Capítulo 3

Um servo indolente

Três coisas sempre ameaçam um homem:

Doença ou idade ou o choque de morte rápida

Vão arrebatar a alma do mais forte guerreiro

Assim é que ele precisa de quem valorize seu nome,

Do louvor de seu povo depois de sua despedida,

Para assustar o diabo antes de sua partida,

Fazer o bem na terra e dignamente conquistar.

De um poema inglês muito antigo — A viagem da alma

M erda! – Myrddion exclamou grosseiramente enquanto Cadoc e Finn olhavam para o mestre de soslaio. – Eu sei que Uther Pendragon me viu. Eu sei! Vi seus olhos tentando me fixar em sua memória. Droga e merda!

– Talvez o senhor precise se juntar às mulheres, mestre. Certamente ele não vai insistir em procurá-lo muito se não puder encontrá-lo entre os feridos – Cadoc não estava convencido de seu próprio argumento, quaisquer que fossem as banalidades que sua boca pudesse proferir.

Myrddion também não estava convencido, sabendo muito bem que Uther Pendragon tinha uma mente bastante focada em alcançar seus objetivos e obcecada na destruição dos inimigos. Pelo raciocínio de Uther, Myrddion serviria para manter seus guerreiros vivos e combatendo; desse modo, o curandeiro deveria ser forçado a aderir aos desejos de Pendragon.

– Finn, ouça-me. Você e Bridie conversaram sobre o que eu disse a ela? Se Uther Pendragon decidir solicitar meus serviços, eu tentarei garantir que você fique livre para seguir até Segontium. Se Annwynn ainda estiver viva, ela abrigará sua família em casa e lhes dará uma vida boa em troca de suas habilidades. Porém, se em nossa ausência ela já tiver passado para as sombras, você poderá procurar por Eddius, marido de minha avó, que garantirá que você e os seus fiquem a salvo.

Os curandeiros tinham alcançado o portão e encontrado os corpos empilhados de três em três, tendo em vista que os guerreiros de Uther haviam despojado os mortos de qualquer bem que possuíssem. Uma carroça rústica puxada sob protestos por uma mula foi trazida o mais próximo possível da carnificina, e no fundo dela, uma vez despidos, os inimigos mortos eram jogados sem cerimônia como se fossem lixo.

– Nós não vamos deixá-lo com esse bastardo, mestre – Finn protestou. – Uther é ainda pior que Flávio Aécio, porque gosta de matar suas vítimas. O cachorro romano era muito ordeiro e muito frio para tal paixão. Eu não vou abandoná-lo, Myrddion.

– Você precisa – Myrddion insistiu. Você é pai agora, consequentemente suas responsabilidades vão além de seus próprios desejos. E deve contar aos seus filhos o que viu e ouviu. Você é o Narrador da Verdade, portanto precisa sobreviver e livrar-se de qualquer mancha em sua honra. Se Uther me descobrir, ele me incumbirá de serviços que eu preferiria não fazer. Não quero me preocupar com você, sua mulher e seu bebê, assim como com meus outros companheiros. Sirva-me bem, meu amigo, deixando-me ao meu destino. – Um leve, quase inaudível gemido, chamou a atenção de Myrddion. – Silêncio, Finn. Escute! Alguém está vivo naquela pilha de corpos à esquerda do portão.

Dois guerreiros de Uther pegaram o corpo flácido de uma mulher cuja cabeça pendeu de forma estranha, mostrando a garganta obviamente cortada, a julgar pelo véu de sangue que encharcava sua roupa desde o pescoço até a bainha.

Parcialmente protegida sob o corpo curvado da jovem, uma criança pequena começou a chorar debilmente de dentro de seu ninho de carne dilacerada.

Tão rápido quanto as asas de um merlin quando ele desliza para matar, Myrddion precipitou-se sob os braços do guerreiro mais novo e arrancou a criança, totalmente encharcada de sangue, da terra ensanguentada; portanto, o curandeiro não pôde ver se ela sofrera algum ferimento. Ao tentar remover o cueiro pegajoso que a envolvia, Brangaine apareceu ao lado de Myrddion como por mágica, tirando a criança das mãos do mestre.

– Eu verei o pequenino ao voltar para a estalagem, mestre – disse ela, e Myrddion soube mais que ninguém que não deveria contestá-la, pois ela já havia envolvido nos braços maternais a criança choramingando.

Outra boca para alimentar, uma voz cínica sussurrou na mente de Myrddion, mas o curandeiro fechou, com uma batida estrondosa, uma porta mental a esse pensamento insidioso.

– Por que você está aqui, Brangaine? É extremamente perigoso, e você deixou Willa sozinha.

– O príncipe estava procurando pelo senhor, mestre, e Gron pareceu querer entregá-lo. Aquele homem é uma cobra, sem qualquer sentimento decente, com exceção de lamentar e reclamar sobre tudo em sua presunçosa existência. Eu vim para avisar ao senhor.

Brangaine fez uma careta para o curandeiro, com um olhar que parecia leite talhado, então Myrddion tentou acalmar os sentimentos feridos dela enviando-a de volta para a hospedaria, a fim de limpar a criança e descobrir se o pequenino tinha sofrido algum ferimento. Então, com seu dever cumprido, ele voltou a procurar os que ainda viviam no meio daquele monte de corpos.

Coagindo para ajudá-lo qualquer pessoa sã que passasse, Myrddion conseguiu livrar os lamentavelmente poucos sobreviventes que ainda respiravam.

Em sua busca por pilhagem, os guerreiros de Uther haviam seguido em frente à procura dos corpos dos invasores saxões na cidade baixa, sem qualquer interesse pecuniário nos homens e mulheres seminus que tinham sido pegos na impiedosa batalha. O campo de morte junto à muralha revelava um total de 151 mortos. Somente restavam vivas duas crianças levemente feridas, e Myrddion ficou com o coração partido ao contemplar a meticulosidade mostrada pelos saxões. Os corpos eram impotentes contra os golpes dos machados e das espadas de ferro.

Na cidade baixa, Myrddion e seus assistentes tiveram de lidar com queimaduras cruéis, carnes brutalmente inchadas e infestadas de bolhas abrindo-se e cintilando devido a queimaduras internas. Assim como Annwynn fizera tantos anos antes da destruição da Estalagem Velha Azulada, em Segontium, Myrddion utilizou seu meimendro e sua papoula generosamente nos poucos pacientes que sobreviveram aos beijos do fogo.

Desse modo, algumas horas depois, Myrddion estava desanimado e exaurido quando um guerreiro da guarda pessoal de Uther o encontrou cuidando do último dos sobreviventes. As ordens do príncipe para o jovem foram concisas e específicas:

– Instrua o curandeiro cujo nome eu não consigo lembrar a encontrar-se comigo na casa de Gotti, o comerciante, antes do cair da noite. Alerte-o de que ele sentirá minha ira se eu for forçado a procurá-lo.

A atitude do mensageiro foi irônica tanto no tom quanto na postura, pois o fraco curandeiro diante dele parecia incapaz de representar qualquer ameaça a ele ou ao príncipe. Como filho de um senhor Atrabate menos importante, o guerreiro, apesar de muito envaidecido de sua própria importância, ainda não tinha aprendido a desconfiar das aparências. Myrddion percebeu imediatamente sua imaturidade, embora o jovem usasse uma barba avermelhada e rente, no estilo romano.

– Antes que eu lhe peça para repetir a sua mensagem, jovem, qual é o seu nome? Não gosto de receber instruções de pessoas que desconheço.

Enquanto falava, os olhos de Myrddion permaneceram fixos na perna queimada de uma jovem mulher, com aproximadamente quinze anos, cuja face estava suja de fuligem, exceto onde as lágrimas escorreram antes de lhe pingarem no vestido.

– Sou Ulfin. Agora ouça as palavras do Príncipe Pendragon, mestre do Ocidente e o tormento dos saxões – o jovem respondeu irritado, enquanto tentava retomar a iniciativa.

– Estou ciente de quem é seu mestre. Qual é a mensagem? – o curandeiro falou com tão calma presença de espírito que Ulfin ficou frustrado e irritado. Ele era quase da idade de Myrddion, e tentava desesperadamente disfarçar seu nervosismo e sua frustração, mas algo brilhou nos olhos negros e oblíquos do curandeiro, fazendo o guerreiro se sentir nauseado por um momento. Entretanto, um sorriso logo reforçou a primeira impressão de um jovem inocente e inofensivo, e ele repetiu a mensagem com mais calma.

– Eu irei assim que tiver terminado de cuidar das queimaduras desta jovem. Uns instantes não significam nada para Uther Pendragon, mas são essenciais para as chances de ela sobreviver aos ferimentos. – Sem esperar pela resposta, Myrddion continuou a enrolar uma faixa com unguento em volta das dolorosas bolhas na perna e no pé da menina.

– Meu senhor instruiu-me a levá-lo imediatamente – Ulfin disse mal-humorado, batendo o pé direito como uma criança na rua em que Myrddion trabalhava. – O príncipe fará nós dois sofrermos se você deixá-lo esperando.

– Eu já disse que irei assim que terminar este curativo, e estou quase no fim. Lembro a você que Uther Pendragon é seu senhor, não meu. Ele também está em débito comigo, então eu o aconselho a ser cortês.

O guerreiro teria protestado, mas Myrddion irresponsavelmente virou as costas para ele e continuou a enrolar a panturrilha da menina, de modo deliberadamente cuidadoso. Ulfin começou a andar enquanto sua imaginação fértil pensava em uma desculpa para seu atraso. Uther não ficaria satisfeito, e Myrddion ganhara um novo inimigo.

– Pronto, está terminado – Myrddion sussurrou para sua paciente. – Você foi uma menina corajosa e logo se sentirá muito, muito melhor. Não tenha medo, pois verei você antes de partir para o Norte.

Mantendo a atenção normal aos detalhes, Myrddion lavou as mãos em uma vasilha com água quente, limpou as unhas sujas de sangue e ajeitou o cabelo, que já começava a se soltar. Em seguida, instruiu Finn e Cadoc a cuidar dos pacientes, arrumou suas vestes e se virou para olhar o guerreiro.

– Muito bem, Ulfin, estou pronto. Sou um estranho aqui, então me leve à casa de Gotti.

Claro, Ulfin pensou, enquanto liderou a caminhada de volta para a cidade. Ninguém que conhece o Filho do Dragão o deixa esperando.

A casa de Gotti era um sobrado feito de argila e tijolo, mais semelhante à subura de Roma do que a finas moradias. Da entrada, Myrddion podia ver um longo corredor que levava a um saguão interno íntimo, repleto de estátuas. Enquanto o revistavam à procura de armas, ele notou que o jardim a céu aberto era longo e estreito, e que a família de Gotti aparentemente aderira à prática de cultivar alimentos comestíveis na cidade, se a visão de ervas enfileiradas, limoeiros em vasos e algumas jovens cabeças de repolho indicavam alguma coisa. Quando os guardas de Uther terminaram a eficiente revista, Myrddion foi conduzido ao triclínio, onde as janelas estavam bem abertas para capturar qualquer raio de sol.

– Você demorou, curandeiro. Minha mensagem não foi persuasiva o suficiente? Quanto a você, Ulfin, nós discutiremos a questão de tempo mais tarde.

Uther recostou-se em um sofá, totalmente à vontade, por todo o tempo que ele havia vivido livre dos costumes romanos. Myrddion examinou as faces bem barbeadas do príncipe e os cachos encaracolados ainda tão vigorosos quanto o eram em sua memória. Mas Uther estava agora na meia-idade, e seu rosto mostrava, nos elegantes ossos, todos os vincos esculpidos em suas feições. Uma aura invisível de poder pairava-lhe sobre a cabeça e os ombros, e Myrddion quase podia ouvir o ruído de um relâmpago.

O curandeiro repreendeu a si mesmo. Olhe nos olhos dele, tolo! Há mais do que apenas poder ali; há raiva e um ódio frio também. Com exceção do irmão, Uther odeia quase tudo.

Prevenido, Myrddion abaixou a cabeça com requintada cortesia, avaliando minuciosamente a profundidade de sua obediência. Uther não era rei, mas também não era apenas um nobre. Um homem sábio sempre trataria aquela natureza imprevisível com cautela.

– Seu criado foi admiravelmente claro e conciso, senhor. Não foi culpa dele a espera. Eu estava terminando o curativo nas queimaduras de uma menina, então o atraso foi apenas culpa minha. A cicatriz do seu antigo ferimento desapareceu?

Essa última pergunta desviou a expressão de tormenta das belas feições de Uther. Ele mostrou seu antebraço, e Myrddion se inclinou para examinar um longo sulco branco na pele dourada onde a presa de um javali tinha rasgado carne e músculo.

– Como você pode ver, curandeiro, suas habilidades me fizeram bem. Agora, relembre-me o seu nome, pois gosto de saber os pormenores da vida de meus criados para que julgue sua reputação. Ah, vejo que você ainda precisa aprender a vigiar essas suas negras sobrancelhas. Sim, você irá me servir, curandeiro, ou eu serei forçado a pressioná-lo. Nenhum líder de verdade permite que uma ferramenta valiosa passe por suas mãos sem ser usada.

– Ai de mim, senhor; sou esperado em Segontium, então não posso ficar aqui – a voz de Myrddion era implacável, mas ainda assim gentil. Os olhos dele percorreram o rosto de Uther e uma parte reservada da natureza complexa do jovem admirou a calma gelada do príncipe.

– Você me servirá, curandeiro, pois eu encontrarei algo para persuadi-lo. Qual é o seu nome? Não desejo chamá-lo pela sua ocupação, então me responda com sinceridade.

– Eu sou Myrddion Merlinus, antigamente chamado de Emrys, Príncipe Uther. Já fui curandeiro de vários reis, mais recentemente de Flávio Aécio, antigo magister militum de Roma.

– Impressionante, mas por que eu me importaria com generais falidos que encontraram seu destino? Estou mais interessado no seu nome romano. Agora que o ouvi de novo, lembro-me de me questionar sobre ele antes. – Conforme a boca de Uther se mexia dizendo alguma coisa que Myrddion decidira ignorar, o curandeiro resolveu pensar com cuidado antes de explicar qualquer coisa pessoal para aquele homem formidável.

– Eu sou o filho bastardo de um pai que se recusou a me conhecer, então, já que o nome dele não é mais importante, eu adotei o nome de sua ave de caça, um pássaro que rejeitou ser domado. E, embora o senhor seja sarcástico em relação a meu antigo mestre, eu gostaria de lembrá-lo, meu senhor, que Aécio sempre obteve sucesso como um comandante de batalha. Ele venceu Átila, o Huno, na batalha dos Campos Cataláunicos, e apenas foi assassinado pelas mãos de um temido imperador louco. Orgulho é um pecado perigoso, meu senhor, tanto para generais como para príncipes, ou mesmo para um mero curandeiro.

– Isso é uma ameaça, Myrddion? – Uther soltou um riso abafado, e o curandeiro não tinha ideia se humor ou sarcasmo era a fonte da diversão do príncipe. – Assim como Aécio, Valentiniano está morto, então por que eu gastaria meu tempo pensando nas estratégias de outras mentes fracassadas? Ainda assim, você conseguiu despertar minha curiosidade. Você é um homem com muitas habilidades, Myrddion Merlinus, e eu não o libertarei para vagar por onde quiser. Você irá me acompanhar a Venta Belgarum. As celebrações do aniversário do meu irmão são esperadas, então você será um ótimo presente para o Imperador Ambrósio.

– O senhor é gentil ao dizer isso, Príncipe Uther, mas recusarei seu convite. Devo acompanhar meu criado, Finn Narrador da Verdade, à sua nova senhora, Annwynn de Segontium. Uma vez lá, pretendo passar um pouco de tempo com a minha família e meu rei, Melvyn ap Melvig, de Deceangli.

Uther franziu a testa, baixando sua enorme e majestosa cabeça, de modo que os olhos azuis examinassem o curandeiro por debaixo das sobrancelhas douradas do príncipe. O olhar, incrédulo e inexpressivo, estava tão indefinido como poças rasas de água clara.

– Eu deveria me sentir insultado por recusar minha oferta, mas aceito que você é um jovem orgulhoso, Myrddion. Então, deve ouvir meus pedidos para que o orgulho não o conduza a erros. – No ameaçador e pequeno silêncio que se seguiu, Myrddion entendeu muito das palavras de Uther. Por um curto momento, ele achou que o príncipe o deixaria partir ileso para Verulamium, mas, então, Uther ergueu os olhos azuis vagarosamente, e Myrddion foi forçado a reprimir um tremor. – Não, meu belo pássaro de caça, você aprenderá a vir à minha luva ou será engaiolado. Pensei que você me entenderia, Myrddion Merlinus. O Narrador da Verdade pode ir para o inferno, mas você irá comigo para Venta Belgarum montado em seu cavalo, ou acorrentado.

– De que serve um servo insolente?

Uther considerou a pergunta de Myrddion com seriedade.

– Dependendo do criado, sua utilidade será avaliada por mim. Eu estou perdendo a paciência com você, Myrddion Merlinus, e quase decidindo levá-lo acorrentado a Venta Belgarum. Qualquer homem patriota consideraria minha oferta uma honra. O contrário de patriotismo é traição, um crime passível de morte, e no mínimo você não estaria em posição de socorrer a causa saxã.

Myrddion lembrou-se do aviso de Willa e reconheceu que ele não tinha outra alternativa senão aceitar a decisão de Uther, mas sua honra exigiu que algumas concessões deveriam ser conseguidas de seu oponente. Os ombros endireitaram-se enquanto ele se preparava para lutar contra a sagacidade do príncipe.

– Eu estou preparado para jurar fidelidade ao Imperador Ambrósio e à coroa, Príncipe Uther, mas sob várias condições. Embora não seja um traidor, as minhas viagens me convenceram de que nós devemos encontrar um ponto de equilíbrio e interesses comuns com os saxões que invadiram nossas terras. Concordo que não lhes seja permitido invadir nossa terra natal, ou tudo o que acalentamos será corroído. Mas não jurarei voluntariamente fidelidade a um homem que me reprime ou me ameaça, meu senhor. Não sou um camponês e acho insultante ser forçado ao trabalho por uma mão mais forte e mais cruel que a minha própria.

Justo quando Myrddion esperava que Uther ficasse enfurecido, o príncipe sorriu.

– Barganhando, não é? Eu não dou a mínima importância se você jura fidelidade a mim ou não, desde que me obedeça. Tenho certeza de que você será importante nas próximas guerras, quer queira ou não. Decida, Myrddion Merlinus! Você vem para Venta Belgarum? Ou você morre?

Myrddion olhou ao redor do triclínio nos rostos duros dos guardas de Uther, especialmente um jovem alto que se postava diretamente atrás do sofá do príncipe. As expressões ao seu redor revelavam tão somente indiferença, crueldade e obediência inquestionável ao mestre deles. O curandeiro sabia que a afeição dedicada aos amigos e criados que o haviam seguido até o fim do mundo acabara por debilitá-lo.

– Eu viajarei com o senhor para Venta Belgarum, Príncipe Uther. Meu companheiro curandeiro Cadoc e o grego Praxíteles irão me acompanhar, mas Finn Narrador da Verdade e meus outros criados precisarão de uma carroça e de um cavalo para viajar para o Norte. E necessitarão de mantimentos. Não permitirei que uma jovem família pereça nas longas e selvagens estradas que levam a Segontium.

Uther riu. Os lábios rosados brilhavam com diversão e algo mais tenebroso que se escondia quase à tona da superfície de sua natureza, mas o príncipe de fato havia se divertido com a tentativa de barganha de Myrddion.

– Ache uma carroça e um cavalo, Botha. Eu não me importo de onde eles venham, apenas os encontre e os entregue ao mestre Narrador da Verdade, com meus cumprimentos. Ulfin, você pode ser útil e aterrorizar Gotti a fim de que ele forneça comida suficiente para alimentar os viajantes. Se conseguir se sair bem, talvez eu esqueça o quão demorado você foi para obedecer às minhas ordens. Talvez! – O alto e jovem guarda concordou com a cabeça e teria deixado o triclínio com Ulfin a seu encalço, mas Uther ainda não terminara suas instruções. – Seja rápido, Botha! Eu estou entediado com Verulamium, agora que a cidade já capitulou os atacantes saxões. Amanhã estarei no caminho para Venta Belgarum e quero meu curandeiro comigo.

– Entendo, meu senhor, e vivo para servir – Botha respondeu com uma voz firme e profunda. Assim que os dois guerreiros viraram para se retirar, Ulfin tentou não correr da presença do Uther.

Como se Myrddion tivesse deixado de existir, Uther retornou para sua taça de vinho, e o curandeiro percebeu que a reunião tinha acabado.

Finn Narrador da Verdade ficou inconsolável quando Myrddion insistiu em dividir tudo que ele havia ganho com seu antigo assistente. Botha chegara em pouco tempo, conduzindo uma pesada carroça com dois cavalos enormes que balançavam as claras crinas e marcavam o chão batendo nele gigantes cascos com franjas. Cadoc olhou os animais com aprovação, e Finn os teria trocado pelo boi se Myrddion não tivesse recusado sua oferta completamente.

Cadoc estava desapontado.

Bridie chorava, o que fez o seu bebê gritar vigorosamente, até na Donzela Flor ecoar o som de lamentação e choro. Quando Myrddion pegou uma sacola de couro com quatro moedas de ouro, o choro de dor de Bridie tornou-se ainda mais alto, enquanto o Narrador da Verdade tentava recusar tanta generosidade.

– Não vou aceitar isso, mestre. Essa sacola de couro pertence ao senhor e foi conquistada com grande esforço pessoal. Eu teria continuado um errante maluco nas montanhas de Cymru se não fosse pelo senhor, então, como posso aceitar as moedas que conquistou com tanto custo?

– Por favor, Finn. Sou grato a você pelas várias caminhadas cansativas sempre me servindo com paciência. E a Bridie também. O coxear dela deveria lembrá-lo todos os dias do quanto ela cedeu ao obedecer aos meus pedidos. Independente de seus protestos, meu amigo, você parte com a minha bênção. E, se elas estiverem dispostas, eu quero que leve Rhedyn e Brangaine e as crianças junto para que continuem seguras.

Brangaine estava confusa diante das possibilidades que de repente se abriram a ela, pois os grandes olhos verdes de Willa a assombravam, tanto acordada como adormecida, e a segurança da criança consumia seus pensamentos. Mas quase tão constrangedor era o medo que Brangaine sentia de ser uma mulher sozinha, desprovida de quaisquer meios de ganhar a vida quando não tivesse mais um mestre para conferir status a ela. Agora, frente a duas possibilidades não satisfatórias, ela foi silenciosamente atingida pelo peso de suas responsabilidades. Por fim, abriu a boca para concordar em seguir para Segontium, mas Willa a empurrou para encarar o mestre. O rosto da criança estava muito sério e zeloso enquanto ela fazia sua a decisão da mãe adotiva.

– Senhor Myrddion, minha mãe concordaria em partir com Finn pela minha segurança – a voz de Willa estava estranhamente persuasiva, e Myrddion reconheceu o mesmo tom de comando que ele usava quando decisões difíceis deviam ser tomadas. – Embora ela não deseje deixá-lo, ocorre que me ama o suficiente para abrir mão de sua segurança. Mas ela não precisa, pois eu não irei para Segontium, não importa o que o senhor diga. Venta Belgarum é onde aquela que não deve ser nomeada deseja que eu esteja... embora me sinta apavorada. Todos nós somos ferramentas dela, e eu percebi que ela salvou minha vida com algum propósito. – Ela se virou para Brangaine. – Eu devo ir com o mestre para Venta Belgarum, pois a Mãe deseja isso.

Os ombros de Brangaine afundaram-se diante da luz dos olhos vívidos e insistentes da filha. Então, ela se virou para olhar Myrddion enquanto envolvia firmemente a criança com os braços.

– O que eu devo fazer, mestre? O que eu devo fazer?

– Não sei, Brangaine, mas talvez Willa esteja certa. Talvez nosso destino sempre tenha nos conduzido a Venta Belgarum, e, embora nós tenhamos tentado evitar nossos destinos separados, a Mãe conseguirá o que deseja, independente do quanto lutarmos para contradizê-la.

– Sim, mestre, eu sei.

Então Brangaine chorou, como se Willa já tivesse sido tirada de seus braços.

Rhedyn optou por ficar com Brangaine a fim de ajudar com as crianças, então, no final, apenas Finn Narrador da Verdade e sua jovem família pegaram a estrada para Segontium. A única pessoa contente por vê-los subir na carroça e movimentar os cavalos era Gron, o estalajadeiro. O dia todo, ele previra terríveis consequências para a estalagem por receber os viajantes, até que sua esposa desejou quebrar-lhe a cabeça com a melhor panela de ferro de que dispunha.

– Após eles irem embora, os olhos de Uther Pendragon se desviarão de nós. Pelo menos, alguns deles estão partindo, mas eu não descansarei até ver as costas de todos aqueles curandeiros amaldiçoados.

– Você não precisaria se preocupar em chamar a atenção do príncipe se não misturasse água ao vinho – Fionnuala murmurou, os fartos seios palpitando devido à aversão que ela geralmente sentia pelo marido. – Esses curandeiros trouxeram clientela para a Donzela Flor... e, se eles partirem, você não terá nada sobre o que reclamar, não é? Cuidado com o que você deseja, marido.

Gron olhou sua irritada esposa com o canto dos olhos e tentou parecer ofendido, o que falhou completamente em função do astuto olhar gravado em seu rosto cadavérico.

Entretanto, depois, quando Myrddion pagou a estada na estalagem e arrumou as coisas para partirem, Gron sentiu uma estranha relutância para avolumar a conta conforme costumava fazer. O estalajadeiro respiraria mais aliviado depois de os curandeiros irem embora, mas talvez houvesse perigos piores do que viajantes exóticos e estrangeiros.

Venta Belgarum estava distante, então Uther logo se irritou com a lentidão da viagem. O príncipe normalmente dirigia suas tropas sem piedade, de modo que elas parecessem surgir, completamente armadas e sedentas por sangue, nas muralhas de qualquer fortaleza saxã que encontrassem. Como fumaça, os guerreiros iam e vinham à vontade. Infelizmente, os bois de Myrddion eram indiferentes ao desejo de pressa de Uther e se arrastavam no final da fila no habitual ritmo lento. Por fim, Uther decidiu abandonar o grupo de curandeiros, deixando-o com uma guarda de meia dúzia de cavaleiros montados, enquanto ele seguia em frente como uma flecha lançada de um arco. Sob o comando dele, os soldados a pé partiram em um trote rápido, e Myrddion novamente se maravilhou com a disciplina e a força de espírito de homens que marchavam para a guerra com suas armas acondicionadas nas costas. Enquanto corriam, os guerreiros cantavam vigorosamente, e o coração de Myrddion estremecia em seu peito à medida que vozes harmoniosas cantavam histórias de dias já longínquos, quando seu povo dominava a bela e selvagem terra sem oposição.

Com o cabo de ouro, em sua mão, eu vejo a espada;

Duas lanças ele segura, com pontas sombrias e verdes;

Em torno de seu escudo, o ouro amarelo é derramado

E, em seu meio, vê-se um ornamento prateado.

Então, vozes mais fracas respondiam como se eles desaparecessem na poeira cinza da estrada:

O justo Fergus a todos nós tem provocado ruína!

Nós cruzamos o oceano, e a Fergus demos atenção;

Sua honra com um copo de cerveja foi comprada;

Por ele tem passado a fama de cada grande ação.

– As canções deles me causam arrepios, Myrddion. Não parece certo, de maneira alguma, correr em direção ao inimigo cantando uma canção de morte – Cadoc murmurou.

Myrddion ouviu montado em seu cavalo até que a misteriosa música sumiu nas colinas baixas.

– Eles cantam uma canção de Hibérnia que narra o exílio dos filhos de Usnach. Talvez devêssemos considerar essa mensagem como um aviso. Se Uther não parar o inimigo, seremos exilados em uma terra distante, arrancados para sempre de tudo que amamos.

– É um pensamento animador – Cadoc sussurrou baixinho.

Após passarem pela próxima cidadela, as carroças viajaram vagarosamente por uma estrada estreita e malcuidada que levava para fora de Durobrivae, e essa parte da jornada logo se tornou lenta e desconfortável. A faixa de terra e pedra compactadas mergulhava para o sul através de uma região irregular, que fazia pouca concessão aos viajantes em busca de uma rota melhor no sudoeste. As chuvas da primavera tornavam a estrada lamacenta e traiçoeira, especialmente colina abaixo, e as mulheres eram forçadas a descer das carroças e caminhar ao lado delas com as longas saias arrastando na lama.

Agora que a jornada de fato começara, Willa rapidamente se animara, e seu rosto cobrira-se de sorrisos quando Botha, o responsável por garantir que os curandeiros chegassem à capital de Ambrósio, posicionou a menina na frente dele para guiar o cavalo. Sentada com suas pequenas costas prensadas contra o torso do corpulento guarda, ela gargalhava do esforço dos bois patinando na lama, do voo repentino de um bando de patos e dos galhos de um bosque de espessos carvalhos que se prendiam aos seus cabelos. Myrddion sentiu seu espírito aliviado enquanto a via feliz, desfrutando esses lugares selvagens como se nunca tivesse sido assombrada por sonhos ruins.

Com frio, sujos e cansados, o pequeno grupo imaginava ser os únicos viajantes nesse lugar selvagem, até que a paisagem limpou, e eles se viram vadeando um rio veloz.

– Onde estamos, Botha? – Myrddion perguntou, torcendo sua capa preta que havia molhado quando ele tinha desmontado do cavalo no rio. – Eu juro que nós não vimos ninguém desde que saímos de Durocobrivae.

Botha apontou para o norte com uma mão.

– Há uma vila naquele caminho, mas eu nem sequer sei se tem um nome. Esta estrada encontra uma trilha de cabras que nos conduz ao sul para Calleva Atrebatum, onde nós pegaremos uma importante estrada que leva a Venta Belgarum. A jornada fica mais fácil a partir de lá.

– Promete? – Cadoc rebateu com irritação enquanto tirava as botas molhadas e tentava aquecer os pés gelados.

– Não, se nós não fizermos esses animais andarem – Botha respondeu laconicamente. – Deuses, eu odeio bois!

– Pelo menos nisso nós concordamos – Cadoc retrucou, e, então, a lenta jornada recomeçou.

E vieram dias e dias indistintos, pois os bois viajavam em seu próprio ritmo e o uso de açoites ou chicotes de nada adiantaria. Justo quando Myrddion pensou que fosse gritar de tédio e frustração, Calleva Atrebatum se tornou visível.

A grande cidade romanizada localizava-se num pequeno ninho de colinas baixas e apresentava um aspecto de ordem e boa conservação aos estranhos. Os rostos felizes dos moradores locais, as limpas casas cônicas das fazendas bem-cuidadas e as ovelhas de cauda grossa que pastavam nas baixas encostas trouxeram lágrimas aos olhos de Myrddion. Suas lembranças dessas terras fecundas e abundantes o confortaram durante as viagens. O melodioso assobio de um pastor conduzindo seus animais a pastos frescos preencheu um pouco do vazio que havia no coração do jovem curandeiro. Talvez o serviço da corte de Ambrósio não fosse tão ruim se os sinais, sons e cheiros caseiros rodeassem os curandeiros com a promessa de dias melhores.

Botha fora incumbido de pastorear sua carga para Venta Belgarum o mais rápido que pudesse, então lhes permitiu apenas uma única noite de descanso em uma confortável estalagem na periferia de Calleva Atrebatum. Comida quente foi uma bênção, e colchões preenchidos com palha eram um tratamento luxuoso após semanas na estrada. Agora, Finn deveria estar distante, e Myrddion sofreu pela falta da companhia e do calmo bom senso do lacônico mestre de ervas. Ele também sentia falta do sorriso borbulhante do filho de Bridie, embora o mais novo órfão de Brangaine fosse uma saudável criança que chorava sem cansar quando estava molhada, com fome ou cansada. Felizmente para sua sobrevivência, o pequeno menino conseguia comer comida bem macia, já que raramente havia leite. Em Calleva Atrebatum, Myrddion imediatamente descansou em uma longa e relaxante imersão nos banhos públicos romanos ainda existentes, o hábito do qual ele mais sentia falta de suas aventuras no mar do Meio.

Com uma tigela de sopa quente, Myrddion tentou descobrir os segredos particulares de Uther Pendragon questionando Botha, mas, a princípio, o guarda mais confiável do príncipe recusou-se a ser persuadido.

– Sei o que você quer, curandeiro, então não tente me enganar ou me subornar. Eu consideraria uma ofensa qualquer insulto ao meu mestre.

– Tirarei minhas dúvidas diretamente com você, Botha, pois não tenho nada a esconder. Sinto medo do Príncipe Uther, e ficaria satisfeito de encontrar alguma evidência de que ele não é uma máquina de guerra, conforme as pessoas sussurram por aí, às escondidas de Pendragon.

Botha riu rudemente, mas depois cedeu.

– Meu mestre assemelha-se muito a essa descrição. O que você gostaria que eu dissesse, Myrddion Merlinus? Uther Pendragon é um homem moldado por tempos cruéis, um guerreiro que sofreu para salvar seu país, mas apenas gastando seu próprio sangue de modo dissoluto. Ele viaja por longos períodos de cada ano. Contra os desejos do irmão, meu mestre não se casou e nem reconheceu qualquer criança que pudesse aquecer sua velhice. Vive totalmente obcecado em matar os saxões, e eu nunca conheci um homem tão determinado e inflexível no seu propósito. Se você quiser sentir a ira dele, mencione o nome de Vortigern, o assassino e traidor, pois meu mestre atribui todo o mal que assola nossa terra àquele bastardo manchado de sangue.