Já sentia no ar que não dava mais para continuar fazendo parte daquele programa de reportagens investigativas. Os últimos temas andavam, misteriosamente, muito diferentes da proposta inicial e eu estava me sentindo um peixe fora d’água. Fora o fato de estar adentrando um universo profissional muito distante do meu hábitat natural, que é compor, tocar, cantar e escrever. Todos aqueles sentimentos misturados apontavam para um fim bem próximo.
A pauta em questão era sobre o fenômeno sertanejo universitário. E eu logo pensei: isso pode ser muito interessante! Poder investigar algo que sempre esteve aquém da minha compreensão seria uma oportunidade única. Afinal de contas, tudo o que eu queria daquele programa era ter a chance de conhecer mais a fundo certas realidades do nosso país e que somente naquelas circunstâncias jornalísticas poderia realizar, me embrenhando na vida dos que iria investigar e estar com eles durante as gravações.
E, de fato, passei por aventuras incríveis, conheci pessoas de diferentes partes do Brasil, de diferentes mundos e submundos, personagens singulares que muito me ensinaram e muito me emocionaram no pouco tempo em que permaneci por lá. Em resumo: foi uma experiência profunda para minha compreensão mais acurada do Brasil. E material farto para compor e escrever.
O início do fim começou com um incidente que já vinha precedido por alguns outros, portanto o clima já era de desgaste.
Tinha sido escalado para viajar até Curitiba e fazer uma entrevista com vários astros do sertanejo universitário num festival de música sertaneja (aprendi que boa parte dos sertanejos não universitários faz questão de deixar claro que não faz parte do movimento).
Acabei por saber do roteiro quando cheguei em casa, lá pelas oito da noite (nós sairíamos às seis da manhã do dia seguinte), e, para meu total espanto, vinha com uma discreta recomendação para que a reportagem fosse... “positiva”. As perguntas giravam em torno de uma simpatia e de uma admiração que, positivamente, eu nunca tivera, formuladas como se eu fosse um fã de carteirinha do gênero. Bem, só me restou ignorar a viagem, mandar um e-mail avisando que não participaria daquela presepada e mergulhar na cama para dar uma lida num bom livro antes do sono dos justos.
Ainda bem que tinha por contrato essa proteção: se não concordasse com a pauta, não participaria do programa, contudo não era um recurso que gostaria de utilizar, principalmente com toda a equipe me esperando no aeroporto. Mas não havia outra opção.
Não é preciso dizer que a produção não achou muito incrível a minha retirada estratégica.
Com o clima cada vez mais tenso, fizemos uma reunião num restaurante na Vila Madalena com a rapaziada da produção. Expliquei a eles o óbvio: “Gente, vocês têm que entender a minha situação. Não é que eu esteja a fim de defenestrar os artistas sertanejos universitários, mas, convenhamos, ‘sugerir’ uma pauta ‘positiva’ para mim, o cara que mais desanca o estilo no país, é no mínimo surreal. Seria mais produtivo vocês escolherem outro repórter para fazer esse serviço. Vocês não acham?”
Eles alegaram que seria muito interessante para o público que justamente eu participasse da pauta e que estavam planejando uma outra reportagem, dessa vez numa casa de shows aqui em São Paulo.
E não seria mais um festival, seria um show de um só artista, o atual estouro nas rádios de todo o país. Seria um grande encontro, segundo eles. Ponderei estar com certo receio de aparecer num reduto sertanejo universitário e sugeri a eles que providenciassem algum tipo de segurança, pois, na semana anterior, num depoimento colhido no meio duma gravação de um programa da série, em Mato Grosso do Sul, eu, por acidente, acabei dando uma desancada num outro famoso artista do segmento, e, como era de se esperar, não foi exatamente amor o que recebi de seus fãs.
Nas redes sociais espocavam as blasfêmias das mais diversas, as ameaças mais terríveis, os impropérios mais furibundos, as imprecações mais odiosas. Argumentações, por sinal, pouco esclarecidas e mal-escritas, mesmo se tratando de um gênero oriundo da nossa elite estudantil.
Chegavam de todos os sites, blogs, twitters imprecações acompanhadas por verdadeiros monumentos da ortografia capenga e invariavelmente seguidas pela clássica pergunta: “Quem é você, seu roqueiro decadente, para falar do meu amado fulano de tal?” etc. etc.
Sendo algo tão recente, no mínimo estava cauteloso quanto a minha visita ao local e, humildemente, insisti na presença de alguns seguranças espalhados no recinto, só para me dar algum alento moral, ou, pelo menos, que conseguissem uma entrada para a minha mulher me acompanhar. Eles me disseram que não havia jeito de colocar mais ninguém pra dentro.
Relembrei aos produtores do programa que, apesar de estar atuando como repórter naquele momento, na verdade minhas funções eram escrever, compor, tocar, e tocar um estilo bastante adverso àquele em pauta, que tinha lá o meu público, minhas opiniões, minhas posições, minha história já bem definidas. Algo diferente de um repórter normal, um indivíduo supostamente comprometido com a imparcialidade (muito embora a condução da pauta estivesse sendo bem parcial).
Eles contra-argumentaram me explicando o quanto ficaria mais verdadeiro, mais emocionante, se eu fosse acompanhado apenas da equipe (um diretor, um câmera e um cara do som), e esse contingente de pessoas seria mais do que suficiente para a minha segurança. E sobre o intrigante fato de a pauta estar toda direcionada para ser simpática ao gênero em questão, eles prontamente me disseram que eu receberia uma nova na hora da saída para o local. Que ficasse tranquilo.
Como estava a fim de fazer o meu trabalho direito, concordei com a aventura acreditando na palavra deles. Afinal de contas, já havia realizado uns cinco programas e, por mais difíceis e complicados que tenha sido gravá-los, estava me saindo louvavelmente bem, fora o fato de que tudo aquilo poderia se tornar material para o meu trabalho futuro, tanto de compositor como de escritor. Pois bem, meio ressabiado, combinamos a saída da produtora às oito da noite.
Quando chego, percebo mais uma pessoa na nossa trupe: a namorada do diretor! (Fiquei muito irritado com aquela surpresa! Afinal de contas haviam barrado minha mulher.) Estava claro que não se viam há muito tempo e deviam ter muito assunto para colocar em dia.
Entramos na nossa van (eu sempre viajo de copiloto) e lá fomos nós em direção à casa de espetáculos. Mas tinha um detalhe: o clima de amor entre o casal reencontrado era tamanho que, por tal motivo, não houve muita conversa, nem sobre a pauta nem a respeito de qualquer combinação de como iríamos nos posicionar naquela complexa reportagem. Isso alteraria dramaticamente o resto da nossa jornada.
Logo quando chegamos, perguntei se eles queriam fazer uma externa de apresentação (de praxe), mas o diretor não manifestou muito interesse e disse para entrarmos logo. Ao observar a entrada, fiquei impressionado com o tamanho do local. Parecia uma Disneylândia agrária! Um quarteirão inteiro! Recebemos aquelas fitinhas de botar no pulso e lá fomos nós adentrando aquele lugar de dimensões monumentais.
Dava para perceber que era uma casa de altíssimo nível. Pessoas de aspecto próspero, muito bem-tratadas, ocupavam as dezenas de ambientes que o lugar oferecia. Havia vários auditórios de vários tamanhos, pistas de dança, chafarizes, cascatas artificiais, restaurantes, bares, tudo decorado num estilo (aí me caiu a ficha)... num estilo country!
Quando falo country, quero me referir ao country americano.
Fiquei muito surpreso, pois, na minha santa ingenuidade, imaginei se tratar de algo relacionado a um conceito mais nacionalista, pois o universitário, em geral, é sempre tão fiel, tão preocupado em defender nossas raízes. Era um peso para duas medidas, pois todos nós sabemos que o típico universitário culturalista abomina tudo o que vem de fora, como, por exemplo, o rock, sempre tão criticado por ser coisa de alienado, colonizado cultural, coisa de americanizado.
Sinceramente, em virtude disso tudo, minha expectativa era encontrar uma temática mais para o agreste nordestino ou para um tema pantaneiro, ou, quem sabe, sobre sertões mineiros, ou enaltecer o pampa gaúcho ou o Recôncavo Baiano, tudo menos o que estava se desvendando diante dos meus olhos.
Chegamos a um recinto com uma enorme placa de madeira, bem ao estilo texano, que dizia ser uma barbecue. O que estava escrito na placa? Para meu total espanto, o letreiro gritava: RESTAURANTE JOHN WAYNE (!). Adentramos o luxuoso e amadeirado ambiente, pé-direito altíssimo, salão amplo, quando percebo, perplexo, a existência de fotos enormes penduradas nas paredes, fotos de dezenas de caubóis americanos: Clint Eastwood, Buffalo Bill, Butch Cassidy, Roy Rogers, e logo comecei a matutar... rapaz, se isso aqui é um reduto de sertanejo universitário, um gênero que supostamente resgata as nossas raízes, como ainda não percebi a presença de um mísero Tinoco? Nem um só Tonico, nada de Pena Branca nem Xavantinho, nada de Jararaca, Ranchinho ou algo mais recente, como Sérgio Reis ou Almir Sater, ou Helena Meirelles... procurei inutilmente o Renato Teixeira, e neca... Intrigante.
Ali parei, pensei, filosofei: que diabos esses universitários estão fazendo para buscar as nossas raízes em um lugar como... o Texas? Para onde o cretinismo cultural nos está levando nessa mistura pavorosa de sanha boçal capitalista com imbecilidade crassa da esquerda nacionalista?
Pois não apenas a casa era temática; as pessoas também! Todos de chapéus de caubói, cintos, botas, só faltavam as cartucheiras. E, caso você não estivesse devidamente aparatado para o evento, havia um minishopping temático, em que você, em dez minutos, estaria pronto para fazer parte de qualquer filme de bangue-bangue.
Foi quando o rapaz da nossa produção me sugeriu se, por acaso, eu não estaria a fim de me vestir de caubói para a entrevista...
Não é necessário entrar em detalhes acerca da minha resposta, não é mesmo?
Definitivamente as coisas não batiam. Era uma atmosfera um tanto esquizofrênica. A proposta inicial não se adequava ao cenário. Sim, porque desde que a UNE se tornou chapa branca muitas coisas esquisitas vêm acontecendo com essa classe estudantil. Além do inédito e histórico silêncio bovino da entidade em relação aos reveses e lambanças monumentais do governo (que não são poucos), o termo “universitário” virou uma espécie de subcategoria para variados estilos autóctones, como o forró, o samba, o choro, o sertanejo, a bossa nova, só que, invariavelmente, todos eles de uma mediocridade inexplicável.
Você pode reparar, quando aparece algum estilo com a grife “universitário”, pode esperar por algo abominavelmente ruim, malfeito e postiço. Nada é de verdade. Tudo vira um pastiche horroroso. Tudo em nome de uma estrambólica brasilidade.
E lá estava eu, no meio daquela luxuosa e gigantesca casa de espetáculos, desnorteado com a enxurrada de informações díspares a me confundir a cabeça, de maneira tal que nem tinha me lembrado da paúra dos dias anteriores. Junto da equipe, me sentia camuflado, mas isso não duraria muito.
O nosso diretor apaixonado e sua namorada, os dois sempre em enlevo amoroso, abandonaram de repente o recinto aos beijos e abraços, sem me notificar absolutamente nada. Foram, creio eu, procurar alguma coisa interessante num outro ambiente e os dois outros também se dispersaram para outras salas a catar supostas curiosidades que pudéssemos registrar. De repente, lá estava eu, plantado feito dois de paus, sozinho no meio do restaurante John Wayne. Era tudo o que eu não queria!
No meu entendimento, material jornalístico não faltava por ali. O absurdo imperava e bastaria ligar a câmera para brotarem as mais insólitas cenas. Mas depois vim a perceber que esse não era o intuito da pauta.
Meio que para disfarçar meu constrangimento, ao mesmo tempo registrando para meu acervo pessoal, desandei a filmar com o meu iPhone as paredes, os caubóis, as batatas fritas, o andar cadenciado dos garçons, a fumaça da churrasqueira, as carnes que saíam apetitosas do grill, as figuras que entravam e saíam... mas o assunto acabou e ninguém da nossa equipe dava sinal de vida. Aquele lugar era grande o bastante para, sem uma logística organizada, facilmente nos perdermos uns dos outros. E foi o que aconteceu.
Comecei a ficar apreensivo com certos olhares um tanto surpresos e pouco amistosos de alguns rapazes bem-nutridos, invariavelmente trajados de camisas xadrez preto e branco, cinturões de enormes fivelas douradas, botas texanas e cortes de cabelo meio amarfanhados com uns topetes escorrendo, oblíquos, pelas testas, dando a todos um ar ligeiramente oligofrênico.
Pensei cá com meus botões: “Fodeu! Isso não vai acabar bem.” Comecei a ficar nervoso... O local continuava recebendo uma enxurrada de pessoas, todas aparentando, como havia dito, muita prosperidade. Garotas de cabelos compridos, meio alourados, com roupas de grife, muitas de sainhas sumárias, tipo abajur de xoxota, todas tratadíssimas e muito semelhantes umas com as outras. Parecia que tinham saído de uma produção em série.
Mas o clima não seria apenas de animosidade, não! De repente, fui reconhecido por simpáticas senhoras, logo em seguida, por um grupo de amigos de trabalho e, numa reação em cadeia, um monte de pessoas sorridentes pediu para bater fotos com a minha pessoa, e eu, mesmo intrigado e surpreso com aquela atitude tão amistosa, na minha simpatia de sempre, comecei a posar para inúmeros populares. Parecia um Papai Noel de shopping: abri um sorriso contínuo e fiquei perambulando de um lado para o outro atendendo pacientemente a todas as solicitações.
Não pensem que o meu nervosismo diminuiu. Atinei logo em seguida que aquele monte de fotos iria direto para o Facebook, para o Twitter, para o escambau a quatro, e logo imaginei a cara de espanto dos desavisados ao me flagrarem num reduto country, aparentemente enturmadíssimo, cheio de aficionados vestidos a caráter ao meu redor, em plena confraternização! A minha cara era de bunda, pois após alguns cliques, sempre demorados (ou a pessoa não sabia usar direito o aparato ou a bateria estava fraca), não conseguia controlar a minha mímica facial. Estava com cãibra nas bochechas. Não conseguia me desvencilhar do meu sorriso!
Um início de pânico se abateu sobre mim, quando acontece algo mais incrível ainda: me aparece uma menina do nada e me sapeca um abraço apertado! Eu gelei e ela se apresentou: “Oi! Lembra de mim? Eu sou a fulaninha de tal, que namorou um cantor da banda punk XYZ!” (Ela me disse o nome da banda, mas não consegui ouvir direito.)
Honestamente, eu não me lembrava nem dela nem da banda punk. Porém, só o fato de haver naquele recinto alguém que inexplicavelmente fosse de uma cultura mais próxima à minha me deixou numa espécie de estado de euforia histérica. Peguei sua mão e disse: “Por favor, me leva até aquele bar que eu preciso tomar uma dose de alguma coisa forte.” (Com toda aquela confusão na cabeça, não havia me lembrado de que não bebia havia umas duas semanas.)
Entramos na fila e o carinhoso assédio continuava. Eu prosseguia nas minhas poses com a mesma cara de bunda involuntária, com aquele sorriso inexpugnável, e os rapazes menos receptivos à minha pessoa rondavam um pouco mais afastados. Deviam estar um pouco arrefecidos e frustrados diante da minha retumbante popularidade. Conseguimos chegar ao bar (que naquele momento estava apinhado de gente) e logo fiz amizade com o garçom pedindo: “Amigo, capricha pra mim um caubói de Jack Daniel’s, por favor!” O garçom, muito solícito, me deu uma generosa dose. Meu desconforto e nervosismo eram tamanhos que ainda não havia largado a mão da ex-namorada do cantor da banda punk. Minhas mãos suavam. Me sentia abandonado.
Pedi a ela para me acompanhar de volta ao restaurante John Wayne e me reconectar à equipe, até aquele momento evaporada. Tudo que queria era fazer logo a tal entrevista e dar o fora. Chegamos lá, e nada... Meu coração disparou. Eu a convidei para dar um rolé pelos ambientes do local (sempre segurando sua mão, meio que a usando de escudo humano) para tentar achar meus colegas e ver se a gente começava logo com a reportagem, pois não me sentia nada confortável em meio àquela situação, e nada de a equipe aparecer.
Outra vez, não conseguimos encontrar ninguém, por isso implorei a minha nova amiga que voltássemos ao bar para eu tomar mais uma dose do velho Jack. Dessa vez, para economizar tempo, adquiri logo três doses. Cheguei ao balcão já como um velho habitué e bradei ao garçom: “O de sempre, amigão!”
Bebi o primeiro caubói, dei um suspiro de ansiedade e percebi que precisava logo tomar outro: “Mais uma! Caprichada!” O garçom encheu mais um copo e eu o sequei numa golada só, como nas vezes anteriores. A partir daquele instante, talvez pela minha pouca resistência de duas semanas de abstinência, tudo começou a ficar nebuloso, como se eu estivesse assistindo àquela cena numa outra sala, num outro lugar... Os pedidos por fotos continuavam voluptuosos e, no desespero, pedi a quarta dose.
Ali o bicho começou a pegar e, logo em seguida, chega esbaforida a equipe, com o diretor e sua namorada um tanto amarfanhados, afirmando que me procuravam desesperadamente. Não havíamos filmado nada até aquele instante. Me colocaram o microfone de lapela e um deles me avisou que o cantor a ser entrevistado estaria num local específico para conceder a entrevista à imprensa. Eu perguntei: “Ué, não era uma exclusiva?” Eles me explicaram que havia muitos jornalistas, várias emissoras de TV e nós teríamos que ser breves e objetivos. Foi somente naquele momento que o nosso diretor me deu um papel com a tão solicitada pauta, e então percebo, incrédulo, se tratar do mesmo conteúdo daquela primeira lá de Curitiba! Com a mesma recomendação: ser uma matéria “positiva”!
Eu olhei para o diretor e perguntei: “Pô! Você não poderia ter me dado as perguntas antes? Eu já disse que não faço a entrevista com essas perguntas!” O diretor exigiu que eu cumprisse a pauta literalmente, pois o programa precisava de mais audiência, e disse que aquele segmento (sertanejo universitário) era muito importante para o programa etc. etc.
Eu já estava completamente bêbado, mas, como sou um excelente profissional, consegui chegar incólume até o local combinado. No entanto, confesso a vocês que, naquele momento, a minha paciência havia se acabado.
Jamais trataria mal quem quer que fosse, mas não abriria mão de deixar a minha opinião bem clara para o público. Estava, como se dizia, puto nas calças. Já que a bebida começava a potencializar os seus efeitos, respirei fundo e me concentrei para não arrastar a língua, não falar abobrinha, não perder o fio da meada e, antes de mais nada, ser gentil com o artista, pois eu, como colega, sei a merda que é um jornalista querendo te foder numa entrevista.
Achei uma excelente oportunidade para dar um bom exemplo aos espectadores sendo amistoso e respeitoso com o cantor e mostrar ao público em geral que devemos separar o artístico do pessoal. Afinal de contas, tenho vários amigos que me acham, por ser um músico de rock, uma verdadeira porcaria, e isso não interfere em nada na nossa amizade, porque eu também acho uma merda o que eles gostam e a gente se diverte muito a esculhambar amorosamente uns aos outros.
Pois bem, o artista a ser entrevistado se mostrou uma doce criatura, muito educado, muito simpático e me recebeu com o maior carinho.
Acho que devemos expressar nossas opiniões, ser até bem duros quanto ao que achamos das coisas, mas jamais covardes oportunistas. Afinal de contas, o repórter sempre está no domínio (mas o conteúdo do programa é a produção que define e edita).
Não é preciso dizer que ignorei por completo a tal da pauta. Batemos um papo muito amistoso e tentei, no meu delicado estado etílico, explicar a ele que, como colega, respeitava sua trajetória, entendia o quanto era difícil se destacar no cenário nacional, sabia que ele não era nenhum estreante, tendo já muita estrada nas costas e isso era motivo de admiração, etc. e tal... E emendei: “Muito embora, com todo o respeito...” E confessei honestamente a ele a aversão que tinha por aquele estilo musical (eu tenho a impressão de que essa parte não foi ao ar).
Ele, sempre muito querido, deu uma boa risada, levou o comentário na esportiva e emendou outro assunto sobre o título de uma canção do seu novo sucesso, que havia sido composta, se não me engano, por uma compositora do Sul, e eu, na minha santa ignorância, como era de se esperar, nunca havia ouvido falar da tal música.
Depois, vim a saber que a referida canção era um mega-hit nacional, uma coqueluche nas pistas, nos rodeios e nas estações de rádio, e me senti um habitante de um universo paralelo. Para piorar, nem havia percebido certo duplo sentido maroto no seu título.
Vocês não podem imaginar a repercussão (péssima) que teve a minha inocente gafe. Nas redes sociais, nas revistas de fofocas, nos sites especializados, nos blogs dos entendidos, todos me crucificavam simplesmente por eu não ter a menor ideia da existência daquele hit! Daquele, desde já, clássico do cancioneiro popular brasileiro.
Percebi que havia cometido uma heresia, como se estivesse ignorando a Nona de Beethoven!
“Isso é uma terrível falta de profissionalismo”, gritavam iracundos e em coro diversos jornalistas dos mais diversos veículos. Na internet, fui motivo de chacota. O Brasil inteiro conhecia a música, menos eu.
O resto do pessoal, que assistiu ao programa e que estava doido para a minha tão esperada esculhambação ao simpático cantor, simplesmente me taxou de vendido, entreguista e puxa-saco.
A entrevista acabou logo em seguida e nos abraçamos com sinceridade (ele realmente é uma pessoa muito querida).
É, meus amigos, vos digo uma coisa: a partir daquele momento eu saí inteiramente do ar. Deixei toda a equipe para trás sem dizer uma palavra e atravessei o salão com o microfone de lapela ainda ligado, a procurar a saída.
A minha nova amiga, a solidária ex-namoradinha do cantor de banda punk, evaporou-se e, àquela altura do campeonato, tudo o que queria era sair correndo daquele lugar tão estranho. Bêbado do jeito que estava, devo ter demorado a madrugada inteira para achar a saída. Trôpego, entrava e saía naquele labirinto de ambientes insólitos (dei sorte de ninguém ter encrencado comigo), até que, finalmente, enxerguei o portão de entrada acreditando ser o de saída.
Acredito, em virtude do meu estado, que ninguém tenha me impedido de sair pela entrada. Alcancei com dificuldade a rua e lá, no piloto automático, parei um táxi e implorei esbaforido ao motorista que me tirasse imediatamente daquela área e me levasse direto para casa.
Sabia que jamais poria os pés naquela produtora outra vez, sabia que nunca mais gravaria para aquele programa outra vez. Olhei para o microfone pendurado na lapela, que ainda estava ligado, dei uma risada de escárnio e devo ter dito algo como “Fodam-se todos vocês, seus babacas. Fui!”.