Les événements m’ennuient.

P. Valéry

 

 

I. ENTRE LOBO E CÃO

 

DISSOLUÇÃO

 

Escurece, e não me seduz

tatear sequer uma lâmpada.

Pois que aprouve ao dia findar,

aceito a noite.

 

E com ela aceito que brote

uma ordem outra de seres

e coisas não figuradas.

Braços cruzados.

 

Vazio de quanto amávamos,

mais vasto é o céu. Povoações

surgem do vácuo.

Habito alguma?

 

E nem destaco minha pele

da confluente escuridão.

Um fim unânime concentra-se

e pousa no ar. Hesitando.

 

E aquele agressivo espírito

que o dia carreia consigo,

já não oprime. Assim a paz,

destroçada.

 

Vai durar mil anos, ou

extinguir-se na cor do galo?

Esta rosa é definitiva,

ainda que pobre.

 

Imaginação, falsa demente,

já te desprezo. E tu, palavra.

No mundo, perene trânsito,

calamo-nos.

E sem alma, corpo, és suave.

 

 

REMISSÃO

 

Tua memória, pasto de poesia,

tua poesia, pasto dos vulgares,

vão se engastando numa coisa fria

a que tu chamas: vida, e seus pesares.

 

Mas, pesares de quê? perguntaria,

se esse travo de angústia nos cantares,

se o que dorme na base da elegia

vai correndo e secando pelos ares,

 

e nada resta, mesmo, do que escreves

e te forçou ao exílio das palavras,

senão contentamento de escrever,

 

enquanto o tempo, em suas formas breves

ou longas, que sutil interpretavas,

se evapora no fundo de teu ser?

 

 

A INGAIA CIÊNCIA

 

A madureza, essa terrível prenda

que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,

todo sabor gratuito de oferenda

sob a glacialidade de uma estela,

 

a madureza vê, posto que a venda

interrompa a surpresa da janela,

o círculo vazio, onde se estenda,

e que o mundo converte numa cela.

 

A madureza sabe o preço exato

dos amores, dos ócios, dos quebrantos,

e nada pode contra sua ciência

 

e nem contra si mesma. O agudo olfato,

o agudo olhar, a mão, livre de encantos,

se destroem no sonho da existência.

 

 

LEGADO

 

Que lembrança darei ao país que me deu

tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?

Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu

minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

 

E mereço esperar mais do que os outros, eu?

Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.

Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,

a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

 

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,

uma voz matinal palpitando na bruma

e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

 

De tudo quanto foi meu passo caprichoso

na vida, restará, pois o resto se esfuma,

uma pedra que havia em meio do caminho.

 

 

CONFISSÃO

 

Não amei bastante meu semelhante,

não catei o verme nem curei a sarna.

Só proferi algumas palavras,

melodiosas, tarde, ao voltar da festa.

 

Dei sem dar e beijei sem beijo.

(Cego é talvez quem esconde os olhos

embaixo do catre.) E na meia-luz

tesouros fanam-se, os mais excelentes.

 

Do que restou, como compor um homem

e tudo que ele implica de suave,

de concordâncias vegetais, murmúrios

de riso, entrega, amor e piedade?

 

Não amei bastante sequer a mim mesmo,

contudo próximo. Não amei ninguém.

Salvo aquele pássaro — vinha azul e doido —

que se esfacelou na asa do avião.

 

 

PERGUNTAS EM FORMA DE CAVALO-MARINHO

 

Que metro serve

para medir-nos?

Que forma é nossa

e que conteúdo?

 

Contemos algo?

Somos contidos?

Dão-nos um nome?

Estamos vivos?

 

A que aspiramos?

Que possuímos?

Que relembramos?

Onde jazemos?

 

(Nunca se finda

nem se criara.

Mistério é o tempo,

inigualável.)

 

 

OS ANIMAIS DO PRESÉPIO

 

Salve, reino animal:

todo o peso celeste

suportas no teu ermo.

 

Toda a carga terrestre

carregas como se

fosse feita de vento.

 

Teus cascos lacerados

na lixa do caminho

e tuas cartilagens

 

e teu rude focinho

e tua cauda zonza,

teu pelo matizado,

 

tua escama furtiva,

as cores com que iludes

teu negrume geral,

 

teu voo limitado,

teu rastro melancólico,

tua pobre verônica

 

em mim, que nem pastor

soube ser, ou serei,

se incorporam, num sopro.

 

Para tocar o extremo

de minha natureza,

limito-me: sou burro.

 

Para trazer ao feno

o senso da escultura,

concentro-me: sou boi.

 

A vária condição

por onde se atropela

essa ânsia de explicar-me

 

agora se apascenta

à sombra do galpão

neste sinal: sou anjo.

 

 

SONETILHO DO FALSO FERNANDO PESSOA

 

Onde nasci, morri.

Onde morri, existo.

E das peles que visto

muitas há que não vi.

 

Sem mim como sem ti

posso durar. Desisto

de tudo quanto é misto

e que odiei ou senti.

 

Nem Fausto nem Mefisto,

à deusa que se ri

deste nosso oaristo,

 

eis-me a dizer: assisto

além, nenhum, aqui,

mas não sou eu, nem isto.

 

 

UM BOI VÊ OS HOMENS

 

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm

e correm de um para outro lado, sempre esquecidos

de alguma coisa. Certamente, falta-lhes

não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres

e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,

até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam

nem o canto do ar nem os segredos do feno,

como também parecem não enxergar o que é visível

e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes

e no rasto da tristeza chegam à crueldade.

Toda a expressão deles mora nos olhos — e perde-se

a um simples baixar de cílios, a uma sombra.

Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade,

e como neles há pouca montanha,

e que secura e que reentrâncias e que

impossibilidade de se organizarem em formas calmas,

permanentes e necessárias. Têm, talvez,

certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem

perdoar a agitação incômoda e o translúcido

vazio interior que os torna tão pobres e carecidos

de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme

(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo

como pedras aflitas e queimam a erva e a água,

e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.

 

 

MEMÓRIA

 

Amar o perdido

deixa confundido

este coração.

 

Nada pode o olvido

contra o sem sentido

apelo do Não.

 

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

 

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas,

essas ficarão.

 

 

A TELA CONTEMPLADA

 

Pintor da soledade nos vestíbulos

de mármore e losango, onde as colunas

se deploram silentes, sem que as pombas

venham trazer um pouco do seu ruflo;

 

traça das finas torres consumidas

no vazio mais branco e na insolvência

de arquiteturas não arquitetadas,

porque a plástica é vã, se não comove,

 

ó criador de mitos que sufocam,

desperdiçando a terra, e já recuam

para a noite, e no charco se constelam,

 

por teus condutos flui um sangue vago,

e nas tuas pupilas, sob o tédio,

é a vida um suspiro sem paixão.

 

 

SER

 

O filho que não fiz

hoje seria homem.

Ele corre na brisa,

sem carne, sem nome.

 

Às vezes o encontro

num encontro de nuvem.

Apoia em meu ombro

seu ombro nenhum.

 

Interrogo meu filho,

objeto de ar:

em que gruta ou concha

quedas abstrato?

 

Lá onde eu jazia,

responde-me o hálito,

não me percebeste,

contudo chamava-te

 

como ainda te chamo

(além, além do amor)

onde nada, tudo

aspira a criar-se.

 

O filho que não fiz

faz-se por si mesmo.

 

 

CONTEMPLAÇÃO NO BANCO

 

I

 

O coração pulverizado range

sob o peso nervoso ou retardado ou tímido

que não deixa marca na alameda, mas deixa

essa estampa vaga no ar, e uma angústia em mim,

espiralante.

 

Tantos pisam este chão que ele talvez

um dia se humanize. E malaxado,

embebido da fluida substância de nossos segredos,

quem sabe a flor que aí se elabora, calcária, sanguínea?

 

Ah, não viver para contemplá-la! Contudo,

não é longo mentar uma flor, e permitido

correr por cima do estreito rio presente,

construir de bruma nosso arco-íris.

 

Nossos donos temporais ainda não devassaram

o claro estoque de manhãs

que cada um traz no sangue, no vento.

 

Passarei a vida entoando uma flor, pois não sei cantar

nem a guerra, nem o amor cruel, nem os ódios organizados,

e olho para os pés dos homens, e cismo.

 

Escultura de ar, minhas mãos

te modelam nua e abstrata

para o homem que não serei.

 

Ele talvez compreenda com todo o corpo,

para além da região minúscula do espírito,

a razão de ser, o ímpeto, a confusa

distribuição, em mim, de seda e péssimo.

 

II

 

Nalgum lugar faz-se esse homem

Contra a vontade dos pais ele nasce,

contra a astúcia da medicina ele cresce,

e ama, contra a amargura da política.

 

Não lhe convém o débil nome de filho,

pois só a nós mesmos podemos gerar,

e esse nega, sorrindo, a escura fonte.

 

Irmão lhe chamaria, mas irmão

por quê, se a vida nova

se nutre de outros sais, que não sabemos?

 

Ele é seu próprio irmão, no dia vasto,

na vasta integração das formas puras,

sublime arrolamento de contrários

enlaçados por fim.

 

Meu retrato futuro, como te amo,

e mineralmente te pressinto, e sinto

quanto estás longe de nosso vão desenho

e de nossas roucas onomatopeias…

 

III

 

Vejo-te nas ervas pisadas.

O jornal, que aí pousa, mente.

 

Descubro-te ausente nas esquinas

mais povoadas, e vejo-te incorpóreo,

contudo nítido, sobre o mar oceano.

 

Chamar-te visão seria

malconhecer as visões

de que é cheio o mundo

e vazio.

 

Quase posso tocar-te, como às coisas diluculares

que se moldam em nós, e a guarda não captura,

e vingam.

 

Dissolvendo a cortina de palavras,

tua forma abrange a terra e se desata

à maneira do frio, da chuva, do calor e das lágrimas.

 

Triste é não ter um verso maior que os literários,

é não compor um verso novo, desorbitado,

para envolver tua efígie lunar, ó quimera

que sobes do chão batido e da relva pobre.

 

 

SONHO DE UM SONHO

 

Sonhei que estava sonhando

e que no meu sonho havia

um outro sonho esculpido.

Os três sonhos superpostos

dir-se-iam apenas elos

de uma infindável cadeia

de mitos organizados

em derredor de um pobre eu.

Eu que, mal de mim! sonhava.

 

Sonhava que no meu sonho

retinha uma zona lúcida

para concretar o fluido

como abstrair o maciço.

Sonhava que estava alerta,

e mais do que alerta, lúdico,

e receptivo, e magnético,

e em torno a mim se dispunham

possibilidades claras,

e, plástico, o ouro do tempo

vinha cingir-me e dourar-me

para todo o sempre, para

um sempre que ambicionava

mas de todo o ser temia…

Ai de mim! que mal sonhava.

 

Sonhei que os entes cativos

dessa livre disciplina

plenamente floresciam

permutando no universo

uma dileta substância

e um desejo apaziguado

de ser um com ser milhares,

pois o centro era eu de tudo,

como era cada um dos raios

desfechados para longe,

alcançando além da terra

ignota região lunar,

na perturbadora rota

que antigos não palmilharam

mas ficou traçada em branco

nos mais velhos portulanos

e no pó dos marinheiros

afogados em mar alto.

 

Sonhei que meu sonho vinha

como a realidade mesma.

Sonhei que o sonho se forma

não do que desejaríamos

ou de quanto silenciamos

em meio a ervas crescidas,

mas do que vigia e fulge

em cada ardente palavra

proferida sem malícia,

aberta como uma flor

se entreabre: radiosamente.

 

Sonhei que o sonho existia

não dentro, fora de nós,

e era tocá-lo e colhê-lo,

e sem demora sorvê-lo,

gastá-lo sem vão receio

de que um dia se gastara.

Sonhei certo espelho límpido com a propriedade mágica

de refletir o melhor,

sem azedume ou frieza

por tudo que fosse obscuro,

mas antes o iluminando,

mansamente o convertendo

em fonte mesma de luz.

Obscuridade! Cansaço!

Oclusão de formas meigas!

Ó terra sobre diamantes!

Já vos libertais, sementes,

germinando à superfície

deste solo resgatado!

 

Sonhava, ai de mim, sonhando

que não sonhara… Mas via

na treva em frente a meu sonho,

nas paredes degradadas,

na fumaça, na impostura,

no riso mau, na inclemência,

na fúria contra os tranquilos,

na estreita clausura física,

no desamor à verdade,

na ausência de todo amor,

eu via, ai de mim, sentia

que o sonho era sonho, e falso.

 

 

CANTIGA DE ENGANAR

 

O mundo não vale o mundo,

meu bem.

Eu plantei um pé de sono,

brotaram vinte roseiras.

Se me cortei nelas todas

e se todas se tingiram

de um vago sangue jorrado

ao capricho dos espinhos,

não foi culpa de ninguém.

O mundo,

meu bem,

não vale

a pena, e a face serena

vale a face torturada.

Há muito aprendi a rir,

de quê? de mim? ou de nada?

O mundo, valer não vale.

Tal como sombra no vale,

a vida baixa… e se sobe

algum som deste declive,

não é grito de pastor

convocando seu rebanho.

Não é flauta, não é canto

de amoroso desencanto.

Não é suspiro de grilo,

voz noturna de nascentes,

não é mãe chamando filho,

não é silvo de serpentes

esquecidas de morder

como abstratas ao luar.

Não é choro de criança

para um homem se formar.

Tampouco a respiração

de soldados e de enfermos,

de meninos internados

ou de freiras em clausura.

Não são grupos submergidos

nas geleiras do entressono

e que deixem desprender-se,

menos que simples palavra,

menos que folha no outono,

a partícula sonora

que a vida contém, e a morte

contém, o mero registro

da energia concentrada.

Não é nem isto, nem nada.

É som que precede a música,

sobrante dos desencontros

e dos encontros fortuitos,

dos malencontros e das

miragens que se condensam

ou que se dissolvem noutras

absurdas figurações.

O mundo não tem sentido.

O mundo e suas canções

de timbre mais comovido

estão calados, e a fala

que de uma para outra sala

ouvimos em certo instante

é silêncio que faz eco

e que volta a ser silêncio

no negrume circundante.

Silêncio: que quer dizer?

Que diz a boca do mundo?

Meu bem, o mundo é fechado,

se não for antes vazio.

O mundo é talvez: e é só.

Talvez nem seja talvez.

O mundo não vale a pena,

mas a pena não existe.

Meu bem, façamos de conta.

De sofrer e de olvidar,

de lembrar e de fruir,

de escolher nossas lembranças

e revertê-las, acaso

se lembrem demais em nós.

Façamos, meu bem, de conta

— mas a conta não existe —

que é tudo como se fosse,

ou que, se fora, não era.

Meu bem, usemos palavras.

Façamos mundos: ideias.

Deixemos o mundo aos outros,

já que o querem gastar.

Meu bem, sejamos fortíssimos

— mas a força não existe —

e na mais pura mentira

do mundo que se desmente,

recortemos nossa imagem,

mais ilusória que tudo,

pois haverá maior falso

que imaginar-se alguém vivo,

como se um sonho pudesse

dar-nos o gosto do sonho?

Mas o sonho não existe.

Meu bem, assim acordados,

assim lúcidos, severos,

ou assim abandonados,

deixando-nos à deriva

levar na palma do tempo

— mas o tempo não existe —,

sejamos como se fôramos

num mundo que fosse: o Mundo.

 

 

OFICINA IRRITADA

 

Eu quero compor um soneto duro

como poeta algum ousara escrever.

Eu quero pintar um soneto escuro,

seco, abafado, difícil de ler.

 

Quero que meu soneto, no futuro,

não desperte em ninguém nenhum prazer.

E que, no seu maligno ar imaturo,

ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

 

Esse meu verbo antipático e impuro

há de pungir, há de fazer sofrer,

tendão de Vênus sob o pedicuro.

 

Ninguém o lembrará: tiro no muro,

cão mijando no caos, enquanto Arcturo,

claro enigma, se deixa surpreender.

 

 

OPACO

 

Noite. Certo

muitos são os astros.

Mas o edifício

barra-me a vista.

 

Quis interpretá-lo.

Valeu? Hoje

barra-me (há luar) a vista.

 

Nada escrito no céu,

sei.

Mas queria vê-lo.

O edifício barra-me

a vista.

 

Zumbido

de besouro. Motor

arfando. O edifício barra-me

a vista.

 

Assim ao luar é mais humilde.

Por ele é que sei do luar.

Não, não me barra

a vista. A vista se barra

a si mesma.

 

 

ASPIRAÇÃO

 

Já não queria a maternal adoração

que afinal nos exaure, e resplandece em pânico,

tampouco o sentimento de um achado precioso

como o de Catarina Kippenberg aos pés de Rilke.

 

E não queria o amor, sob disfarces tontos

da mesma ninfa desolada no seu ermo

e a constante procura de sede e não de linfa,

e não queria também a simples rosa do sexo,

 

abscôndita, sem nexo, nas hospedarias do vento,

como ainda não quero a amizade geométrica

de almas que se elegeram numa seara orgulhosa,

imbricamento, talvez? de carências melancólicas.

 

Aspiro antes à fiel indiferença

mas pausada bastante para sustentar a vida

e, na sua indiscriminação de crueldade e diamante,

capaz de sugerir o fim sem a injustiça dos prêmios.

 

 

II. NOTÍCIAS AMOROSAS

 

AMAR

 

Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer,

amar e malamar,

amar, desamar, amar?

sempre, e até de olhos vidrados, amar?

 

Que pode, pergunto, o ser amoroso,

sozinho, em rotação universal, senão

rodar também, e amar?

amar o que o mar traz à praia,

o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

 

Amar solenemente as palmas do deserto,

o que é entrega ou adoração expectante,

e amar o inóspito, o áspero,

um vaso sem flor, um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

 

Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.

 

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa

amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

 

 

ENTRE O SER E AS COISAS

 

Onda e amor, onde amor, ando indagando

ao largo vento e à rocha imperativa,

e a tudo me arremesso, nesse quando

amanhece frescor de coisa viva.

 

Às almas, não, as almas vão pairando,

e, esquecendo a lição que já se esquiva,

tornam amor humor, e vago e brando

o que é de natureza corrosiva.

 

N’água e na pedra amor deixa gravados

seus hieróglifos e mensagens, suas

verdades mais secretas e mais nuas.

 

E nem os elementos encantados

sabem do amor que os punge e que é, pungindo,

uma fogueira a arder no dia findo.

 

 

TARDE DE MAIO

 

Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos,

assim te levo comigo, tarde de maio,

quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,

outra chama, não perceptível, e tão mais devastadora,

surdamente lavrava sob meus traços cômicos,

e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes

e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma

nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza

sem fruto.

 

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,

colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.

Eu nada te peço a ti, tarde de maio,

senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,

sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de

converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém

que, precisamente, volve o rosto, e passa…

Outono é a estação em que ocorrem tais crises,

e em maio, tantas vezes, morremos.

 

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,

já então espectrais sob o aveludado da casca,

trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres

com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro

fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,

sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.

E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito

lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.

Nem houve testemunha.

 

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.

Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?

Se morro de amor, todos o ignoram

e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.

O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;

não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória

das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,

perdida no ar, por que melhor se conserve,

uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

 

 

FRAGA E SOMBRA

 

A sombra azul da tarde nos confrange.

Baixa, severa, a luz crepuscular.

Um sino toca, e não saber quem tange

é como se este som nascesse do ar.

 

Música breve, noite longa. O alfanje

que sono e sonho ceifa devagar

mal se desenha, fino, ante a falange

das nuvens esquecidas de passar.

 

Os dois apenas, entre céu e terra,

sentimos o espetáculo do mundo,

feito de mar ausente e abstrata serra.

 

E calcamos em nós, sob o profundo

instinto de existir, outra mais pura

vontade de anular a criatura.

 

 

CANÇÃO PARA ÁLBUM DE MOÇA

 

Bom dia: eu dizia à moça

que de longe me sorria.

Bom dia: mas da distância

ela nem me respondia.

Em vão a fala dos olhos

e dos braços repetia

bom-dia à moça que estava,

de noite como de dia,

bem longe de meu poder

e de meu pobre bom-dia.

Bom dia sempre: se acaso

a resposta vier fria

ou tarde vier, contudo

esperarei o bom-dia.

E sobre casas compactas,

sobre o vale e a serrania,

irei repetindo manso

a qualquer hora: bom dia.

O tempo é talvez ingrato

e funda a melancolia

para que se justifique

o meu absurdo bom-dia.

Nem a moça põe reparo,

não sente, não desconfia

o que há de carinho preso

no cerne deste bom-dia.

Bom dia: repito à tarde,

à meia-noite: bom dia.

E de madrugada vou

pintando a cor de meu dia,

que a moça possa encontrá-lo

azul e rosa: bom dia.

Bom dia: apenas um eco

na mata (mas quem diria)

decifra minha mensagem,

deseja bom o meu dia.

A moça, sorrindo ao longe,

não sente, nessa alegria,

o que há de rude também

no clarão deste bom-dia.

De triste, túrbido, inquieto,

noite que se denuncia

e vai errante, sem fogos,

na mais louca nostalgia.

Ah, se um dia respondesses

ao meu bom-dia: bom dia!

Como a noite se mudara

no mais cristalino dia!

 

 

RAPTO

 

Se uma águia fende os ares e arrebata

esse que é forma pura e que é suspiro

de terrenas delícias combinadas;

e se essa forma pura, degradando-se,

mais perfeita se eleva, pois atinge

a tortura do embate, no arremate

de uma exaustão suavíssima, tributo

com que se paga o voo mais cortante;

se, por amor de uma ave, ei-la recusa

o pasto natural aberto aos homens,

e pela via hermética e defesa

vai demandando o cândido alimento

que a alma faminta implora até o extremo;

se esses raptos terríveis se repetem

já nos campos e já pelas noturnas

portas de pérola dúbia das boates;

e se há no beijo estéril um soluço

esquivo e refolhado, cinza em núpcias,

e tudo é triste sob o céu flamante

(que o pecado cristão, ora jungido

ao mistério pagão, mais o alanceia),

baixemos nossos olhos ao desígnio

da natureza ambígua e reticente:

ela tece, dobrando-lhe o amargor,

outra forma de amar no acerbo amor.

 

 

CAMPO DE FLORES

 

Deus me deu um amor no tempo de madureza,

quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.

Deus — ou foi talvez o Diabo — deu-me este amor maduro,

e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

 

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos

e outros acrescento aos que amor já criou.

Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso

e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

 

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia

e cansado de mim julgava que era o mundo

um vácuo atormentado, um sistema de erros.

Amanhecem de novo as antigas manhãs

que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

 

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra

imensa e contraída como letra no muro

e só hoje presente.

Deus me deu um amor porque o mereci.

De tantos que já tive ou tiveram em mim,

o sumo se espremeu para fazer um vinho

ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

 

E o tempo que levou uma rosa indecisa

a tirar sua cor dessas chamas extintas

era o tempo mais justo. Era tempo de terra.

Onde não há jardim, as flores nascem de um

secreto investimento em formas improváveis.

 

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso

para arrecadar as alfaias de muitos

amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,

e ao vê-los amorosos e transidos em torno,

o sagrado terror converto em jubilação.

 

Seu grão de angústia amor já me oferece

na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia

os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura

e o mistério que além faz os seres preciosos

à visão extasiada.

 

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,

há que amar diferente. De uma grave paciência

ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia

tenha dilacerado a melhor doação.

Há que amar e calar.

Para fora do tempo arrasto meus despojos

e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

 

 

III. O MENINO E OS HOMENS

 

A UM VARÃO, QUE ACABA DE NASCER

 

Chegas, e um mundo vai-se

como animal ferido,

arqueja. Nem aponta

uma forma sensível,

pois já sabemos todos

que custa a modelar-se

uma raiz, um broto.

E contudo vens tarde.

Todos vêm tarde. A terra

anda morrendo sempre,

e a vida, se persiste,

passa descompassada,

e nosso andar é lento,

curto nosso respiro,

e logo repousamos

e renascemos logo.

(Renascemos? talvez.)

Crepita uma fogueira

que não aquece. Longe.

Todos vêm cedo, todos

chegam fora de tempo,

antes, depois. Durante,

quais os que aportam? Quem

respirou o momento,

vislumbrando a paisagem

de coração presente?

Quem amou e viveu?

Quem sofreu de verdade?

Como saber que foi

nossa aventura, e não

outra, que nos legaram?

No escuro prosseguimos.

Num vale de onde a luz

se exilou, e no entanto

basta cerrar os olhos

para que nele trema,

remoto e matinal,

o crepúsculo. Sombra!

Sombra e riso, que importa?

Estendem os mais sábios

a mão, e no ar ignoto

o roteiro decifram,

e é às vezes um eco,

outras, a caça esquiva,

que desafia, e salva-se.

E a corrente, atravessa-a,

mais que o veleiro impróprio,

certa cumplicidade

entre nosso corpo e água.

Os metais, as madeiras

já se deixam malear,

de pena, dóceis. Nada

é rude tão bastante

que nunca se apiede

e se furte a viver

em nossa companhia.

Este é de resto o mal

superior a todos:

a todos como a tudo

estamos presos. E

se tentas arrancar

o espinho de teu flanco,

a dor em ti rebate

a do espinho arrancado.

Nosso amor se mutila

a cada instante. A cada

instante agonizamos

ou agoniza alguém

sob o carinho nosso.

Ah, libertar-se, lá

onde as almas se espelhem

na mesma frigidez

de seu retrato, plenas!

É sonho, sonho. Ilhados,

pendentes, circunstantes,

na fome e na procura

de um eu imaginário

e que, sendo outro, aplaque

todo este ser em ser,

adoramos aquilo

que é nossa perda. E morte

e evasão e vigília

e negação do ser

com dissolver-se em outro

transmutam-se em moeda

e resgate do eterno.

Para amar sem motivo

e motivar o amor

na sua desrazão,

Pedro, vieste ao mundo.

Chamo-te meu irmão.

 

 

O CHAMADO

 

Na rua escura o velho poeta

(lume de minha mocidade)

já não criava, simples criatura

exposta aos ventos da cidade.

 

Ao vê-lo curvo e desgarrado

na caótica noite urbana,

o que senti, não alegria,

era, talvez, carência humana.

 

E pergunto ao poeta, pergunto-lhe

(numa esperança que não digo)

para onde vai — a que angra serena,

a que Pasárgada, a que abrigo?

 

A palavra oscila no espaço

um momento. Eis que, sibilino,

entre as aparências sem rumo,

responde o poeta: Ao meu destino.

 

E foi-se para onde a intuição,

o amor, o risco desejado

o chamavam, sem que ninguém

pressentisse, em torno, o Chamado.

 

 

QUINTANA’S BAR

 

Num bar fechado há muitos, muitos anos, e cujas portas de aço bruscamente se descerram, encontro, que eu nunca vira, o poeta Mário Quintana.

Tão simples reconhecê-lo, toda identificação é vã. O poeta levanta seu copo. Levanto o meu. Em algum lugar — coxilha? montanha? vai rorejando a manhã.

Na total desincorporação das coisas antigas, perdura um elemento mágico: estrela-do-mar — ou Aldebarã?, tamanquinhos, menina correndo com o arco. E corre com pés de lã.

Falando em voz baixa nos entendemos, eu de olhos cúmplices, ele com seu talismã. Assim me fascinavam outrora as feitiçarias da preta, na cozinha de picumã.

Na conspiração da madrugada, erra solitário — dissolve-se o bar — o poeta Quintana. Seu olhar devassa o nevoeiro, cada vez mais densa é a bruma de antanho.

Uma teia se tecendo, e sem trabalho de aranha. Falo de amigos que envelheceram ou que sumiram na semente de avelã.

Agora voamos sobre tetos, à garupa da bruxa estranha. Para iludir a fome, que não temos, pintamos uma romã.

E já os homens sem província, despetala-se a flor aldeã. O poeta aponta-me casas: a de Rimbaud, a de Blake, e a gruta camoniana.

As amadas do poeta, lá embaixo, na curva do rio, ordenam-se em lenta pavana, e uma a uma, gotas ácidas, desaparecem no poema. É há tantos anos, será ontem, foi amanhã? Signos criptográficos ficam gravados no céu eterno — ou na mesa de um bar abolido, enquanto, debruçado sobre o mármore, silenciosamente viaja o poeta Mário Quintana.

 

 

ANIVERSÁRIO

 

Os cinco anos de tua morte

esculpiram já uma criança.

Moldada em éter, de tal sorte,

ela é fulva e no dia avança.

 

Este menino malasártico,

Macunaíma de novo porte,

escreve cartas no ar fantástico

para compensar tua morte.

 

Com todos os dentes, feliz,

lá de um mundo sem sul nem norte,

de teu inesgotável país,

ris. Alegria ou puro esporte?

 

Ris, irmão, assim cristalino

(Mozart aberto em pianoforte)

o redondo, claro, apolíneo

riso de quem conhece a morte.

 

Não adianta, vê, te prantearmos…

Tudo sabes, sem que isso importe

em cinismo, pena, sarcasmo.

E, deserto, ficas mais forte.

 

Giras na Ursa Maior, acaso,

solitário, em meio à coorte,

sem, nas pupilas, flor ou vaso.

Mas o jardim é teu, da morte.

 

Se de nosso nada possuímos

salvo o apaixonado transporte

— vida é paixão —, contigo rimos,

expectantes, em frente à Porta!

 

 

IV. SELO DE MINAS

 

EVOCAÇÃO MARIANA

 

A igreja era grande e pobre. Os altares, humildes.

Havia poucas flores. Eram flores de horta.

Sob a luz fraca, na sombra esculpida

(quais as imagens e quais os fiéis?)

ficávamos.

 

Do padre cansado o murmúrio de reza

subia às tábuas do forro,

batia no púlpito seco,

entranhava-se na onda, minúscula e forte, de incenso,

perdia-se.

 

Não, não se perdia…

Desatava-se do coro a música deliciosa

(que esperas ouvir à hora da morte, ou depois da morte, nas campinas do ar)

e dessa música surgiam meninas — a alvura mesma —

cantando.

 

De seu peso terrestre a nave libertada,

como do tempo atroz imunes nossas almas,

flutuávamos

no canto matinal, sobre a treva do vale.

 

 

ESTAMPAS DE VILA RICA

 

I. CARMO

 

Não calques o jardim

nem assustes o pássaro.

Um e outro pertencem

aos mortos do Carmo.

 

Não bebas a esta fonte

nem toques nos altares.

Todas estas são prendas

dos mortos do Carmo.

 

Quer nos azulejos

ou no ouro da talha,

olha: o que está vivo

são mortos do Carmo.

 

II. SÃO FRANCISCO DE ASSIS

 

Senhor, não mereço isto.

Não creio em vós para vos amar.

Trouxestes-me a São Francisco

e me fazeis vosso escravo.

 

Não entrarei, senhor, no templo,

seu frontispício me basta.

Vossas flores e querubins

são matéria de muito amar.

 

Dai-me, senhor, a só beleza

destes ornatos. E não a alma.

Pressente-se dor de homem,

paralela à das cinco chagas.

 

Mas entro e, senhor, me perco

na rósea nave triunfal.

Por que tanto baixar o céu?

por que esta nova cilada?

 

Senhor, os púlpitos mudos

entretanto me sorriem.

Mais que vossa igreja, esta

sabe a voz de me embalar.

 

Perdão, senhor, por não amar-vos.

 

III. MERCÊS DE CIMA

 

Pequena prostituta em frente a Mercês de Cima.

Dádiva de corpo na tarde cristã.

Anjos caídos da portada

e nenhum Aleijadinho para recolhê-los.

 

IV. HOTEL TOFFOLO

 

E vieram dizer-nos que não havia jantar.

Como se não houvesse outras fomes

e outros alimentos.

 

Como se a cidade não nos servisse o seu pão

de nuvens.

 

Não, hoteleiro, nosso repasto é interior,

e só pretendemos a mesa.

Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras.

Tudo se come, tudo se comunica,

tudo, no coração, é ceia.

 

V. MUSEU DA INCONFIDÊNCIA

 

São palavras no chão

e memória nos autos.

As casas inda restam,

os amores, mais não.

 

E restam poucas roupas,

sobrepeliz de pároco,

a vara de um juiz,

anjos, púrpuras, ecos.

 

Macia flor de olvido,

sem aroma governas

o tempo ingovernável.

Muros pranteiam. Só.

 

Toda história é remorso.

 

 

MORTE DAS CASAS DE OURO PRETO

 

Sobre o tempo, sobre a taipa,

a chuva escorre. As paredes

que viram morrer os homens,

que viram fugir o ouro,

que viram finar-se o reino,

que viram, reviram, viram,

já não veem. Também morrem.

 

Assim plantadas no outeiro,

menos rudes que orgulhosas

na sua pobreza branca,

azul e rosa e zarcão,

ai, pareciam eternas!

Não eram. E cai a chuva

sobre rótula e portão.

 

Vai-se a rótula crivando

como a renda consumida

de um vestido funerário.

E ruindo se vai a porta.

Só a chuva monorrítmica

sobre a noite, sobre a história

goteja. Morrem as casas.

 

Morrem, severas. É tempo

de fatigar-se a matéria

por muito servir ao homem,

e de o barro dissolver-se.

Nem parecia, na serra,

que as coisas sempre cambiam

de si, em si. Hoje, vão-se.

 

O chão começa a chamar

as formas estruturadas

faz tanto tempo. Convoca-as

a serem terra outra vez.

Que se incorporem as árvores

hoje vigas! Volte o pó

a ser pó pelas estradas!

 

A chuva desce, às canadas.

Como chove, como pinga

no país das remembranças!

Como bate, como fere,

como traspassa a medula,

como punge, como lanha

o fino dardo da chuva

 

mineira, sobre as colinas!

Minhas casas fustigadas,

minhas paredes zurzidas,

minhas esteiras de forro,

meus cachorros de beiral,

meus paços de telha-vã

estão úmidos e humildes.

 

Lá vão, enxurrada abaixo,

as velhas casas honradas

em que se amou e pariu,

em que se guardou moeda

e no frio se bebeu.

Vão no vento, na caliça,

no morcego, vão na geada,

 

enquanto se espalham outras

em polvorentas partículas,

sem as vermos fenecer.

Ai, como morrem as casas!

Como se deixam morrer!

E descascadas e secas,

ei-las sumindo-se no ar.

 

Sobre a cidade concentro

o olhar experimentado,

esse agudo olhar afiado

de quem é douto no assunto.

(Quantos perdi me ensinaram.)

Vejo a coisa pegajosa,

vai circunvoando na calma.

 

Não basta ver morte de homem

para conhecê-la bem.

Mil outras brotam em nós,

à nossa roda, no chão.

A morte baixou dos ermos,

gavião molhado. Seu bico

vai lavrando o paredão

 

e dissolvendo a cidade.

Sobre a ponte, sobre a pedra,

sobre a cambraia de Nize,

uma colcha de neblina

(já não é a chuva forte)

me conta por que mistério

o amor se banha na morte.

 

 

CANTO NEGRO

 

À beira do negro poço

debruço-me, nada alcanço.

Decerto perdi os olhos

que tinha quando criança.

 

Decerto os perdi. Com eles

é que te encarava, preto,

gravura de cama e padre,

talhada em pele, no medo.

 

Ai, preto, que ris em mim,

nesta roupinha de luto

e nesta noite sem causa,

com saudade das ambacas

que nunca vi, e aonde fui

num cabelo de sovaco.

 

Preto que vivi, chupando

já não sei que seios moles

mais claros no busto preto

no longo corredor preto

entre volutas de preto

cachimbo em preta cozinha.

 

Já não sei onde te escondes

que não me encontro nas tuas

dobras de manto mortal.

Já não sei, negro, em que vaso,

que vão ou que labirinto

de mim, te esquivas a mim,

e zombas desta gelada

calma vã de suíça e de alma

em que me pranteio, branco,

brinco, bronco, triste blau

de neutro brasão escócio…

Meu preto, o bom era o nosso.

 

O mau era o nosso. E amávamos

a comum essência triste

que transmutava os carinhos

numa visguenta doçura

de vulva negro-amaranto,

barata! que vosso preço,

ó corpos de antigamente,

somente estava no dom

de vós mesmos ao desejo,

num entregar-se sem pejo

de terra pisada.

Amada,

talvez não, mas que cobiça

tu me despertavas, linha

que subindo pelo artelho,

enovelando-se no joelho,

dava ao mistério das coxas

uma ardente pulcritude,

uma graça, uma virtude

que nem sei como acabava

entre as moitas e coágulos

da letárgica bacia

onde a gente se pasmava,

se perdia, se afogava

e depois se ressarcia.

 

Bacia negra, o clarão

que súbito entremostravas

ilumina toda a vida

e por sobre a vida entreabre

um coalho fixo lunar,

neste amarelo descor

das posses de todo dia,

sol preto sobre água fria.

 

Vejo os garotos na escola,

preto-branco-branco-preto,

vejo pés pretos e uns brancos

dentes de marfim mordente,

o alvor do riso escondendo

outra negridão maior,

o negro central, o negro

que enegrece teu negrume

e que nada mais resume

além dessa solitude

que do branco vai ao preto

e do preto volta pleno

de soluços e resmungos,

como um rancor de si mesmo…

 

Como um rancor de si mesmo,

vem do preto essa ternura,

essa onda amarga, esse bafo

a rodar pelas calçadas,

famélica voz perdida

numa garrafa de breu,

de pranto ou coisa nenhuma:

esse estar e não estar,

esse não estar já sendo,

esse ir como esse refluir,

dançar de umbigo, litúrgico,

sofrer, brunir bem a roupa

que só um anjo vestira,

se é que os anjos se mirassem,

essa nostalgia rara

de um país antes dos outros,

antes do mito e do sol,

onde as coisas nem de brancas

fossem chamadas, lançando-se

definitivas eternas

coisas bem antes dos homens.

 

À beira do negro poço

debruço-me; e nele vejo,

agora que não sou moço,

um passarinho e um desejo.

 

 

OS BENS E O SANGUE

 

I

 

Às duas horas da tarde deste nove de agosto de 1847

nesta fazenda do Tanque e em dez outras casas de rei, q não de valete,

em Itabira Ferros Guanhães Cocais Joanésia Capão

diante do estrume em q se movem nossos escravos, e da viração

perfumada dos cafezais q trança na palma dos coqueiros

fiéis servidores de nossa paisagem e de nossos fins primeiros,

deliberamos vender, como de fato vendemos, cedendo posse jus e domínio

e abrangendo desde os engenhos de secar areia até o ouro mais fino,

nossas lavras mto. nossas por herança de nossos pais e sogros bem-amados

q dormem na paz de Deus entre santas e santos martirizados.

Por isso neste papel azul Bath escrevemos com a nossa melhor letra

estes nomes q em qualquer tempo desafiarão tramoia trapaça e treta:

 

Esmeril  Pissarrão

Candonga  Conceição

 

E tudo damos por vendido ao compadre e nosso amigo o snr. Raimundo Procópio

e a d. Maria Narcisa sua mulher, e o q não for vendido, por alborque

de nossa mão passará, e trocaremos lavras por matas,

lavras por títulos, lavras por mulas, lavras por mulatas e arriatas,

q trocar é nosso fraco e lucrar é nosso forte. Mas fique esclarecido:

somos levados menos por gosto do sempre negócio q no sentido

de nossa remota descendência ainda mal debuxada no longe dos serros.

De nossa mente lavamos o ouro como de nossa alma um dia os erros

se lavarão na pia da penitência. E filhos netos bisnetos

tataranetos despojados dos bens mais sólidos e rutilantes portanto os mais completos

irão tomando a pouco e pouco desapego de toda fortuna

e concentrando seu fervor numa riqueza só, abstrata e una.

 

Lavra da Paciência

Lavrinha de Cubas

Itabiruçu

 

II

 

Mais que todos deserdamos

deste nosso oblíquo modo

um menino inda não nado

(e melhor não fora nado)

que de nada lhe daremos

sua parte de nonada

e que nada, porém nada

o há de ter desenganado.

 

E nossa rica fazenda

já presto se desfazendo

vai-se em sal cristalizando

na porta de sua casa

ou até na ponta da asa

de seu nariz fino e frágil,

de sua alma fina e frágil,

de sua certeza frágil

frágil frágil frágil frágil

 

mas que por frágil é ágil,

e na sua mala-sorte

se rirá ele da morte.

 

III

 

Este figura em nosso

pensamento secreto.

Num magoado alvoroço

o queremos marcado

a nos negar; depois

de sua negação

nos buscará. Em tudo

será pelo contrário

seu fado extra-ordinário.

Vergonha da família

que de nobre se humilha

na sua malincônica

tristura meio cômica,

dulciamara nux-vômica.

 

IV

 

Este hemos por bem

reduzir à simples

condição ninguém.

Não lavrará campo.

Tirará sustento

de algum mel nojento.

Há de ser violento

sem ter movimento.

Sofrerá tormenta

no melhor momento.

Não se sujeitando

a um poder celeste

ei-lo senão quando

de nudez se veste,

roga à escuridão

abrir-se em clarão.

Este será tonto

e amará no vinho

um novo equilíbrio

e seu passo tíbio

sairá na cola

de nenhum caminho.

 

V

 

Não judie com o menino,

compadre.

— Não torça tanto o pepino,

major.

— Assim vai crescer mofino,

sinhô!

 

— Pedimos pelo menino porque pedir é nosso destino.

Pedimos pelo menino porque vamos acalentá-lo.

Pedimos pelo menino porque já se ouve planger o sino

do tombo que ele levar quando monte a cavalo.

 

— Vai cair do cavalo

de cabeça no valo.

Vai ter catapora

amarelão e gálico

vai errar o caminho

vai quebrar o pescoço

vai deitar-se no espinho

fazer tanta besteira

e dar tanto desgosto

que nem a vida inteira

dava para contar.

E vai muito chorar.

(A praga que te rogo

para teu bem será.)

 

VI

 

Os urubus no telhado:

 

E virá a companhia inglesa e por sua vez comprará tudo

e por sua vez perderá tudo e tudo volverá a nada

e secado o ouro escorrerá ferro, e secos morros de ferro

taparão o vale sinistro onde não mais haverá privilégios,

e se irão os últimos escravos, e virão os primeiros camaradas;

e a besta Belisa renderá os arrogantes corcéis da monarquia,

e a vaca Belisa dará leite no curral vazio para o menino doentio,

e o menino crescerá sombrio, e os antepassados no cemitério

se rirão se rirão porque os mortos não choram.

 

VII

 

Ó monstros lajos e andridos que me perseguis com vossas barganhas

sobre meu berço imaturo e de minhas minas me expulsais.

Os parentes que eu amo expiraram solteiros.

Os parentes que eu tenho não circulam em mim.

Meu sangue é dos que não negociaram, minha alma é dos pretos,

minha carne, dos palhaços, minha fome das nuvens,

e não tenho outro amor a não ser o dos doidos.

 

Onde estás, capitão, onde estás, João Francisco,

do alto de tua serra eu te sinto sozinho

e sem filhos e netos interrompes a linha

que veio dar a mim neste chão esgotado.

Salva-me, capitão, de um passado voraz.

Livra-me, capitão, da conjura dos mortos.

Inclui-me entre os que não são, sendo filhos de ti.

E no fundo da mina, ó capitão, me esconde.

 

VIII

 

Ó meu, ó nosso filho de cem anos depois,

que não sabes viver nem conheces os bois

pelos seus nomes tradicionais… nem suas cores

marcadas em padrões eternos desde o Egito.

Ó filho pobre, e descorçoado, e finito,

ó inapto para as cavalhadas e os trabalhos brutais

com a faca, o formão, o couro… Ó tal como quiséramos

para tristeza nossa e consumação das eras,

para o fim de tudo que foi grande!

Ó desejado,

ó poeta de uma poesia que se furta e se expande

à maneira de um lago de pez e resíduos letais…

És nosso fim natural e somos teu adubo,

tua explicação e tua mais singela virtude…

Pois carecia que um de nós nos recusasse

para melhor servir-nos. Face a face

te contemplamos, e é teu esse primeiro

e úmido beijo em nossa boca de barro e de sarro.

 

 

V. OS LÁBIOS CERRADOS

 

CONVÍVIO

 

Cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles não vivem senão em nós

e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil.

Fora de nós é que talvez deixaram de viver, para o que se chama tempo.

E essa eternidade negativa não nos desola.

Pouco e mal que eles vivam, dentro de nós, é vida não obstante.

E já não enfrentamos a morte, de sempre trazê-la conosco.

 

Mas, como estão longe, ao mesmo tempo que nossos atuais habitantes

e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa!

A mais tênue forma exterior nos atinge.

O próximo existe. O pássaro existe.

E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo sorrindo, que disfarçados…

 

Há que renunciar a toda procura.

Não os encontraríamos, ao encontrá-los.

Ter e não ter em nós um vaso sagrado,

um depósito, uma presença contínua,

esta é nossa condição, enquanto,

sem condição, transitamos

e julgamos amar

e calamo-nos.

 

Ou talvez existamos somente neles, que são omissos, e nossa existência,

apenas uma forma impura de silêncio, que preferiram.

 

 

PERMANÊNCIA

 

Agora me lembra um, antes me lembrava outro.

 

Dia virá em que nenhum será lembrado.

 

Então no mesmo esquecimento se fundirão.

Mais uma vez a carne unida, e as bodas

cumprindo-se em si mesmas, como ontem e sempre.

 

Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim

(já começara, antes de ser), e somos eternos,

frágeis, nebulosos, tartamudos, frustrados: eternos.

E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono

selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,

ou nunca fomos, e contudo arde em nós

à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão.

 

 

PERGUNTAS

 

Numa incerta hora fria

perguntei ao fantasma

que força nos prendia,

ele a mim, que presumo

estar livre de tudo,

eu a ele, gasoso,

todavia palpável

na sombra que projeta

sobre meu ser inteiro:

um ao outro, cativos

desse mesmo princípio

ou desse mesmo enigma

que distrai ou concentra

e renova e matiza,

prolongando-a no espaço,

uma angústia do tempo.

 

Perguntei-lhe em seguida

o segredo de nosso

convívio sem contato,

de estarmos ali quedos,

eu em face do espelho,

e o espelho devolvendo

uma diversa imagem,

mas sempre evocativa

do primeiro retrato

que compõe de si mesma

a alma predestinada

a um tipo de aventura

terrestre, cotidiana.

 

Perguntei-lhe depois

por que tanto insistia

nos mares mais exíguos

em distribuir navios

desse calado irreal,

sem rota ou pensamento

de atingir qualquer porto,

propícios a naufrágio

mais que a navegação;

nos frios alcantis

de meu serro natal,

desde muito derruído,

em acordar memórias

de vaqueiros e vozes,

magras reses, caminhos

onde a bosta de vaca

é o único ornamento,

e o coqueiro-de-espinho

desolado se alteia.

 

Perguntei-lhe por fim

a razão sem razão

de me inclinar aflito

sobre restos de restos,

de onde nenhum alento

vem refrescar a febre

deste repensamento;

sobre esse chão de ruínas

imóveis, militares

na sua rigidez

que o orvalho matutino

já não banha ou conforta.

 

No voo que desfere,

silente e melancólico,

rumo da eternidade,

ele apenas responde

(se acaso é responder

a mistérios, somar-lhes

um mistério mais alto):

 

Amar, depois de perder.

 

 

CARTA

 

Bem quisera escrevê-la

com palavras sabidas,

as mesmas, triviais,

embora estremecessem

a um toque de paixão.

Perfurando os obscuros

canais de argila e sombra,

ela iria contando

que vou bem, e amo sempre

e amo cada vez mais

a essa minha maneira

torcida e reticente,

e espero uma resposta,

mas que não tarde; e peço

um objeto minúsculo

só para dar prazer

a quem pode ofertá-lo;

diria ela do tempo

que faz do nosso lado;

as chuvas já secaram,

as crianças estudam,

uma última invenção

(inda não é perfeita)

faz ler nos corações,

mas todos esperamos

rever-nos bem depressa.

Muito depressa, não.

Vai-se tornando o tempo

estranhamente longo

à medida que encurta.

O que ontem disparava,

desbordado alazão,

hoje se paralisa

em esfinge de mármore,

e até o sono, o sono

que era grato e era absurdo

é um dormir acordado

numa planície grave.

Rápido é o sonho, apenas,

que se vai, de mandar

notícias amorosas

quando não há amor

a dar ou receber;

quando só há lembrança,

ainda menos, pó,

menos ainda, nada,

nada de nada em tudo,

em mim mais do que em tudo,

e não vale acordar

quem acaso repouse

na colina sem árvores.

Contudo, esta é uma carta.

 

 

ENCONTRO

 

Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.

Se a noite me atribui poder de fuga,

sinto logo meu pai e nele ponho

o olhar, lendo-lhe a face, ruga a ruga.

 

Está morto, que importa? Inda madruga

e seu rosto, nem triste nem risonho,

é o rosto antigo, o mesmo. E não enxuga

suor algum, na calma de meu sonho.

 

Ó meu pai arquiteto e fazendeiro!

Faz casas de silêncio, e suas roças

de cinza estão maduras, orvalhadas

 

por um rio que corre o tempo inteiro,

e corre além do tempo, enquanto as nossas

murcham num sopro fontes represadas.

 

 

A MESA

 

E não gostavas de festa

Ó velho, que festa grande

hoje te faria a gente.

E teus filhos que não bebem

e o que gosta de beber,

em torno da mesa larga,

largavam as tristes dietas,

esqueciam seus fricotes,

e tudo era farra honesta

acabando em confidência.

Ai, velho, ouvirias coisas

de arrepiar teus noventa.

E daí, não te assustávamos,

porque, com riso na boca,

e a nédia galinha, o vinho

português de boa pinta,

e mais o que alguém faria

de mil coisas naturais

e fartamente poria

em mil terrinas da China,

já logo te insinuávamos

que era tudo brincadeira.

Pois sim. Teu olho cansado,

mas afeito a ler no campo

uma lonjura de léguas,

e na lonjura uma rês

perdida no azul azul,

entrava-nos alma adentro

e via essa lama podre

e com pesar nos fitava

e com ira amaldiçoava

e com doçura perdoava

(perdoar é rito de pais,

quando não seja de amantes).

E, pois, todo nos perdoando,

por dentro te regalavas

de ter filhos assim… Puxa,

grandessíssimos safados,

me saíram bem melhor

que as encomendas. De resto,

filho de peixe… Calavas,

com agudo sobrecenho

interrogavas em ti

uma lembrança saudosa

e não de todo remota

e rindo por dentro e vendo

que lançaras uma ponte

dos passos loucos do avô

à incontinência dos netos,

sabendo que toda carne

aspira à degradação,

mas numa via de fogo

e sob um arco sexual,

tossias. Hem, hem, meninos,

não sejam bobos. Meninos?

Uns marmanjos cinquentões,

calvos, vividos, usados,

mas resguardando no peito

essa alvura de garoto,

essa fuga para o mato,

essa gula defendida

e o desejo muito simples

de pedir à mãe que cosa,

mais do que nossa camisa,

nossa alma frouxa, rasgada…

Ai, grande jantar mineiro

que seria esse… Comíamos,

e comer abria fome,

e comida era pretexto.

E nem mesmo precisávamos

ter apetite, que as coisas

deixavam-se espostejar,

e amanhã é que eram elas.

Nunca desdenhe o tutu.

Vá lá mais um torresminho.

E quanto ao peru? Farofa

há de ser acompanhada

de uma boa cachacinha,

não desfazendo em cerveja,

essa grande camarada.

Ind’outro dia… Comer

guarda tamanha importância

que só o prato revele

o melhor, o mais humano

dos seres em sua treva?

Beber é pois tão sagrado

que só bebido meu mano

me desata seu queixume,

abrindo-me sua palma?

Sorver, papar: que comida

mais cheirosa, mais profunda

no seu tronco luso-árabe,

e que bebida mais santa

que a todos nos une em um

tal centímano glutão,

parlapatão e bonzão!

E nem falta a irmã que foi

mais cedo que os outros e era

rosa de nome e nascera

em dia tal como o de hoje

para enfeitar tua data.

Seu nome sabe a camélia,

e sendo uma rosa-amélia,

flor muito mais delicada

que qualquer das rosas-rosa,

viveu bem mais do que o nome,

porém no íntimo claustrava

a rosa esparsa. A teu lado,

vê: recobrou-se-lhe o viço.

Aqui sentou-se o mais velho.

Tipo do manso, do sonso,

não servia para padre,

amava casos bandalhos;

depois o tempo fez dele

o que faz de qualquer um;

e à medida que envelhece,

vai estranhamente sendo

retrato teu sem ser tu,

de sorte que se o diviso

de repente, sem anúncio,

és tu que me reapareces

noutro velho de sessenta.

Este outro aqui é doutor,

o bacharel da família,

mas suas letras mais doutas

são as escritas no sangue,

ou sobre a casca das árvores.

Sabe o nome da florzinha

e não esquece o da fruta

mais rara que se prepara

num casamento genético.

Mora nele a nostalgia,

citadino, do ar agreste,

e, camponês, do letrado.

Então vira patriarca.

Mais adiante vês aquele

que de ti herdou a dura

vontade, o duro estoicismo.

Mas, não quis te repetir.

Achou não valer a pena

reproduzir sobre a terra

o que a terra engolirá.

Amou. E ama. E amará.

Só não quer que seu amor

seja uma prisão de dois,

um contrato, entre bocejos

e quatro pés de chinelo.

Feroz a um breve contato,

à segunda vista, seco,

à terceira vista, lhano,

dir-se-ia que ele tem medo

de ser, fatalmente, humano.

Dir-se-ia que ele tem raiva,

mas que mel transcende a raiva,

e que sábios, ardilosos

recursos de se enganar

quanto a si mesmo: exercita

uma força que não sabe

chamar-se, apenas, bondade.

Esta calou-se. Não quis

manter com palavras novas

o colóquio subterrâneo

que num sussurro percorre

a gente mais desatada.

Calou-se, não te aborreças.

Se tanto assim a querias,

algo nela ainda te quer,

à maneira atravessada

que é própria de nosso jeito.

(Não ser feliz tudo explica.)

Bem sei como são penosos

esses lances de família,

e discutir neste instante

seria matar a festa,

matando-te — não se morre

uma só vez, nem de vez.

Restam sempre muitas vidas

para serem consumidas

na razão dos desencontros

de nosso sangue nos corpos

por onde vai dividido.

Ficam sempre muitas mortes

para serem longamente

reencarnadas noutro morto.

Mas estamos todos vivos.

E mais que vivos, alegres.

Estamos todos como éramos

antes de ser, e ninguém

dirá que ficou faltando

algum dos teus. Por exemplo:

ali ao canto da mesa,

não por humilde, talvez

por ser o rei dos vaidosos

e se pelar por incômodas

posições de tipo gauche,

ali me vês tu. Que tal?

Fica tranquilo: trabalho.

Afinal, a boa vida

ficou apenas: a vida

(e nem era assim tão boa

e nem se fez muito má).

Pois ele sou eu. Repara:

tenho todos os defeitos

que não farejei em ti,

e nem os tenho que tinhas,

quanto mais as qualidades.

Não importa: sou teu filho

com ser uma negativa

maneira de te afirmar.

Lá que brigamos, brigamos,

opa! que não foi brinquedo,

mas os caminhos do amor,

só amor sabe trilhá-los.

Tão ralo prazer te dei,

nenhum, talvez… ou senão,

esperança de prazer,

é, pode ser que te desse

a neutra satisfação

de alguém sentir que seu filho,

de tão inútil, seria

sequer um sujeito ruim.

Não sou um sujeito ruim.

Descansa, se o suspeitavas,

mas não sou lá essas coisas.

Alguns afetos recortam

o meu coração chateado.

Se me chateio? demais.

Esse é meu mal. Não herdei

de ti essa balda. Bem,

não me olhes tão longo tempo,

que há muitos a ver ainda.

Há oito. E todos minúsculos,

todos frustrados. Que flora

mais triste fomos achar

para ornamento de mesa!

Qual nada. De tão remotos,

de tão puros e esquecidos

no chão que suga e transforma,

são anjos. Que luminosos!

que raios de amor radiam,

e em meio a vagos cristais,

o cristal deles retine,

reverbera a própria sombra.

São anjos que se dignaram

participar do banquete,

alisar o tamborete,

viver vida de menino.

São anjos; e mal sabias

que um mortal devolve a Deus

algo de sua divina

substância aérea e sensível,

se tem um filho e se o perde.

Conta: catorze na mesa.

Ou trinta? serão cinquenta,

que sei? se chegam mais outros,

uma carne cada dia

multiplicada, cruzada

a outras carnes de amor.

São cinquenta pecadores,

se pecado é ter nascido

e provar, entre pecados,

os que nos foram legados.

A procissão de teus netos,

alongando-se em bisnetos,

veio pedir tua bênção

e comer de teu jantar.

Repara um pouquinho nesta,

no queixo, no olhar, no gesto,

e na consciência profunda

e na graça menineira,

e dize, depois de tudo,

se não é, entre meus erros,

uma imprevista verdade.

Esta é minha explicação,

meu verso melhor ou único,

meu tudo enchendo meu nada.

Agora a mesa repleta

está maior do que a casa.

Falamos de boca cheia,

xingamo-nos mutuamente,

rimos, ai, de arrebentar,

esquecemos o respeito

terrível, inibidor,

e toda a alegria nossa,

ressecada em tantos negros

bródios comemorativos

(não convém lembrar agora),

os gestos acumulados

de efusão fraterna, atados

(não convém lembrar agora),

as fina-e-meigas palavras

que ditas naquele tempo

teriam mudado a vida

(não convém mudar agora),

vem tudo à mesa e se espalha

qual inédita vitualha.

Oh que ceia mais celeste

e que gozo mais do chão!

Quem preparou? que inconteste

vocação de sacrifício

pôs a mesa, teve os filhos?

quem se apagou? quem pagou

a pena deste trabalho?

quem foi a mão invisível

que traçou este arabesco

de flor em torno ao pudim,

como se traça uma auréola?

quem tem auréola? quem não

a tem, pois que, sendo de ouro,

cuida logo em reparti-la,

e se pensa melhor faz?

quem senta do lado esquerdo,

assim curvada? que branca,

mas que branca mais que branca

tarja de cabelos brancos

retira a cor das laranjas,

anula o pó do café,

cassa o brilho aos serafins?

quem é toda luz e é branca?

Decerto não pressentias

como o branco pode ser

uma tinta mais diversa

da mesma brancura… Alvura

elaborada na ausência

de ti, mas ficou perfeita,

concreta, fria, lunar.

Como pode nossa festa

ser de um só que não de dois?

Os dois ora estais reunidos

numa aliança bem maior

que o simples elo da terra.

Estais juntos nesta mesa

de madeira mais de lei

que qualquer lei da república.

Estais acima de nós,

acima deste jantar

para o qual vos convocamos

por muito — enfim — vos querermos

e, amando, nos iludirmos

junto da mesa

vazia.

 

 

VI. A MÁQUINA DO MUNDO

 

A MÁQUINA DO MUNDO

 

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco

 

se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas

 

lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,

 

a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.

 

Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o tolerável

 

pelas pupilas gastas na inspeção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar

 

toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

no rosto do mistério, nos abismos.

 

Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam

a quem de os ter usado os já perdera

 

e nem desejaria recobrá-los,

se em vão e para sempre repetimos

os mesmos sem roteiro tristes périplos,

 

convidando-os a todos, em coorte,

a se aplicarem sobre o pasto inédito

da natureza mítica das coisas,

 

assim me disse, embora voz alguma

ou sopro ou eco ou simples percussão

atestasse que alguém, sobre a montanha,

 

a outro alguém, noturno e miserável,

em colóquio se estava dirigindo:

“O que procuraste em ti ou fora de

 

teu ser restrito e nunca se mostrou,

mesmo afetando dar-se ou se rendendo,

e a cada instante mais se retraindo,

 

olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,

 

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

que nem concebes mais, pois tão esquivo

 

se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumiste… vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo”.

 

As mais soberbas pontes e edifícios,

o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge

 

distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados,

e as paixões e os impulsos e os tormentos

 

e tudo que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animais

e chega às plantas para se embeber

 

no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar

na estranha ordem geométrica de tudo,

 

e o absurdo original e seus enigmas,

suas verdades altas mais que todos

monumentos erguidos à verdade;

 

e a memória dos deuses, e o solene

sentimento de morte, que floresce

no caule da existência mais gloriosa,

 

tudo se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,

afinal submetido à vista humana.

 

Mas, como eu relutasse em responder

a tal apelo assim maravilhoso,

pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

 

a esperança mais mínima — esse anelo

de ver desvanecida a treva espessa

que entre os raios do sol inda se filtra;

 

como defuntas crenças convocadas

presto e fremente não se produzissem

a de novo tingir a neutra face

 

que vou pelos caminhos demonstrando,

e como se outro ser, não mais aquele

habitante de mim há tantos anos,

 

passasse a comandar minha vontade

que, já de si volúvel, se cerrava

semelhante a essas flores reticentes

 

em si mesmas abertas e fechadas;

como se um dom tardio já não fora

apetecível, antes despiciendo,

 

baixei os olhos, incurioso, lasso,

desdenhando colher a coisa oferta

que se abria gratuita a meu engenho.

 

A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,

 

se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas.

 

 

RELÓGIO DO ROSÁRIO

 

Era tão claro o dia, mas a treva,

do som baixando, em seu baixar me leva

 

pelo âmago de tudo, e no mais fundo

decifro o choro pânico do mundo,

 

que se entrelaça no meu próprio choro,

e compomos os dois um vasto coro.

 

Oh dor individual, afrodisíaco

selo gravado em plano dionisíaco,

 

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,

em qualquer um mostrando o ser deserto,

 

dor primeira e geral, esparramada,

nutrindo-se do sal do próprio nada,

 

convertendo-se, turva e minuciosa,

em mil pequena dor, qual mais raivosa,

 

prelibando o momento bom de doer,

a invocá-lo, se custa a aparecer,

 

dor de tudo e de todos, dor sem nome,

ativa mesmo se a memória some,

 

dor do rei e da roca, dor da cousa

indistinta e universa, onde repousa

 

tão habitual e rica de pungência

como um fruto maduro, uma vivência,

 

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,

nas caudas titilantes, nos arminhos,

 

dor do espaço e do caos e das esferas,

do tempo que há de vir, das velhas eras!

 

Não é pois todo amor alvo divino,

e mais aguda seta que o destino?

 

Não é motor de tudo e nossa única

fonte de luz, na luz de sua túnica?

 

O amor elide a face… Ele murmura

algo que foge, e é brisa e fala impura.

 

O amor não nos explica. E nada basta,

nada é de natureza assim tão casta

 

que não macule ou perca sua essência

ao contato furioso da existência.

 

Nem existir é mais que um exercício

de pesquisar de vida um vago indício,

 

a provar a nós mesmos que, vivendo,

estamos para doer, estamos doendo.

 

Mas, na dourada praça do Rosário,

foi-se, no som, a sombra. O columbário

 

já cinza se concentra, pó de tumbas,

já se permite azul, risco de pombas.