POEMA-ORELHA

 

Esta é a orelha do livro

por onde o poeta escuta

se dele falam mal

ou se o amam.

Uma orelha ou uma boca

sequiosa de palavras?

São oito livros velhos

e mais um livro novo

de um poeta inda mais velho

que a vida que viveu

e contudo o provoca

a viver sempre e nunca.

Oito livros que o tempo

empurra para longe

de mim

mais um livro sem tempo

em que o poeta se contempla

e se diz boa-tarde

(ensaio de boa-noite,

variante de bom-dia,

que tudo é o vasto dia

em seus compartimentos

nem sempre respiráveis

e todos habitados

enfim).

Não me leias se buscas

flamante novidade

ou sopro de Camões.

Aquilo que revelo

e o mais que segue oculto

em vítreos alçapões

são notícias humanas,

simples estar-no-mundo,

e brincos de palavra,

um não-estar-estando,

mas de tal jeito urdidos

o jogo e a confissão

que nem distingo eu mesmo

o vivido e o inventado.

Tudo vivido? Nada.

Nada vivido? Tudo.

A orelha pouco explica

de cuidados terrenos:

e a poesia mais rica

é um sinal de menos.

 

 

NUDEZ

 

Não cantarei amores que não tenho,

e, quando tive, nunca celebrei.

Não cantarei o riso que não rira

e que, se risse, ofertaria a pobres.

Minha matéria é o nada.

Jamais ousei cantar algo de vida:

se o canto sai da boca ensimesmada,

é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,

nem sabe a planta o vento que a visita.

 

Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,

mas tão disperso, e vago, tão estranho,

que, se regressa a mim que o apascentava,

o ouro suposto é nele cobre e estanho,

estanho e cobre,

e o que não é maleável deixa de ser nobre,

nem era amor aquilo que se amava.

 

Nem era dor aquilo que doía;

ou dói, agora, quando já se foi?

Que dor se sabe dor, e não se extingue?

(Não cantarei o mar: que ele se vingue

de meu silêncio, nesta concha.)

Que sentimento vive, e já prospera

cavando em nós a terra necessária

para se sepultar à moda austera

de quem vive sua morte?

Não cantarei o morto: é o próprio canto.

E já não sei do espanto,

da úmida assombração que vem do norte

e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,

ajusta em mim seu terno de lamentos.

Não canto, pois não sei, e toda sílaba

acaso reunida

a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.

 

Amador de serpentes, minha vida

passarei, sobre a relva debruçado,

a ver a linha curva que se estende,

ou se contrai e atrai, além da pobre

área de luz de nossa geometria.

Estanho, estanho e cobre,

tais meus pecados, quanto mais fugi

do que enfim capturei, não mais visando

aos alvos imortais.

 

Ó descobrimento retardado

pela força de ver.

Ó encontro de mim, no meu silêncio,

configurado, repleto, numa casta

expressão de temor que se despede.

O golfo mais dourado me circunda

com apenas cerrar-se uma janela.

E já não brinco a luz. E dou notícia

estrita do que dorme,

sob placa de estanho, sonho informe,

um lembrar de raízes, ainda menos

um calar de serenos

desidratados, sublimes ossuários

sem ossos;

a morte sem os mortos; a perfeita

anulação do tempo em tempos vários,

essa nudez, enfim, além dos corpos,

a modelar campinas no vazio

da alma, que é apenas alma, e se dissolve.

 

 

AR

 

Nesta boca da noite,

cheira o tempo a alecrim.

Muito mais trescalava

o incorpóreo jardim.

 

Nesta cova da noite,

sabe o gesto a alfazema.

O que antes inebriava

era a rosa do poema.

 

Neste abismo da noite,

erra a sorte em lavanda.

Um perfume se amava,

colante, na varanda.

 

A narina presente

colhe o aroma passado.

Continuamente vibra

o tempo, embalsamado.