PRISÃO NA DITADURA:
“ÉRAMOS MAIS DIFÍCEIS
DE DECIFRAR”

 

“Só eu posso chorar quando estou triste”

“Cérebro eletrônico”

 

Naquele tempo, o corriqueiro som da campainha podia mudar destinos. Corria o ano de 1968, aquele em que o mundo explodiu em revoluções juvenis, enquanto a ditadura militar endurecia no Brasil. Na manhã do dia 27 de dezembro, na avenida São Luiz, centro de São Paulo, Gil encontrava-se trancado no quarto com Sandra Gadelha, a irmã de Dedé, mulher de Caetano, que ele começava a namorar. Matutavam, provavelmente, a própria revolução ou os rumos da Tropicália, quando Dedé bateu na porta: “Os militares estão aqui. Querem levar Caetano”. Gil ficou no quarto com a mulher. Caetano foi para a sala conversar com os indesejados visitantes. A essa altura, Gil havia se separado de Nana Caymmi e aquele começo de namoro com Sandra acabaria num casamento que duraria os próximos dez anos. Passado alguns minutos, Caetano voltou ao quarto e avisou: “Eles foram embora. Mas disseram que vão voltar. Vão me levar, eu sei”. Não supunham que Gil estivesse lá e avisaram que iriam também à sua casa. Gil saiu apressado, caminhou até o próprio apartamento, a poucos metros da casa do amigo. “Eu tinha a sensação de que tinha que viver com ele (Caetano) aquela história toda. O que acontecesse com um precisava acontecer com o outro.”

E assim foi. Meia hora depois de entrar em casa, Gil recebeu a visita da polícia. “Nós vamos te levar, você está sendo chamado ao Rio de Janeiro para depor”, anunciaram. Deixaram que pegasse apenas uma muda de roupa. Gil seguiu na viatura para o apartamento de Geraldo Vandré. Os policiais subiram e voltaram dez minutos depois, sem encontrar o dono da casa. Em seguida, estacionaram na porta de Caetano. Enfiados no banco de trás de um camburão, os dois baianos deixaram São Paulo a caminho do Rio de Janeiro. Durante a viagem pela Via Dutra, o rádio transmitia notícias sobre a Apollo 8, a primeira nave americana a levar homens próximo à Lua. A missão, tripulada pelos astronautas Frank Borman, Jim Lovell e William Anders, fazia parte do projeto Apollo e durou seis dias, entre 21 e 27 de dezembro, abrindo caminho para o pouso histórico que aconteceria sete meses mais tarde, com a Apollo 11. Caetano e Gil não estavam seguindo para a Lua, sabiam disso. Mas desconheciam o próprio destino.

“Não fomos maltratados. Íamos ali sentados no banco de trás, o motorista e outro rapaz à frente. Não tínhamos a menor ideia para onde estávamos sendo levados.” Eles, de certa forma, já esperavam por aquele momento. Dias antes, 13 de dezembro, um decreto fora anunciado na televisão por Luís Antônio da Gama e Silva, o ministro da Justiça do general Costa e Silva, numa das noites mais sombrias da história do Brasil. A partir do AI-5, a música, assim como todas as artes, sofreu censura e os artistas começaram a ser perseguidos. A era de ouro dos festivais, e a geração brilhante que eles revelaram, sofreria um golpe mortal. A criação artística passaria longos anos submetida à censura e à repressão. O jornalista e crítico musical Tárik de Souza afirmou certa vez que “o AI-5 promoveu a MPB à inimiga cultural número um do regime militar”. Caetano e Gil foram presos, interrogados, confinados na Bahia e depois exilados na Inglaterra. Geraldo Vandré exilou-se no Chile e na França, e, ao voltar, em 1973, foi obrigado a gravar uma declaração renegando a sua música e elogiando o regime militar. Edu Lobo deixou o país para estudar orquestração em Los Angeles. Chico Buarque, que tinha viajado para um festival na Itália, foi convencido a adiar sua volta e ficou um ano por lá.

Antes do AI-5 espalhar de vez o terror, o cenário político fervia, borbulhava, transbordava. O grande marco foi a célebre Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, no dia 26 de junho de 1968. Naquele dia, o país assistiu algo inédito: estudantes, intelectuais, professores, escritores, religiosos... Gente de diversas camadas sociais se juntou na Cinelândia, no centro da cidade, para marchar em direção à Candelária, no maior protesto político até então contra o regime militar. Gil estava lá, militando e protestando contra o regime no dia do seu aniversário de 26 anos. “Mas você vai passar seu aniversário numa passeata?”, questionou Nana. De braços dados com ela, Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Odete Lara, Ítala Nandi, Norma Bengell, Tônia Carrero e muitos outros, Gil e seus colegas artistas se uniram aos estudantes para se manifestar contra a censura e a repressão às liberdades democráticas.

Desde que a Tropicália explodiu, Gil, porém, vinha sentindo um pânico inexplicável, uma coisa estranha, um aperto no coração. Era como uma premonição, uma sensação de que aquilo não ia dar certo. O movimento tropicalista batia de frente com o status quo. E batia de frente até mesmo com os interesses da própria classe artística, que não via com bons olhos aquelas guitarras e afins.

“Isso fazia com que nos sentíssemos mais solitários, desamparados, fragilizados no ímpeto mesmo de fazer alguma coisa. Eu tinha essa desconfiança. Havia um regime militar instalado com tudo que já se anunciava de absurdo, de intolerância, eu estava vendo aquilo ali acontecer. E pensei: mais cedo ou mais tarde a gente pode ser feito de vítima também, eles podem nos pegar.”

Enquanto isso, o mundo inteiro explodia, numa espécie de catarse. Nos EUA, a façanha espacial ganhou contornos políticos. Em janeiro, os soldados americanos que lutavam na guerra do Vietnã (1959-1975) haviam sofrido um grande revés militar quando as forças guerrilheiras apoiadas por Hanói e lideradas pelo general Vo Nguyen Giap, numa surpreendente ofensiva, tomaram de assalto 36 cidades sul-vietnamitas, e entraram em Saigon, onde chegaram a ocupar a embaixada americana. Ficou conhecida como a Ofensiva do Tet e mostrou aos americanos que os vietnamitas do norte eram capazes de vencer a guerra. Mas não foi só isso. Em abril, Martin Luther King, líder da luta pelos direitos civis nos EUA, fora assassinado, e as ruas foram tomadas por manifestações violentas. O país ainda acompanhara o choque entre a polícia e manifestantes contra a guerra nas ruas de Chicago, durante a Convenção Nacional Democrática. Em junho, o candidato presidencial Bob Kennedy foi assassinado, supostamente pela máfia americana. Portanto, a missão da Apollo 8 no fim do ano era, enfim, uma vitória dos yankees.

Prisão no Rio

Para Gil e Caetano, as notícias ouvidas no rádio do camburão ficaram guardadas na memória como marco de uma experiência aterradora. Chegaram ao Rio de Janeiro no final da tarde, depois de um dia inteiro de viagem. Assim que chegaram na capital da Guanabara foram direto para a Polícia Federal. E, de lá, levados para o prédio do então Ministério da Guerra, sede do 1º Exército, ao lado da Central do Brasil, na avenida Presidente Vargas. Ao chegar, foram para uma sala, onde ficaram esperando por cerca de uma hora. Depois do chá de cadeira, foram conduzidos a outra sala, onde um coronel os interrogou. Disse que iriam ficar detidos para investigação, porque havia suspeitas contra eles. Falava do envolvimento com isso ou aquilo, mas na verdade ele se referia sempre ao conceito subjetivo de subversão.

A dupla de “subversivos” acabou sendo transferida para o quartel da Polícia do Exército (PE), na rua Barão de Mesquita, na Tijuca, futura sede do famigerado DOI-CODI. Cada um foi levado para uma solitária, onde Gil e Caetano passaram uma semana sem ver ou falar com ninguém. “Caetano foi levado a uma cela e eu fui levado a outra, celas pequenininhas, solitárias.”

Dali seriam levados para outro quartel da PE na Vila Militar, em Deodoro, subúrbio do Rio de Janeiro, onde ocuparam celas com outros presos e ficaram pelo menos mais uma semana. No quartel, Gil não viu Caetano nenhuma vez, mas Caetano soube que Gil estava “na companhia de vários escritores e jornalistas famosos”, entre eles Ferreira Gullar, Antonio Callado e Paulo Francis. Na cela de Caetano estava o ator e produtor cultural Perfeito Fortuna. No quartel, todos podiam sair da cela para ver parentes na varanda nos dias de visita, exceto Gil e Caetano.

Enquanto esteve preso na solitária, Gil não pensou em nada. “Eu não pensava no fato que estivessem cometendo comigo uma injustiça ou equívoco, eu não tinha tempo para pensar nisso, porque minha aflição toda era voltada para o pânico e o medo.” Estava fragilizado e entregue a uma grande interrogação: “O que vão fazer comigo? O que será de mim amanhã? Vou passar o resto da minha vida nessa prisão?” Tais perguntas o acompanharam durante toda aquela semana de isolamento. A cela de Caetano era ainda mais isolada. Passaram ali o Ano-Novo. Não viram o ano de 1969 raiar. Durante o curto período na futura sede do DOI-CODI, os amigos estiveram próximos, embora não pudessem se falar. Estavam em um corredor que tinha quatro ou cinco solitárias, segundo lembra Gil. Ao lado da cela dele havia outro preso e, na seguinte, estava Caetano. As celas eram fechadas por uma porta de ferro com uma gradezinha e um pequeno basculante na janela. Um buraco no chão fazia às vezes de vaso sanitário. No mais, somente uma pia e um colchão velho. Durante aqueles sete dias ninguém apareceu e eles não foram chamados para interrogatório. Foi nesse momento que Gil e Caetano tiveram suas cabeleiras e barbas raspadas, numa espécie de ritual.

Ao fim dessa primeira semana foram transferidos durante a noite: “Sai, sai, vamos embora”. Jogados no camburão, rodaram durante um bom tempo e acabaram no quartel dos paraquedistas, na Vila Militar. Gil foi retirado do veículo e levado para as dependências militares, enquanto Caetano seguia para outra parte do quartel. Ficaram ali um mês e meio, sendo interrogados seguidamente. Os militares perguntavam sobre as suas ligações, as famílias, envolvimento com pessoas de esquerda, vida estudantil, militância na Bahia. “Na verdade”, diz Gil, “eles não tinham o que perguntar, eram interrogatórios mansos.” E não havia o que esconder. “Eles sabiam de tudo, não tinha nada secreto. Era assim: comunista? Não comunista? Tem ligação? Não tem ligação?”

Foi em meio a essa situação de medo e incertezas que apareceu o sargento Juarez. Era um dos sargentos da guarda, um mulato cortês, refinado. A prisão ficava no corpo da guarda, ou seja, na entrada do quartel, por onde passavam todos os soldados, aonde chegavam as visitas, por onde entrava o abastecimento que vinha de fora — tudo passava por ali. Gil acompanhava toda a movimentação. Um dia, o sargento Juarez aproximou-se dele e perguntou se queria um violão: “Eu tenho um simples em casa, vou falar com o capitão e trago o violão para você”. Levou o instrumento e deixou na cela. E, graças a esse gesto, Gil fez quatro músicas na prisão. Fazia as anotações das canções em papel emprestado pelos guardas ou em capas de revistas.

“O violão ficou comigo uns 15 dias. Aí, eu, que até então não tinha tido estímulo para compor (faltava a ‘voz’ da música, o instrumento), fiz ‘Cérebro eletrônico’, ‘Vitrines’ e ‘Futurível’ — além de uma outra, também sob esse enfoque, ou delírio, científico-esotérico, que possivelmente ficou apenas no esboço e eu esqueci”.

Passado um mês e meio, os baianos foram ali um mês e meio até serem levados novamente para a Polícia Federal. E, em seguida, para o aeroporto Santos Dumont, de onde foram conduzidos para Salvador. Muitos anos depois, quando voltou do exílio, Gil soube que o sargento Juarez era um dos diretores do Clube dos Sargentos. Convidado por ele, fez um show no quartel.

Brasil, ame-o ou deixe-o

Após o encarceramento no Rio de Janeiro, Gil e Caetano foram condenados à prisão domiciliar. Teriam que permanecer em Salvador e se apresentar diariamente à Polícia Federal. Era fevereiro de 1969. Ficaram confinados em casa por quatro meses até serem convidados a deixar o Brasil. Nesse meio tempo, Gil retornou ao Rio de Janeiro somente para tratar do exílio. Na manhã do dia em que voltaria para a Bahia, após acertar a saída do país, foi visitar a mãe de Gal, Mariah Costa. E foi na casa dela que ele criou os primeiros acordes e versos de “Aquele abraço”. Era preciso dizer adeus e a música representava uma catarse de tudo o que ele estava vivendo. Terminou de compor no avião, escrevendo a letra num guardanapo, a canção que se transformaria num hino cantado por todo o Brasil.

“Mentalizei a melodia. Tanto que é uma melodia muito simples, quase de blues. Como eu não dispunha de instrumento, tive que recorrer a uma estrutura fácil para guardar na memória. Quando cheguei à Bahia, eu só peguei o violão e toquei, já estava comprometido afetivamente com a canção.”

Na época, havia um bordão usado num programa muito em voga do humorista Lilico, que dizia “aquele abraço”. Era assim que os soldados no quartel saudavam o compositor: “Aquele abraço, Gil”. O humorista chegou a reivindicar o direito autoral da canção, mas o fato é que Gil não via televisão e aprendeu a saudação na cadeia. “Aquele abraço” tornou-se uma das músicas mais populares de Gil. Além de uma de suas gravações que ficaram em primeiro lugar nas paradas de sucesso durante maior tempo.

“O reencontrar a cidade do Rio na manhã em que nós saímos da prisão e revimos a avenida Getulio Vargas ainda com a decoração de Carnaval foi o pano de fundo da canção. Na minha cabeça, ‘Aquele abraço’ se passa numa Quarta-Feira de Cinzas; é quando o ‘filme’ da música é em mim mentalmente locado”, rememora Gil, ao explicar sua composição em seu site oficial.

Em Salvador, Gil e Caetano foram monitorados pelo coronel Luiz Arthur, então diretor da Polícia Federal na Bahia. Eles eram vigiados 24 horas e obrigados a ficar em casa. Em março, Gil passou a viver com Sandra, que viajaria com ele quatro meses depois para o exílio. E ainda gravou a voz e o violão de seu novo disco. Sobre essas bases, Rogério Duprat fez os arranjos e dirigiu as gravações complementares em São Paulo e no Rio de Janeiro. O disco, Gilberto Gil, 1969, seria lançado em agosto, quando já havia partido para Londres.

O antropólogo e pesquisador musical Hermano Vianna exaltou anos depois o disco e a trajetória de vanguarda do artista na sua coluna de junho de 2012, no jornal O Globo, intitulada “Semi e menos: muito mais”:

“O disco de 1969 foi composto quase todo na prisão ou no período entre a prisão e o exílio londrino. Portanto, é quase um milagre que tenha sido produzido e lançado. Começa com ‘Cérebro eletrônico’ e termina com ‘Objeto semi-identificado’, depois de passar por ‘Volks-Volkswagen Blue’ e ‘Futurível’. ‘Objeto semi-identificado’ é consequência das conversas entre Gil e Rogério Duarte (que fez a capa do disco, uma das mais ousadas do design gráfico nacional, com poema-desenho na capa e quadrinhos Gil versus Solaries na contracapa) no pré-exílio, semiprisão de Salvador. A conversa ganhou forma de texto e foi gravada, apenas com as vozes dos dois amigos. Depois, como no resto do disco, a música foi acrescentada em São Paulo. (...) Quem comprou o disco em 1969, ao ouvir ‘Objeto semi-identificado’ deve ter se lembrado de ‘Revolution 9’, lançado naquele álbum branco dos Beatles um ano antes. Não era uma cópia, mas sim duas trajetórias diferentes, a dos Beatles e a de Gil (com suas respectivas turmas), desembocando num mesmo lugar (quântico). O namoro entre tropicalistas e as estratégias sonoras barulhentas da música contemporânea era antigo. Vinha pelo menos dos Seminários Livres de Música da UFBA, com Koellreutter à frente, que trouxe até David Tudor para tocar John Cage em Salvador. (...) Incrível como o pessoal dos anos 1960 conseguia fazer esse tipo de colagem sonora apenas com gravadores de poucos canais e overdubs”.

Antes de partirem para o exílio, Gil e Caetano fizeram dois shows de despedida, com o incentivo de ninguém menos do que o coronel Luiz Arthur. Os artistas convidaram Roberto Santana, o produtor musical que criara, em 1961, o espetáculo Nós, por exemplo, para a produção e direção. O local escolhido para a apresentação foi o Teatro Castro Alves. E Caetano compôs algumas músicas novas especialmente para a ocasião. Era julho de 1969. Toda a plateia sabia que se tratava de um adeus. Mas nada foi dito, nada podia ser dito. O primeiro espetáculo aconteceu às dez da manhã de um domingo. E, o segundo, às sete da noite. Ambos com teatro lotado. “Foi bacana, foi bonito”, lembra Gil, que cantou “Aquele abraço” em meio a muita emoção. O compositor e percussionista Djalma fez uma gravação rudimentar do show, que depois saiu em disco intitulado Barra 69.

O poeta Augusto de Campos saiu de São Paulo só para ver o show. “Estes baianos estão cada vez mais interplanetários”, declarou. O escritor Jorge Amado, também presente, não se conteve: “Estou comovido. Isso parece muito sofisticado, mas não é. Tudo o que eles fazem tem profundas raízes baianas. E minha comoção se manifesta na barriga. É como se eu sentisse um nó nas tripas”, disse o romancista à revista Veja, que publicou, em 30 de julho de 1969, reportagem de duas páginas sobre o show com o título “Os baianos que vão da Bahia para o mundo. Caetano e Gil encerram uma fase da música popular brasileira”.

Poucas notícias foram veiculadas na imprensa sobre o show ou a partida de Caetano e Gil para o exílio. A mão de ferro da censura calou a boca dos jornais. Em notas publicadas em jornais da Bahia, porém, é possível ter uma ideia de como o assunto foi abordado.

Em 7 de julho, o Jornal da Bahia noticiava:

“Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa (Gracinha) são os três nomes que estarão no Teatro Castro Alves num dos maiores shows da Bahia para o ano de 1969. Uma quantidade bem grande de músicas novas dos dois compositores será mostrada pela primeira vez em público, fato que garante casa cheia de qualquer forma. Os ingressos para este espetáculo já se encontram à venda no próprio Teatro Castro Alves”.

O mesmo jornal publicaria, em 22 de julho de 1969, uma longa crítica sobre o show de despedida dos baianos, com o título “Caetano e Gil fazem do TCA parque encantado em sua despedida do Brasil”. Algumas palavras estão quase apagadas no recorte de jornal:

“Caetano e Gil transformaram o Teatro Castro Alves na manhã de domingo num verdadeiro parque encantado no show com que se despediram da Bahia, já que amanhã viajam para Europa e não voltam mais. Os dois famosos compositores brasileiros farão primeiro uma temporada em Lisboa e depois seguirão para Londres onde pretendem fixar residência. Duas mil pessoas foram vê-los nessa apresentação de adeus.

Público

O espetáculo de domingo foi composto de um público em sua maioria de estudantes. Também foi o único dia em que se vendeu meia-entrada. Os jovens que lá se encontravam, em sua maioria não se conformando em assistir de longe o show, passavam para as escadas que se localizam em frente ao palco, fazendo assim companhia às pessoas que lá estavam por não encontrarem lugar para sentar. A primeira música apresentada foi ‘Cinema Olympia’ e a partir daí o público não parou de vibrar, ora aplaudindo, ora se levantando, cantando e mesmo sambando, quando no fim Gilberto Gil interpretou ‘Aquele abraço’, acompanhado de três ritmistas da Escola de Samba do Garcia.

Caetano e Gil

Caetano estava vestido num estilo hippie com muitos colares e espelhinhos pendurados na jaqueta xadrez. Trazia uma camisa vermelha, calça branca muito justa com boca de sino e sapatos brancos, com listas laterais vermelhas. Seus cabelos estão mais curtos, mas bastante encaracolados. Gil usava camisa branca de mangas de (...), calça branca, uma corrente ao pescoço e sandálias sertanejas. Estava sem barba, mais magro, com um aspecto muito mais jovem.

O ‘show’

Durante o ‘show’ foi usada uma nova técnica de iluminação que produzia os mais variados coloridos reflexos na parede, dando sempre ideia de movimento de vaivém acompanhando o (...) com que Caetano dança. Quando cantou ‘Irene’, uma de suas mais novas criações, Caetano chorou de emoção e repetiu a música que foi feita em homenagem a sua irmã. Uma música que foi cantada aqui na Bahia há muito tempo tomou novo aspecto com os arranjos realizados nela por Gil, e todo o auditório cantou ‘entra em beco sai em beco/ há um recurso Madalena/ entra em beco sai em beco/ há uma santa com seu nome...’ As músicas já conhecidas do público, como ‘Baby’ e ‘Alegria, alegria’. ‘Domingo no parque’ é outra que foi dada uma conotação diferente na maneira de interpretar. Um exemplo disso foi o fim de ‘Alegria, alegria’, quando todo mundo espera Caetano dizer um ‘instante maestro, pare’ e ele não disse, despertando assim um efeito psicológico de surpresa no público. O conjunto que acompanha Caetano Veloso e Gilberto Gil, Os Leif’s, há um mês estava em casa de Caetano a fim de (...) ensaiar e pegar o estilo dos dois compositores. Seus componentes foram bem aplaudidos. São todos daqui da Bahia. Um deles estava vestido de pierrô e os outros estavam com vestimentas bem diferentes e originais.

Hino e volks

Quando Caetano cantou o hino do Bahia todo o público acompanhou o músico, mesmo quem era de outro time. Nesse momento refletiram-se na parede as cores azul, vermelho e branco. ‘Volks-Volkswagen Blues’ ou ‘Carrinho azul’ é uma das mais novas criações de Gil, e no momento em que foi cantada, refletiu-se um carro azul na parede do fundo do palco. Os ingredientes usados para efeito de projeção tinham de ser usados na hora, chegando o cheiro deles até o público, que também gostava e achava graça.

Programa

Caetano e Gil interpretaram as seguintes músicas; ‘Irene’, ‘Atrás do trio elétrico’, ‘Superbacana’, ‘Baby’, Hino do Bahia, ‘Alegria, alegria’, ‘Cinema Olympia’, ‘Tropicália’, ‘Marcianita’, ‘Não identificado’, ‘Procissão’, ‘Domingo no parque’, ‘Ele falava nisso todo dia’, ‘Volks-Volkswagen Blues’, ‘Cérebro eletrônico’, ‘Frevo rasgado’, ‘Dezessete léguas e meia’, ‘Madalena’, ‘Aquele abraço’ e ‘2001’.”

Menos de dez anos depois que saiu com Gil do Brasil para o exílio na Inglaterra, Caetano Veloso escreveu um artigo para a revista Manchete, em 4 de julho de 1977, com o título de “Pra cá de Marrakesh”, em que refletia sobre o Tropicalismo e a prisão, ligando um ao outro, e sobre a força de Gil no exílio:

“E como a coisa era muito flagrante o Tropicalismo só precisou de um apelo alegre. ‘Alegria, alegria’. E tudo bem. Os poucos que não entenderam que só pretendíamos fazer música eram muito mais fortes. Eu juro que nosso esquema era musical. Uma euforia bonita. Nossa. Brasileira. Mas acho que ao tocar os primeiros pontos houve um curto geral e deu uma zoeira rápida. Admito que nossa atitude era muito agressiva em relação aos preconceitos vigentes. Mas daí a Londres... hoje eu entendo. Na época, desbundei. Um ano de um trabalho limpo, forte, honesto. ‘Por quê?’, eu me perguntava a caminho de Londres. Que consequências sociais nós deveríamos atingir? Sei lá. E a falta de resposta me fez um sujeito ensimesmado, passivo, lerdo. Leso. Lesado.”

Depois do AI-5, era ainda mais difícil noticiar qualquer coisa sobre Gil e Caetano e outros artistas. A simples missão de informar a prisão dos dois era negada aos jornais. Haja criatividade para tornar público o porquê do sumiço dos baianos. Jornais e colunistas praticavam contorcionismos para dar a notícia, nem sempre compreendida pelos leitores, como mostram os trechos a seguir, retirados de colunas publicadas no jornal Última Hora.

No dia 31 de dezembro de 1968, a coluna “Tabela 2”, assinada por Eli Halfoun, publicou a seguinte nota, sob o título “Os motivos de força maior”:

“Os mesmos motivos de força maior que impediram Chico Buarque de comparecer a São Paulo para receber, há 15 dias, os prêmios do Festival da Record impediram Caetano Veloso e Gilberto Gil de comparecer ontem, quando os prêmios foram entregues de qualquer maneira” (Festival de Música Popular Brasileira da TV Record de 1968, vencido pela música “São São Paulo”, de Tom Zé, que também premiara as composições “Benvinda”, de Chico Buarque, e “Divino, maravilhoso”, de Gil e Caetano).

No dia 10 de janeiro de 1969, o mesmo Eli Halfoun voltava ao assunto em outra nota, “Ok para o Miden”, que dizia o seguinte:

“Está marcado para o dia 14, à noite, o embarque da delegação brasileira para o Festival de Miden, em Cannes. O Brasil será o país mais importante deste festival ou, pelo menos, o único que terá direito a trinta minutos de espetáculo, enquanto os outros terão 11 minutos. As apresentações do Brasil serão abertas no dia 19 com Elis Regina e Edu Lobo. No dia seguinte será a vez dos Mutantes, Gilberto Gil e Chico Buarque de Hollanda. O único embarque não confirmado ainda é o de Gilberto Gil, já que outros compromissos o prendem no Rio”.

No dia seguinte, foi a vez de Tarso de Castro se manifestar sobre o assunto na coluna “Hora H”. A nota, intitulada “Nova bossa”, anunciava:

“Os fãs de Caetano Veloso e Gilberto Gil poderão ter uma surpresa muito breve: parece que os dois líderes se encontram em São Paulo — continuariam na mesma linha. Caetano passaria a se apresentar, inclusive, de cabelo curto e Gilberto Gil sacrificaria a volumosa barba”.

Dois dias depois, Tarso de Castro retomaria a questão, confirmando que os dois baianos já estavam com os cabelos cortados. Um mês após a prisão dos dois, no dia 17 de janeiro de 1968, Eli Halfoun escrevia:

“Caetano Veloso e Gilberto Gil, que iniciarão nova fase em matéria de apresentações — o primeiro de cabelos cortados e o segundo sem a barba — estão pensando seriamente em fazer parceria com Carlos Imperial e Castor de Andrade. Os dois ‘tropicalistas’ resolveram também dar umas férias a seus instrumentos, já substituídos por enxadas”.

Naqueles dias, e isso era público, o bicheiro Castor de Andrade e o compositor Carlos Imperial estavam presos no presídio da Ilha Grande, com acusações que tinham respaldo no AI-5. O primeiro por conta de suas atividades na jogatina e o segundo por causa de um cartão de Natal que distribuíra no qual aparecia sentado em uma privada.