POEMA DE SETE FACES

 

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

 

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

 

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

 

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

 

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

 

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

 

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

 

 

INFÂNCIA  A Abgar Renault

 

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras

lia a história de Robinson Crusoé,

comprida história que não acaba mais.

 

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu

chamava para o café.

Café preto que nem a preta velha

café gostoso

café bom.

 

Minha mãe ficava sentada cosendo

olhando para mim:

— Psiu… Não acorde o menino.

Para o berço onde pousou um mosquito.

E dava um suspiro… que fundo!

 

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.

 

E eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

 

 

CASAMENTO DO CÉU E DO INFERNO

 

No azul do céu de metileno

a lua irônica

diurética

é uma gravura de sala de jantar.

Anjos da guarda em expedição noturna

velam sonos púberes

espantando mosquitos

de cortinados e grinaldas.

 

Pela escada em espiral

diz-que tem virgens tresmalhadas,

incorporadas à Via Láctea,

vagalumeando…

 

Por uma frincha

o diabo espreita com o olho torto.

 

Diabo tem uma luneta

que varre léguas de sete léguas

e tem o ouvido fino

que nem violino.

 

São Pedro dorme

e o relógio do céu ronca mecânico.

 

Diabo espreita por uma frincha.

Lá embaixo

suspiram bocas machucadas.

Suspiram rezas? Suspiram manso,

de amor.

 

E os corpos enrolados

ficam mais enrolados ainda

e a carne penetra na carne.

 

Que a vontade de Deus se cumpra!

Tirante Laura e talvez Beatriz,

o resto vai para o inferno.

 

 

TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO

 

Eu também já fui brasileiro

moreno como vocês.

Ponteei viola, guiei forde

e aprendi na mesa dos bares

que o nacionalismo é uma virtude.

Mas há uma hora em que os bares se fecham

e todas as virtudes se negam.

 

Eu também já fui poeta.

Bastava olhar para mulher,

pensava logo nas estrelas

e outros substantivos celestes.

Mas eram tantas, o céu tamanho,

minha poesia perturbou-se.

 

Eu também já tive meu ritmo.

Fazia isto, dizia aquilo.

E meus amigos me queriam,

meus inimigos me odiavam.

Eu irônico deslizava

satisfeito de ter meu ritmo.

Mas acabei confundindo tudo.

Hoje não deslizo mais não,

não sou irônico mais não,

não tenho ritmo mais não.

CONSTRUÇÃO

 

Um grito pula no ar como foguete.

Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos.

O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.

O sorveteiro corta a rua.

 

E o vento brinca nos bigodes do construtor.

 

 

TOADA DO AMOR

 

E o amor sempre nesta toada:

briga perdoa perdoa briga.

 

Não se deve xingar a vida,

a gente vive, depois esquece.

Só o amor volta para brigar,

para perdoar,

amor cachorro bandido trem.

 

Mas, se não fosse ele, também

que graça que a vida tinha?

 

Mariquita, dá cá o pito,

no teu pito está o infinito.

 

 

EUROPA, FRANÇA E BAHIA

 

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.

Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.

Os cais bolorentos de livros judeus

e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.

 

O pulo da Mancha num segundo.

Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas.

Tarifas bancos fábricas trustes craques.

Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam um tapete para Sua Graciosa Majestade Britânica pisar.

E a lua de Londres como um remorso.

 

Submarinos inúteis retalham mares vencidos.

O navio alemão cauteloso exporta dolicocéfalos arruinados.

Hamburgo, embigo do mundo.

Homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros dentro de alguns anos.

 

A Itália explora conscienciosamente vulcões apagados,

vulcões que nunca estiveram acesos

a não ser na cabeça de Mussolini.

E a Suíça cândida se oferece

numa coleção de postais de altitudes altíssimas.

 

Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa.

 

Não há mais Turquia.

O impossível dos serralhos esfacela erotismos prestes a declanchar.

Mas a Rússia tem as cores da vida.

A Rússia é vermelha e branca.

Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista e no túmulo de Lenin em Moscou parece que um coração enorme está batendo, batendo

mas não bate igual ao da gente…

 

Chega!

Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.

Minha boca procura a “Canção do Exílio”.

Como era mesmo a “Canção do Exílio”?

Eu tão esquecido de minha terra…

Ai terra que tem palmeiras

onde canta o sabiá!

 

 

LANTERNA MÁGICA

 

I. Belo Horizonte

 

Meus olhos têm melancolias,

minha boca tem rugas.

Velha cidade!

As árvores tão repetidas.

 

Debaixo de cada árvore faço minha cama,

em cada ramo dependuro meu paletó.

Lirismo.

Pelos jardins versailles

ingenuidade de velocípedes.

 

E o velho fraque

na casinha de alpendre com duas janelas dolorosas.

II. SABARÁ A Aníbal M. Machado

 

A dois passos da cidade importante

a cidadezinha está calada, entrevada.

(Atrás daquele morro, com vergonha do trem.)

 

Só as igrejas

só as torres pontudas das igrejas

não brincam de esconder.

 

O Rio das Velhas lambe as casas velhas,

casas encardidas onde há velhas nas jinelas.

Ruas em pé

pé de moleque

 

 

PENÇÃO DE JUAQUINA AGULHA

Quem não subir direito toma vaia…

Bem feito!

 

Eu fico cá embaixo

maginando na ponte moderna — moderna por quê?

A água que corre

já viu o Borba.

Não a que corre,

mas a que não para nunca

de correr.

 

Ai tempo!

Nem é bom pensar nessas coisas mortas, muito mortas.

Os séculos cheiram a mofo

e a história é cheia de teias de aranha.

Na água suja, barrenta, a canoa deixa um sulco logo apagado.

Quede os bandeirantes?

O Borba sumiu,

Dona Maria Pimenta morreu.

 

Mas tudo tudo é inexoravelmente colonial:

bancos janelas fechaduras lampiões.

O casario alastra-se na cacunda dos morros,

rebanho dócil pastoreado por igrejas:

a do Carmo — que é toda de pedra,

a Matriz — que é toda de ouro.

Sabará veste com orgulho seus andrajos…

Faz muito bem, cidade teimosa!

 

Nem Siderúrgica nem Central nem roda manhosa de forde

sacode a modorra de Sabará-buçu.

 

Pernas morenas de lavadeiras,

tão musculosas que parece foi o Aleijadinho que as esculpiu,

palpitam na água cansada.

 

O presente vem de mansinho

de repente dá um salto:

cartaz de cinema com fita americana.

 

E o trem bufando na ponte preta

é um bicho comendo as casas velhas.

 

III. CAETÉ

 

A igreja de costas para o trem.

Nuvens que são cabeças de santo.

Casas torcidas.

E a longa voz que sobe

que sobe do morro

que sobe…

 

IV. ITABIRA

 

Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.

Na cidade toda de ferro

as ferraduras batem como sinos.

Os meninos seguem para a escola.

Os homens olham para o chão.

Os ingleses compram a mina.

 

Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.

 

V. SÃO JOÃO DEL-REI

 

Quem foi que apitou?

Deixa dormir o Aleijadinho coitadinho.

Almas antigas que nem casas.

Melancolia das legendas.

 

As ruas cheias de mulas sem cabeça

correndo para o Rio das Mortes

e a cidade paralítica

no sol

espiando a sombra dos emboabas

no encantamento das alfaias.

 

Sinos começam a dobrar.

 

E todo me envolve

uma sensação fina e grossa.

 

VI. NOVA FRIBURGO

 

Esqueci um ramo de flores no sobretudo.

 

VII. RIO DE JANEIRO

 

Fios nervos riscos faíscas.

As cores nascem e morrem

com impudor violento.

Onde meu vermelho? Virou cinza.

Passou a boa! Peço a palavra!

Meus amigos todos estão satisfeitos

com a vida dos outros.

Fútil nas sorveterias.

Pedante nas livrarias…

Nas praias nu nu nu nu nu nu.

Tu tu tu tu tu no meu coração.

 

Mas tantos assassinatos, meu Deus.

E tantos adultérios também.

E tantos, tantíssimos contos do vigário…

(Este povo quer me passar a perna.)

 

Meu coração vai molemente dentro do táxi.

 

VIII. BAHIA

 

É preciso fazer um poema sobre a Bahia

 

Mas eu nunca fui lá.

 

 

A RUA DIFERENTE

 

Na minha rua estão cortando árvores

botando trilhos

construindo casas.

 

Minha rua acordou mudada.

Os vizinhos não se conformam.

Eles não sabem que a vida

tem dessas exigências brutas.

 

Só minha filha goza o espetáculo

e se diverte com os andaimes,

a luz da solda autógena

e o cimento escorrendo nas fôrmas.

 

 

LAGOA

 

Eu não vi o mar.

Não sei se o mar é bonito,

não sei se ele é bravo.

O mar não me importa.

 

Eu vi a lagoa.

A lagoa, sim.

A lagoa é grande

e calma também.

 

Na chuva de cores

da tarde que explode

a lagoa brilha

a lagoa se pinta

de todas as cores.

Eu não vi o mar.

Eu vi a lagoa…

 

 

CANTIGA DE VIÚVO

 

A noite caiu na minh’alma,

fiquei triste sem querer.

Uma sombra veio vindo,

veio vindo, me abraçou.

Era a sombra de meu bem

que morreu há tanto tempo.

 

Me abraçou com tanto amor

me apertou com tanto fogo

me beijou, me consolou.

 

Depois riu devagarinho,

me disse adeus com a cabeça

e saiu. Fechou a porta.

Ouvi seus passos na escada.

Depois mais nada…

acabou.

 

 

O QUE FIZERAM DO NATAL

 

Natal.

O sino longe toca fino.

Não tem neves, não tem gelos.

Natal.

Já nasceu o deus menino.

As beatas foram ver,

encontraram o coitadinho

(Natal)

mais o boi mais o burrinho

e lá em cima

a estrelinha alumiando.

Natal.

 

As beatas ajoelharam

e adoraram o deus nuzinho

mas as filhas das beatas

e os namorados das filhas,

mas as filhas das beatas

foram dançar black-bottom

nos clubes sem presépio.

 

 

 

POLÍTICA LITERÁRIA  A Manuel Bandeira

 

O poeta municipal

discute com o poeta estadual

qual deles é capaz de bater o poeta federal.

 

Enquanto isso o poeta federal

tira ouro do nariz.

 

 

SENTIMENTAL

 

Ponho-me a escrever teu nome

com letras de macarrão.

No prato, a sopa esfria, cheia de escamas

e debruçados na mesa todos contemplam

esse romântico trabalho.

 

Desgraçadamente falta uma letra,

uma letra somente

para acabar teu nome!

 

— Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

 

Eu estava sonhando…

E há em todas as consciências um cartaz amarelo:

“Neste país é proibido sonhar.”

 

 

NO MEIO DO CAMINHO

 

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

 

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

 

 

IGREJA  A Wellington Brandão

 

Tijolo

areia

andaime

água

tijolo.

O canto dos homens trabalhando trabalhando

mais perto do céu

cada vez mais perto

mais

— a torre.

 

E nos domingos a litania dos perdões, o murmúrio das invocações.

O padre que fala do inferno

sem nunca ter ido lá.

Pernas de seda ajoelham mostrando geolhos.

Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já esquecida.

A manhã pintou-se de azul.

No adro ficou o ateu,

no alto fica Deus.

Domingo…

Bem bão! Bem bão!

Os serafins, no meio, entoam quirieleisão.

 

 

POEMA QUE ACONTECEU

 

Nenhum desejo neste domingo

nenhum problema nesta vida

o mundo parou de repente

os homens ficaram calados

domingo sem fim nem começo.

 

A mão que escreve este poema

não sabe que está escrevendo

mas é possível que se soubesse

nem ligasse.

 

 

ESPERTEZA

 

Tenho vontade de

— ponhamos amar

por esporte uma loura

o espaço de um dia.

 

Certo me tornaria

brinquedo nas suas mãos.

Apanharia, sorriria

mas acabado o jogo

não seria mais joguete,

seria eu mesmo.

 

E ela ficaria espantada

de ver um homem esperto.

 

 

POLÍTICA  A Mário Casassanta

 

Vivia jogado em casa.

Os amigos o abandonaram

quando rompeu com o chefe político.

O jornal governista ridicularizava seus versos,

os versos que ele sabia bons.

Sentia-se diminuído na sua glória

enquanto crescia a dos rivais

que apoiavam a Câmara em exercício.

 

Entrou a tomar porres

violentos, diários.

E a desleixar os versos.

Se já não tinha discípulos.

Se só os outros poetas eram imitados.

 

Uma ocasião em que não tinha dinheiro

para tomar o seu conhaque

saiu à toa pelas ruas escuras.

Parou na ponte sobre o rio moroso,

o rio que lá embaixo pouco se importava com ele

e no entanto o chamava

para misteriosos carnavais.

 

E teve vontade de se atirar

(só vontade).

 

Depois voltou para casa

livre, sem correntes

muito livre, infinitamente

livre livre livre que nem uma besta

que nem uma coisa.

 

 

POEMA DO JORNAL

 

O fato ainda não acabou de acontecer

e já a mão nervosa do repórter

o transforma em notícia.

O marido está matando a mulher.

A mulher ensanguentada grita.

Ladrões arrombam o cofre.

A polícia dissolve o meeting.

A pena escreve.

 

Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.

 

 

SWEET HOME  A Ribeiro Couto

 

Quebra-luz, aconchego.

Teu braço morno me envolvendo.

A fumaça de meu cachimbo subindo.

 

Como estou bem nesta poltrona de humorista inglês.

 

O jornal conta histórias, mentiras…

 

 

Ora afinal a vida é um bruto romance

e nós vivemos folhetins sem o saber.

 

Mas surge o imenso chá com torradas,

chá de minha burguesia contente.

Ó gozo de minha poltrona!

Ó doçura de folhetim!

Ó bocejo de felicidade!

 

 

NOTA SOCIAL

 

O poeta chega na estação.

O poeta desembarca.

O poeta toma um auto.

O poeta vai para o hotel.

E enquanto ele faz isso

como qualquer homem da terra,

uma ovação o persegue

feito vaia.

Bandeirolas

abrem alas.

Bandas de música. Foguetes.

Discursos. Povo de chapéu de palha.

Máquinas fotográficas assestadas.

Automóveis imóveis.

Bravos…

O poeta está melancólico.

 

Numa árvore do passeio público

(melhoramento da atual administração)

árvore gorda, prisioneira

de anúncios coloridos,

árvore banal, árvore que ninguém vê

canta uma cigarra.

Canta uma cigarra que ninguém ouve

um hino que ninguém aplaude.

Canta, no sol danado.

 

O poeta entra no elevador

o poeta sobe

o poeta fecha-se no quarto.

 

O poeta está melancólico.

 

 

CORAÇÃO NUMEROSO

 

Foi no Rio.

Eu passeava na Avenida quase meia-noite.

Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.

Havia a promessa do mar

e bondes tilintavam,

abafando o calor

que soprava no vento

e o vento vinha de Minas.

 

Meus paralíticos sonhos desgosto de viver

(a vida para mim é vontade de morrer)

faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente

na Galeria Cruzeiro quente quente

e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,

nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.

 

Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas

autos abertos correndo caminho do mar

voluptuosidade errante do calor

mil presentes da vida aos homens indiferentes,

que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.

 

O mar batia em meu peito, já não batia no cais.

A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu

a cidade sou eu

sou eu a cidade

meu amor.

 

 

POESIA

 

Gastei uma hora pensando um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira.

 

 

FESTA NO BREJO

 

A saparia desesperada

coaxa coaxa coaxa.

O brejo vibra que nem caixa

de guerra. Os sapos estão danados.

 

A lua gorda apareceu

e clareou o brejo todo.

Até à lua sobe o coro

da saparia desesperada.

 

A saparia toda de Minas

coaxa no brejo humilde.

 

Hoje tem festa no brejo!

 

 

JARDIM DA PRAÇA DA LIBERDADE  A Gustavo Capanema

 

Verdes bulindo.

Sonata cariciosa da água

fugindo entre rosas geométricas.

Ventos elísios.

Macio.

Jardim tão pouco brasileiro… mas tão lindo.

 

Paisagem sem fundo.

A terra não sofreu para dar estas flores.

Sem ressonância.

O minuto que passa

desabrochando em floração inconsciente.

Bonito demais. Sem humanidade.

Literário demais.

 

(Pobres jardins do meu sertão,

atrás da serra do Curral!

Nem repuxos frios nem tanques langues,

nem bombas nem jardineiros oficiais.

Só o mato crescendo indiferente entre sempre-vivas desbotadas

e o olhar desditoso da moça desfolhando malmequeres.)

 

Jardim da Praça da Liberdade,

Versailles entre bondes.

Na moldura das Secretarias compenetradas

a graça inteligente da relva

compõe o sonho dos verdes.

 

PROIBIDO PISAR NO GRAMADO

Talvez fosse melhor dizer:

PROIBIDO COMER O GRAMADO

A prefeitura vigilante

vela a soneca das ervinhas.

E o capote preto do guarda é uma bandeira na noite estrelada de funcionários.

 

De repente uma banda preta

vermelha retinta suando

bate um dobrado batuta

na doçura

do jardim.

 

Repuxos espavoridos fugindo.

 

 

CIDADEZINHA QUALQUER

 

Casas entre bananeiras

mulheres entre laranjeiras

pomar amor cantar.

 

Um homem vai devagar.

Um cachorro vai devagar.

Um burro vai devagar.

 

Devagar… as janelas olham.

 

Eta vida besta, meu Deus.

 

 

FUGA

 

As atitudes inefáveis,

os inexprimíveis delíquios,

êxtases, espasmos, beatitudes

não são possíveis no Brasil.

 

O poeta vai enchendo a mala,

põe camisas, punhos, loções,

um exemplar da Imitação

e parte para outros rumos.

 

A vaia amarela dos papagaios

rompe o silêncio da despedida.

— Se eu tivesse cinco mil pernas

(diz ele) fugia com todas elas.

 

Povo feio, moreno, bruto,

não respeita meu fraque preto.

Na Europa reina a geometria

e todo mundo anda — como eu — de luto.

 

Estou de luto por Anatole

France, o de Thaïs, joia soberba.

Não há cocaína, não há morfina

igual a essa divina

papa-fina.

 

Vou perder-me nas mil orgias

do pensamento greco-latino.

Museus! estátuas! catedrais!

O Brasil só tem canibais.

 

Dito isto fechou-se em copas.

Joga-lhe um mico uma banana,

por um tico não vai ao fundo.

 

Enquanto os bárbaros sem barbas

sob o Cruzeiro do Sul

se entregam perdidamente

sem anatólios nem capitólios

aos deboches americanos.

 

 

SINAL DE APITO

 

Um silvo breve: Atenção, siga.

Dois silvos breves: Pare.

Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna.

Um silvo longo: Diminua a marcha.

Um silvo longo e breve: Motoristas a postos.

 

(A este sinal todos os motoristas tomam
lugar nos seus veículos para movimentá-
-los imediatamente.)

 

 

PAPAI NOEL ÀS AVESSAS  A Afonso Arinos (sobrinho)

 

Papai Noel entrou pela porta dos fundos

(no Brasil as chaminés não são praticáveis),

entrou cauteloso que nem marido depois da farra.

Tateando na escuridão torceu o comutador

e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,

coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.

Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,

achou um queijo e comeu.

 

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.

Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças

(no Brasil os Papai Noéis são todos de cara raspada)

e avançou pelo corredor branco de luar.

Aquele quarto é o das crianças.

Papai entrou compenetrado.

 

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos

mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos

soldados mulheres elefantes navios

e um presidente de república de celuloide.

 

Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo

no interminável lenço vermelho de alcobaça.

Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto

que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.

 

Os pequenos continuavam dormindo.

Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.

Papai Noel voltou de manso para a cozinha,

apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

 

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.

 

 

QUADRILHA

 

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.

 

 

FAMÍLIA

 

Três meninos e duas meninas,

sendo uma ainda de colo.

A cozinheira preta, a copeira mulata,

o papagaio, o gato, o cachorro,

as galinhas gordas no palmo de horta

e a mulher que trata de tudo.

 

A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,

o cigarro, o trabalho, a reza,

a goiabada na sobremesa de domingo,

o palito nos dentes contentes,

o gramofone rouco toda noite

e a mulher que trata de tudo.

 

O agiota, o leiteiro, o turco,

o médico uma vez por mês,

o bilhete todas as semanas

branco! mas a esperança sempre verde.

A mulher que trata de tudo

e a felicidade.

 

 

O SOBREVIVENTE  A Cyro dos Anjos

 

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.

Impossível escrever um poema — uma linha que seja — de verdadeira poesia.

O último trovador morreu em 1914.

Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

 

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.

Se quer fumar um charuto aperte um botão.

Paletós abotoam-se por eletricidade.

Amor se faz pelo sem-fio.

Não precisa estômago para digestão.

 

Um sábio declarou a O Jornal que ainda
falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura.
Mas até lá, felizmente, estarei morto.

 

Os homens não melhoraram

e matam-se como percevejos.

Os percevejos heroicos renascem.

Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.

E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

 

(Desconfio que escrevi um poema.)

 

 

MOÇA E SOLDADO

 

Meus olhos espiam

a rua que passa.

 

Passam mulheres,

passam soldados.

Moça bonita foi feita para

namorar.

Soldado barbudo foi feito para

brigar.

 

Meus olhos espiam

as pernas que passam.

Nem todas são grossas…

Meus olhos espiam.

Passam soldados.

… mas todas são pernas.

Meus olhos espiam.

Tambores, clarins

e pernas que passam.

Meus olhos espiam

espiam espiam

soldados que marcham

moças bonitas

soldados barbudos

… para namorar,

para brigar.

Só eu não brigo.

Só eu não namoro.

 

 

ANEDOTA BÚLGARA

 

Era uma vez um czar naturalista

que caçava homens.

Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,

ficou muito espantado

e achou uma barbaridade.

 

 

MÚSICA  A Pedro Nava

 

Uma coisa triste no fundo da sala.

Me disseram que era Chopin.

A mulher de braços redondos que nem coxas

martelava na dentadura dura

sob o lustre complacente.

Eu considerei as contas que era preciso pagar,

os passos que era preciso dar,

as dificuldades…

Enquadrei o Chopin na minha tristeza

e na dentadura amarela e preta

meus cuidados voaram como borboletas.

 

 

COTA ZERO

 

Stop.

A vida parou

ou foi o automóvel?

 

 

INICIAÇÃO AMOROSA

 

A rede entre duas mangueiras

balançava no mundo profundo.

O dia era quente, sem vento.

O sol lá em cima,

as folhas no meio,

o dia era quente.

 

E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando as pernas da lavadeira.

 

Um dia ela veio para a rede,

se enroscou nos meus braços,

me deu um abraço,

me deu as maminhas

que eram só minhas.

A rede virou,

o mundo afundou.

 

Depois fui para a cama

febre 40 graus febre.

Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde.

 

 

BALADA DO AMOR ATRAVÉS DAS IDADES

 

Eu te gosto, você me gosta

desde tempos imemoriais.

Eu era grego, você troiana,

troiana mas não Helena.

Saí do cavalo de pau

para matar seu irmão.

Matei, brigamos, morremos.

 

Virei soldado romano,

perseguidor de cristãos.

Na porta da catacumba

encontrei-te novamente.

Mas quando vi você nua

caída na areia do circo

e o leão que vinha vindo,

dei um pulo desesperado

e o leão comeu nós dois.

 

Depois fui pirata mouro,

flagelo da Tripolitânia.

Toquei fogo na fragata

onde você se escondia

da fúria de meu bergantim.

Mas quando ia te pegar

e te fazer minha escrava,

você fez o sinal da cruz

e rasgou o peito a punhal…

Me suicidei também.

 

Depois (tempos mais amenos)

fui cortesão de Versailles,

espirituoso e devasso.

Você cismou de ser freira…

Pulei muro de convento

mas complicações políticas

nos levaram à guilhotina.

 

Hoje sou moço moderno,

remo, pulo, danço, boxo,

tenho dinheiro no banco.

Você é uma loura notável,

boxa, dança, pula, rema.

Seu pai é que não faz gosto.

Mas depois de mil peripécias,

eu, herói da Paramount,

te abraço, beijo e casamos.

 

 

CABARÉ MINEIRO

 

A dançarina espanhola de Montes Claros

dança e redança na sala mestiça.

Cem olhos morenos estão despindo

seu corpo gordo picado de mosquito.

Tem um sinal de bala na coxa direita,

o riso postiço de um dente de ouro,

mas é linda, linda, gorda e satisfeita.

Como rebola as nádegas amarelas!

Cem olhos brasileiros estão seguindo

o balanço doce e mole de suas tetas…

 

 

QUERO ME CASAR

 

Quero me casar

na noite na rua

no mar ou no céu

quero me casar.

 

Procuro uma noiva

loura morena

preta ou azul

uma noiva verde

uma noiva no ar

como um passarinho.

 

Depressa, que o amor

não pode esperar!

 

 

EPIGRAMA PARA EMÍLIO MOURA

 

Tristeza de ver a tarde cair

como cai uma folha.

(No Brasil não há outono

mas as folhas caem.)

 

Tristeza de comprar um beijo

como quem compra jornal.

Os que amam sem amor

não terão o reino dos céus.

 

Tristeza de guardar um segredo

que todos sabem

e não contar a ninguém

(que esta vida não presta).

 

 

SOCIEDADE

 

O homem disse para o amigo:

— Breve irei a tua casa

e levarei minha mulher.

 

O amigo enfeitou a casa

e quando o homem chegou com a mulher,

soltou uma dúzia de foguetes.

 

O homem comeu e bebeu.

A mulher bebeu e cantou.

Os dois dançaram.

O amigo estava muito satisfeito.

 

Quando foi hora de sair,

o amigo disse para o homem:

— Breve irei a tua casa.

E apertou a mão dos dois.

 

No caminho o homem resmunga:

— Ora essa, era o que faltava.

E a mulher ajunta: — Que idiota.

 

— A casa é um ninho de pulgas.

— Reparaste o bife queimado?

O piano ruim e a comida pouca.

 

E todas as quintas-feiras

eles voltam à casa do amigo

que ainda não pôde retribuir a visita.

 

 

ELEGIA DO REI DE SIÃO

 

Pobre rei de Sião que morreu de desgosto

por não ter um filho varão.

Pobre rei de Bangkok educado em Oxford,

pequenino, bonito, decorativo,

que morreu especialmente para nos comover.

O filho que desejava, a Ásia não deu

e seu desejo de um filho era maior do que a Ásia.

Pobre rei de Sião, que Camões não cantou.

Amou três mulheres em vez de dez mil

e nenhuma lhe deu um filho varão.

De sua costela real nasceu uma pequenina siamesa.

Ao vê-la, o rei caiu para trás como um europeu,

adoeceu, bebeu um veneno terrível e morreu.

 

Seu coração enegreceu de repente,

o corpo ficou todo fofo.

 

Depois queimaram o corpo fofo e o coração preto numa fogueira esplêndida

e a alma do rei de Sião fugiu entre os canais.

 

Pobre reizinho de Sião.

 

 

SESTA  A Martins de Almeida

 

A família mineira

está quentando sol

sentada no chão

calada e feliz.

O filho mais moço

olha para o céu,

para o sol não,

para o cacho de bananas.

Corta ele, pai.

O pai corta o cacho

e distribui pra todos.

A família mineira

está comendo banana.

 

A filha mais velha

coça uma pereba

bem acima do joelho.

A saia não esconde

a coxa morena

sólida construída,

mas ninguém repara.

Os olhos se perdem

na linha ondulada

do horizonte próximo

(a cerca da horta).

A família mineira

olha para dentro.

 

O filho mais velho

canta uma cantiga

nem triste nem alegre,

uma cantiga apenas

mole que adormece.

Só um mosquito rápido

mostra inquietação.

O filho mais moço

ergue o braço rude

enxota o importuno.

A família mineira

está dormindo ao sol.

 

 

OUTUBRO 1930

 

Suores misturados

no silêncio noturno.

O companheiro ronca.

O ruído igual

dos tiros e o silêncio

na sala onde os corpos

são coisas escuras.

O soldado deitado

pensando na morte.

 

De 5 em 5 minutos um ciclista trazia ao Estado-Maior um feixe de telegramas contendo, comprimida, a trepidação dos setores. O radiotelegrafista ora triste ora alegre empunhava um papel que era a vitória ou a derrota. Nós descansávamos, jogados sobre poltronas, e abríamos para as notícias olhos que não viam, olhos que perguntavam. Às 3 da madrugada, pontualmente, recomeçava o tiroteio.

 

O funcionário deitado

não pensa na morte.

Pensa no amor

tornado impossível

no minuto guerreiro.

E fecha os olhos

para ver bem

o amor com sua espada

de fogo sobre a cabeça

de todos os homens,

legalistas, rebeldes.

 

 

 

O inimigo resistia sempre e foi preciso cortar a água do quartel. Como resistisse ainda, a água circulou de novo, desta vez azul, de metileno. A torneira aberta escorre desinfetante. O canhão fabricado em Minas — suave temperamento local — não disparou.

 

Olha a negra, olha a negra,

a negra fugindo

com a trouxa de roupa,

olha a bala na negra,

olha a negra no chão

e o cadáver com os seios enormes, expostos, inúteis.

 

O general, com seus bigodes tumultuosos, era o mais doce dos seres, e destilava uma ternura vaporosa em seu costume de usar culotte sem perneiras. A um canto do salão atulhado de mapas e em que telefones esticados retiniam trazendo fatos, levando ordens, eu fazia, exercício fácil, a caricatura do seu imenso nariz. Que todos acharam ótima e reprovaram com indignação cívica.

 

A esta hora no Recife,

em Guaxupé, Turvo, Jaguara,

Itararé,

Baixo Guandu,

Igarapava,

Chiador,

homens estão se matando

com as necessárias cautelas.

Pelo Brasil inteiro há tiros, granadas,

literatura explosiva de boletins,

mulheres carinhosas cosendo fardas

com bolsos onde estudantes guardarão retratos

das respectivas, longínquas namoradas,

homens preparando discursos,

outros, solertes, captando rádios,

minando pontes,

outros (são governadores) dando o fora,

pedidos de comissionamento

por atos de bravura,

ordens do dia,

“o inimigo (?) retirou-se em fuga precipitada,

deixando abundante material bélico,

cinco mortos e vinte feridos…”

Um novo, claro Brasil

surge, indeciso, da pólvora.

Meu Deus, tomai conta de nós.

 

 

Deus vela o sono dos brasileiros.

Anjos alvíssimos espreitam

a hora de apagar a luz de teu quarto

para abrirem sobre ti as asas

que afugentam os maus espíritos

e purificam os sonhos.

Deus vela o sono e o sonho dos brasileiros.

Mas eles acordam e brigam de novo.

 

 

EXPLICAÇÃO

 

Meu verso é minha consolação.

Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.

Para beber, copo de cristal, canequinha de folha de flandres,

folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

 

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,

queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos

é que faço meu verso. E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre…

Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota,

mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.

Eu bem me entendo.

Não sou alegre. Sou até muito triste.

A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, preguiçosa.

Há dias em que ando na rua de olhos baixos

para que ninguém desconfie, ninguém perceba

que passei a noite inteira chorando.

Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,

de repente ouço a voz de uma viola…

saio desanimado.

Ah, ser filho de fazendeiro!

À beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrego vagabundo,

é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.

E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.

Aquela casa de nove andares comerciais

é muito interessante.

A casa colonial da fazenda também era…

No elevador penso na roça,

na roça penso no elevador.

 

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra

e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.

Para mim, de todas as burrices a maior é suspirar pela Europa.

A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro

e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.

O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.

Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,

lê o seu jornal, mete a língua no governo,

queixa-se da vida (a vida está tão cara)

e no fim dá certo.

 

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.

Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?

 

 

ROMARIA  A Milton Campos

 

Os romeiros sobem a ladeira

cheia de espinhos, cheia de pedras,

sobem a ladeira que leva a Deus

e vão deixando culpas no caminho.

 

Os sinos tocam, chamam os romeiros:

Vinde lavar os vossos pecados.

Já estamos puros, sino, obrigados,

mas trazemos flores, prendas e rezas.

 

No alto do morro chega a procissão.

Um leproso de opa empunha o estandarte.

As coxas das romeiras brincam no vento.

Os homens cantam, cantam sem parar.

 

Jesus no lenho expira magoado.

Faz tanto calor, há tanta algazarra.

Nos olhos do santo há sangue que escorre.

Ninguém não percebe, o dia é de festa.

 

No adro da igreja há pinga, café,

imagens, fenômenos, baralhos, cigarros

e um sol imenso que lambuza de ouro

o pó das feridas e o pó das muletas.

 

Meu Bom Jesus que tudo podeis,

humildemente te peço uma graça.

Sarai-me, Senhor, e não desta lepra,

do amor que eu tenho e que ninguém me tem.

 

Senhor, meu amo, dai-me dinheiro,

muito dinheiro para eu comprar

aquilo que é caro mas é gostoso

e na minha terra ninguém não possui.

 

Jesus meu Deus pregado na cruz,

me dá coragem pra eu matar

um que me amola de dia e de noite

e diz gracinhas a minha mulher.

 

Jesus Jesus piedade de mim.

Ladrão eu sou mas não sou ruim não.

Por que me perseguem não posso dizer.

Não quero ser preso, Jesus ó meu santo.

 

Os romeiros pedem com os olhos,

pedem com a boca, pedem com as mãos.

Jesus já cansado de tanto pedido

dorme sonhando com outra humanidade.

 

 

POEMA DA PURIFICAÇÃO

 

Depois de tantos combates

o anjo bom matou o anjo mau

e jogou seu corpo no rio.

 

As águas ficaram tintas

de um sangue que não descorava

e os peixes todos morreram.

 

Mas uma luz que ninguém soube

dizer de onde tinha vindo

apareceu para clarear o mundo,

e outro anjo pensou a ferida

do anjo batalhador