Capítulo 1

Uma recepção pouco promissora

Homens estão no grito (de guerra); o vau está congelado;

Fria a onda, ela matizou o seio do mar;

Aconselhou-nos o Deus eterno!

O Livro Negro de Carmarthen

O retorno, sempre aguardado com ansiedade, a lugares do passado frequentemente representa uma amarga decepção, pois nada permanece igual. E foi assim com Dubris, para onde os viajantes retornaram após uma viagem marítima a Gesoriacum.

A primavera mal começara quando eles iniciaram a navegação, assim os curandeiros vestiam grossas capas para lhes proteger o corpo gelado após alguns anos em climas mais quentes, onde não fazia frio nem no mais frio dos invernos. Mas, estações climáticas à parte, Dubris havia mudado nos últimos seis anos, desde que partiram para o mar do Meio. Os saxões chegaram em um lento gotejar de comerciantes, o qual se transformou em uma inundação desenfreada de imigrantes. Mesmo sem desferirem um único golpe, a mancha dos saxões propagara-se por toda a cidade e pelos campos ao redor, onde começou a se enraizar.

Myrddion tinha aprendido que as ilhas da Britânia não eram o mundo inteiro, e que as suas cidades eram pequenas, insignificantes e bucólicas quando comparadas com as grandes cidades de Roma, Ravena ou Constantinopla. Ainda mais surpreendentemente, como os curandeiros haviam conhecido os grandes portos do mar do Meio, Dubris, que parecera tão grande e movimentada seis anos antes, agora se assemelhava a um pequeno centro de negócios. Essa impressão não melhorou com a camada de sujeira, a fumaça de madeira queimada e a negligência que lembravam a Myrddion o porto de Ostia. Os armazéns e as docas estavam deteriorados, e os rostos dos trabalhadores, distorcidos pela mesma tensão que caracterizava as feições dos habitantes do porto italiano.

Mas eram apenas essas as semelhanças. O aroma característico dos peixes, acomodados em enormes cestas de vime, espalhava-se pelas pequenas docas de madeiras desmoronadas que se estendiam até as águas mais profundas. Montes de mercadorias foram empilhados, prontos para ser transportados até os armazéns, enquanto enormes fardos eram carregados em navios de todas as formas, de todos os tamanhos e modelos, para as viagens a seus destinos finais. Um misto de raças caracterizava os rostos ali, como aqueles que eles haviam visto em Ostia, mas sem os tons exóticos da África e do Leste. Myrddion, inclusive, reconheceu alguns francos em um grande e disciplinado navio, e lembrou-se de que aqueles nortistas haviam sido bárbaros brutos cinquenta anos antes, quando vasculhavam por terras e poder na Gália.

– Mas os francos agora são civilizados, e assim o mundo muda.– Cadoc bufou cinicamente com o comentário de seu mestre. – É bastante provável que os saxões sejam depois semelhantes a nós.

Os curandeiros começaram a árdua tarefa de desembarque, deslocando os muitos barris, fardos, caixas e pacotes para um monte bem arrumado na doca. Enquanto trabalhavam, Myrddion pensou na facilidade com que as tribos do norte tinham passado pela ilha dos francos, e então atravessado o estreito canal até a Britânia.

– Pelo menos a nossa terra ainda cheira como a Britânia que nós conhecíamos – Cadoc falou para todos eles. – Madeira queimada e chuva!

– Sim, mas este lugar me deixa nervoso. Estamos atraindo muito a atenção dos estivadores, então eu gostaria de ir embora o quanto antes. –Myrddion roía a unha de seu polegar com os dentes enquanto examinava os rostos de raças misturadas. – Faça sua mágica, Cadoc. Encontre duas carroças e cavalos suficientes para nossas necessidades. E faça isso o mais rápido que puder, pois minhas omoplatas estão começando a coçar.

– Muitos malditos saxões, e todos de olho na nossa bagagem – Cadoc sussurrou em concordância. – Estarei de volta assim que completar minha tarefa, mestre.

E então desapareceu na multidão nas margens do cais.

No alvoroço da doca, Myrddion se sentiu intimidado pelos olhares hostis fixados no pequeno grupo. Sabia que eles formavam um quadro exótico e estranho naquelas roupas de estrangeiros, mas o cais era parte de sua casa, então ele se sentiu deslocado e desapontado. Com um movimento estranho, afrouxou sua espada na bainha, consciente de que muitos olhares dissimulados tinham avaliado cada arma dos recém-chegados.

– Você não pode deixar sua merda no meu cais, frangote – berrou uma voz rouca atrás dele.

Myrddion virou-se com rapidez, ligeiramente agachado, uma mão no punho da espada e a outra segurando com firmeza o longo bastão. As mulheres se agruparam nervosas, e Finn entregou o filho pequeno à esposa, Bridie, para pegar a própria arma caso necessário. O homem de cabelos brancos, Praxíteles, servo grego que os acompanhava desde Constantinopla, apenas deu um largo sorriso e esperou.

– Quem é você para dirigir a palavra ao meu grupo e me dizer onde ou o que eu posso colocar em um cais usado para acesso público? – a voz de Myrddion era tão imperiosa e imprudente quanto o tom que seria usado por Ardabur Aspar, seu pai, na corte oriental do imperador. Às vezes, a arrogância tinha sua utilidade.

O homem que confrontou o pequeno grupo se assemelhava, superficialmente, a qualquer rato de cais criado com poder em função de seu volume e de sua altura. Um sujeito enorme, dotado de uma grande circunferência, quase gordo, característica incomum para alguém do Norte. Mas, ao contrário de Hengist e Horsa, que Myrddion havia admirado, esse homem estava imundo. As unhas eram pretas de gordura, as mãos sujas, sendo impossível determinar-lhe a cor do cabelo, tão engrossado pela ação da graxa e sujeira. Os olhos se tingiam de um verde lamacento, e a face era morena e desgastada, um tanto avermelhada sob uma generosa camada de poeira.

Quando falava, sua boca revelava caninos amarelos e a falta de vários dentes, sobretudo frontais. Myrddion percebeu as cicatrizes nas juntas dos dedos do homem e rapidamente concluiu que aquele bandido adorava lutar.

– Eu sou Hrothnar de Dubris, dono do porto, e vocês me devem uma moeda de ouro por atracar aqui. – O grande homem sorriu enquanto um pequeno grupo de traiçoeiros estivadores se posicionou atrás dele. – Pague, frangote, e eu garanto que suas mulheres sairão daqui sem ser tocadas.

Myrddion zombou do brutamonte contraindo os lábios com desdém.

– Esse é o modo como Dubris recebe os viajantes, Hrothnar? – Ele sorriu enquanto esperava o gigante fazer um movimento agressivo em direção ao grupo. – Que leis lhe dão a permissão de cobrar essa taxa ridícula?

– Isso não é uma taxa, mas apenas uma doação para os pobres trabalhadores do cais. E a decisão de pagar ou não é sua, mas três homens não nos impedirão de confiscar o que é nosso. Eu me pergunto o que você tem de tão valioso.

Myrddion continuou a sorrir, mas sentiu uma lenta raiva corroendo-lhe o bom senso, e mordeu o lábio para atenuar a fúria crescente que o invadia.

– Tome cuidado, Hrothnar de Dubris, pois eu tenho amigos influentes.

– Você? Você é um celta condenado! Não interessa o quanto suas roupas sejam boas, pois você não passa de um fedorento, adorador de Roma e comedor de merda como o resto da sua covarde tribo. O que você fará para nos impedir de pegar o que queremos?

Com o som alto das vozes, a pequena Willa começou a chorar, então Brangaine vasculhou em um pacote e fez um pequeno bolo, encharcado de mel. O brutamonte mal olhou para a viúva, o que foi uma tolice, pois Praxíteles viu a mulher roubar com sua mão direita um dos bisturis do mestre.

– Eu já servi vários reis. Dentre eles, Vortigern, o Alto Rei dos britânicos, Merovech, rei dos francos sálios, e Teodósio, rei dos visigodos, e estou em dívida de honra com seu thane, Hengist, que conquista um reino nas terras ao norte da Britânia. Você seria tolo de achar que eu, Myrddion Merlinus, ou meus companheiros, somos inofensivos.

Myrddion teve dificuldade de articular aquelas palavras cheias de orgulho com o desdém necessário para meros mortais, mas, se ele tivesse entendido bem seu adversário, Hrothnar apenas seria dissuadido da violência caso temesse repercussões pessoais. Infelizmente, a ganância era um incentivo poderoso para o bandido.

– Hengist está bem distante, e envelhece e enfraquece no Norte, ­Myrddion sei-lá-o-quê. Eu não ouvi falar de você, frangote. Mas, ou você me uma moeda de ouro, ou eu tomarei tudo que você tem.

– Não tão facilmente – Finn disse com calma, desembainhando a espada. Praxíteles retirou um pesado bastão de seu manto, e Myrddion ergueu seu bastão de serpente.

– Oh, eu estou com tanto medo! – Hrothnar zombou, aproximando-se com quatro dos seus bandidos logo atrás dele. Ele girava um tubo de couro preenchido com areia, uma arma efetiva e mortal em mãos apropriadas. A pesada arma sibilava pelo ar enquanto Hrothnar a girava com a proficiência de quem possui muita prática.

Mas o objeto nunca chegou a acertar seu alvo. Os saxões haviam escolhido atacar Myrddion porque ele era o líder e parecia o mais fraco dos homens do grupo, mas o curandeiro já havia sido subestimado por muitos adversários. O bastão de serpente, adquirido em Maratonia, foi girado em um movimento inesperado que pegou o arruaceiro diretamente no lado do queixo. Mais por sorte do que por um bom movimento, a pancada teve força suficiente para derrubar Hrothnar como um boi abatido.

Com o líder inconsciente no chão, os seus seguidores continuaram a avançar de modo ameaçador, acreditando que cinco homens eram mais do que o necessário para eliminar qualquer oposição. Talvez esse pensamento fosse correto, mas Brangaine sentiu a distração deles e saltou a pilha de bagagens com um grito tribal de gelar o sangue. Ela golpeou o valentão mais próximo com o bisturi que roubara, e a ferramenta afiada o feriu no braço, passando pelo casaco, pela pele e pelos músculos, cortando-o como se estivesse fatiando manteiga.

À medida que o homem olhava incrédulo para o sangue que começara a jorrar pelo seu braço, foi facilmente nocauteado pelo bastão de Praxíteles, enquanto Finn, com os olhos cheios de raiva, avançava na direção dos quatro bandidos que restavam. Ao verem o sangue de seus companheiros, os brutamontes hesitaram em atacar e, então, confusos pela velocidade com que sua sorte havia mudado, eles giraram nos calcanhares e correram, deixando Hrothnar e seu companheiro ensanguentado ao seu próprio destino.

Myrddion suspirou e se virou para Finn.

– Veja se você encontra alguém responsável para prender esses dois idiotas. Eles claramente praticam esse comércio com todos os recém-chegados às docas. – Com medo de represálias, Finn examinou o cais em busca de outros perigos, mas nenhum dos marinheiros, traficantes ou comerciantes mostrou o mínimo interesse pela pequena batalha sangrenta que acontecera. Ali, homens prudentes caminhavam com os olhos fechados. – Está claro que não há estado de direito em Dubris. Eu começo a desejar que nós tivéssemos asas para nos tirar daqui.

Finn retornou, mas sem a companhia de nenhuma autoridade. Com um expressivo encolhimento de ombros, ele explicou que vários thanes controlavam diferentes setores da cidade, e esses lordes precisariam saber a quem Hrothnar servia e quais eram suas obrigações antes de tomarem qualquer decisão sobre os dois prisioneiros. Hrothnar era cidadão da cidade, e o grupo de curandeiros não se importava com essa nova e desregrada comunidade.

– É improvável que nós vejamos essa escória ser colocada sob qualquer tipo de custódia, então eles se sentem seguros para saquear estranhos – Finn explicou. – Dubris está muito diferente desde que nós estivemos aqui pela última vez, mestre, e os celtas abandonaram a cidade e sua administração aos comerciantes saxões. Para minha frustração, eu mal entendi o que qualquer um disse. A língua falada aqui é bem diferente da dos francos.

– Há diferenças superficiais, mas eu entendi Hrothnar o suficiente, e os céus sabem que raça poderia reivindicá-lo – Myrddion franziu o cenho com irritação.

O que nós devemos fazer com essas belezas?, Myrddion pensou com rapidez, dando de ombros e começando a procurar por sua mochila.

– Brangaine, nós temos alguma água limpa em nossos frascos? – ele perguntou. Acostumada às excentricidades do curandeiro, ela assentiu com a cabeça. – Ótimo. Então encontre roupas limpas, e cuidaremos dos inchaços e dos machucados deles.

Agora que Myrddion se decidira sobre o curso das ações, ele se virou e disse por sobre os ombros para Finn e Praxíteles:

– Mantenham um olho em nossas belas adormecidas enquanto eu os costuro, embora o porquê de precisarmos cuidar desses idiotas, se eles podem roubar outros viajantes respeitáveis, seja algo que está além da minha compreensão.

Resmungando como um velho, o curandeiro limpou e costurou duas cabeças quebradas e um antebraço cortado. Ele mal havia terminado quando Hrothnar começou a se agitar, as mãos golpeando inutilmente o ar vazio. Assim que Hrothnar recobrou os sentidos, Myrddion colocou o rato de cais sem cerimônia em pé. O homem era pesado, e o fedor de seu corpo fez o curandeiro vacilar.

– Eu me esqueci de dizer a você que somos curandeiros, Hrothnar; não que isso o preocupasse enquanto nos roubava. Em todo caso, não importa o quanto nosso grupo de viajantes pareça inofensivo, nós não poderíamos ter viajado presenciando conflitos e guerras na terra dos francos, sem ser capazes de nos proteger. Se eu fosse você, Hrothnar, eu consideraria outra forma de comércio se deseja viver até seus ossos envelhecerem. Ou então aprenda a ver além das aparências.

Hrothnar tentou focar sua visão borrada enquanto mantinha a dolorida cabeça parada. Os olhos verdes estavam embaralhados e quase como os de uma criança.

– Por que vocês não nos mataram? Por que costurou minha cabeça? Eu ainda poderia me virar contra você antes que tivesse a oportunidade de deixar Dubris.

Myrddion sorriu com tristeza, pois o brutamonte estava certo em sua análise. Um grupo com três mulheres e duas crianças, uma das quais ainda um bebê de colo, estava vulnerável ao viajar por ruas estreitas e perigosas.

– Se você conseguir entender o significado do que eu estou prestes a explicar, poderá aprender algo que lhe será muito valioso. Como curandeiros, nós estamos compromissados com nosso ofício pelo juramento de nossa profissão. Aqueles que assumem nossa tarefa juram não machucar os outros, inclusive pessoas que ameaçam a nossa segurança. Sou obrigado a reparar o dano que fiz a você, então não há motivo algum para sentir medo de nós. Você nem sofrerá quaisquer efeitos nocivos por sua tentativa de extorsão, embora nós tenhamos servido em exércitos de grandes e impiedosos homens. Ficamos de sangue até o tornozelo enquanto desempenhávamos nosso ofício, e aprendemos, por meio de experiências amargas, os truques necessários para nos proteger dos inimigos armados. Agora, junte-se a seus amigos e nos deixe em paz.

Hrothnar encarou Myrddion sem expressão enquanto tentava desvendar os motivos ocultos por trás da generosidade do curandeiro. Experiências desagradáveis haviam ensinado a ele que força e brutalidade encheriam seu estômago, em vez de recorrer à piedade ou à bondade. Ele sabia que poderiam ter suas gargantas cortadas pelos curandeiros enquanto estavam inconscientes, e tinha certeza de que esse seria o modo como ele removeria seus oponentes caídos. Então, na Dubris sem leis, o fato de os curandeiros deixarem seus prisioneiros irem embora parecia uma loucura... A menos que houvesse algum motivo mais profundo nisso.

Como se lesse a mente de Hrothnar, Myrddion respondeu jogando a bolsa de couro do estúpido, a qual havia se soltado do cinto quando ele caíra. O brutamonte a pegou de modo desajeitado com uma mão e sentiu-lhe o peso. As moedas ainda estavam lá.

– Por quê? – Hrothnar murmurou com grosseria. – Para ser franco, você nos tem à sua mercê. Seria fácil para você ficar com meu dinheiro e se recusar a devolvê-lo, mas, ainda assim, você o devolveu por completo. Eu não o entendo, Myrddion Merlinus.

Confuso, Finn também ficou boquiaberto com Myrddion. Afinal, a bolsa de Hrothnar teria recompensado os curandeiros pelo inconveniente que o homem causara.

– Se eu ficasse com seu dinheiro, eu também seria um ladrão qualquer – Myrddion replicou com severidade. – Assim como você.

Pela primeira vez, Hrothnar respondeu com uma cínica aproximação de humor.

– Não, você não é um ladrão como eu, não é mesmo? Mas é algo estranho e perigoso, então eu começo a me perguntar o que você é.

– Eu não sei nada de você, Hrothnar, ou o que o fez ganhar o pão de cada dia com um comércio brutal e cruel, mas aprendi bastante sobre o mundo em minhas viagens, especialmente acerca das dificuldades e da crueldade que recaem sobre os pobres. Mais uma vez, Hrothnar, espero que você se beneficie dessa experiência e não nos cause mais problemas.

Hrothnar permaneceu em silêncio, pois o curandeiro o deixara intrigado e confuso. Ou esse jovem era muito tolo ou muito perigoso. Em todo caso, Hrothnar não queria mais nada com o curandeiro ou seu grupo. Enquanto fazia um grande esforço para levantar seu companheiro, ele curvou a cabeça para responder com um obediente e respeitoso aceno a Myrddion. Então, silenciosamente, ele ergueu o companheiro sobre o ombro e se virou para ir embora, enquanto ao seu redor o alvoroço do cais rodava e caminhava com pressa como se nada tivesse acontecido.

Cadoc retornou antes do meio-dia com um rosto triste e duas carroças, uma das quais conduzida por um rude e jovem saxão cujo sotaque era tão evidente que até Myrddion teve dificuldade em entender muito do que ele falava. O motivo para o desânimo de Cadoc estava imediatamente óbvio.

Bois!

Um único cavalo pardo estava amarrado à parte traseira da carroça principal; os animais entre os arreios eram enormes bois marrons, com chifres serrados para baixo e com pontas de metal, e olhos tristes. Cadoc detestava bois porque eles eram lentos, jumentos e difíceis de lidar. Em emergências, os animais tinham apenas um ritmo, independente do número de chicoteadas que lhes fossem dadas, e o tempo necessário para virá-los podia ser fatal se as carroças sofressem um ataque. Até Myrddion, que era imparcial, não gostava de viajar atrás de um monte de bois à medida que seus grandes cascos criavam uma cortina de poeira.

– Você acreditaria que os cavalos parecem ter sumido de Dubris? O melhor que eu pude reunir foi essa criatura manca de um comerciante dumnonii que precisava de dinheiro extra para voltar para casa. Os celtas estão deixando Dubris em hordas, mas não há escassez de nortistas migrantes ansiosos para assumir o lugar deles.

– Sim, Cadoc, nós já chegamos à conclusão de que os portos aqui são mais perigosos do que aqueles de Ostia, e eu achava que lá era ruim – Finn complementou. – Sonhei com minha casa em cada passo do caminho de Constantinopla, e, agora que estamos aqui, o lar é mais estranho e perigoso que a maioria dos lugares a que já fomos.

– Vamos sair deste desagradável lugar – Myrddion bufou. – Eu não acredito que nesses seis anos Britânia mudou tanto. Nós vimos o movimento das tribos na Gália e sabemos por experiência própria que a violência preencheu o vazio criado pela retirada romana. De qualquer maneira, nunca esperei encontrar isso aqui, na Britânia, então, perdemos mudanças surpreendentes durante nossas andanças.

– Nada muito benéfico aconteceu para as pessoas, mestre, e isso é certo – Cadoc resmungou enquanto descia da primitiva e malfeita carroça, que não contava nem com o refinamento de uma cobertura de couro. – Olhe esta coisa! Até as rodas são feitas de madeira. Lembra aqueles aros de metal das carroças em Roma.

– Não estamos em Roma agora – Finn retrucou sem necessidade.

– Sinto muita vontade de ver terras estrangeiras e respirar ar limpo – Myrddion murmurou baixinho. – Vamos deixar Dubris para trás o mais rápido possível.

Com a economia de longa prática, os curandeiros carregaram a carroça. Eles estavam conscientes da inspeção invejosa e dura dos estivadores, então, nervosos pelo risco de interferência de salteadores e ladrões, os homens trabalhavam com rapidez. Enquanto agiam, Praxíteles fez várias perguntas sobre o tamanho e a qualidade do maior porto da Britânia, e os curandeiros se sentiram um pouco envergonhados enquanto comparavam a pequena Dubris com a grandeza de Constantinopla.

Com as carruagens carregadas e com todos a bordo, o barulho do longo chicote de Cadoc colocou os bois em um movimento relutante. Assim, com Praxíteles dirigindo a outra carroça, e Myrddion comandando o cavalo pardo, a jornada por Dubris começou. A evidência de grandes e destrutivas mudanças estava ao redor de todos, e Myrddion, com seu novo refinamento, disse a si mesmo que essa mudança era o caminho do mundo, tão natural quanto a chuva ou o sol.

No entanto, essas novas cicatrizes em sua terra natal o machucaram. Até os menores templos tiveram suas pedras arrancadas, enquanto vândalos derrubaram colunas inteiras de várias construções, de modo que Myrddion podia ver a inteligente engenharia que havia juntado as seções. Mudos, mas ainda assim expressivos, os pedestais nus o lembravam de que deuses de mármore haviam estado lá um dia e abençoaram os cidadãos de Dubris com paz e abundância.

– Tudo muda – Myrddion sussurrou numa tentativa frustrada de persuadir a si mesmo. – Ficar parado significa apodrecer e morrer.

Em seguida, o fórum apareceu, completamente destruído, e o grupo todo ficou em silêncio. Ainda mais pungentes eram as crianças esfarrapadas que brincavam com cacos de mármore no fraco sol da primavera. Como se fossem animais, elas atormentavam um faminto cachorro jogando pedaços de pedras nele. A pobre criatura tentava fugir por uma floresta de colunas, mas as crianças o perseguiam, gritando de excitação. Do outro lado da larga estrada, restos sem teto dos banhos públicos ainda ostentavam água verde e viscosa dentro do caldário, em cujas águas profundas e espumosas várias crianças jogavam pedra. Myrddion havia tomado banho ali apenas seis anos antes, e agora...? Pedra e madeira foram arrastadas pelos imigrantes para criar estruturas provisórias nas margens da cidade.

Um objeto colorido e brilhante chamou a atenção de Myrddion do meio de uma espessa vegetação de cardos que florescia entre placas de mármore da pavimentação quebrada. Sem pensar, ele saltou de seu cavalo e afastou a folhagem pontiaguda para recuperar um fragmento de mármore esculpido e pintado. Então, levantou o pedaço como um troféu, e seus amigos puderam identificar a descoberta.

Uma mão de mármore esculpida, pintada em vermelho-tijolo para simular uma pele bronzeada, levantava o dedo indicador de modo imperioso em direção ao céu. Milagrosamente, os dedos não estavam quebrados. Um anel esculpido no dedo que apontava tinha sido pintado de azul e capturava as luzes como se fosse uma verdadeira joia, em vez de uma mera simulação.

– Quem sabe isso tenha vindo da estátua de um deus? Ou talvez tenha sido parte de uma dedicatória a um imperador ou a um nobre senador. Não importa mais, pois agora está tão morto como seu dono, ou como a Dubris romana por onde nós passamos no nosso caminho para Constantinopla. Não há razão para lamentarmos os dias de paz que se foram durante nossa ausência.

Ainda assim, embora aceitando racionalmente a essência natural e orgânica da mudança, Myrddion acariciou a mão entalhada e pediu a Brangaine para tomar conta dela até que ele tivesse tempo de examiná-la com mais cuidado. Com a mesma reverência, Brangaine encontrou um pedaço de pano perdido e embrulhou a mão com cuidado, como se ela pertencesse a algum homem ainda vivo que lamentasse a perda da mão amputada.

Conforme os viajantes passavam pela cidade, um sujeito com olhar de desaprovação os encarou e reconheceu algo celta nos seus longos cabelos trançados e nas joias antigas. Mas os curandeiros haviam se tornado endurecidos e fortes pelos anos de viagem, então carregavam com eles uma leve aura de perigo que silenciava os homens carrancudos e as suas altas e magras esposas. Apenas as crianças eram corajosas ou destemidas o suficiente para gritar insultos que seguiam as carroças pelas ruas:

– Celtas fedidos! Cães covardes! Vão para casa, com suas cabanas fedidas.

– Onde estão seus amigos romanos agora? – uma mulher loira gritou das escadas de um pequeno teatro, enquanto amamentava uma criança em um seio com bico marrom. – Todos eles correram para longe, então é melhor vocês os seguirem até o bastardo Ambrósio.

Ela calou-se quando Myrddion sacou a enorme espada celta e a colocou ao lado de sua sela. Com precisão infalível, a mulher cuspiu nas patas do cavalo. O curandeiro olhou para frente e a ignorou, assim como ao bando de garotinhos e jovens que corria atrás deles.

– Logo precisaremos de mantimentos, mestre – Cadoc gritou para seu líder sem virar a cabeça. O criado sempre prudente era cuidadoso a ponto de não tirar os olhos da estrada enquanto eles passavam por território inimigo.

– Fale em latim, Cadoc – Myrddion respondeu com rigidez. – Não há razão para mostrar que temos dinheiro.

– Sim! Mas nós ainda precisamos de mantimentos, e aquela região entre minhas omoplatas está coçando. Estas ruas estão cheias de olhos escondidos.

– Nós poderemos parar nos arredores se encontrarmos um lugar seguro para compras. Mas, se tivermos de viajar noite e dia apenas com água para encher nossas barrigas, é o que faremos. Somos odiados aqui, portanto, não vou parar por livre e espontânea vontade, muito menos sem fome.

Praxíteles manteve seu bastão com facilidade sobre os joelhos enquanto dobrava as rédeas. Finn também havia tirado sua espada, e, armada e preparada, a cavalgaria atravessou as ruas hostis em um passo constante e pesado. Finalmente, quando anoiteceu, o grupo foi forçado a parar. Mesmo assim, os homens montaram guarda enquanto as mulheres dormiam, cientes de que a noite estava cheia de ameaças e do desagradável cheiro de ódio.

– Bem-vindos de volta à Britânia – Myrddion murmurou com ironia para Cadoc, que preparava sua cama embaixo da carroça. – Eu preferiria dormir nas ruas de Roma a dormir nesta fossa.

Cadoc descobriu que tinha pouco a dizer quando estava profundamente perturbado. Seu entusiasmo e humor tinham desaparecido na lenta jornada desde o cais. Mas, assim como seu mestre, ele lamentou a perda de tanto do que ele já havia amado.

Antes do nascer do sol, naquele momento em que o céu se torna cinza e as estrelas somem, os curandeiros estavam na estrada, mais uma vez em movimento. A noite era gelada, lembrando o inverno frio, então eles se encolheram de modo miserável em suas capas e sonharam com comida quente. A névoa pairava sobre as construções da cidade e conferia às ruínas saqueadas uma ilusão de integridade, borrando os detalhes de lama e vergando armações de madeira de portas, o que criava uma ilusão de beleza nas formas simples. O orvalho brilhante suavizava e revestia os pequenos pátios e jardins viçosos. As ruas desertas ecoavam misteriosamente, como se as pedras lembrassem a marcha das legiões que usavam sandálias e o selvagem e leal canto de guerreiros celtas, enquanto se preparavam para a guerra. Era uma hora quando os fantasmas do passado pareciam chamar os incautos viajantes para fora da névoa, antes que o nascer do sol trouxesse de volta a realidade prosaica e feia de Dubris sob o comando de seus novos mestres.

– Nós deixaremos a cidade antes do amanhecer, e com sorte encontraremos mercados adequados, mestre – Bridie consolou Myrddion enquanto ele se aproximou da carroça e sorriu ao olhar para o semblante adormecido do filho pequeno dela.

– Você tem sido muito paciente e corajosa, Bridie. Dar à luz uma criança a bordo de um navio com destino à Gália não é fácil. Mas logo você estará de volta a nossa terra e poderá apresentar seu filho a Ceridwen. Então a criança se tornará um verdadeiro celta.

Bridie acariciou o pequeno amuleto de ouro preso ao pescoço do bebê adormecido, os olhos brilhando com o amor incondicional que uma mãe sente por seus filhos.

– Eu lhe agradeço a bulla, meu senhor. O ouro é tão refinado que o senhor deve tê-lo adquirido em Constantinopla. É um presente maravilhoso para o meu menino, que sempre estará marcado pelo seu favor.

Myrddion ficou corado, pois ele receava que Bridie fosse ofender-se com o costume romano de presentear um bebê com uma caixinha guardando um amuleto. Mas Bridie havia viajado desde Cymru e aprendera a julgar o coração dos homens com acurado instinto.

– O seu menino merece um futuro melhor do que seguir os caminhos da guerra de um cruel lugar para outro – Myrddion disse com arrependimento, enquanto olhava Finn dormir na bagagem amontoada na carroça. Praxíteles estava segurando as rédeas e cantava música grega com uma voz leve e entoada. – Eu gostaria que você convencesse Finn a assumir meu lugar em Segontium, Bridie. Espero me tornar um curandeiro errante, pois há muitas almas sofrendo nas pequenas vilas e fazendas. Mas você e seu bebê merecem uma confortável casinha que seja de vocês. Minha mestra, Annwynn, que me ensinou tanto nos anos em que fui seu aprendiz, está muito velha e precisa de costas fortes e de um bom par de mãos para ajudá-la a preparar os medicamentos para cura. Você terá uma boa vida na fazenda de Annwynn, e seu filho será alto e saudável.

Bridie olhou atentamente para Myrddion por entre as tranças caídas.

– O senhor quer se livrar de nós, mestre? Nós somos um estorvo?

Myrddion sacudiu os arreios em surpresa e negação até que o impassível cavalo dançasse e freasse em protesto.

– Não, Bridie, de jeito nenhum! Meu coração se encherá de tristezas quando nós nos separarmos, mas você e Finn devem fazer o que é certo para o pequenino.

Bridie suspirou e concordou.

– Um dia o senhor terá seu próprio filho, mestre. Deixará de andar por aí, então?

– Estou certo de que não me tornarei pai tão cedo – Myrddion sussurrou, os lábios retraídos com um amargo pesar. – Até agora só tenho errado nos meus julgamentos em relação às mulheres, como você sabe. Alguns homens nascem para viver sozinhos.

– Ah, mestre – Bridie sussurrou com tristeza, mas o cavalo de Myrddion já havia andado e ele não a ouviu. Então, o momento de intimidade se foi assim que a criança acordou e procurou o seio da mãe.

Quando o sol começou a aparecer no horizonte, os viajantes dirigiram-se a um mercado que estava sendo montado na periferia da cidade. Os curandeiros sentiam-se agradecidos por ver agricultores locais, assim como saxões, levantando cestas com aves vivas, ovos embalados em palha e cestos com legumes novos, junto com comerciantes que exibiam suas mercadorias em rústicas mesas cobertas que lhes proclamavam a riqueza. As mercadorias destinavam-se a seduzir as multidões que viriam com o passar do dia, e incluíam todas as quinquilharias de pouco valor que poderiam ser compradas sem muito gasto em quaisquer dos portos francos, e também objetos insignificantes e malfeitos que vinham de lugares distantes como Marselha. Bridie, Brangaine e Rhedyn desceram das carroças e se debruçaram na comida fresca com a avidez de compradores desesperados. Elas eram experientes o bastante para não desperdiçar sequer um cobre em joias que ficariam enegrecidas quase que imediatamente, ou em panelas tão fracas que iriam quebrar depois de pouco tempo de uso, e pechincharam, insistiram e exigiram os melhores acordos possíveis com a confiança de mulheres que aprenderam um pouco de seis línguas em todos os lugares de compras no mar Mediterrâneo. Após minutos de negociações, as compras estavam arrumadas na carroça, e o grupo saía do mercado deixando as tendas pobres da periferia de Dubris para trás. A jornada para casa havia começado.

O ar era puro agora e exalava o rico aroma de terra recém-cultivada, de madeira queimada e das flores silvestres que floresciam nos vãos entre as raízes das árvores. De repente, o cheiro de casa estava tão forte que Myrddion sentiu os olhos se encherem de lágrimas, virando a cabeça para que nenhum de seus amigos o visse chorando. Ele deixara a Britânia com um espírito misto de aventura, ressentimento e excitação, mas tinha aprendido que sua terra natal, independente de quão longe parecesse estar, era parte de seus ossos e de seu sangue.

– Eu juro que nunca mais partirei, independente do que o futuro nos reserve. Se Dubris serve de exemplo, então nós teremos um tempo extraor­dinariamente ocupado aqui na Britânia.

Mas seus companheiros não o ouviram. E, de qualquer forma, não teriam discutido, pois a casa era tudo para eles... E sempre fora. Myrddion perseguira seu sonho até Constantinopla, e eles o haviam seguido de bom grado, mas nunca perderam suas raízes de vista.

Nunca mais, Myrddion pensou. Os dedos do curandeiro recordavam a textura da pele de Flávia e a maravilhosa delicadeza de seu cabelo; os lábios lembraram o gosto daquela boca de mel e da língua perversa; o corpo do jovem continuava faminto por ela. Mas Flávia escolhera ser a amante do pai de Myrddion; mesmo que apenas por uma temporada, ele jurara que nunca mais amaria outra mulher.

Amor e paixão de pouco adiantaram para aplacar a terrível solidão que sentia, repleta de dor.

A partir daquele momento, ele determinou que o amor por sua terra natal seria suficiente para suprir as necessidades de seu solitário coração.