ONDE HÁ POUCO FALÁVAMOS

 

É um antigo

piano, foi

de alguma avó, morta

em outro século.

 

E ele toca e ele chora e ele canta

sozinho,

mas recusa raivoso filtrar o mínimo

acorde, se o fere

mão de moça presente.

 

Ai piano enguiçado, Jesus!

Sua gente está morta,

seu prazer sepultado,

seu destino cumprido,

e uma tecla

põe-se a bater, cruel, em hora espessa de sono.

É um rato?

O vento?

Descemos a escada, olhamos apavorados

a forma escura, e cessa o seu lamento.

 

Mas esquecemos. O dia perdoa.

Nossa vontade é amar, o piano cabe

em nosso amor. Pobre piano, o tempo

aqui passou, dedos se acumularam

no verniz roído. Floresta de dedos,

montes de música e valsas e murmúrios

e sandálias de outro mundo em chãos nublados.

Respeitemos seus fantasmas, paz aos velhos.

Amor aos velhos. Canta, piano, embora rouco:

Ele estronda. A poeira profusa salta,

e aranhas, seres de asa e pus, ignóbeis,

circulam por entre a matéria sarcástica, irredutível.

Assim nosso carinho

encontra nele o fel, e se resigna.

 

Uma parede marca a rua

e a casa. É toda proteção,

docilidade, afago. Uma parede

se encosta em nós, e ao vacilante ajuda,

ao tonto, ao cego. Do outro lado é a noite,

o medo imemorial, os inspetores

da penitenciária, os caçadores, os vulpinos.

Mas a casa é um amor. Que paz nos móveis.

Uma cadeira se renova ao meu desejo.

A lã, o tapete, o liso. As coisas plácidas

e confiantes. A casa vive.

Confio em cada tábua. Ora, sucede

que um íncubo perturba

nossa modesta, profunda confidência.

 

É irmão do corvo, mas faltam-lhe palavras,

busto e humour. Uma dolência rígida,

o reumatismo de noites imperiais, irritação

de não ser mais um piano, ante o poético sentido da palavra,

e tudo que deixam mudanças,

viagens, afinadores,

experimento de jovens,

brilho fácil de rapsódia,

outra vez mudanças,

golpes de ar, madeira bichada,

tudo que é morte de piano e o faz sinistro, inadaptável,

meio grotesco também, nada piedoso.

 

Uma família, como explicar? Pessoas, animais,

objetos, modo de dobrar o linho, gosto

de usar este raio de sol e não aquele, certo copo e não outro,

a coleção de retratos, também alguns livros,

cartas, costumes, jeito de olhar, feitio de cabeça,

antipatias e inclinações infalíveis: uma família,

bem sei, mas e esse piano?

 

Está no fundo

da casa, por baixo

da zona sensível, muito

por baixo do sangue.

 

Está por cima do teto, mais alto

que a palmeira, mais alto

que o terraço, mais alto

que a cólera, a astúcia, o alarme.

 

Cortaremos o piano

em mil fragmentos de unha?

Sepultaremos o piano

no jardim?

Como Aníbal o jogaremos

ao mar?

 

Piano, piano, deixa de amofinar!

No mundo, tamanho peso

de angústia

e você, girafa, tentando.

 

Resta-nos a esperança

(como na insônia temos a de amanhecer)

que um dia se mude, sem notícia,

clandestino, escarninho, vingativo,

pesado,

que nos abandone

e deserto fique esse lugar de sombra

onde hoje impera. Sempre imperará?

 

(É um antigo piano, foi

de alguma dona, hoje

sem dedos, sem queixo, sem

música na fria mansão.

Um pedaço de velha, um resto

de cova, meu Deus, nesta sala

onde ainda há pouco falávamos.)

 

 

OS ÚLTIMOS DIAS

 

Que a terra há de comer.

Mas não coma já.

 

Ainda se mova,

para o ofício e a posse.

 

E veja alguns sítios

antigos, outros inéditos.

 

Sinta frio, calor, cansaço;

pare um momento; continue.

 

Descubra em seu movimento

forças não sabidas, contatos.

 

O prazer de estender-se; o de

enrolar-se, ficar inerte.

 

Prazer de balanço, prazer de voo.

 

Prazer de ouvir música;

sobre papel deixar que a mão deslize.

 

Irredutível prazer dos olhos;

certas cores: como se desfazem, como aderem;

certos objetos, diferentes a uma luz nova.

 

Que ainda sinta cheiro de fruta,

de terra na chuva, que pegue,

que imagine e grave, que lembre.

 

O tempo de conhecer mais algumas pessoas,

de aprender como vivem, de ajudá-las.

 

De ver passar este conto: o vento

balançando a folha; a sombra

da árvore, parada um instante,

alongando-se com o sol, e desfazendo-se

numa sombra maior, de estrada sem trânsito.

 

E de olhar esta folha, se cai.

Na queda retê-la. Tão seca, tão morna.

 

Tem na certa um cheiro, particular entre mil.

Um desenho, que se produzirá ao infinito,

e cada folha é uma diferente.

 

E cada instante é diferente, e cada

homem é diferente, e somos todos iguais.

No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra

o silêncio global, mas não seja logo.

 

Antes dele outros silêncios penetrem,

outras solidões derrubem ou acalentem

meu peito; ficar parado em frente desta estátua: é um torso

de mil anos, recebe minha visita, prolonga

para trás meu sopro, igual a mim

na calma, não importa o mármore, completa-me.

 

O tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz

da vida ficou mais forte, e os naufrágios

não cortaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas:

que os objetos continuam, e a trepidação incessante

não desfigurou o rosto dos homens;

que somos todos irmãos, insisto.

 

Em minha falta de recursos para dominar o fim,

entretanto me sinta grande, tamanho de criança, tamanho de torre,

tamanho da hora, que se vai acumulando século após século e causa vertigem,

tamanho de qualquer João, pois somos todos irmãos.

 

E a tristeza de deixar os irmãos me faça desejar

partida menos imediata. Ah, podeis rir também,

não da dissolução, mas do fato de alguém resistir-lhe,

de outros virem depois, de todos sermos irmãos,

no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime

cotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão.

 

O tempo de despedir-me e contar

que não espero outra luz além da que nos envolveu

dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,

pequena ampola fulgurante, facho, lanterna, faísca,

estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,

mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo

é boa medida, irmãos, vivamos o tempo.

 

A doença não me intimide, que ela não possa

chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica.

Uma parte de mim sofre, outra pede amor,

outra viaja, outra discute, uma última trabalha,

sou todas as comunicações, como posso ser triste?

 

A tristeza não me liquide, mas venha também

na noite de chuva, na estrada lamacenta, no bar fechando-se,

que lute lealmente com sua presa,

e reconheça o dia entrando em explosões de confiança, esquecimento, amor,

ao fim da batalha perdida.

 

Este tempo, e não outro, sature a sala, banhe os livros,

nos bolsos, nos pratos se insinue: com sórdido ou potente clarão.

E todo o mel dos domingos se tire;

o diamante dos sábados, a rosa

de terça, a luz de quinta, a mágica

de horas matinais, que nós mesmos elegemos

para nossa pessoal despesa, essa parte secreta

de cada um de nós, no tempo.

 

E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,

submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor

rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,

mas não a quero negando as outras horas nem as palavras

ditas antes com voz firme, os pensamentos

maduramente pensados, os atos

que atrás de si deixaram situações.

Que o riso sem boca não a aterrorize

e a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,

dedos torcidos, lívido

suor de remorso.

 

E a matéria se veja acabar: adeus, composição

que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.

Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,

meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,

sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, ideia de justiça, revolta e sono, adeus,

vida aos outros legada.

 

 

MÁRIO DE ANDRADE DESCE AOS INFERNOS

 

I

 

Daqui a vinte anos farei teu poema

e te cantarei com tal suspiro

que as flores pasmarão, e as abelhas,

confundidas, esvairão seu mel.

 

Daqui a vinte anos: poderei

tanto esperar o preço da poesia?

É preciso tirar da boca urgente

o canto rápido, ziguezagueante, rouco,

feito da impureza do minuto

e de vozes em febre, que golpeiam

esta viola desatinada

no chão, no chão.

 

II

 

No chão me deito à maneira dos desesperados.

 

Estou escuro, estou rigorosamente noturno, estou vazio,

esqueço que sou um poeta, que não estou sozinho,

preciso aceitar e compor, minhas medidas partiram-se,

mas preciso, preciso, preciso.

 

Rastejando, entre cacos, me aproximo.

Não quero, mas preciso tocar pele de homem,

avaliar o frio, ver a cor, ver o silêncio,

conhecer um novo amigo e nele me derramar.

 

Porque é outro amigo. A explosiva descoberta

ainda me atordoa. Estou cego e vejo. Arranco os olhos e vejo.

Furo as paredes e vejo. Através do mar sanguíneo vejo.

Minucioso, implacável, sereno, pulverizado,

é outro amigo. São outros dentes. Outro sorriso.

Outra palavra, que goteja.

 

III

 

O meu amigo era tão

de tal modo extraordinário,

cabia numa só carta,

esperava-me na esquina,

e já um poste depois

ia descendo o Amazonas,

tinha coletes de música,

entre cantares de amigo

pairava na renda fina

dos Sete Saltos,

na serrania mineira,

no mangue, no seringal,

nos mais diversos brasis,

e para além dos brasis,

nas regiões inventadas,

países a que aspiramos,

fantásticos,

mas certos, inelutáveis,

terra de João invencível,

a rosa do povo aberta…

 

IV

 

A rosa do povo despetala-se,

ou ainda conserva o pudor da alva?

É um anúncio, um chamado, uma esperança embora frágil, pranto infantil no berço?

Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe.

Mas há um ouvido mais fino que escuta, um peito de artista que incha,

e uma rosa se abre, um segredo comunica-se, o poeta anunciou,

o poeta, nas trevas, anunciou.

 

Mais perto, e uma lâmpada. Mais perto, e quadros,

quadros. Portinari aqui esteve, deixou

sua garra. Aqui Cézanne e Picasso,

os primitivos, os cantadores, a gente de pé no chão,

a voz que vem do nordeste, os fetiches, as religiões,

os bichos… Aqui tudo se acumulou,

esta é a Rua Lopes Chaves, 546,

outrora 108. Para aqui muitas vezes voou

meu pensamento. Daqui vinha a palavra

esperada na dúvida e no cacto.

Aqui nunca pisei. Mas como o chão

sabe a forma dos pés e é liso e beija!

Todas as brisas da saudade balançam a casa,

empurram a casa,

navio de São Paulo no céu nacional,

vai colhendo amigos de Minas e Rio Grande do Sul,

gente de Pernambuco e Pará, todos os apertos de mão,

todas as confidências a casa recolhe,

embala, pastoreia.

Os que entram e os que saem se cruzam na imensidão dos corredores,

paz nas escadas,

calma nos vidros,

e ela viaja como um lento pássaro, uma notícia postal, uma nuvem pejada.

Casas ancoradas saúdam-na fraternas:

Vai, amiga!

Não te vás, amiga…

(Um homem se dá no Brasil mas conserva-se intato,

preso a uma casa e dócil a seus companheiros

esparsos.)

 

Súbito a barba deixou de crescer. Telegramas

irrompem. Telefones

retinem. Silêncio

em Lopes Chaves.

 

Agora percebo que estamos amputados e frios.

Não tenho voz de queixa pessoal, não sou

um homem destroçado vagueando na praia.

Muitos procuram São Paulo no ar e se concentram,

aura secreta na respiração da cidade.

É um retrato, somente um retrato,

algo nos jornais, na lembrança,

o dia estragado como uma fruta,

um véu baixando, um ríctus,

o desejo de não conversar. É sobretudo uma pausa oca

e além de todo vinagre.

 

Mas tua sombra robusta desprende-se e avança.

Desce o rio, penetra os túneis seculares

onde o antigo marcou seus traços funerários,

desliza na água salobra, e ficam tuas palavras

(superamos a morte, e a palma triunfa)

tuas palavras carbúnculo e carinhosos diamantes.

 

 

CANTO AO HOMEM DO POVO CHARLIE CHAPLIN

 

I

 

Era preciso que um poeta brasileiro,

não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,

girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver

como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos,

 

era preciso que esse pequeno cantor teimoso,

de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior

onde nem sempre se usa gravata mas todos são extremamente polidos

e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia,

 

era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,

preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso, dispersos no tempo,

viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse

para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.

 

Para dizer-te como os brasileiros te amam

e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece

com qualquer gente do mundo — inclusive os pequenos judeus

de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,

 

vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem

nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,

e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor

como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.

 

Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,

e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua,

e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,

só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.

 

Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,

eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum,

nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti

como um ramo de flores absurdas mandado por via postal ao inventor dos jardins.

 

Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,

que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,

são duas horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,

visitemos no escuro as imagens — e te descobriram e salvaram-se.

 

Falam por mim os abandonados de justiça, os simples de coração,

os párias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os recalcados,

os oprimidos, os solitários, os indecisos, os líricos, os cismarentos,

os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.

 

E falam as flores que tanto amas quando pisadas,

falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões,

os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,

cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.

 

II

 

A noite banha tua roupa.

Mal a disfarças no colete mosqueado,

no gelado peitilho de baile,

de um impossível baile sem orquídeas.

És condenado ao negro. Tuas calças

confundem-se com a treva. Teus sapatos

inchados, no escuro do beco,

são cogumelos noturnos. A quase cartola,

sol negro, cobre tudo isto, sem raios.

Assim, noturno cidadão de uma república

enlutada, surges a nossos olhos

pessimistas, que te inspecionam e meditam:

Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado,

o corvo, o nunca mais, o chegado muito tarde

a um mundo muito velho.

 

E a lua pousa

em teu rosto. Branco, de morte caiado,

que sepulcros evoca, mas que hastes

submarinas e álgidas e espelhos

e lírios que o tirano decepou, e faces

amortalhadas em farinha. O bigode

negro cresce em ti como um aviso

e logo se interrompe. É negro, curto,

espesso. Ó rosto branco, de lunar matéria,

face cortada em lençol, risco na parede,

caderno de infância, apenas imagem,

entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,

sozinha, experiente, calada vem a boca

sorrir, aurora, para todos.

 

E já não sentimos a noite,

e a morte nos evita, e diminuímos

como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos

ao país secreto onde dormem meninos.

Já não é o escritório de mil fichas,

nem a garagem, a universidade, o alarme,

é realmente a rua abolida, lojas repletas,

e vamos contigo arrebentar vidraças,

e vamos jogar o guarda no chão,

e na pessoa humana vamos redescobrir

aquele lugar — cuidado! — que atrai os pontapés: sentenças

de uma justiça não oficial.

 

III

 

Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome

dos que não foram chamados à ceia celeste

ou industrial. Há ossos, há pudins

de gelatina e cereja e chocolate e nuvens

nas dobras de teu casaco. Estão guardados

para uma criança ou um cão. Pois bem conheces

a importância da comida, o gosto da carne,

o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata,

e sabes a arte sutil de transformar em macarrão

o humilde cordão de teus sapatos.

Mais uma vez jantaste: a vida é boa.

Cabe um cigarro: e o tiras

da lata de sardinhas.

 

Não há muitos jantares no mundo, já sabias,

e os mais belos frangos

são protegidos em pratos chineses por vidros espessos.

Há sempre o vidro, e não se quebra,

há o aço, o amianto, a lei,

há milícias inteiras protegendo o frango,

e há uma fome que vem do Canadá, um vento,

uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha

baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida

que mal decifras. Entre o frango e a fome,

o cristal infrangível. Entre a mão e a fome,

os valos da lei, as léguas. Então te transformas

tu mesmo no grande frango assado que flutua

sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro

e chama, comida geral

para o dia geral, que tarda.

 

IV

 

O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas.

No festim solitário teus dons se aguçam.

És espiritual e dançarino e fluido,

mas ninguém virá aqui saber como amas

com fervor de diamante e delicadeza de alva,

como, por tua mão, a cabana se faz lua.

Mundo de neve e sal, de gramofones roucos

urrando longe o gozo de que não participas.

Mundo fechado, que aprisiona as amadas

e todo desejo, na noite, de comunicação.

Teu palácio se esvai, lambe-te o sono,

ninguém te quis, todos possuem,

tudo buscaste dar, não te tomaram.

 

Então caminhas no gelo e rondas o grito.

Mas não tens gula de festa, nem orgulho

nem ferida nem raiva nem malícia.

És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa

correndo, os copos voam,

os corpos saltam rápido, as amadas

te procuram na noite… e não te veem,

tu pequeno,

tu simples, tu qualquer.

 

Ser tão sozinho em meio a tantos ombros,

andar aos mil num corpo só, franzino,

e ter braços enormes sobre as casas,

ter um pé em Guerrero e outro no Texas,

falar assim a chinês, a maranhense,

a russo, a negro: ser um só, de todos,

sem palavra, sem filtro,

sem opala:

há uma cidade em ti, que não sabemos.

 

V

 

Uma cega te ama. Os olhos abrem-se.

Não, não te ama. Um rico, em álcool,

é teu amigo e lúcido repele

tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos

o que há de água, de sopro e de inocência

no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos

que cultuamos, falsos: flores pardas,

anjos desleais, cofres redondos, arquejos

poéticos acadêmicos; convenções

do branco, azul e roxo; maquinismos,

telegramas em série, e fábricas e fábricas

e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras.

Ficaste apenas um operário

comandado pela voz colérica do megafone.

És parafuso, gesto, esgar.

Recolho teus pedaços: ainda vibram,

lagarto mutilado.

 

Colo teus pedaços. Unidade

estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.

E nós, que a cada passo nos cobrimos

e nos despimos e nos mascaramos,

mal retemos em ti o mesmo homem,

aprendiz

bombeiro

caixeiro

doceiro

emigrante

forçado

maquinista

noivo

patinador

soldado

músico

peregrino

artista de circo

marquês

marinheiro

carregador de piano

apenas sempre entretanto tu mesmo,

o que não está de acordo e é meigo,

o incapaz de propriedade, o pé

errante, a estrada

fugindo, o amigo

que desejaríamos reter

na chuva, no espelho, na memória

e todavia perdemos.

 

VI

 

Já não penso em ti. Penso no ofício

a que te entregas. Estranho relojoeiro,

cheiras a peça desmontada: as molas unem-se,

o tempo anda. És vidraceiro.

Varres a rua. Não importa

que o desejo de partir te roa; e a esquina

faça de ti outro homem; e a lógica

te afaste de seus frios privilégios.

 

Há o trabalho em ti, mas caprichoso,

mas benigno,

e dele surgem artes não burguesas,

produtos de ar e lágrima, indumentos

que nos dão asa ou pétalas, e trens

e navios sem aço, onde os amigos

fazendo roda viajam pelo tempo,

livros se animam, quadros se conversam,

e tudo libertado se resolve

numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol.

 

O ofício, é o ofício

que assim te põe no meio de nós todos,

vagabundo entre dois horários; mão sabida

no bater, no cortar, no fiar, no rebocar,

o pé insiste em levar-te pelo mundo,

a mão pega a ferramenta: é uma navalha,

e ao compasso de Brahms fazes a barba

neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido

onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos.

 

Foi bom que te calasses.

Meditavas na sombra das chaves,

das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame,

juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas,

anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta

de mil, os braços cruzados de mil.

E nada dizias. E um bolo, um engulho

formando-se. E as palavras subindo.

Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.

Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopro aos exaustos.

Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,

crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores,

ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança.