CANÇÃO AMIGA

 

Eu preparo uma canção

em que minha mãe se reconheça,

todas as mães se reconheçam,

e que fale como dois olhos.

 

Caminho por uma rua

que passa em muitos países.

Se não me veem, eu vejo

e saúdo velhos amigos.

 

Eu distribuo um segredo

como quem ama ou sorri.

No jeito mais natural

dois carinhos se procuram.

 

Minha vida, nossas vidas

formam um só diamante.

Aprendi novas palavras

e tornei outras mais belas.

 

Eu preparo uma canção

que faça acordar os homens

e adormecer as crianças.

 

 

DESAPARECIMENTO DE LUÍSA PORTO

 

Pede-se a quem souber

do paradeiro de Luísa Porto

avise sua residência

à Rua Santos Óleos, 48.

Previna urgente

solitária mãe enferma

entrevada há longos anos

erma de seus cuidados.

 

Pede-se a quem avistar

Luísa Porto, de 37 anos,

que apareça, que escreva, que mande dizer

onde está.

Suplica-se ao repórter amador,

ao caixeiro, ao mata-mosquitos, ao transeunte,

a qualquer do povo e da classe média,

até mesmo aos senhores ricos,

que tenham pena de mãe aflita

e lhe restituam a filha volatilizada

ou pelo menos deem informações.

É alta, magra,

morena, rosto penugento, dentes alvos,

sinal de nascença junto ao olho esquerdo,

levemente estrábica.

Vestidinho simples. Óculos.

Sumida há três meses.

Mãe entrevada chamando.

 

Roga-se ao povo caritativo desta cidade

que tome em consideração um caso de família

digno de simpatia especial.

Luísa é de bom gênio, correta,

meiga, trabalhadora, religiosa.

Foi fazer compras na feira da praça.

Não voltou.

 

Levava pouco dinheiro na bolsa.

(Procurem Luísa.)

De ordinário não se demorava.

(Procurem Luísa.)

Namorado isso não tinha.

(Procurem. Procurem.)

Faz tanta falta.

 

Se todavia não a encontrarem

nem por isso deixem de procurar

com obstinação e confiança que Deus sempre recompensa

e talvez encontrem.

Mãe, viúva pobre, não perde a esperança.

Luísa ia pouco à cidade

e aqui no bairro é onde melhor pode ser pesquisada.

Sua melhor amiga, depois da mãe enferma,

é Rita Santana, costureira, moça desimpedida,

a qual não dá notícia nenhuma,

limitando-se a responder: Não sei.

O que não deixa de ser esquisito.

 

Somem tantas pessoas anualmente

numa cidade como o Rio de Janeiro

que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada.

Uma vez, em 1898

ou 9,

sumiu o próprio chefe de polícia

que saíra à tarde para uma volta no Largo do Rocio

e até hoje.

A mãe de Luísa, então jovem,

leu no Diário Mercantil,

ficou pasma.

O jornal embrulhado na memória.

Mal sabia ela que o casamento curto, a viuvez,

a pobreza, a paralisia, o queixume

seriam, na vida, seu lote

e que sua única filha, afável posto que estrábica,

se diluiria sem explicação.

 

Pela última vez e em nome de Deus

todo-poderoso e cheio de misericórdia

procurem a moça, procurem

essa que se chama Luísa Porto

e é sem namorado.

Esqueçam a luta política,

ponham de lado preocupações comerciais,

percam um pouco de tempo indagando,

inquirindo, remexendo.

Não se arrependerão. Não

há gratificação maior do que o sorriso

de mãe em festa

e a paz íntima

consequente às boas e desinteressadas ações,

puro orvalho da alma.

 

Não me venham dizer que Luísa suicidou-se.

O santo lume da fé

ardeu sempre em sua alma

que pertence a Deus e a Teresinha do Menino Jesus.

Ela não se matou.

Procurem-na.

Tampouco foi vítima de desastre

que a polícia ignora

e os jornais não deram.

Está viva para consolo de uma entrevada

e triunfo geral do amor materno,

filial

e do próximo.

 

Nada de insinuações quanto à moça casta

e que não tinha, não tinha namorado.

Algo de extraordinário terá acontecido,

terremoto, chegada de rei.

As ruas mudaram de rumo,

para que demore tanto, é noite.

Mas há de voltar, espontânea

ou trazida por mão benigna,

o olhar desviado e terno,

canção.

 

A qualquer hora do dia ou da noite

quem a encontrar avise a Rua Santos Óleos.

Não tem telefone.

Tem uma empregada velha que apanha o recado

e tomará providências.

 

Mas

se acharem que a sorte dos povos é mais importante

e que não devemos atentar nas dores individuais,

se fecharem ouvidos a este apelo de campainha,

não faz mal, insultem a mãe de Luísa,

virem a página:

Deus terá compaixão da abandonada e da ausente,

erguerá a enferma, e os membros perclusos

já se desatam em forma de busca.

Deus lhe dirá:

Vai,

procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração.

 

Ou talvez não seja preciso esse favor divino.

A mãe de Luísa (somos pecadores)

sabe-se indigna de tamanha graça.

E resta a espera, que sempre é um dom.

Sim, os extraviados um dia regressam

ou nunca, ou pode ser, ou ontem.

E de pensar realizamos.

Quer apenas sua filhinha

que numa tarde remota de Cachoeiro

acabou de nascer e cheira a leite,

a cólica, a lágrima.

Já não interessa a descrição do corpo

nem esta, perdoem, fotografia,

disfarces de realidade mais intensa

e que anúncio algum proverá.

Cessem pesquisas, rádios, calai-vos.

Calma de flores abrindo

no canteiro azul

onde desabrocham seios e uma forma de virgem

intata nos tempos.

E de sentir compreendemos.

Já não adianta procurar

minha querida filha Luísa

que enquanto vagueio pelas cinzas do mundo

com inúteis pés fixados, enquanto sofro

e sofrendo me solto e me recomponho

e torno a viver e ando,

está inerte

cravada no centro da estrela invisível

Amor.

 

 

NOTÍCIAS DE ESPANHA

 

Aos navios que regressam

marcados de negra viagem,

aos homens que neles voltam

com cicatrizes no corpo

ou de corpo mutilado,

 

peço notícias de Espanha.

 

Às caixas de ferro e vidro,

às ricas mercadorias,

ao cheiro de mofo e peixe,

às pranchas sempre varridas

de uma água sempre irritada,

 

peço notícias de Espanha.

 

Às gaivotas que deixaram

pelo ar um risco de gula,

ao sal e ao rumor das conchas,

à espuma fervendo fria,

aos mil objetos do mar,

 

peço notícias de Espanha.

 

Ninguém as dá. O silêncio

sobe mil braças e fecha-se

entre as substâncias mais duras.

Hirto silêncio de muro,

de pano abafando boca,

 

de pedra esmagando ramos,

é seco e sujo silêncio

em que se escuta vazar

como no fundo da mina

um caldo grosso e vermelho.

 

Não há notícias de Espanha.

 

Ah, se eu tivesse navio!

Ah, se eu soubesse voar!

Mas tenho apenas meu canto,

e que vale um canto? O poeta,

imóvel dentro do verso,

 

cansado de vã pergunta,

farto de contemplação,

quisera fazer do poema

não uma flor: uma bomba

e com essa bomba romper

 

o muro que envolve Espanha.

 

 

A FEDERICO GARCÍA LORCA

 

Sobre teu corpo, que há dez anos

se vem transfundindo em cravos

de rubra cor espanhola,

aqui estou para depositar

vergonha e lágrimas.

 

Vergonha de há tanto tempo

viveres — se morte é vida —

sob chão onde esporas tinem

e calcam a mais fina grama

e o pensamento mais fino

de amor, de justiça e paz.

 

Lágrimas de noturno orvalho,

não de mágoa desiludida,

lágrimas que tão só destilam

desejo e ânsia e certeza

de que o dia amanhecerá.

 

(Amanhecerá.)

 

Esse claro dia espanhol,

composto na treva de hoje,

sobre teu túmulo há de abrir-se,

mostrando gloriosamente

— ao canto multiplicado

de guitarra, gitano e galo —

que para sempre viverão

 

os poetas martirizados.

 

 

PEQUENO MISTÉRIO POLICIAL
ou
A MORTE PELA GRAMÁTICA

 

Não amando mais escolher

entre mil serôdios programas,

e posto entre o tédio e o dever,

sabendo a ironia das camas

 

e tudo que — irrisão — é vômito

sobre a rosa do amanhecer,

igualdade no ser, não ser,

covardia de peito indômito,

 

mas possuidor de um atro armário

(para o que viesse a acontecer)

onde cartas, botas, o anuário

das puras modas de dizer

 

e uma faca pernambucana

se compensavam sem saber,

eis que mergulha no nirvana:

mas o aço, intato! Que fazer?

 

 

JARDIM

 

Negro jardim onde violas soam

e o mal da vida em ecos se dispersa:

à toa uma canção envolve os ramos,

como a estátua indecisa se reflete

 

no lago há longos anos habitado

por peixes, não, matéria putrescível,

mas por pálidas contas de colares

que alguém vai desatando, olhos vazados

 

e mãos oferecidas e mecânicas,

de um vegetal segredo enfeitiçadas,

enquanto outras visões se delineiam

 

e logo se enovelam: mascarada,

que sei de sua essência (ou não a tem),

jardim apenas, pétalas, presságio.

 

 

CANTO ESPONJOSO

 

Bela

esta manhã sem carência de mito,

e mel sorvido sem blasfêmia.

 

Bela

esta manhã ou outra possível,

esta vida ou outra invenção,

sem, na sombra, fantasmas.

 

Umidade de areia adere ao pé.

Engulo o mar, que me engole.

Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz

azul

completa

sobre formas constituídas.

 

Bela

a passagem do corpo, sua fusão

no corpo geral do mundo.

 

Vontade de cantar. Mas tão absoluta

que me calo, repleto.

 

 

COMPOSIÇÃO

 

E é sempre a chuva

nos desertos sem guarda-chuva,

algo que escorre, peixe dúbio,

e a cicatriz, percebe-se, no muro nu.

 

E são dissolvidos fragmentos de estuque

e o pó das demolições de tudo

que atravanca o disforme país futuro.

Débil, nas ramas, o socorro do imbu.

Pinga, no desarvorado campo nu.

 

Onde vivemos é água. O sono, úmido,

em urnas desoladas. Já se entornam,

fungidas, na corrente, as coisas caras

que eram pura delícia, hoje carvão.

 

O mais é barro, sem esperança de escultura.

 

 

ALIANÇA  A Paulo Rónai

 

Deitado no chão. Estátua,

mesmo enrodilhada, viaja

ou dorme, enquanto componho

o que já de si repele

arte de composição.

O pé avança, encontrando

a tepidez do seu corpo

que está ausente e presente,

consciente do que pressão

vale em ternura. Mas viaja

imóvel. Enquanto prossigo

tecendo fios de nada,

moldando potes de pura

água, loucas estruturas

do vago mais vago, vago.

Oh que duro, duro, duro

ofício de se exprimir!

Já desisto de lavrar

este país inconcluso,

de rios informulados

e geografia perplexa.

Já soluço, já blasfemo

e já irado me levanto,

ele comigo. De um salto,

decapitando seu sonho,

eis que me segue. Percorro

a passos largos, estreito

jardim de formiga e de hera.

E nada me segue de

quanto venho reduzindo

sem se deixar reduzir.

O homem, feixe de sombra,

desejaria pactuar

com a menor claridade.

Em vão. Não há sol. Que importa?

Segue-me, cego. Os dois vamos

rumo de Lugar Algum,

onde, afinal: encontrar!

A dileta circunstância

de um achado não perdido,

visão de graça fortuita

e ciência não ensinada,

achei, achamos. Já volto

e de uma bolsa invisível

vou tirando uma cidade,

uma flor, uma experiência,

um colóquio de guerreiros,

uma relação humana,

uma negação da morte,

vou arrumando esses bens

em preto na face branca.

De novo a meus pés. Estátua.

Baixa os olhos. Mal respira.

O sonho, colo cortado,

se recompõe. Aqui estou,

diz-lhe o sonho; que fazias?

Não sei, responde-lhe; apenas

fui ao capricho deste homem.

Negócios de homem: por que

assim os fazes tão teus?

Que sei, murmura-lhe. E é tudo.

Sono de agulha o penetra,

separando-nos os dois.

Mas se...

 

 

ESTÂNCIAS

 

Amor? Amar? Vozes que ouvi, já não me lembra

onde: talvez entre grades solenes, num

calcinado e pungitivo lugar que regamos de fúria,

êxtase, adoração, temor. Talvez no mínimo

território acuado entre a espuma e o gnaisse, onde respira

— mas que assustada! — uma criança apenas. E que presságios

de seus cabelos se desenrolam! Sim, ouvi de amor, em hora

infinda, se bem que sepultada na mais rangente areia

que os pés pisam, pisam, e por sua vez — é lei — desaparecem.

E ouvi de amar, como de um dom a poucos ofertado; ou de um crime.

 

De novo essas vozes, peço-te. Escande-as em tom sóbrio,

ou senão grita-as à face dos homens; desata os petrificados; aturde

os caules no ato de crescer; repete: amor, amar.

O ar se crispa, de ouvi-las; e para além do tempo ressoam, remos

de ouro batendo a água transfigurada; correntes

tombam. Em nós ressurge o antigo; o novo; o que de nada

extrai forma de vida; e não de confiança, de desassossego se nutre.

Eis que a posse abolida na de hoje se reflete, e confundem-se,

e quantos desse mal um dia (estão mortos) soluçaram,

habitam nosso corpo reunido e soluçam conosco.

 

 

O ARCO

 

Que quer o anjo? chamá-la.

Que quer a alma? perder-se.

Perder-se em rudes guianas

para jamais encontrar-se.

 

Que quer a voz? encantá-lo.

Que quer o ouvido? embeber-se

de gritos blasfematórios

até quedar aturdido.

 

Que quer a nuvem? raptá-lo.

Que quer o corpo? solver-se,

delir memória de vida

e quanto seja memória.

 

Que quer a paixão? detê-lo.

Que quer o peito? fechar-se

contra os poderes do mundo

para na treva fundir-se.

 

Que quer a canção? erguer-se

em arco sobre os abismos.

Que quer o homem? salvar-se,

ao prêmio de uma canção.

 

 

O ENIGMA

 

As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o caminho. Elas se interrogam, e à sua experiência mais particular. Conheciam outras formas deambulantes, e o perigo de cada objeto em circulação na terra. Aquele, todavia, em nada se assemelha às imagens trituradas pela experiência, prisioneiras do hábito ou domadas pelo instinto imemorial das pedras. As pedras detêm-se. No esforço de compreender, chegam a imobilizar-se de todo. E na contenção desse instante, fixam-se as pedras — para sempre — no chão, compondo montanhas colossais, ou simples e estupefatos e pobres seixos desgarrados.

Mas a coisa sombria — desmesurada, por sua vez — aí está, à maneira dos enigmas que zombam da tentativa de interpretação. É mal de enigmas não se decifrarem a si próprios. Carecem de argúcia alheia, que os liberte de sua confusão amaldiçoada. E repelem-na ao mesmo tempo, tal é a condição dos enigmas. Esse travou o avanço das pedras, rebanho desprevenido, e amanhã fixará por igual as árvores, enquanto não chega o dia dos ventos, e o dos pássaros, e o do ar pululante de insetos e vibrações, e o de toda vida, e o da mesma capacidade universal de se corresponder e se completar, que sobrevive à consciência. O enigma tende a paralisar o mundo.

Talvez que a enorme Coisa sofra na intimidade de suas fibras, mas não se compadece nem de si nem daqueles que reduz à congelada expectação.

Ai! de que serve a inteligência — lastimam-se as pedras. Nós éramos inteligentes; contudo, pensar a ameaça não é removê-la; é criá-la.

Ai! de que serve a sensibilidade — choram as pedras. Nós éramos sensíveis, e o dom de misericórdia se volta contra nós, quando contávamos aplicá-lo a espécies menos favorecidas.

Anoitece, e o luar, modulado de dolentes canções que preexistem aos instrumentos de música, espalha no côncavo, já pleno de serras abruptas e de ignoradas jazidas, melancólica moleza.

Mas a Coisa interceptante não se resolve. Barra o caminho e medita, obscura.