, por meio dela, mudam a vida de outros. De modo que eu não diria que a ajuda para a educação no Afeganistão é só fachada e fanfarra, mas simplesmente que as coisas poderiam ser mais bem feitas e por melhores razões. Ainda assim, quando os afegãos dizem: “Onde está o dinheiro da ajuda que vocês estrangeiros nos prometeram?”, a pergunta é justa.

Os habitantes de Cabul começaram a fazer essa pergunta ao governo de Karzai também. Todos eles haviam votado em Karzai em 2004, mas o que ele fizera por eles? Os afegãos, por força de uma longa tradição, esperam que um cã seja poderoso, mas Karzai, cuja estatura pública fora tão cuidadosamente inflada pelos americanos, parecia estar encolhendo dia a dia, a despeito de suas lindas roupas multiét­ni­­cas, ficando do tamanho de um fantoche americano. O embaixador Khalilzad ofuscava-o. Condollezza Rice eclipsava-o. Fora ela, e não Karzai, que anunciara a data das eleições parlamentares. Bush humilhara-o, mandando-o de volta de mãos vazias a Cabul, quando ele fora a Washington exigir o controle dos prisioneiros afegãos depois que alguns deles, detidos na base aérea de Bagram, foram torturados e mortos por investigadores americanos.201 Os afegãos esperam que um cã consiga coisas; segurança, empregos, comida, tecido para turbantes, qualquer coisa. Senão, ele serve para quê?

Em Cabul, as pessoas sofreram durante todo o inverno longo e severo de 2004 e 2005, o terceiro inverno mais longo desde a fuga do Talibã, e o mais severo. Elas começaram a murmurar. O Ministro do Planejamento, Ramazan Bashardost, deu-lhes um alvo: as ONGs estrangeiras. Ele estava de olho nas “assim chamadas ONGs que operam visando lucros, como empresas privadas”, mas empreiteiras privadas e ONGs humanitárias eram a mesma coisa para ele. Ele queria uma lei para regulamentar as operações das ONGs, especialmente das estrangeiras, porque elas eram ineficientes e corruptas. “As ONGs internacionais recebem enormes quantias de suas nações”, disse, “mas gastam todo o dinheiro consigo mesmas, e não conseguimos descobrir quanto dinheiro elas receberam originalmente em fundos de caridade”. O diretor da CARE respondeu: “Esses ataques infundados, desprovidos de substância e generalizados, vindos de um ministro do governo, estão criando um clima em que o governo é visto como legitimando os ataques a ONGs”.202 Em um mês, o presidente Karzai (ou Mr. Khalilzad) já havia substituído o desbocado ministro; mas, na primavera, enquanto a insatisfação crescia, Karzai adotou, ele mesmo, esse tom.

Em abril de 2005, em um encontro, em Cabul, de representantes de 40 países doadores, o Fórum de Desenvolvimento Afegão 2005, Karzai acusou as ONGs de “desperdiçarem fundos”. Na semana anterior, pelo menos 30 pessoas haviam sido mortas, e muitas mais feridas, quando um dique se rompeu em Ghazni, um velho dique que fora reformado no ano anterior por uma ONG dinamarquesa. Os engenheiros responsáveis pelo serviço haviam deixado o país há muito tempo.203 As fotos, nos jornais, de mais um desastre afegão que poderia ter sido evitado pareciam ilustrar a acusação de Karzai. Agora seu governo surgira com um orçamento que previa o gasto de 4,75 bilhões de dólares, no ano seguinte, e estava contando que os doadores estrangeiros providenciassem 93% do dinheiro. Ele queria que eles entregassem o dinheiro diretamente em suas mãos porque seu governo, disse, era “o órgão máximo responsável perante o povo afegão”. Ele dirigiu-se aos doadores reunidos: “O governo afegão... deve ser melhor informado a respeito do processo de desenvolvimento e deve exercer seu papel de dirigir tal processo”.204 Era um pedido de ajuda para conseguir se manter no cargo, mas muitos o entenderam, assim como às acusações anteriores do ministro Bashardost, como “legitimando ataques a ONGs”. Um mês depois, uma funcionária humanitária da CARE foi raptada.

Clementina Cantoni, uma italiana de 32 anos, estava em Cabul há três anos, chefiando um projeto da CARE para prestar assistência a 1.000 viúvas e suas famílias. Certa noite, em maio, quando ela e seu motorista estavam quase deixando uma casa no centro da cidade em que haviam deixado um amigo, quatro pistoleiros mascarados arrancaram Clementina do carro. No dia seguinte, em um velho retrato estampado na primeira página do jornal, ela sorria sobre uma cidade que havia mudado.205 As mulheres afegãs estavam furiosas. As viúvas com que Clementina trabalhava se reuniram corajosamente em frente ao escritório da CARE, carregando sua foto e cartazes feitos à mão exigindo que os sequestradores a libertassem. Os funcionários de ajuda estrangeiros estavam apavorados. Os chefes das agências promulgaram novas regras para internacionais: nada de andar a pé, nada de dirigir sozinho, nada de restaurantes. O toque de recolher era às seis da tarde. Uma semana ou mais se passou até que víssemos Clementina na televisão, enrolada em um chador, sentada no chão entre dois homens de pé a seu lado, máscaras pretas, apontando Kalashnikovs para sua cabeça. Inacreditavelmente, ela parecia serena e não demonstrava qualquer medo. Os governos afegão e italiano negociavam com os sequestradores, enquanto os estrangeiros em Cabul aguardavam atrás de portões trancados. O inverno passara, mas a primavera seria cinzenta por causa de Clementina.

 

 

Essa não era a primeira vez que funcionários de ajuda haviam sido ameaça­dos no Afeganistão. Em 2003, 14 trabalhadores de aju­da, afegãos e estrangeiros, foram assassinados, e a violência au­mentava. Apenas nos primeiros seis meses de 2004, mais 37 foram mortos. Dentre eles, cinco funcionários da Médecins Sans Frontières, na província de Badghis, o que levou a organização a encerrar o trabalho no Afeganistão.206 Os assassinatos de civis eram chocantes porque ocorriam em partes do país que se acreditava fossem relativamente seguras. E eram duplamente perturbadores porque muitas dessas organizações estavam trabalhando no Afeganistão há décadas, atravessando as guerras civis e o período do Talibã sem medo de baixas. Muitas ONGs responsabilizavam a coalizão liderada pelos EUA de obscurecer a linha entre soldado e civil, entre operações militares e humanitárias. Em muitas províncias, o exército dos EUA estabelecera unidades especiais de 50 a 100 soldados, chamadas de Equipes de Reconstrução Provincial, ou PRT. O secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, frequentemente acusado de “mandar muito poucos para fazerem demais para muito poucos”, referiu-se às PRTs como “a melhor coisa que pode ser feita para, em última análise, conseguir segurança” no Afeganistão.207

A segurança na maior parte do Afeganistão estava ao Deus-dará por uma série de razões, a maioria delas ligadas às políticas dos EUA. Em primeiro lugar, em uma conferência em Bonn logo após a queda do Talibã, os EUA insistiram em promover o retorno ao Afeganistão da maioria dos velhos déspotas mujahidin que o Talibã havia derrotado e expulsado do país, isto é, todos aquele guerreiros civis cuja destruição do país fizera com que a lei e ordem do Talibã parecessem tão boas, para começo de conversa, aos afegãos tão cansados de guerra. Posteriormente, tentando preservar soldados americanos, cujas vidas poderiam ser perdidas em combates no solo, os EUA rearmaram os déspotas ressuscitados e pagaram 70 milhões de dólares para se achar Osama bin Laden, uma missão à qual eles parecem ter se dedicado com empenho não exatamente total. Depois, para impedir que as forças de segurança internacionais interferissem na caçada nas províncias, os EUA garantiram que o ISAF ficasse confinado a Cabul. Quando essas medidas restauraram as províncias a um estado de ausência de lei semelhante à anarquia armada pré-Talibã, os EUA começaram a instalar PRTS, ostensivamente para ampliar a “segurança” e o alcance do governo de Karzai de Cabul para o resto do país. (A segurança era algo tão ausente nas províncias que a primeira PRT, em Gardez, em 2002, gastou os primeiros seis meses construindo um forte para se proteger.)

Mas as PRTs também tinham outras missões. Elas foram encarregadas de colher inteligência para a guerra contra o terror e, em traje de combate completo, chamadas a conquistar as mentes e os corações dos afegãos, tarefa para a qual eram particularmente inadequadas e ainda mais espantosamente caras que a mais pretensiosa empreiteira estrangeira. Mais tarde, soldados ingleses, com maior experiência em missões de paz, estabeleceram uma PRT ao norte, e os alemães fizeram o mesmo. Em 2005, houve rumores de uma nova PRT, da Mongólia, mas isso pode ter sido piada. O problema essencial, falta de segurança, não apenas permanecia, mas se agravava. Áreas marcadas em vermelho, designadas de “Alto Risco/Ambiente Hostil” se espalham pelos mapas de segurança da ONU como uma poça de sangue. Muitos alegaram, como o fez Paul O’Brien da CARE, que “ao ‘obscurecer a linha’ entre os militares e os humanitários, elas (as PRTs) colocavam funcionários de ajuda civis em risco, e politizavam, e mesmo militarizavam, o trabalho de ajuda”.208 As ONGs que desenvolviam projetos de assistência ou de reconstrução nas províncias juntaram-se a cidadãos afegãos comuns, ao governo Karzai e à ONU para pedir que forças de segurança administradas internacionalmente fossem espalhadas pelo país.209

Relatos de mortes de trabalhadores de ajuda civis nas províncias chegaram a Cabul, onde patrulhas da ISAF, fortemente armadas, mantinham a segurança nas ruas, criando uma ilha de relativa segurança em que o governo Afegão, a ONU, e a maioria das agências internacionais trabalhavam. Havia de vez em quando uma bomba ou uma emboscada, direcionadas sobretudo aos soldados da ISAF. Alguns soldados perderam suas vidas. Em maio de 2004, um casal de “turistas” ocidentais, em trajes afegãos, foram encontrados, espancados até a morte, em um cemitério de Cabul. (As pessoas diziam: turistas? Eles deviam ser espiões). Em outubro de 2004, uma jovem americana e uma menina afegã foram mortas em um atentado a bomba suicida na Chicken Street, onde os estrangeiros sempre vão comprar suvenires.210 Pouco tempo depois, três funcionários da ONU foram sequestrados e mantidos cativos por quase um mês antes que o governo conseguisse negociar sua libertação.211 A moda do arame farpado e dos sacos de areia se espalhou pelos distritos residenciais. Amigos afegãos propuseram abrir uma hospedagem para estrangeiros em um porão e chamá-la de “Bunker.” Eles não estavam só brincando. Posteriormente, perto do fim do inverno, um conselheiro inglês junto ao Ministério da Reconstrução e do Desenvolvimento Rural, dirigindo sozinho em Cabul, foi assassinado a tiros.212 Um mês depois, um americano foi espancado e sequestrado em plena luz do dia. Ele pulou do porta-malas do carro, que estava em alta velocidade, para escapar.213

Os escritórios de segurança internacionais emitiam alertas informando que a gangue criminosa responsável pelo sequestro dos funcionários da ONU poderia, provavelmente, sequestrar mais alguém. Alguns dos sequestradores originais haviam sido pegos e mandados para a prisão; a polícia acreditava que o resto da gangue queria um refém para trocar por eles. Os bandidos não eram talibãs. Não eram da Al-Qaeda. Não eram políticos. Eram criminosos que queriam ganhar dinheiro no mundo milionário e sem lei da Cabul pós-conflito. Foram eles que levaram Clementina, e isso mudou tudo. Ou talvez tenha sido aí que aqueles que já moravam em Cabul há algum tempo notaram que tudo havia mudado. Nadene Ghouri, da BBC, uma amiga de Clementina, lembrava as condições de Cabul em 2002, o ano em que ela e Clementina (e eu) chegaram. Ela escreveu no Kabul Weekly: “O otimismo no ar era tangível. Os afegãos recebiam os estrangeiros de braços abertos. [...] Agora o clima é marcadamente diferente. Frustrados pela falta de desenvolvimento e pela pobreza opressiva, cada vez mais afegãos estão substituindo a gratidão inicial pelo cinismo e por uma ira que queima lentamente”.214

O sentimento antiestrangeiro, antiamericano, crescia a cada dia. Eu também percebia um ressentimento crescente toda vez que tinha de atravessar uma rua para evitar os guardas com seu jeito arrogante e suas camisas pretas, brandindo armas automáticas, em frente ao bunker de concreto, iluminado por holofotes, que era a sede da DynCorp, a sinistra empreiteira americana para “segurança.” Certa manhã, no centro de Cabul, um carro blindado deu uma fechada no carro em que eu viajava, e meu motorista enfiou o pé no freio a tempo. Um soldado se debruçou para fora do veículo, apontou sua arma automática para o meu motorista e xingou-o aos berros, como se tivesse sido culpa dele que eles quase tivessem nos abalroado. Ao ouvir seu sotaque americano, perdi a cabeça. Saí do carro e corri em direção ao veículo blindado, gritando com o soldado, botando para fora toda a minha ira santa inspirada pela DynCorp. O soldado ficou vermelho, o veículo blindado foi embora, e eu voltei para o carro. Meu motorista estava sorrindo como também, reparei, estavam sorrindo os pedestres afegãos a nossa volta na rua. Um menino que vendia jornais me fez um sinal de positivo. Meu motorista disse: “Por favor, não tomar um tiro por minha causa. Eles fazem isso o tempo todo”.

Um dia, quando Salma e eu fomos ao Ministério das Relações Exteriores e passamos pela inspeção rotineira de nossas bolsas, o guarda disse a ela em dari: “Por que você ainda trabalha para estrangeiros? Eles pensam que sabem tudo, mas não sabem”. Quando Salma e eu atravessamos o campus da universidade, alguns alunos gritaram para ela em dari: “Vadia. Prostituta. O que você está fazendo com os kharaji?”. Quando Salma e eu nos sentamos na antessala da Suprema Corte, aguardando para falar com um juiz, os homens sentados próximos a nós, sempre havia homens esperando em repartições do governo, discutiam, em dari, sua insatisfação com os americanos.

“Por que eles não nos dão comida, como os russos?”, pergunta um.

“Eles não fazem nada por nós”, diz outro.

“Fazem sim”, responde um terceiro. “Eles matam as pessoas em Bagram, estupram os meninos, penduram os homens no teto e os espancam até a morte.”

 

“Eles jogam o Corão na privada, não se esqueçam”, acrescenta um outro. Os homens aquiescem, olhando para mim.

“O que você acha que essa velha está fazendo aqui?”, pergunta um deles. Um outro responde: “Ela vem sempre. É uma espiã.” Salma aperta o xale contra a boca e ri, o que faz com que eles se calem. Ela me diz em inglês: “Os homens são bobos”.

O mais notável para mim é o surgimento de uma nostalgia cor-de-rosa pela ocupação soviética. Ouço afegãos dizerem que os soldados soviéticos não eram tão arrogantes nem os empurravam para cá e para lá. Os soviéticos não invadiam suas casas, nem os mantinham em prisões secretas, nem os espancavam até a morte. Os soviéticos davam bons empregos. Davam toneladas de alimentos de graça. Assistência médica. Os professores em minha classe contam que os soviéticos melhoraram muito as escolas e colocaram as meninas na escola, em todo o país, e que eles convidaram muitos alunos e professores para estudar na União Soviética. Um deles me diz: “Os soviéticos levaram para seu país um ônibus lotado de professores”. Outro diz: “Sim. É verdade. É uma boa ideia. Os EUA poderiam mandar um ônibus para nos levar aos EUA”. Cabul inteira, provavelmente o Afeganistão inteiro, tem esperado, e esperado, pelo ônibus americano.

 

 

Aqui e ali, ele pode ser vislumbrado. Laura Bush veio ao Afeganistão em março de 2005 (por seis horas) para “oferecer seu apoio às mulheres afegãs em sua luta por maiores direitos”, conforme relatou o New York Times, e para “prometer um compromisso de longo termo dos EUA com a educação para mulheres e crianças”.215 O Times noticiou que a viagem “envolvera mais de um ano de preparação”, o que pode parecer excessivo para uma excursão militarizada de relações públicas financiada pelo governo que mal ficou em Cabul tempo suficiente para aterrorizar a população, mas a esposa do presidente trouxe promessas de ajuda que deram manchetes nos EUA. A Sra. Bush prometeu que os EUA fariam doações adicionais de 17,7 milhões de dólares e de 3,5 milhões de dólares para a educação no Afeganistão. Os 17,7 milhões de dólares já haviam sido anunciados antes. Pior ainda, eles não eram para a educação afegã, mas para uma nova Universidade Americana do Afeganistão, privada e com fins lucrativos, que iria competir com as universidades públicas e atrair a elite afegã cobrando pelo ensino, segundo rumores, algo em torno de cinco mil dólares por ano. É provável que seja uma universidade para homens, já que as possibilidades das famílias afegãs mandaram uma menina para escola, a esse preço, são extremamente remotas. Você poderia perguntar como é que uma universidade privada consegue a ajuda financiada pelos dólares dos contribuintes, mas eu não faço a mínima ideia. O projeto não deveria nem começar, dado o “compromisso” da Sra. Bush com a educação das mulheres e os princípios “democráticos” da USAID (lembram dos meus professores secundários “de elite”, que não se qualificavam para a ajuda americana?) —, mas a Army Corps of Engineers já está trabalhando no local. Ashraf Ghani, antigo ministro das Finanças do Afeganistão e reitor da Universidade de Cabul, apelou à Sra. Bush que, em vez disso, apoiasse sua histórica instituição pública. Falando de maneira bastante direta para um afegão, ele disse: “Você não pode apoiar a educação privada e ignorar a educação pública”. Mas ela podia e ela o fez. A quantia menor, de 3,5 milhões de dólares, anunciada pela esposa do presidente, também não foi para a educação afegã. Foi para uma nova Escola Internacional do Afeganistão, de língua inglesa, o que, vale dizer, é uma escola preparatória para os filhos de estrangeiros em Cabul, que eram numerosos em 2005, com novas levas chegando.63

Uma frota de helicópteros de combate levou embora rapidamente a Sra. Bush para que ela fosse jantar com os soldados americanos na base de Bagram, e ela desapareceu. Não muito tempo depois, li um relatório da Unidade de Pesquisa e Avaliação do Afeganistão so­bre o patético progresso feito no país. Intitulava-se: “Investimen­tos Mínimos, Resultados Mínimos” e falava da impossibilidade de se encontrar um mínimo de segurança no Afeganistão.216 Os afegãos anseiam por segurança. Desarmamento, segurança e paz é o que eles querem.217 Mas todo mundo sabe que os EUA fizeram as coisas de trás para frente, tentando estabelecer um governo, uma constituição, eleições, um parlamento, toda a parafernália da democracia sem jamais estabelecer algo parecido com a paz. Para não falar dos propósitos contraditórios, também, tentando conferir “estabilidade” à capital ao mesmo tempo que promoviam uma caçada humana no interior.218 Mas esse relatório acusava toda a “comunidade internacional” por nunca ter mostrado “o compromisso necessário, e os investimentos”, em primeiro lugar, para dar aos afegãos uma chance de construírem um país em paz. Tony Blair prometeu, em 2003, que a comunidade internacional “não abandonaria” o Afeganistão, mas um repórter perguntou: “Quando é que a comunidade internacional vai se aproximar do Afeganistão?”219 Um outro relatório, emitido durante a Conferência sobre o Afeganistão em Bonn, em março de 2004, advertira que “ficar muito próximo do esforço mínimo por muito tempo irá afetar negativamente as expectativas e o envolvimento de diferentes segmentos da sociedade afegã”.220 Foi o que aconteceu. Os afegãos se cansaram de esperar o ônibus.

 

 

Compro minha passagem para Nova York. Meus dias em Cabul estão terminando. Nas noites longas, trancada sozinha, começo a escrever este livro. Já sei que ele será melancólico. Tem sido assim esse inverno em Cabul, o inverno dos cães congelados. O pior inverno em cinquenta anos, diz o rádio. Um céu de cor de chumbo oprime a cidade como uma tampa sobre uma bacia, e a neve cai copiosamente quase todos os dias. Algumas vezes o sol aparece tempo suficiente para deixar a neve lamacenta, mas a noite transforma tudo em gelo, novamente. À medida que a noite avançava, os cães que viviam entre as casas em ruínas ao longo da encosta começavam a latir. Eu me enfiava na cama e puxava a coberta sobre os ouvidos, mas o sono não vinha, noite após noite. Comecei a reconhecer as vozes: o Sr. Quatro-Latidos, que sempre dizia só isso: “au!”, quatro vezes, antes de parar para recuperar o fôlego e começar de novo. O Sr. Ganido, que sempre soltava um agudo “caim, caim, caim”. Um que fazia um barulho como se estivesse sufocando, outro com um grave “gruff, gruff” e outro que soluçava. Eu podia vê-los: amarrados em pátios congelados, espremendo-se contra os muros, escavando a neve, correndo pelas ruas estreitas e gritando por algo, no meio do frio, mas o quê? Por socorro que não viria de pessoas que estavam, elas mesmas, congelando dentro de casas arruinadas, seus barracos improvisados feitos de pedaços de tendas remendadas do ACNUR. Pouco antes do raiar do dia, quando o frio era mais intenso, os cães se calavam, contorcidos em seu sono exausto, seus ossos tremendo sob os tufos de pelos. E eu também adormecia, sabendo que na próxima noite ficaria acordada de novo, ouvindo-os gritar por socorro. O inverno continuava. Certa noite, o Sr. Ganido não latiu. Depois, a voz mais grave desapareceu. Abrindo as cortinas para ver a neve que novamente caíra, certa manhã, vi um menino em um telhado em frente brincando com a carcaça de um cachorro congelado.

Mas agora era março e a primavera seguia adiantada. As flores estavam exuberantes e as árvores de rosas selvagens, inclinando-se como exóticos guarda-chuvas florais, seguiam as fileiras de flores pálidas. As primeiras mangas chegavam do Paquistão. Grandes rodas de panneer, o queijo do campo, envolvidas em folhas verdes frescas, estavam à venda em carrinhos de mão em todos os mercados. Na planície do Shamali, alguns dos velhos vinhedos já tinham folhas, não estavam perdidos, afinal de contas, e os canais corriam após as chuvas intensas. O rio Cabul ia se avolumando em seu leito, levando embora o lixo de muitos anos de seca, carregando rio abaixo milhões de sacos plásticos. “Um presente para o Paquistão”, brincavam as pessoas em Cabul. Vendedores apareciam nas ruas com buquês de balões coloridos. Zemestan khalas shud. O inverno terminou. Por que eu não poderia acreditar na promessa de uma nova estação?

A angústia de Salma, minha jovem colega, apenas aumentava minha tristeza. Durante todo o impiedoso inverno e a violenta primavera, durante todas as passeatas anti-EUA, anti-Bush, anti-Karzai que estouravam em todo o país e em Cabul, no campus da universidade, durante todas as noites e dias difíceis do cativeiro de Clementina, Salma esperara para embarcar no ônibus americano. Ela tinha a passagem. Haviam lhe prometido uma bolsa integral em uma universidade nos EUA. Salma era muito inteligente e extraordinariamente criativa. Quando o Talibã interrompeu sua vida escolar, ela prosseguiu educando a si mesma e a centenas de outros em sua própria escola doméstica. Com a queda do Talibã, ela conseguiu se qualificar para a faculdade de Medicina, uma área de estudo reservada àqueles com as maiores notas nos testes de admissão para a universidade. No primeiro dia de aula, a ponta de sua burca prendeu na porta do carro e ela caiu e, quando o carro partiu, ele a jogou de costas no chão. Quando ela se recuperou da fratura no crânio, já havia desenvolvido o interesse por política internacional e adquirido a ambição de ser embaixadora do Afeganistão. Ela voltou à universidade para estudar Direito. Era o que ela estava fazendo quando recebeu o convite da embaixada americana para se candidatar a uma bolsa de graduação nos EUA.

Salma estava preocupada com seu nível de inglês. Ela aprendera o idioma praticamente sozinha, sem muito treino formal. Assim, ao contrário de meus alunos-professores secundários que sabiam gramática, mas não sabiam falar, Salma conseguia falar mas provavelmente não se sairia bem em uma prova formal de gramática. Ela se virou bem na FDH, onde trabalhava meio-período, período integral durante as férias escolares, mas não fazia muito trabalho escrito em inglês. Sua função era a de fazer pesquisas, organizar atividades e fazer lobby junto ao governo, tudo pela causa dos direitos da mulher. Em tudo isso ela era brilhante, embora precisasse de bastante ajuda quando se tratava de escrever um relatório em inglês. Os funcionários da divisão de assuntos culturais da embaixada disseram-lhe para não se preocupar. Ela era exatamente o perfil da jovem estudante que eles estavam procurando, uma futura líder de seu país, ousada e articulada. Ela já participara (em inglês) de conferências internacionais na Alemanha e na Noruega, e logo participaria de outra no Quênia. Além disso, disseram-lhe os funcionários de assuntos culturais, a primeira parada para todos os alunos seria um programa intensivo de língua inglesa com duração de alguns meses, em Washington, D.C., para prepará-los para iniciar a faculdade em setembro de 2004. Salma estava dentro. Ela só precisava aguardar a hora da partida.

O verão chegou e terminou, e também setembro. Daí disseram aos alunos que eles iram partir antes do fim do ano. Mas não partiram. Então os funcionários da embaixada disseram a Salma que o programa de bolsa de estudo para graduação não tinha dado certo. A empreiteira anônima a quem eles tinham transferido a tarefa de encontrar uma colocação para os alunos não havia encontrado faculdades dispostas a aceitá-los, de modo que os pedidos dos alunos estavam sendo “encaixados” dentro do Programa Fullbright para acadêmicos internacionais. Isso era melhor, disseram-lhe, porque a Fullbright era a melhor de todas. Salma me disse: “Eles são muito legais”. Mas ela ficou mais preocupada com seu nível de inglês. Ela não havia se candidatado à “melhor de todas” e os padrões agora certamente seriam altos demais para ela. Os funcionários a tranquilizaram e a mim, quando eu comecei a acompanhá-la a entrevistas na embaixada para ver o que eu poderia fazer para acelerar as coisas. Será que ela não deveria fazer um curso de inglês agora?, perguntei. Não, não precisa se preocupar. E, de qualquer forma, não daria tempo. Ela iria partir a qualquer momento. Alguns professores de Direito na universidade convidaram Salma a juntar-se a uma equipe dos quatro melhores alunos de Direito que iriam participar de uma competição em Washington, D.C., mas Salma disse que mais alguém deveria ter a oportunidade de ir aos EUA. Ela já embarcara no ônibus americano. Outra mulher foi em seu lugar.

O tempo passou. Salma contou que muitos dos alunos em seu grupo haviam recebido cartas dizendo que eles não se qualificavam mais para a bolsa de estudos porque estavam muito próximos da conclusão do curso. Eles haviam se candidatado no segundo ano e cursado toda a universidade enquanto esperavam a hora da partida. A própria Salma só tinha de cursar mais um semestre. Será que ela deveria retardar esse último semestre? Ou deveria seguir em frente e terminar a faculdade? Tínhamos tido problemas o ano inteiro na FDH tentando traçar um cronograma de trabalho que desse conta da iminente partida de Salma. Agora Salma estava tendo problemas para planejar sua própria vida. No meio dessa bagunça, havia os homens. Salma era muito bonita e charmosa e, aos 23 anos, já passara, há muito, da idade de casar. As mães e irmãs de pretendentes começaram a falar com a mãe de Salma. O pai determinou que ela deveria terminar seus estudos antes que se começasse a falar de casamento. Mas um pretendente a cortejava pelo celular. Outro começava a aparecer, como por mágica, aqui e ali na cidade, onde quer que Salma tivesse um compromisso. Outro que queria Salma para segunda esposa ameaçava raptá-la para forçar o consentimento de seu pai. Salma sabia que seu pai não poderia mantê-los a distância para sempre. Se ela fosse estudar nos EUA, ele poderia manter aberto esse pequeno espaço de liberdade até que ela voltasse; mas, se ela não fosse, esse espaço desapareceria e, com ele, as ambições de Salma para o futuro. Ela começou a ficar nervosa e chorosa. Não conseguia dormir. Ficava confusa, atraída pela possibilidade de um romance e receosa pelas evidentes limitações que isso traria. “Tenho de ir para os EUA logo”, disse.

Foi a mim que o funcionário da embaixada contatou, não a Salma, para dizer que ela ficaria em casa. Ela e quase todos os outros alunos. Meses antes, eles tinham prestado o TOEFL, o exame padrão de proficiência em inglês. Agora os resultados haviam chegado, e não eram bons. Só um aluno havia passado. Mas e o programa intensivo de inglês nos EUA? Não tinha dado certo. E aquelas promessas que uma nota baixa em inglês não iria prejudicá-los? Duas respostas dessa vez: primeiro, a pessoa que prometera tal coisa exorbitara de sua autoridade e, segundo, nenhuma promessa nesse sentido jamais fora feita. O funcionário era um jovem, enérgico e loquaz, provavelmente no início de seu treinamento diplomático.

“Ela não tem nada por escrito”, disse. “Nós nunca lhes damos nada por escrito.”

“Mas com certeza você sabe que os afegãos fazem negócios baseados na boa fé”, eu disse. Ele estava no Afeganistão há apenas algumas semanas.

“Bom, a gente não trabalha assim”, respondeu.

“É o que eu estou vendo. Mas você deve saber que em alguns anos esses alunos estarão dirigindo o país. Você tem certeza de que é inteligente destruir sua fé nos EUA?”

Ele riu daquilo que considerou um exagero. Eu vi, e não pela primeira vez, que ele não sabia nada dos afegãos que viviam ao redor do Forte Paranoia. “Isso é meio dramático”, disse. “Temos de manter os padrões.”

“E que padrões seriam esses?”

“Padrões acadêmicos. A Fullbright tem padrões acadêmicos muito elevados.”

Posteriormente, após minha volta aos EUA, soube que o Programa Fullbright não era de fato realmente um Programa Fullbright, mas uma versão diluída chamada Programa Afegão Fullbright de Intercâmbio que a USAID timidamente tentara reviver (depois de um intervalo de vinte e quatro anos) entregando-o à Universidade de Nebraska no Centro para Estudos Afegãos de Ohama. Mas, àquela altura, eu não tinha essa informação e estava furiosa demais para falar. Assim, o funcionário de assuntos culturais, agora empolgado, continuava: “Os padrões americanos”, dizia. “Vou dizer uma coisa, nós tivemos uma aluna — ela se qualificava, com certeza —, mas tivemos que retirá-la do avião”. Eu não sabia se ele estava falando literalmente. “No último minuto, soubemos que estava grávida. Ela estava planejando ter o bebê nos EUA. Pensou que conseguiria um passaporte de graça para a cidadania americana. Dá para acreditar? Isso é que é sangue-frio.”

“E você acha que esse era algum tipo de plano secreto? Ter um bebê?”

“Pode acreditar. É assim que eles são. Essa foi a primeira coisa que eu aprendi aqui: eles vão sempre se aproveitar da gente. Depois de tudo que fizemos por eles. Você pensaria que eles estariam gratos, mas não estão.”

 

 

Naquela noite, vi-me de novo em um jardim atrás dos muros de uma velha casa em Cabul. A casa fora convertida em apartamentos caros para estrangeiros e o jardim seria o cenário de um desfile de moda inaugurando um novo centro de design afegão. Zolaykha Sherzad, que chefiava o projeto, era filha de uma importante família que apoiava o rei e que fora exilada pelos comunistas. Ela crescera na Suíça, estudara arquitetura lá e no Japão, e trabalhou em Nova York, onde também estudou moda. Ela também deu aulas em Nova York, em importantes escolas de arte. Em 2000, fundou a Escola da Esperança, um projeto sem fins lucrativos que associava escolas em Cabul com escolas no Ocidente, incluindo duas em Nova York, para que as crianças pudessem aprender sobre as vidas umas das outras e criar uma “ponte comum” no caminho para a paz. Sua vida inteira, depois do choque inicial do exílio, tinha sido ligada à educação, sempre estudando, aprendendo, ensinando. Ela disse que os professores da escola suíça que acolheram uma criança refugiada e apavorada foram os que a ensinaram como viver a vida, afinal.221

Depois dos bombardeios americanos no Afeganistão, Zolaykha voltou a Cabul para ajudar. Ela encontrou viúvas afegãs que sabiam costurar e trabalhou com elas para desenvolver modelos que pudessem ser vendidos no Ocidente. Ela as ensinou a respeito de design, e elas ensinaram-lhe sobre tecidos afegãos clássicos, e como poderiam ser usados. Para começar o programa, ela conseguiu fundos da CARE, do programa das 1.000 viúvas chefiado por Clementina Cantoni. O show de moda dessa noite tinha sido planejado muito antes do sequestro de Clementina, e era dedicado a ela. Duas semanas mais tarde, Clementina seria libertada sã e salva, mas, essa noite, todos pensavam nela.

Zolaykha estava no terraço, serena, sorrindo, enquanto as modelos desciam elegantemente as escadas para fazer o circuito do jardim, apresentando a nova coleção para os convidados reunidos. As modelos eram estrangeiras, funcionárias do setor de ajuda, alemãs, inglesas, francesas, italianas, suecas, espanholas, holandesas, canadenses. Eram amigas de Zolaykha e, muitas delas, minhas também. Eu conhecia tanto o seu desejo de ajudar como o prazer que tinham em aprender com os afegãos. As roupas ecléticas em que desfilavam lembravam a “ponte comum” que elas e Zolaykha queriam construir. Mas, para mim, essa ponte parecia estar indo morro acima, das viúvas afegãs servindo no bufê até o público internacional, agora gastando seus dólares em trajes sofisticados que, certamente, atrairiam olhares em Paris ou Milão. Minha fé na possibilidade de pontes fora abalada pela conversa com o funcionário da embaixada que, com tanta diligência, protegia os interesses americanos das aspirações afegãs.

Em um canto do jardim estava um grupo de músicos afegãos, acompanhando o desfile com tambores e cordas. No meio deles havia um homem trajando um chapan esplêndido, um cantor famoso entre os afegãos. O mestre de cerimônias anunciara que os músicos se apresentariam mais tarde, do lado de dentro, no salão, e que o cantor iria nos agraciar com uma performance. Um frêmito de prazer percorreu os convidados. Mas logo, circulando para cumprimentar os amigos, pude ouvir dois americanos reclamando em voz alta.

“Que idiota”, disse um deles, referindo-se ao cantor.

“Eles são todos assim”, disse o outro. “Filhos da mãe arrogantes. Eu não sei quem eles pensam que são.”

Parece que eles haviam pedido ao homem que cantasse uma canção. Eles teriam que sair logo, disseram, então queriam que ele cantasse agora, aqui. Ele olhara os dois por um momento e recusara o pedido.

“Mas o que foi que ele disse a vocês?”, perguntei.

Eu pensava em todas as razões que ele poderia ter dado. Ele poderia ter dito que suas canções são obras de arte para serem apreciadas e não para serem ouvidas como pano de fundo em meio a conversas. Poderia ter dito que sua voz era um instrumento que tinha de ser protegido do ar poeirento e do frio da noite. Poderia ter dito que a perfeição da música residiria em ser apresentada com a acústica das paredes do salão. Mas ele não disse nada disso. Ele era um afegão, com uma dignidade afegã. Ele não estava acostumado a ter de se explicar. Ou talvez ele não visse muito sentido em expor seu ponto de vista a esses estrangeiros. Por suas próprias razões, o cantor declarara, simplesmente, o costume de sua própria cultura. Lá estava ele, sob as árvores que iam ficando escuras, olhando para os insistentes americanos a sua frente, apressados para saírem para a próxima festa, e o que ele disse foi: “Os afegãos não cantam no jardim”.

154 Nancy Hatch Dupree, “Education Patterns in the Context of an Emergency”, Refuge 17, nº 4 (outubro de 1998), p. 18-19.

 

155 Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, “Security with a Human Face: Challenges and Responsabilities”, Afghanistan Summary National Human Development Report, 2004 (Islamabad: Army Press, 2004), p. 6.

 

156 Nancy Hatch Dupree, “Education Patterns”, p. 18.

 

157 Nancy Hatch Dupree, “Education Patterns”, p. 18. Donald N. Wilber et al, Afghanistan (New Haven, Conn.: HRAF Press, 1962), p. 84.

 

158 Wilber et al, p. 84-85; Nancy Hatch Dupree, “Education ­Patterns”, p. 19.

 

159 O US Engeneering Team (USET) incluía as seguintes instituições: Carnegie Institute of Technology, University of Cincinnati, Georgia Institute of Technology, Illinois Institute of Techno­logy, Lehigh ­University, University of Notre Dame, Rice University, North Carolina State University e Purdue University. Ver Louis Dupree, Afghanistan (Princeton, N. J.: Princeton Universtiy Press, 1973), p. 598.

 

160 Louis Dupree, p. 516, 598-599.

 

161 Muhsen Nazari, “Afghanistan Ponders Privatization of Electricity”, Kabul Weekly, 11 a 17 de maio de 2005, p. 1.

 

162 Chris Johnson e Jolyon Leslie, Afghanistan: The Mirage of Peace (London: Zed Books, 2004), p. 11, citando The Guardian, 8 de agosto de 2002.

 

163 George Packer, “A Democratic World”, The New Yorker, 16 e 23 de fevereiro de 2004, p. 100.

 

164 Packer, p. 100.

 

165 A descrição de Reagan é citada em Mahmood Mamdani, Good Muslim, Bad Muslim: America, the Cold War, and the Roots of ­Terror (New York: Doubleday, 2004), p. 143.

 

166 Joseph E. Stiglitz, Globalization and Its Discontents (New York: Norton, 2003), p. 78.

 

167 John Brohman, Popular Development: Rethinking the Theory and Practice of Development (Oxford: Blackwell, 1996), p. 203.

 

168 Stiglitz, p. 78.

 

169 Brohman, p. 224.

 

170 Para os neoliberais, o sofrimento dos pobres é compensado pelo ganho dos poderosos tanto no país doador como no país que recebe. Uma das razões dos pobres ficarem mais pobres em uma nação doadora rica como os Estados Unidos é que seus empregos foram “terceirizados” para trabalhadores de países em que os pobres aceitam salários mais baixos. Assim, por meio da globalização, os pobres nos países ricos subsidiam os ricos nos países pobres, de modo que os ricos ficam mais ricos, e os pobres, mais pobres, em toda a parte. Ver James Goldsmith, “The Winners and the Losers”, The Case against the Global Economy: And For a Turn toward the Local, ed. Jerry Mander e Edward Goldsmith (San Francisco: Sierra Club Books, 996), p. 176.

 

171 Ian Traynor, “The Privatization of War, $30 Billion Goes to ­Private Military; Fears over ‘Hired Guns’ Policy”, The Guardian, 10 de dezembro de 2003, citado em Mamdani, p. 259.

 

172 Johnson e Leslie, p. 101.

 

173 Sarah Lister e Adam Pain, “Trading in Power: The Politics of ‘Free’ Markets in Afghanistan”, Kabul: Afghanistan Research and Evaluation Unit, junho de 2004, p. 8.

 

174 Mirwais Harooni, “Questions Surface on Roads Going Nowhere: Millions Wasted on Second-Rate Highways”, Kabul Weekly, 30 de março de 2005, p. 1, 4; David Rohde e Carlotta Gall, “Delays Hurting U. S. Rebuilding in Afghanistan”, New York Times, 7 de novembro de 2005, p. 1. Louis Berger recebeu o maior contrato da USAID no Afeganistão, conferido em 2002 e 2003, no valor de 665 milhões de dólares. Em parte, determinava a construção de 96 clínicas e escolas até setembro de 2004; mas, mais de um ano depois, apenas 11 prédios haviam sido completados.

 

175 Sobre a KPMG, “Criminal Case is Broadened over Tax Shelters at KPMG”, New York Times, 18 de outubro de 2005, p. C1, C9.

 

176 Rohde e Gall relatam que o contrato da Bearing Point “com o tempo chegou ao valor de 98 milhões de dólares”. “Windfalls of War”, um relatório do Center for Public Integrity de 30 de outubro de 2002, lista o valor original do contrato como sendo de 64 milhões de dólares. Ver www.publicintegrity.org. Algumas fontes não-oficiais dizem que o contrato chegou a 165 milhões de dólares.

 

177 Chris Johnson e Jolyon Leslie, experientes trabalhadores em ajuda humanitária, escrevem: “O que é notável no Afeganistão é a profundidade com que agências multilaterais, e mesmo algumas ONGs supostamente independentes, se envolveram no projeto do livre-mercado”. Johnson e Leslie, p. 101.

 

178 Entrevista não-oficial, Cabul, 18 de abril de 2005. Em documentos oficiais, e em minhas próprias notas de entrevista, há três grupos diferentes de números para o programa TEP. As metas geralmente são abaixadas quando as demandas do doador se chocam com a realidade dos fatos.

 

179 Para listas de empreiteiras, contratos e de suas contribuições de campanha, ver “Windfalls of War”.

 

180 A ajuda bilateral dos Estados Unidos para o Paquistão saltou de uma média de 40 milhões durante o período de 1998-2000, para 770 milhões de dólares em 2002. USAID Greenbook, citado em Romilly Greenhill e Patrick Watt, “Real Aid: An Agenda for Making Aid Work”, Johannesburg, S.A.: Action Aid International, junho de 2005, p. 19.

 

181 Rohde e Gall.

 

182 Sobre a história e os contratos da Creative Associates International, ver “Windfalls of War”.

 

183 “Windfalls of War”; Entrevista, funcionário do Ministério da Educação que pediu para permanecer anônimo, Cabul, 17 de maio de 2005. Em seu website, a Creative Associates International alega: “Os livros chegaram ao Afeganistão por via aérea e foram distribuídos antes do início do ano letivo”.

 

184 “Windfalls of War”, University of Nebraska em Omaha; Steve Coll, Ghost Wars: The Secret History of the CIA, Afghanistan, and bin Laden, from the Soviet Invasion to September 10, 2001 (New York: Penguin Press, 2004), p. 364.

 

185 Scott Bauer, “Peace Group: UNO Textbooks Distributed in ­Afghanistan Contributed to Terrorism”, AP, 16 de abril de 2005.

 

186 Christian Parenti, “Afghan Poppies Bloom”, The Nation, 24 de janeiro de 2005, p. 22; ver também Amy Waldman, “Afghan Route to Prosperity: Grow Poppies”, New York Times, 10 de abril de 2004; Carlotta Gall, “Afghan Poppy Growing Reaches Record Level, UN Says”, New York Times, 19 de novembro de 2004.

 

187 Parenti relata remunerações para mulheres no valor de até sete dólares por dia, p. 24.

 

188 Gall, “Afghan Poppy Growing Reaches Record Level, UN Says”.

 

189 Alfred W. McCoy, The Politics of Heroin, CIA Complicity in the Global Drug Trade, Afghanistan, Southeast Asia, Central America, Colombia, ed. rev. (Chicago: Chicago Review Press, 2003), p. 470. Para uma convincente discussão sobre o contexto atual das campanhas americanas, ver Mamdani.

 

190 Carlotta Gall, “Afghan Poppy Farmers Say Mistery Spraying Killed Crops”, New York Times, 5 de dezembro de 2004.

 

191 Gall, “Afghan Poppy Farmers Say Mistery Spraying Killed Crops”.

 

192 Waldman, “Afghan Route to Prosperity: Grow Poppies”.

 

193 Citado em Parenti, “Afghan Poppies Bloom”, p. 25.

 

194 Eric Schmitt, “Drug Eradication: Afghan’s Gains Face Big Threat in Drug Traffic”, New York Times, 11 de dezembro de 2004.

 

195 Mirwais Harooni, “Behind the Chinese Lantern, Guesthouses or Brothels?”, Kabul Weekly, 9 de fevereiro de 2005, p. 1, 4.

 

196 Greenhill e Watt, p. 31.

 

197 Anita Anastacio e Dawn Stallard, “Report Card: Progress on Compulsory Education, Grades 1-9”, Kabul Human Rights Research and Advocacy Consortium, março de 2004, p. 7.

 

198 “Current Realities and Future Prospects for Afghanistan’s Public Education System”, relatório provisório de organização não identificada, Cabul, 31 de outubro de 2004, p.12. Os números citados se referem apenas ao Ministério da Educação. Para todo o Setor de Educação, o gasto previsto era de 432,45 milhões de dólares, dos quais apenas 32% estavam disponíveis.

 

199 Anastacio e Stallard, p. 6.

200 Anastacio e Stallard, p. 1-2.

 

201 Amy Waldman, “In Afghanistan, US Envoy Sits in Seat of Power”, New York Times, 17 de abril de 2004; “US Ambassador Afghan’s Chief Executive?”, The Nation (Paquistão), 18 de abril de 2004; Thom ­Shankar, “Prison Abuse: US Army Inquiry Implicates 28 Soldiers in Deaths of 2 Afghan Detainees”, New York Times, 15 de outubro de 2004; Tim Golden, “In US Report, Brutal Details of 2 Afghan ­Inmates’ Deaths”, New York Times, 20 de maio de 2005; Reuters, “Karzai ­Demands Custody of All Afghan Prisoners”, New York Times, 22 de maio de 2005; “Karzai Fails to Gain Control fo Afghan Prisoners Held by US Authorities”, Kabul Weekly, 25 de maio de 2005, p. 1.

 

202 Ramtanu Maitra, “The Party’s over for Afghan NGOs”, Asia ­Times, 21 de abril de 2005. As reclamações de Bashardost eram populares entre os habitantes de Cabul que lhe deram a terceira maior votação nas eleições parlamentares de 2005.

 

203 Salem Mandokhil, “Number of Dead Still Unknown in Ghazni”, Kabul Weekly, 6 de abril de 2005, p. 1.

 

204 “Karzai Asks for More Control as Government Questions NGO’s Accountability”, Kabul Weekly, 6 de abril de 2005, p. 1.

 

205 “Italian Aid Worker Abducted in Kabul”, Kabul Weekly, 18-25 de maio, p. 1.

 

206 Carlotta Gall, “Ambush Kills 5 Aid Workers; Taliban Claims Responsability”, New York Times, 2 de junho de 2004.

 

207 Paul O’Brien, “PRTs — Guaranteeing or Undermining a Secure Future in Afghanistan?”, FMR, setembro de 2003, p. 38.

 

208 O’Brien, p. 38.

 

209 Foi apenas em dezembro de 2005 que se anunciou que a OTAN expandiria a ISAF, liderada pela OTAN, que opera no Afeganistão sob um mandato da ONU para a manutenção da paz. Havia previsões de que até junho ou julho de 2006 mais seis mil soldados da OTAN iriam se juntar aos dez mil que já operam em Cabul e em certas regiões a norte e oeste do Afeganistão. O plano previa que os EUA reduzissem, em quantidade proporcional, o número de soldados e que entregasse à OTAN a maioria de suas operações ao sul, coincidentemente em um momento em que as forças do Talibã ao sul estão atingindo seu maior poder de fogo desde a queda do governo Talibã. Ver Carlotta Gall, “As NATO Forces Ease Role of G.I.’s in Afghanistan, the Taliban Steps Up Attacks”, New York Times, 11 de dezembro de 2005.

 

210 Mike Dougherty, “American Killed in Bombing Was Due Home Soon”, New York Times, 25 de outubro de 2004.

 

211 Carlotta Gall, “3 Election Workers Are Abducted in Afghanistan”, New York Times, 28 de outubro de 2004; Reuters, “Kidnappers Free Three UN Workers in Afghanistan”, New York Times, 23 de novembro de 2004.

 

212 Reuters, “British Man Shot Dead in Afghan Capital”, 8 de março de 2005.

 

213 “American Escapes Kidnap Attempt in the Capital”, Kabul Times, 12 de abril de 2005, p. 1.

 

214 Nadene Ghouri, “Clementina Cantoni: A Force for Good”, ­Kabul Weekly, 25 de maio de 2005, p. 2.

 

215 Carlotta Gall, “Laura Bush Carries Pet Causes to Afghans”, New York Times, 31 de março de 2005.

 

216 Gall, “Laura Bush Carries Pet Causes to Afghans”. A American International School, de 1a série à 3a série do ensino médio, abriu em novembro de 2005 com 160 alunos. Anuidade: 5 mil dólares. Afirma-se que há bolsas de estudo disponíveis para crianças afegãs com “forte habilidade em inglês”.

 

217 Ver especialmente “A Call for Justice: A National Consultation on Past Human Rights Violations in Afghanistan”, Kabul: Afghanistan Independent Human Rights Comission, n.d.

 

218 A própria “caçada” se tornou, mais tarde, polêmica. Durante a campanha presidencial de 2004, o senador John Kerry afirmou que os Estados Unidos deveriam estar lutando contra a Al-Qaeda e o Talibã. Mas o governo Bush alegou que o estava fazendo quando, de fato, começara a deslocar tropas envolvidas na “guerra” do Afeganistão, alguns meses depois de ter atacado o país, em preparação para o ataque ao Iraque. Foi o que relatou o genereal Tommy Franks ao senador Bob Graham em fevereiro de 2002. Ver Bob Graham, “Bush at War: Eye on the Ball?”, New York Times, 24 de outubro de 2004.

 

219 Bhatia et al, p. 1.

 

220 Citado em Bhatia et al, p. 1.

221 Entrevista com Zolaykha Sherzad em Cabul, em 12 de março de 2005. Sobre a School of Hope, acesse: www.sohope.org; Julie ­Salamon, “From a Crisis, Children Reach across the World”, New York Times, 15 de novembro de 2004.