CIÊNCIA

 

Começo a ver no escuro

um novo tom

de escuro.

Começo a ver o visto

e me incluo

no muro.

Começo a distinguir

um sonilho, se tanto,

de ruga.

E a esmerilhar a graça

da vida, em sua

fuga.

 

 

ESPECULAÇÕES EM TORNO DA PALAVRA HOMEM

 

Mas que coisa é homem,

que há sob o nome:

uma geografia?

 

um ser metafísico?

uma fábula sem

signo que a desmonte?

 

Como pode o homem

sentir-se a si mesmo,

quando o mundo some?

 

Como vai o homem

junto de outro homem,

sem perder o nome?

 

E não perde o nome

e o sal que ele come

nada lhe acrescenta

 

nem lhe subtrai

da doação do pai?

Como se faz um homem?

 

Apenas deitar,

copular, à espera

de que do abdômen

 

brote a flor do homem?

Como se fazer

a si mesmo, antes

 

de fazer o homem?

Fabricar o pai

e o pai e outro pai

 

e um pai mais remoto

que o primeiro homem?

Quanto vale o homem?

 

Menos, mais que o peso?

Hoje mais que ontem?

Vale menos, velho?

 

Vale menos, morto?

Menos um que outro,

se o valor do homem

 

é medida de homem?

Como morre o homem,

como começa a?

 

Sua morte é fome

que a si mesma come?

Morre a cada passo?

 

Quando dorme, morre?

Quando morre, morre?

A morte do homem

 

consemelha a goma

que ele masca, ponche

que ele sorve, sono

 

que ele brinca, incerto

de estar perto, longe?

Morre, sonha o homem?

 

Por que morre o homem?

Campeia outra forma

de existir sem vida?

 

Fareja outra vida

não já repetida,

em doido horizonte?

 

Indaga outro homem?

Por que morte e homem

andam de mãos dadas

 

e são tão engraçadas

as horas do homem?

Mas que coisa é homem?

 

Tem medo de morte,

mata-se, sem medo?

Ou medo é que o mata

 

com punhal de prata,

laço de gravata,

pulo sobre a ponte?

 

Por que vive o homem?

Quem o força a isso,

prisioneiro insonte?

 

Como vive o homem,

se é certo que vive?

Que oculta na fronte?

 

E por que não conta

seu todo segredo

mesmo em tom esconso?

 

Por que mente o homem?

mente mente mente

desesperadamente?

 

Por que não se cala,

se a mentira fala,

em tudo que sente?

 

Por que chora o homem?

Que choro compensa

o mal de ser homem?

 

Mas que dor é homem?

Homem como pode

descobrir que dói?

 

Há alma no homem?

E quem pôs na alma

algo que a destrói?

 

Como sabe o homem

o que é sua alma

e o que é alma anônima?

 

Para que serve o homem?

para estrumar flores,

para tecer contos?

 

Para servir o homem?

Para criar Deus?

Sabe Deus do homem?

 

E sabe o demônio?

Como quer o homem

ser destino, fonte?

 

Que milagre é o homem?

Que sonho, que sombra?

Mas existe o homem?

 

 

A GOELDI

 

 

De uma cidade vulturina

vieste a nós, trazendo

o ar de suas avenidas de assombro

onde vagabundos peixes esqueletos

rodopiam ou se postam em frente a casas inabitáveis

mas entupidas de tua coleção de segredos,

ó Goeldi: pesquisador da noite moral sob a noite física.

 

Ainda não desembarcaste de todo

e não desembarcarás nunca.

Exílio e memória porejam das madeiras

em que inflexivelmente penetras para extrair

o vitríolo das criaturas

condenadas ao mundo.

 

És metade sombra ou todo sombra?

Tuas relações com a luz como se tecem?

Amarias talvez, preto no preto,

fixar um novo sol, noturno; e denuncias

as diferentes espécies de treva

em que os objetos se elaboram:

a treva do entardecer e a da manhã;

a erosão do tempo no silêncio;

a irrealidade do real.

 

Estás sempre inspecionando

as nuvens e a direção dos ciclones.

Céu nublado, chuva incessante, atmosfera de chumbo

são elementos de teu reino

onde a morte de guarda-chuva

comanda

poças de solidão, entre urubus.

 

Tão solitário, Goeldi! mas pressinto

no glauco reflexo furtivo

que lambe a canoa de teu pescador

e na tarja sanguínea a irromper, escândalo, de teus negrumes

uma dádiva de ti à vida.

 

Não sinistra,

mas violenta

e meiga,

destas cores compõe-se a rosa em teu louvor.

 

 

PRECE DE MINEIRO NO RIO

 

Espírito de Minas, me visita,

e sobre a confusão desta cidade,

onde voz e buzina se confundem,

lança teu claro raio ordenador.

Conserva em mim ao menos a metade

do que fui de nascença e a vida esgarça:

não quero ser um móvel num imóvel,

quero firme e discreto o meu amor,

meu gesto seja sempre natural,

mesmo brusco ou pesado, e só me punja

a saudade da pátria imaginária.

Essa mesma, não muito. Balançando

entre o real e o irreal, quero viver

como é de tua essência e nos segredas,

capaz de dedicar-me em corpo e alma,

sem apego servil ainda o mais brando.

Por vezes, emudeces. Não te sinto

a soprar da azulada serrania

onde galopam sombras e memórias

de gente que, de humilde, era orgulhosa

e fazia da crosta mineral

um solo humano em seu despojamento.

Outras vezes te invocam, mas negando-te,

como se colhe e se espezinha a rosa.

Os que zombam de ti não te conhecem

na força com que, esquivo, te retrais

e mais límpido quedas, como ausente,

quanto mais te penetra a realidade.

Desprendido de imagens que se rompem

a um capricho dos deuses, tu regressas

ao que, fora do tempo, é tempo infindo,

no secreto semblante da verdade.

Espírito mineiro, circunspecto

talvez, mas encerrando uma partícula

de fogo embriagador, que lavra súbito,

e, se cabe, a ser doidos nos inclinas:

não me fujas no Rio de Janeiro,

como a nuvem se afasta e a ave se alonga,

mas abre um portulano ante meus olhos

que a teu profundo mar conduza, Minas,

Minas além do som, Minas Gerais.

 

 

PRANTO GERAL DOS ÍNDIOS

 

Chamar-te Maíra

Dyuna

  Criador

seria mentir

pois os seres e as coisas respiravam antes de ti

mas tão desfolhados em seu abandono

que melhor fora não existissem

As nações erravam em fuga e terror

Vieste e nos encontraste

Eras calmo pequeno determinado

teu gesto paralisou o medo

tua voz nos consolou, era irmã

Protegidos de teu braço nos sentimos

O akangatar mais púrpura e sol te cingiria

mas quiseste apenas nossa fidelidade

 

Eras um dos nossos voltando à origem

e trazias na mão o fio que fala

e o foste estendendo até o maior segredo da mata

A piranha a cobra a queixada a maleita

não te travavam o passo

militar e suave

Nossas brigas eram separadas

e nossos campos de mandioca marcados

pelo sinal da paz

E dos que se assustavam pendia o punho

fascinado pela força de teu bem-querer

Ó Rondon, trazias contigo o sentimento da terra

 

Uma terra sempre furtada

pelos que vêm de longe e não sabem

possuí-la

terra cada vez menor

onde o céu se esvazia da caça e o rio é memória

de peixes espavoridos pela dinamite

terra molhada de sangue

e de cinza estercada de lágrimas

e lues

em que o seringueiro o castanheiro o garimpeiro o bugreiro colonial e moderno

celebram festins de extermínio

 

Não nos deixaste sós quando te foste

Ficou a lembrança, rã pulando n’água

do rio da Dúvida: voltarias?

Amigos que nos despachaste contavam de ti sem luz

antigo, entre pressas e erros, guardando

em ti, no teu amor tornado velho

o que não pode o tempo esfarinhar

e quanto nossa pena te doía

 

Afinal já regressas. É janeiro

tempo de milho verde. Uma andorinha

um broto de buriti nos anunciam

tua volta completa e sem palavra
A coisa amarga

girirebboy circula nosso peito

e karori a libélula pousando

no silêncio de velhos e de novos

é como o fim de todo movimento

 

A manada dos rios emudece

Um apagar de rastos um sossego

de errantes falas saudosas uma paz

coroada de folhas nos roça

e te beijamos

como se beija a nuvem na tardinha

que vai dormir no rio ensanguentado

 

Agora dormes

um dormir tão sereno que dormimos

nas pregas de teu sono

Os que restam da glória velha feiticeiros

oleiros cantores bailarinos

estáticos debruçam-se em teu ombro

ron don ron don

repouso de felinos toque lento

de sinos na cidade murmurando

Rondon

Amigo e pai sorrindo na amplidão

 

 

CICLO

 

Sorrimos para as mulheres bojudas que passam como cargueiros adernando,

sorrimos sem interesse, porque a prenhez as circunda.

E levamos balões às crianças que afinal se revelam,

vemo-las criar folhas e temos cuidados especiais com sua segurança,

porque a rua é mortal e a seara não amadureceu.

Assistimos ao crescimento colegial das meninas e como é rude

infundir ritmo ao puro desengonço, forma ao espaço!

Nosso desejo, de ainda não desejar, não se sabe desejo,

e espera.

Como o bicho espera outro bicho.

E o furto espera o ladrão.

E a morte espera o morto.

E a mesma espera, sua esperança.

 

De repente, sentimos um arco ligando ao céu nossa medula,

e no fundamento do ser a hora fulgura.

É agora, o altar está brunido

e as alfaias cada uma tem seu brilho

e cada brilho seu destino.

Um antigo sacrifício já se alteia

e no linho amarfanhado um búfalo estampou

a sentença dos búfalos.

 

As crianças crescem tanto, e continuam

tão jardim, mas tão jardim na tarde rubra.

São eternas as crianças decepadas,

e lá embaixo da cama seus destroços

nem nos ferem a vista nem repugnam

a esse outro ser blindado que desponta

de sua própria e ingênua imolação.

 

E porque subsistem, as crianças,

e boiam na íris madura a censurar-nos,

e constrangem, derrotam

a solércia dos grandes,

há em certos amores essa distância de um a outro

que separa, não duas cidades, mas dois corpos.

 

Perturbação de entrar

no quarto de nus,

tristeza de nudez que se sabe julgada,

comparação de veia antiga a pele nova,

presença de relógio insinuada entre roupas íntimas,

um ontem ressoando sempre,

e ciência, entretanto, de que nada continua e nem mesmo talvez exista.

 

Então nos punimos em nossa delícia.

O amor atinge raso, e fere tanto.

Nu a nu,

fome a fome,

não confiscamos nada e nos vertemos.

E é terrivelmente adulto esse animal

a espreitar-nos, sorrindo,

como quem a si mesmo se revela.

 

As crianças estão vingadas no arrepio

com que vamos à caça; no abandono

de nós, em que se esfuma nossa posse.

(Que possuímos de ninguém, e em que nenhuma região nos sabemos pensados,

sequer admitidos como coisas vivendo

salvo no rasto de coisas outras, agressivas?)

 

Voltamos a nós mesmos, destroçados.

Ai, batalha do tempo contra a luz,

vitória do pequeno sobre o muito,

quem te previu na graça do desejo

a pular de cabrito sobre a relva

súbito incendiada em línguas de ira?

Quem te compôs de sábia timidez

e de suplicazinhas infantis

tão logo ouvidas como desdenhadas?

De impossíveis, de risos e de nadas

tu te formaste, só, em meio aos fortes;

crescente em véu e risco; disfarçaste

de ti mesma esse núcleo monstruoso

que faz sofrer os máximos guerreiros

e compaixão infunde às mesmas pedras

e a crótalos de bronze nos jardins.

Ei-los prostrados, sim, e nos seus rostos

poluídos de chuva e de excremento

uma formiga escreve, contra o vento,

a notícia dos erros cometidos;

e um cavalo relincha, galopando;

e um desespero sem amar, e amando,

tinge o espaço de um vinho episcopal,

tão roxo é o sangue borrifado a esmo,

de feridas expostas em vitrinas,

joias comuns em suas formas raras

de tarântula cobra

touro verme

feridas latejando sem os corpos

deslembrados de tudo na corrente.

 

Noturno e ambíguo esse sorriso em nosso rumo.

Sorrimos também — mas sem interesse — para as mulheres bojudas que passam,

cargueiros adernando em mar de promessa

contínua.

 

 

PACTO

 

Que união floral existe

entre as mulheres e Di Cavalcanti?

Se o que há nelas de fero ou triste

a ele se entrega, confiante?

 

Que chave lhe deram, em São Cristóvão,

para abrir a porta dos olhos,

— e no labirinto escuro se acendem

lumes de paixão, ignotos?

 

Quem lhe soprou a ciência plástica

de resumir em cor o travo

das mais ácidas, o mel intenso

das suburbanas, o peso imenso

de corpos que sonham dar-se?

 

E o que ele aprendeu do corpo

sem alma, porque toda a alma,

como uma víbora calma,

coleia na pele do rosto?

 

E essa pegajosa linguagem

de desejo a surdir da gruta,

e esse suspiro, ai Deus, telúrico,

de sangue moreno-sulfúrico?

 

É o Rio que, feito rio

de vivências, lhe flui nas tintas

de um calor pedindo nudez?

O engenho de cana avoengo,

a mastigar doçuras de vez?

 

São os instintos em grinalda,

num movimento lento e grave,

tão majestoso que a pintura antiga

explode nos jogos modernos

da angústia?

 

Tudo é pergunta, na criação,

e tudo canta, é boca,

no belveder dos sessenta anos,

entre nuvens escravas.

Multiamante,

Di Cavalcanti fez pacto com a mulher.

 

 

VÉSPERA

 

Amor: em teu regaço as formas sonham

o instante de existir: ainda é bem cedo

para acordar, sofrer. Nem se conhecem

os que se destruirão em teu bruxedo.

 

Nem tu sabes, amor, que te aproximas

a passo de veludo. És tão secreto,

reticente e ardiloso, que semelhas

uma casa fugindo ao arquiteto.

 

Que presságios circulam pelo éter,

que signos de paixão, que suspirália

hesita em consumar-se, como flúor,

se não a roça enfim tua sandália?

 

Não queres morder célere nem forte.

Evitas o clarão aberto em susto.

Examinas cada alma. E fogo inerte?

O sacrifício há de ser lento e augusto.

 

Então, amor, escolhes o disfarce.

Como brincas (e és sério) em cabriolas,

em risadas sem modo, pés descalços,

no círculo de luz que desenrolas!

 

Contempla este jardim: os namorados,

dois a dois, lábio a lábio, vão seguindo

de teu capricho o hermético astrolábio,

e perseguem o sol no dia findo.

 

E se deitam na relva; e se enlaçando

num desejo menor, ou na indecisa

procura de si mesmos, que se expande,

corpóreos, são mais leves do que brisa.

 

E na montanha-russa o grito unânime

é medo e gozo ingênuo, repartido

em casais que se fundem, mas sem flama,

que só mais tarde o peito é consumido.

 

Olha, amor, o que fazes desses jovens

(ou velhos) debruçados na água mansa,

relendo a sem palavra das estórias

que nosso entendimento não alcança.

 

Na pressa dos comboios, entre silvos,

carregadores e campainhas, rouca

explosão de viagem, como é lírico

o batom a fugir de uma a outra boca.

 

Assim teus namorados se prospectam:

um é mina do outro; e não se esgota

esse ouro surpreendido nas cavernas

de que o instinto possui a esquiva rota.

 

Serão cegos, autômatos, escravos

de um deus sem caridade e sem presença?

Mas sorriem os olhos, e que claros

gestos de integração, na noite densa!

 

Não ensaies demais as tuas vítimas,

ó amor, deixa em paz os namorados.

Eles guardam em si, coral sem ritmo,

os infernos futuros e passados.

 

 

A UM BRUXO, COM AMOR

 

Em certa casa da Rua Cosme Velho

(que se abre no vazio)

venho visitar-te; e me recebes

na sala trastejada com simplicidade

onde pensamentos idos e vividos

perdem o amarelo,

de novo interrogando o céu e a noite.

 

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.

Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,

uma luz que não vem de parte alguma

pois todos os castiçais

estão apagados.

 

Contas a meia-voz

maneiras de amar e de compor os ministérios

e deitá-los abaixo, entre malinas

e bruxelas.

Conheces a fundo

a geologia moral dos Lobo Neves

e essa espécie de olhos derramados

que não foram feitos para ciumentos.

E ficas mirando o ratinho meio cadáver

com a polida, minuciosa curiosidade

de quem saboreia por tabela

o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.

Olhas para a guerra, o murro, a facada

como para uma simples quebra da monotonia universal

e tens no rosto antigo

uma expressão a que não acho nome certo

(das sensações do mundo a mais sutil):

volúpia do aborrecimento?

ou, grande lascivo, do nada?

 

O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,

e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,

tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,

mostra que os homens morreram.

A terra está nua deles.

Contudo, em longe recanto,

a ramagem começa a sussurrar alguma coisa

que não se entende logo

e parece a canção das manhãs novas.

Bem a distingo, ronda clara:

é Flora,

com olhos dotados de um mover particular

entre mavioso e pensativo;

Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);

Virgília,

cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;

Mariana, que os tem redondos e namorados;

e Sancha, de olhos intimativos;

e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,

o mar que fala a mesma linguagem

obscura e nova de D. Severina

e das chinelinhas de alcova de Conceição.

A todas decifraste íris e braços

e delas disseste a razão última e refolhada

moça, flor mulher flor

canção de manhã nova...

E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)

o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica

entre loucos que riem de ser loucos

e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.

 

O eflúvio da manhã,

quem o pede ao crepúsculo da tarde?

Uma presença, o clarineta,

vai pé ante pé procurar o remédio,

mas haverá remédio para existir

senão existir?

E, para os dias mais ásperos, além

da cocaína moral dos bons livros?

Que crime cometemos além de viver

e porventura o de amar

não se sabe a quem, mas amar?

 

Todos os cemitérios se parecem,

e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida

apalpa o mármore da verdade, a descobrir

a fenda necessária;

onde o diabo joga dama com o destino,

estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,

que revolves em mim tantos enigmas.

 

Um som remoto e brando

rompe em meio a embriões e ruínas,

eternas exéquias e aleluias eternas,

e chega ao despistamento de teu pencenê.

O estribeiro Oblivion

bate à porta e chama ao espetáculo

promovido para divertir o planeta Saturno.

Dás volta à chave,

envolves-te na capa,

e qual novo Ariel, sem mais resposta,

sais pela janela, dissolves-te no ar.

 

 

INQUÉRITO

 

Pergunta às árvores da rua

que notícia têm desse dia

filtrado em betume da noite;

se por acaso pressentiram

nas aragens conversadeiras,

ágil correio do universo,

um calar mais informativo

que toda grave confissão.

 

Pergunta aos pássaros, cativos

do sol e do espaço, que viram

ou bicaram de mais estranho,

seja na pele das estradas

seja entre volumes suspensos

nas prateleiras do ar, ou mesmo

sobre a palma da mão de velhos

profissionais de solidão.

 

Pergunta às coisas, impregnadas

de sono que precede a vida

e a consuma, sem que a vigília

intermédia as liberte e faça

conhecedoras de si mesmas,

que prisma, que diamante fluido

concentra mil fogos humanos

onde era ruga e cinza e não.

 

Pergunta aos hortos que segredo

de clepsidra, areia e carocha

se foi desenrolando, lento,

no calado rumo do infante

a divagar por entre símbolos

de símbolos outros, primeiros,

e tão acessíveis aos pobres

como a breve casca do pão.

 

Pergunta ao que, não sendo, resta

perfilado à porta do tempo,

aguardando vez de possível;

pergunta ao vago, sem propósito

de captar maiores certezas

além da vaporosa calma

que uma presença imaginária

dá aos quartos do coração.

 

A ti mesmo, nada perguntes.

 

 

A UM HOTEL EM DEMOLIÇÃO

 

Vai, Hotel Avenida,

vai convocar teus hóspedes

no plano de outra vida.

 

Eras vasto vermelho,

em cada quarto havias

um ardiloso espelho.

 

Nele se refletia

cada figura em trânsito

e o mais que se não lia

 

nem mesmo pela frincha

da porta: o que um esconde,

polpa do eu, e guincha

 

sem se fazer ouvir.

E advindo outras faces

em contínuo devir,

 

o espelho eram mil máscaras

mineiroflumenpau-

listas, boas, más; caras.

 

50 anos-imagem

e 50 de catre

50 de engrenagem

 

noturna e confidente

que nos recolhe a úrica

verdade humildemente.

 

(Pois eras bem longevo, Hotel, e no teu bojo

o que era nojo se sorria, em pó, contigo.)

 

O tardo e rubro alexandrino decomposto.

 

Casais entrelaçados no sussurro

do carvão carioca, bondes fagulhando, políticos

politicando em mornos corredores

estrelas italianas, porteiros em êxtase

cabineiros

em pânico:

por que tanta suntuosidade se encarcera

entre quatro tabiques de comércio?

A bandeja vai tremulargentina:

desejo café geleia matutinos que sei eu.

A mulher estava nua no centro e recebeu-me

com a gravidade própria aos deuses em viagem:

Stellen Sie es auf den Tisch!

 

Sim, não fui teu quarteiro, nem ao menos

boy em teu sistema de comunicações louça

a serviço da prandial azáfama diurna.

Como é que vivo então os teus arquivos

e te malsinto em mim que nunca estive

em teu registro como estão os mortos

em seus compartimentos numerados?

Represento os amores que não tive

mas em ti se tiveram foice-coice.

Como escorre

escada serra abaixo a lesma

das memórias

de duzentos mil corpos que abrigaste

ficha ficha ficha ficha ficha

fichchchchch.

O 137 está chamando

depressa que o homem vai morrer

é aspirina? padre que ele quer?

Não, se ele mesmo é padre e está rezando

por conta dos pecados deste hotel

e de quaisquer outros hotéis pelo caminho

que passa de um a outro homem, que em nenhum

ponto tem princípio ou desemboque;

e é apenas caminho e sempre sempre

se povoa de gestos e partidas

e chegadas e fugas e quilômetros.

Ele reza ele morre e solitária

uma torneira

pinga

e o chuveiro

chuvilha

e a chama

azul do gás silva no banho

sobre o Largo da Carioca em flor ao sol.

 

(Entre tapumes não te vejo

roto desventrado poluído

imagino-te ileso emergindo dos sambas dos dobrados da polícia militar, do coro ululante de torcedores do campeonato mundial pelo rádio

a todos oferecendo, Hotel Avenida,

uma palma de cor nunca esbatida.)

 

Eras o Tempo e presidias

ao febril reconhecimento de dedos

amor sem pouso certo na cidade

à trama dos vigaristas, à esperança

dos empregos, à ferrugem dos governos,

à vida nacional em termos de indivíduo

e a movimentos de massa que vinham espumar

sob a arcada conventual de teus bondes.

 

Estavas no centro do Brasil,

nostalgias januárias balouçavam

em teu regaço, capangueiros vinham

confiar-te suas pedras, boiadeiros

pastoreavam rebanhos no terraço

e um açúcar de lágrimas caipiras

era ensacado a todo instante em envelopes

(azuis?) nos escaninhos da gerência

e eras tanto café e alguma promissória.

 

Que professor professa numa alcova

irreal, Direito das Coisas, doutrinando

a baratas que atarefadas não o escutam?

Que flauta insiste na sonatina sem piano

em hora de silêncio regulamentar?

E as manias de moradores antigos

que recebem à noite a visita do prefeito Passos para discutir novas técnicas urbanísticas?

E teus mortos

incomparavelmente mortos de hotel fraudados

na morte familiar a que aspiramos

como a um não morrer morrido;

mortos que é preciso despachar

rápido, não se contagiem lençóis

e guarda-pires

dessa friúra diversa que os circunda

nem haja nunca memória nesta cama

do que não seja vida na Avenida.

 

Ouves a ladainha em bolhas intestinas?

 

Balcão de mensageiros imóveis saveiros

banca de jornais para nunca e mais

alvas lavanderias de que restam estrias

bonbonnières onde o papel de prata

faz serenata em boca de mulheres

central telefônica soturnamente afônica

discos lamentação de partidos meniscos

papelarias

conversarias

chope da Brahma louco de quem ama

e o Bar Nacional pura afetividade

súbito ressuscita Mário de Andrade.

 

Que fazer do relógio

ou fazer de nós mesmos

sem tempo sem mais ponto

sem contraponto sem

medida de extensão

sem sequer necrológio

enquanto em cinza foge o

impaciente bisão

a que ninguém os chifres

sujigou, aflição?

Ele marcava mar-cava

cava cava cava

e eis-nos sós marcados

de todos os falhados

amores recolhidos

relógio que não ouço

e nem me dá ouvidos

robô de puro olfato

a farejar o imenso

país do imóvel tato

as vias que corri

a teu comando fecham-se

nas travessas em I

nos vagos pesadelos

nos sombrios dejetos

em que nossos projetos

se estratificaram.

 

A ti não te destroem

como as térmitas papam

livro terra existência.

Eles sim teus ponteiros

vorazes esfarelam

a túnica de Vênus

o de mais o de menos

este verso tatuado

e tudo que hei andado

por te iludir e tudo

que nas arkademias

institutos autárquicos

históricos astutos

se ensina com malícia

sobre o evolver das coisas

ó relógio hoteleiro

deus do cauto mineiro,

silêncio,

pudicícia.

 

Mas tudo que moeste

hoje de ti se vinga

por artes

de pensada mandinga.

Deglutimos teu vidro

abafando a linguagem

que das próprias estilhas

se afadiga em pulsar

o minuto de espera

quando cessa na tarde

a brisa de esperar.

 

Rangido de criança nascendo.

 

Por favor, senhor poeta Martins Fontes, recite mais baixo suas odes enquanto minha senhora acaba de parir no quarto de cima, e o poeta velou a voz, mas quando o bebê aflorou ao mundo é o pai que faz poesia saltarilha e pede ao poeta que eleve o diapasão para celebrarem todos, hóspedes, camareiros e pardais, o grato alumbramento.

 

Anoitecias. Na cruz dos quatro caminhos, lá embaixo, apanhadores, ponteiros, engole-listas de sete prêmios repousavam degustando garapa.

 

 

Mujer malvada, yo te mataré! artistas ensaiavam nos quartos? I will grind your bones to dust, and with your blood and it I’ll make a paste. Bagaço de cana, lá embaixo.

 

Todo hotel é fluir. Uma corrente

atravessa paredes, carreando o homem,

suas exalações de substância. Todo hotel

é morte, nascer de novo; passagem; se pombos

nele fazem estação, habitam o que não é de ser habitado

mas apenas cortado. As outras casas prendem

e se deixam possuir ou tentam fazê-lo, canhestras.

O espaço procura fixar-se. A vida se espacializa,

modela-se em cristais de sentimento.

A porta se fecha toda santa noite.

Tu não se encerras, não podes. A cada instante

alguém se despede de teus armários infiéis

e os que chegam já trazem a volta na maleta.

220 Fremdenzimmer e te vês sempre vazio

e o espelho reflete outro espelho

o corredor cria outro corredor

homem quando nudez indefinidamente.

 

No centro do Rio de Janeiro

ausência

no curral da manada dos bondes

ausência

no desfile dos sábados

no esfregar no repinicar dos blocos

ausência

nas cavatinas de Palermo

no aboio dos vespertinos

ausência

verme roendo maçã

verme roído por verme

verme autorroído

roer roendo o roer

e a ânsia de acabar, que não espera

o termo veludoso das ruínas

nem a esvoaçante morte de hidrogênio.

 

Eras solidão tamoia

vir a ser de casa

em vir a ser de cidade onde lagartos.

 

Vem, ó velho Malta,

saca-me uma foto

pulvicinza efialta

desse pouso ignoto.

 

Junta-lhe uns quiosques

mil e novecentos,

nem iaras nem bosques

mas pobres piolhentos.

 

Põe como legenda

Q u e i j o I t a t i a i a

e o mais que compreenda

condição lacaia.

 

Que estas vias feias

muito mais que sujas

são tortas cadeias

conchas caramujas

 

do burro sem rabo

servo que se ignora

e de pobre-diabo

dentro, fome fora.

 

Velho Malta, please,

bate-me outra chapa:

hotel de marquise

maior que o rio Apa.

 

Lá do acento etéreo,

Malta, sub-reptício

inda não te fere o

superedifício

 

que deste chão surge?

Dá-me seu retrato

futuro, pois urge

 

documentar as sucessivas posses da terra até o juízo final e

mesmo depois dele se há como três vezes três confiamos que

haja um supremo ofício de registro imobiliário por cima da

instantaneidade do homem e da pulverização das galáxias.

 

Já te lembrei bastante sem que amasse

uma pedra sequer de tuas pedras

mas teu nome — A V E N I D A — caminhava

à frente de meu verso e era mais amplo

 

e mais formas continha que teus cômodos

(o tempo os degradou e a morte os salva),

e onde abate o alicerce ou foge o instante

estou comprometido para sempre.

 

Estou comprometido para sempre,

eu que moro e desmoro há tantos anos

o Grande Hotel do Mundo sem gerência

 

em que nada existindo de concreto

— avenida, avenida — tenazmente

de mim mesmo sou hóspede secreto.