Uma semente engravidava a tarde.
Era o dia nascendo, em vez da noite.
Perdia amor seu hálito covarde,
e a vida, corcel rubro, dava um coice,
mas tão delicioso, que a ferida
no peito transtornado, aceso em festa,
acordava, gravura enlouquecida,
sobre o tempo sem caule, uma promessa.
A manhã sempre-sempre, e dociastutos
eus caçadores a correr, e as presas
num feliz entregar-se, entre soluços.
E que mais, vida eterna, me planejas?
O que se desatou num só momento
não cabe no infinito, e é fuga e vento.
pois que na superfície ele anoitece.
Abre na escuridão sua quermesse.
É todo fome, e eis que repele a gula.
Sua escama de fel nunca se anula
e seu rangido nada tem de prece.
Uma aranha invisível é que o tece.
O meu amor, paralisado, pula.
Pulula, ulula. Salve, lobo triste!
Quando eu secar, ele estará vivendo,
já não vive de mim, nele é que existe
o que sou, o que sobro, esmigalhado.
O meu amor é tudo que, morrendo,
não morre todo, e fica no ar, parado.
Suspendei um momento vossos jogos
na fímbria azul do mar, peitos morenos.
Pescadores, voltai. Silêncio, coros
de rua, no vaivém, que um movimento
diverso, uma outra forma se insinua
por entre as rochas lisas, e um mugido
se faz ouvir, soturno e diurno, em pura
exalação opressa de carinho.
É o louco leão-marinho, que pervaga,
em busca, sem saber, como da terra
(quando a vida nos dói, de tão exata)
nos lançamos a um mar que não existe.
A doçura do monstro, oclusa, à espera...
Um leão-marinho brinca em nós, e é triste.
Meu caro Santa Rosa, que cenário
diferente de quantos compuseste,
a teu fim reservou a sorte vária,
unindo Paraíba e Índias de leste!
Tudo é teatro, suspeito que me dizes,
ou sonhas? ou sorris? e teu cigarro
vai compondo um desenho, entre indivisos
traços de morte e vida e amor e barro.
Amavas tanto o amor que as musas todas
ao celebrar-te (são mulheres) choram,
e não pressentem que um de teus engodos
é não morrer, se as parcas te devoram.
Retifico: são simples tecedeiras,
são mulheres do povo. E teu destino,
uma tapeçaria onde as surpresas
de linha e cor renovam seu ensino.
Que retrato de ti legas ao mundo?
Se são tantos retratos, repartidos
na verlainiana máscara, profunda
mina de intelecções e de sentidos?
Meus livros são teus livros, nessa rubra
capa com que os vestiste, e que entrelaça
um desespero aberto ao sol de outubro
à aérea flor das letras, ritmo e graça.
Os negros, nos murais, cumprem o rito
litúrgico do samba: estão contando
a alegria das formas, trismegisto
princípio de arte, a um teu aceno brando.
Essa alegria de criar, que é tua
explanação maior e mais tocante,
fica girando no ar, enquanto avulta,
em sensação de perda, teu semblante.
Cortês amigo, a fala baixa, o manso
modo de conviver, e a dura crítica,
e o mais de ti que em fantasia dança,
pois a face do artista é sempre mítica,
em movimento rápido se fecha
na rosa de teu nome, claro véu,
ó Tomás Santa Rosa... E em Nova Delhi,
o convite de Deus: pintar o céu.
sobre Joaquim Nabuco, 81.
Tu não banhas apenas a fachada
e o quarto de dormir, prenda comum.
Baixas a um vago em mim, onde nenhum
halo humano ou divino fez pousada,
e me penetras, lâmina de Ogum,
e sou uma lagoa iluminada.
Tudo branco, no tempo. Que limpeza
nos resíduos e vozes e na cor
que era sinistra, e agora, flor surpresa,
já não destila mágoa nem furor:
fruto de aceitação da natureza,
essa alvura de morte lembra amor.