CABEÇA ABERTA E
CORAÇÃO A MIL
“No futuro você vai tocar
Meu samba duro sem querer”
“Máquina de ritmo”
O mar e o horizonte, o sertão e o fim do mundo foram as primeiras distâncias que Beto, despertando para o mundo, acreditou que precisava vencer. “Umbigo atado ao torrão natal e alma vagabunda de navegador” — como ele próprio, já adulto, mencionou em discurso voltado para os grandes nomes da tecnologia moderna — era a vocação do menino de Salvador e o acompanha por todos os lugares. “Para falar na linguagem internacional da música sobre um certo povo, que habita em algum lugar, e sobre esse lugar comum, onde todos somos iguais em nossas imensas diferenças.”
As distâncias foram encurtando para o artista que misturou banda larga com cordel, parabólica com camará e sintomaticamente botou na capa do seu disco Parabolicamará uma antena parabólica presa num cesto de vime. Gil brinca entre as raízes e o extraordinário mundo da modernidade tecnológica. Um pé lá, outro cá.
Quem não vem no cordel da banda larga,
Vai viver sem saber que mundo é o seu
(...)
Diabo de menino agora quer
Um iPod e um computador novinho
Certo é que o sertão quer virar mar
Certo é que o sertão quer navegar
No micro do menino internetinho
(“Banda larga cordel”)
Com essa compreensão da natureza de Gil — de penetrar de peito aberto no mais avançado mundo das invenções de ponta, trazendo sempre com ele a tradição e a raiz — é fácil entender que o CD Fé na festa, inteiramente dedicado aos ritmos nordestinos como o baião, o xote e o maxixe, lançado durante as festas juninas de 2010, tenha vindo pouco depois de Banda larga cordel.
“Em mais um tributo, desta vez não a um artista como fez com Bob Marley e Luiz Gonzaga, mas a um gênero musical que há muito deixou de ser regional, Gilberto Gil se impõe pela sua personalidade e por seu talento”, escreveu o jornalista João Pimentel, em junho 2010, no jornal O Globo. “As experiências mais interessantes de atualização do forró estão em discos conceituais, como este Fé na festa”, afirmou outro jornalista, Rosualdo Rodrigues, na sua crítica “Forró para todo o ano”. “Gilberto Gil não é forrozeiro, mas para ele a música difundida por Luiz Gonzaga é, além de influência, uma referência afetiva.”
Afetividade e sensibilidade são marcas de toda a vida e a carreira de Gil, que se diz um romântico incorrigível. Sua relação com o mundo passa sempre, em qualquer circunstância, pela emoção. Não reprime o sentimento e se deixa emocionar sempre que o coração manda um sinal. Os olhos enchem d’água e as lágrimas rolam sem cerimônia. Chorou quando escutou a mãe cantar, quando se lembrou da canção que fez para o pai, quando pensou no filho que se foi, quando falou da sua criação ou relembrou as histórias de sua vida.
Sabe, gente
É tanta coisa que eu fico sem jeito
Sou eu sozinho e esse nó no peito
Já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder
(“Preciso aprender a só ser”)
No final de 2012, Gil foi assistir a uma apresentação dos Flautistas da Pró-Arte, no Teatro Tom Jobim, em que ele era o homenageado. Emocionou-se profundamente ao ver aqueles meninos interpretando suas músicas e a alegria contagiante do espetáculo. Na casa dos setenta anos, pode olhar para sua música e se reconhecer plenamente romântico.
“Fiquei vendo lá os meninos tocando minhas músicas e tal, e eu ficava dizendo: ‘Meu Deus, olha que coisa romântica, como eu me entreguei a essa coisa romanesca mesmo’. As canções, aqueles borbotões de melodias e acordes todos. Aí eu fico vendo essa coisa de modernista que me é atribuída, mas não é nada disso, eu não sou nada disso, sou romântico mesmo, sou artista do romantismo, com arremedo de coisas dessa racionalidade modernista, mas romântico, romântico, romântico. Meus amores e minhas amizades foram marcados por isso, nada pode estar distante da fantasia, tudo tem que estar fantasiado, tem que ser Carnaval.”
Gil fala com naturalidade que nunca foi moderno.
“Cada vez mais eu vejo que vim para o mundo no momento em que a música, as artes em geral, as formas de expressão, todas estavam passando pelo crivo dessa transição entre o romantismo e a modernidade, e sendo jogadas nessa fragmentação louca da pós-modernidade, em que esses conjuntos de noções não se sustentam mais, estão sujeitos à fragmentação de um pedacinho de uma coisa, de outra. Nesse sentido me reconheço muito mais pós-moderno do que moderno. Quando se fala da modernidade eu não vejo o romantismo, mas quando se fala da pós-modernidade, onde o que existe é o garimpar despudorado da fragmentação, a possibilidade de pedacinho de uma coisa, pedacinho de outra, aí me reconheço. Mas é como se eu tivesse saltado do romantismo para a pós-modernidade, sem propriamente passar pela modernidade. Não foi preciso, não tive muito essa preocupação, sabia que ia chegar um tempo de outra coisa em que se podia ter pedacinhos de tudo, fragmentos, colchas de retalho, patchworks diferentes. Por isso talvez que eu tenha esse entusiasmo tão grande com a pós-modernidade, com essa história da fragmentação contemporânea. É porque eu já era isso, já estava disponível para isso.”
Os anos trouxeram muito reconhecimento. Quincy Jones, célebre produtor, compositor e arranjador americano, ao ser perguntado que música gostaria de ouvir numa ilha deserta, respondeu: “Citar Miles Davis ou os reis do blues seria muito óbvio. Eu levaria a música de Gilberto Gil”. Esse pequeno trecho foi publicado pela famosa revista americana Billboard, em 2013.
Ao fazer setenta anos, Gil ganhou homenagens em todo o Brasil e fora dele, além de uma exposição: Gil70. Lançou também um disco-síntese do seu trabalho, Concerto de cordas & máquinas de ritmo, que estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 28 de maio de 2012, acompanhado da Orquestra Sinfônica Brasileira, com produção e orquestração de Jaques Morelenbaum.
Para a exposição Gil70, Gil colaborou musicalmente com uma das instalações interativas e não interferiu na curadoria. Mas manteve a tradição de jogar o I Ching, para associar o projeto a um dos 64 hexagramas do milenar oráculo chinês. Obteve o de número 29 — k’an/o abismal: “A água flui ininterruptamente e chega à sua meta: a imagem do abismal repetido. Assim o homem superior caminha em constante virtude e exerce o magistério”.
Para o disco, Gil escolheu na sua obra canções de todas as épocas da carreira para revesti-las e recriá-las com os sons do consistente diálogo entre cordas e percussão: “Eu vim da Bahia” (1965), “Domingo no parque” (que lançou no festival da Record, em 1967), “Futurível” (que fez na prisão, em 1969), “Quanta” (do disco de 1997, da época em que se encantou com a física quântica), “Refazenda” (lançada em 1975), “Máquina de ritmo” (2002), “Não tenho medo da morte” (2008) e a inédita “Eu descobri” (2012). O disco foi gravado ao vivo e tem coprodução musical de Bem Gil.
Na Argentina, um dos lugares em que Gil esteve com o show, Fernando López escreveu um artigo para o La Nación que dizia:
“Os anos podem ter causado algum dano a sua garganta, que ele segue usando com a perícia e o atrevimento de sempre, mas nada pôde se contrapor ao vigor do seu espírito. Gilberto Gil segue inquieto, curioso e disposto a encarar cada vez mais novos desafios, com os quais, sem fazer alarde, demonstra que sua criatividade e sua sede de renovação são, pelo visto, inesgotáveis”.
Assim como na vida prefere todas as cores e todos os sabores, na música isso também acontece. “Há várias maneiras de se cantar e fazer música brasileira: Gilberto Gil prefere todas”, disse Torquato Neto na contracapa do disco Louvação, de 1967.
Depois de quase quinhentas músicas Gil já perdeu a conta. O saldo é extraordinário. A volúpia de compor era imensa no início da carreira. Gil tinha a urgência da juventude e a vontade premente de desvendar o solo fértil da sua própria criatividade. Naquela época, e durante um bom tempo, fazia uma canção por dia.
“Todo olhar sobre o mundo, toda a leitura, toda decifração sobre qualquer enigma existencial tinha que se transformar numa música. A canção acabou sendo meu texto, meu discurso, minha forma de depoimento, meu instrumento de diálogo com o mundo para dizer: ‘Olha, passou uma coisa aqui agora, eu vi, você viu?!’ Era uma volúpia enorme o tempo todo. Eu via uma coisa, uma cena qualquer na rua, aquilo despertava um frêmito qualquer que me obrigava a chegar em casa e cantar aquilo.”